A democracia liberal tem futuro?
Sergio Florencio
portal Revista Interesse Nacional
8/03/2024
Duas grandes democracias – EUA e Brasil- venceram recentemente a ameaça real de se transformarem em autocracias. Mas os riscos continuam, com a provável reeleição de Trump e com a resiliência do bolsonarismo. Apesar dessas semelhanças, os dois países responderam de forma diferente às ameaças. No Brasil, o STF declarou Bolsonaro inelegível e intensas investigações estão em curso, enquanto nos EUA, o Partido Republicano continua a apoiar Trump, favorito nas eleições de 2024. Levitsky e Ziblatt, em Como salvar a democracia, sintetizam essas diferenças. “O Brasil rechaçou a recente ameaça à democracia, ao contrário dos EUA”. Em que medida essas ameaças antidemocráticas refletem o declínio global das democracias? A democracia liberal tem futuro?
A parcela de países considerados democracias eleitorais subiu acentuadamente nos anos 1990,declinou a partir de então e situa-se atualmente em apenas 50%, segundo o Índice de Democracia publicado pela Economist Intelligence Unit (EIU).Apesar desse forte declínio, curiosamente, em 2024 haverá eleições em mais de 70 países, com um total de 4 bilhões de habitantes, responsáveis por cerca de metade da população mundial.
O mundo atual talvez seja a imagem reversa daqueledo início dos anos 1990, quando o triunfo da democracia inspirou a euforia de Francis Fukuyamaao anunciar o Fim da História e a hegemonia da democracia liberal. As origens de sua visão residiam na queda do Muro de Berlim, no desmembramento da União Soviética, na expansão do liberalismo, das economias de mercado e da globalização. As políticas econômicas adotadas a partir da década de 1990 se pautaram pela liberalização do comércio internacional, por maior liberdade dos fluxos de capital e pelo crescimento exponencial dos mercados financeiros. As exitosas reformas econômicasintroduzidas por Deng Xiaoping a partir de 1978 e a inserção crescente da China no mercado internacional alimentaram esse otimismo sobre os rumos da globalização.
As democracias do mundo desenvolvido exibiam uma estabilidade sem paralelo, o que levou muitos analistas à ideia de “consolidação democrática”, que teria como substrato eleições livres, alternância no poder, sociedade civil vibrante e instituições representativas funcionais.
Mas esse mundo começou a perder solidez na década de 2010 e testemunhamos hoje a crise das democracias liberais, os sinais de declínio da hegemonia norte-americana, a crescente afirmação da China como superpotência rival e a expansão de regimes populistas autoritários.
Três pilares que serviram de sustentação das democracias liberais começaram a perder solidez e criaram as condições para seu declínio. O primeiro pilar consistiu em crescimento econômico, inclusão social e elevado padrão de vida. A prolongada estabilidade democrática do pós-guerra se fundamentava na significativa melhora do padrão de vida da população, resultante da chamada Era de Ouro do capitalismo, do pós-guerra até inicio dos anos 1970. Nos países da OCDE, a taxa média de crescimento do PIB nas décadas de 50 e 60 foi superior a 4,5%, reduzida para 3% e 2% nos períodos seguintes de 70 e 80.
Esse declínio no crescimento dos países avançados afetou negativamente a percepção da sociedadesobre o sistema político. Yascha Mounk, em O povo contra a democracia, assinala que, de 1935 a 1960, a renda de uma família americana típica dobrou, o que voltou a ocorrer de 1960 a 1985, mas estagnou desde então. A confiança e o otimismo evaporaram, como assinala Mounk, com base em sua pesquisa. “Mais de dois terços dos idosos americanos acreditam que é extremamente importante viver em uma democracia; entre os milennials ,menos de um terço pensa o mesmo. ... Em 1995, por exemplo, apenas uma em cada dezesseis pessoas acreditava que um governo militar era um bom sistema de governo; hoje, a proporção é de uma em seis”.
Esses indicadores refletem a perda da confiança na democracia como o sistema político com maior capacidade de realizar as expectativas da sociedade. É o declínio de uma crença resiliente ao longo de quase meio século, o que abriu caminho para os populismos autoritários de diversas colorações ideológicas no mundo desenvolvido.
O segundo pilar abalado foi o binômio liberalismo e democracia. Em lugar dessa combinação virtuosa, tivemos disfunções e disfuncionalidades nos dois processos, que produziram tanto a democracia sem direitos, como os direitos sem democracia.
A democracia sem direitos corresponde à tirania da maioria, tão temida por Tocqueville, e prevalecente nos regimes que promovem eleições recorrentes, com amplo apoio popular – como a Venezuela - mas não contemplam as aspirações de diversos segmentos da sociedade. O modelo dos direitos sem democracia predomina nos regimes que beneficiam uma reduzida camada da população de bilionários e tecnocratas – como a Rússia - mas excluem o povo das decisões políticas.
Mounk estuda dois casos aparentemente opostos – a ascensão populista na Hungria e o controle tecnocrático na Grécia. No primeiro caso, a Hungria, superado o legado comunista, a democracia parecia em processo de consolidação. Mas a percepção da maioria era que ela pouco se beneficiava do crescimento econômico. Quando a centro-esquerda no poder envolveu-se em amplo escândalo de corrupção, o repúdio popular elegeu Viktor Orbán, que trilhou o caminho populista de estabelecer vínculo direto com o povo e minar as instituições – aparelhamento de órgãos da imprensa, das estatais, da comissão eleitoral e do tribunal constitucional. Em síntese, a vontade do povo marginalizou as instituições independentes responsáveis pelo Estado de direito.
No segundo caso, a Grécia, em 2015, vivia os efeitos de uma grande recessão e de exponencial dívida externa. Uma política de austeridade apenas agravaria a fragilidade da economia, sem perspectiva de trazer solução para o endividamento. Ao mesmo tempo, o calote da Grécia poderia estimular outros países da Zona do Euro a seguir o mesmo rumo, o que seria um risco para a sobrevivência do sistema monetário europeu. Foi realizado um referendo que rejeitou a política de austeridade defendida pela União Europeia e sobretudo pela Alemanha. Apesar da rejeição popular, prevaleceu a diretriz da tecnocracia europeia.
As experiências da Hungria e da Grécia são emblemáticas. Mounk assinala que no primeiro país, “as preferências do povo são cada vez mais iliberais”, ao demonstrarem tanto desencanto quanto às instituições, como intolerância em relação aos direitos de imigrantes, de minorias étnicas e religiosas. No segundo país, “as elites vêm assumindo o controle do sistema político e tornando-o cada vez mais insensível”, com os poderosos refratários às opiniões do povo.
Em síntese, na Hungria, com eleições recorrentes e aparelhamento das instituições, temos um caso de democracia sem direitos ou democracia iliberal. No outro espectro, a Grécia, onde prevaleceu o modelo tecnocrático, temos um caso de direitos sem democracia ou liberalismo antidemocrático. A conclusão de O povo contra a democracia éinescapável. “Como resultado, liberalismo e democracia, os dois elementos centrais de nosso sistema político, começam a entrar em conflito.”
O terceiro pilar da democracia liberal foihistoricamente a homogeneidade étnica e cultural ou, na sua ausência, a hegemonia do segmento mais poderoso da sociedade. Assim, apesar de multiétnico, os EUA viram a democracia moderna florescerporque havia uma clara hierarquia racial, com os brancos monopolizando privilégios. Na Europa Ocidental, países fundados em bases monoétnicas, como Alemanha e Suécia, a democracia prevaleceu porque os direitos dos imigrantes não eram reconhecidos.
Em seu último livro O grande experimento, Mounkafirma. “Esse grande experimento – [a construção de democracias diversificadas] – é o empreendimento mais importante de nossa época.” Na sua visão, “ democracia e diversidade podem , na verdade , dificultar o sucesso das sociedades. Primeiro, o confronto entre grupos identitários diferentes tem sido um dos grandes motores dos conflitos humanos ao longo da história. Em segundo lugar, as instituições democráticas podem tanto aliviar quando exacerbar o desafio da diversidade.”
O desgaste dos três pilares da democracia liberal acima descritos se tornaram mais ameaçadores com a emergência da internet e a consequente proliferação exponencial das redes sociais. Esse ponto de inflexão – a internet - retirou das elites políticas e econômicas o domínio exclusivo dos meios de comunicação e qualquer cidadão é capaz de viralizar uma informação.
Como acabamos de ver, o desgaste progressivo dos três pilares da democracia liberal, agravado pela disseminação das redes sociais, constituem ameaça existencial à democracias e aos valores fundacionais de nossa civilização.
No contexto dessa ameaça, Mounk, em O grande experimento, procurar desvendar percepções, caminhos e políticas que poderão contribuir para“salvar” as democracias liberais. Sua primeira advertência é no sentido de buscar ter consciência da atual realidade, mas sem cair na armadilha do pessimismo. Alega que, de fato, as atuas sociedades diversas têm maior dificuldade de preservar a democracia do que no passado. Mas, ao mesmo tempo, a integração de minorias étnicas e culturais avançou muito ao longo das décadas, o que abre perspectivas mais promissoras para a convivência democrática.
Para salvar a democracia é também essencial que os governos busquem políticas públicas inclusivas. Ao contemplarem os interesses não apenas de grupos específicos, mas do conjunto da sociedade, essas políticas estarão arrefecendo conflitos, promovendo a cooperação e o bem estar da coletividade.
Mounk conclama as forças moderadas da sociedade, identificadas com a democracia, a buscarem diversas formas de participação política mais efetiva, de forma a evitar que a atual polarização avance e se consolide.
Como assinalado no início deste artigo, o sistema político de duas grandes democracias – EUA e Brasil - recentemente venceram a ameaça real de se transformarem em autocracias. Mas vencer a batalha não significa ganhar a guerra. A democracia ainda está ameaçada nesses dois países.
Nos primeiro, as urnas poderão trazer de volta o presidente norte-americano que, nas palavras de Levitsky, mais ameaçou a democracia. No segundo, o personagem sai do palco, mas conta ainda com milhões de fiéis seguidores refratários à democracia liberal. No Brasil, o atual governo, vitorioso nas urnas com margem inferior a 2%, assumiu com apromissora bandeira da união nacional e da participação das forças de centro no gabinete, o que não ocorreu. Com exceção da economia, onde o pensamento liberal democrático tem força, nas demais áreas o governo assume posições ideológicas que o aproximam da militância radical e o afastam do centro democrático. Nesse quadro, a advertência de Mounk sobre a necessidade de políticas públicas inclusivas, de medidas destinadas a evitar a polarização e da maior participação das forças moderadas no governo assume importância decisiva para “ salvar” a democracia em nosso país.
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