domingo, 24 de julho de 2022

Bolsonaro consolida enfraquecimento do Itamaraty com mentiras a embaixadores - Ricardo Della Coletta (FSP)

A vergonha continua... 

Bolsonaro consolida enfraquecimento do Itamaraty com mentiras a embaixadores

Ministério é arrastado para eleição em meio a projeto para tornar parlamentares diplomatas sem perda de mandato

Brasília
Folha de S. Paulo, 24 de julho de 2022

As teorias conspiratórias sobre urnas eletrônicas e os ataques contra o sistema eleitoral brasileiro, feitos pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) a uma plateia de embaixadores estrangeiros, consolidaram o enfraquecimento do Itamaraty a poucos meses das eleições.

O episódio —descrito em reserva por diplomatas como vergonhoso e danoso aos interesses nacionais— também arrastou o Ministério das Relações Exteriores para a campanha de reeleição do presidente e colocou em xeque a imagem que Carlos França tenta projetar dentro do Itamaraty: a de um chanceler que trabalha para normalizar a pasta depois do período carregado de tintas ideológicas de Ernesto Araújo.

A avaliação foi feita à Folha por diferentes diplomatas consultados desde segunda (18), quando Bolsonaro abriu as portas do Palácio da Alvorada para dezenas de chefes de missões diplomáticas estrangeiras e acusou ministros do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) de tramarem sua derrota no pleito de outubro.

Embora o Itamaraty tenha tentado se manter distante do episódio, diplomatas dizem que o ministério foi fatalmente vinculado ao caso por ser o órgão responsável por aconselhar a Presidência da República sobre assuntos de política externa. Também cabe à pasta o relacionamento com a comunidade diplomática sediada em Brasília —no caso, a plateia escolhida por Bolsonaro.

Além do mais, França esteve presente no Alvorada e acompanhou a exposição em que Bolsonaro reciclou mentiras e atacou o sistema eleitoral. No Itamaraty, a atitude do presidente foi amplamente criticada em conversas reservadas. O diagnóstico geral é que a palestra internacionalizou uma crise que até o momento era doméstica e retratou o Brasil como uma espécie de republiqueta em que o próprio chefe do Executivo comanda uma ofensiva institucional contra o Judiciário.

Tratou-se, segundo diplomatas ouvidos, de um ato voltado para o público interno, em especial a militância bolsonarista mais radical. O presidente também ignorou alertas de que a repercussão internacional seria majoritariamente negativa —o que se confirmou na imprensa estrangeira e nas notas que foram divulgadas pelos governos dos EUA e do Reino Unido reafirmando a confiança nas urnas eletrônicas.

Nos dias após o palanque montado no Alvorada, houve mobilização para tentar afastar os diplomatas do ocorrido. A articulação resultou numa nota divulgada pela ADB (Associação dos Diplomatas Brasileiros), que manifestou "plena confiança" na Justiça Eleitoral e no sistema eletrônico de votação.

"Desde sua implantação, em 1996, o sistema brasileiro de votação eletrônica é objeto de reiteradas demandas de cooperação internacional de transferência de conhecimento e tecnologia. Ao longo desse tempo, a diplomacia brasileira testemunhou sempre elevados padrões de confiabilidade que se tornaram referência internacional indissociável da imagem do Brasil como uma das maiores e mais sólidas democracias do mundo", afirma o comunicado da associação.

França não conseguiu evitar críticas de colegas devido à realização do evento no Alvorada. Um ato do tipo deveria ter sido desaconselhado pela chancelaria nos mais fortes termos, de acordo com diplomatas ouvidos, que ficaram apreensivos com o fato de ele não ter tido êxito na tentativa de preservar a diplomacia brasileira de uma agenda que consideram danosa aos interesses nacionais.

Essa visão é compartilhada por embaixadores estrangeiros ouvidos pela Folha sob reserva. Existe também o receio no Itamaraty de que o ministério seja envolvido ao longo do processo eleitoral em novos ataques de Bolsonaro ao sistema de votação. Uma das datas no calendário que gera apreensão é o encontro anual da Assembleia-Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), em setembro.

Embora a reunião de líderes esteja agendada para acontecer poucos dias antes do primeiro turno, o que deve reduzir as chances de Bolsonaro ir ao encontro, existe o temor de que o presidente queira utilizar o palco para outra vez internacionalizar sua campanha contra a Justiça Eleitoral.

Questionado sobre o tema e o papel de França na reunião no Alvorada, o Ministério das Relações Exteriores não respondeu aos questionamentos feitos pela Folha.

Internamente, o ministro é considerado alguém que vinha conseguindo afastar o Itamaraty, ao menos em parte, das pautas bolsonaristas, o que não impediu que a pasta publicasse nota de pesar pela morte de Luiz de Orleans e Bragança, neto da princesa Isabel, chamando-o de "Sua Alteza Imperial e Real".

Diplomatas próximos a França alegam que ele era contra a realização da apresentação no Alvorada, mas não tinha o que fazer diante da decisão do Planalto de promover o evento. Seus aliados também costumam defendê-lo com o argumento de que, não fosse ele o ministro, haveria o risco de Bolsonaro indicar para o Itamaraty um substituto com perfil parecido ao do antecessor. 

O projeto é considerado um duro golpe na carreira diplomática, e França, até o último momento, teve uma atuação pública discreta contra o texto —o que também lhe gerou críticas entre colegas.

Seus aliados novamente o defendem e dizem que ele articulou nos bastidores a não votação da PEC. O adiamento ocorreu após o chanceler ameaçar cancelar uma agenda na ONU em Nova York para voltar a Brasília e trabalhar contra a proposta, tendo obtido do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), a promessa de que a proposição não avançaria no momento.

Por fim, o fato de que países como EUA e China estão sem embaixadores em Brasília, sendo representado por encarregados de negócios há meses, reforça o enfraquecimento diplomático do governo brasileiro.

Quando o Itamaraty deu sinais de enfraquecimento

Apresentação a embaixadores 
Bolsonaro reuniu embaixadores no Palácio da Alvorada e propagou mentiras sobre o sistema eleitoral brasileiro. A apresentação recebeu críticas de outros Poderes e instituições, e representações estrangeiras depois reafirmaram apoio ao sistema. A Associação dos Diplomatas Brasileiros (ADB) disse em nota ter confiança na Justiça Eleitoral.

PEC 34 
Proposta de emenda à Constituição em tramitação no Senado abre caminho para políticos virarem embaixadores sem perderem o mandato. O projeto é criticado por diplomatas, professores de relações internacionais e pesquisadores. O Itamaraty também se manifestou contra a PEC e afirmou, em nota, que a natureza do cargo de embaixador "recomenda distanciamento da política partidária"

Ausência de representantes no Brasil 
O país tem um déficit na representação das chefias de missões diplomáticas em Brasília.
China e EUA, por exemplo, são representadas por encarregados de negócios, e países do entorno regional, entre os quais Argentina e Chile, também estão sem embaixadores na capital federal, o que também reforça o enfraquecimento diplomático do governo brasileiro.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.