Discurso de posse de Pontes de Miranda na Academia Brasileira de Letras
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Conjur, 28/07/2024
O jurista alagoano Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (1892-1979) deixou-nos portentosa obra. Eu levaria uma vida para lê-la. E mais do que dez vidas para escrevê-la, isto é, se conseguisse. Eu não tenho competência para tanto. Nem mesmo em dez vidas, que é um número cabalístico para o Tiradentes, creio que conseguiria. Quem não se lembra? Tiradentes, marca certa tradição, teria afirmado que dez vidas tivesse, dez vidas daria, pelo ideal pelo qual morria. Para as pessoas comuns, precisamos mais do que dez vidas para escrevermos uma obra tão vasta e profunda.
Pontes de Miranda era um polímata (no sentido que Peter Burke dá ao termo, isto é, interessava-se por todos os campos do saber). Foi empossado na Academia Brasileira de Letras, em 8 de março de 1979. Tinha 87 anos. Nos embargos culturais dessa semana comento o discurso de posse de Pontes de Miranda na ABL. É uma contribuição aos trabalhos de Fábio Coutinho, que estuda a presença dos juristas no “Petit Trianon”. Pontes de Miranda ocupou a Cadeira 7, cujo patrono é Castro Alves.
Um estudo biográfico de Pontes de Miranda (e o grande especialista no assunto hoje é o jovem advogado e pesquisador Ednardo Benevides) revela que o jurista nunca se candidatou a cargos ou funções, embora tenha sido desembargador no Rio de Janeiro, então Distrito Federal. No entanto, e quando se falava de cultura desinteressada a coisa muda, candidatou-se à ABL, mais de uma vez. Foi preterido em duas ocasiões. A escolha ocorreu na terceira tentativa. É o que lemos no discurso:
“Nunca, em toda a minha vida, me candidatei a qualquer cargo ou função, aqui ou no estrangeiro. Os que exerci no Poder Judiciário e no Ministério das Relações Exteriores, de que sou aposentado, me foram excepcionalmente destinados, sem concurso e sem pedido meu. Nas próprias Academias de que faço parte, ou fui um dos fundadores, ou incluído apenas mediante consulta que me fizeram. (…). Estou a dizer-vos isso, eminentes acadêmicos, para frisar que só me candidatei, em toda a vida, a esta Academia. Nela fui preterido, uma vez, há mais de meio século, quando era jovem, e recentemente, de novo estimulado por alguns amigos, voltei a concorrer e, pela segunda vez perdi. Quando ia atingir os 87 anos, candidatei-me, espontaneamente, pela terceira vez, e fui eleito. (…)”
Pontes de Miranda enfatizou a missão histórica e intelectual da ABL
Reafirmou compromissos com valores fundamentais, a exemplo da democracia, da liberdade e da igualdade. Tenho comigo um livro de Pontes de Miranda, publicado em 1933, com o sugestivo título de “Os Novos Direitos do Homem”. O autor discutia a crise do Estado, o problema das autocracias (Hitler ascendia na Alemanha), uma certa incapacidade de a democracia representativa fixar uma ordem que reputava necessária, a relação da liberdade com a lei. Discutia nesse precioso livro a confusão do lógico com o justo, que reputava como um vício recorrente nos juristas.
Seguindo o padrão de discurso do acadêmico que toma posse, Pontes de Miranda elogiou o patrono da cadeira que passaria a ocupar. Homenageou Castro Alves. Fez uma referência ao poema “A Cachoeira de Paulo Afonso”. O poema narra a história de Maria e Lucas. Lucas buscava vingança contra o senhor dos escravos, mas descobre que este é seu irmão. Maria e Lucas acabam se suicidando na cachoeira. Pontes de Miranda reputava Castro Alves como uma das maiores inteligências do Brasil. E perguntava o que mais ele poderia ter feito se tivesse vivido mais tempo.
Pontes de Miranda também reverenciou aos demais ocupantes da Cadeira 7: Costa Magalhães, Euclides da Cunha, Afrânio Peixoto, Afonso Pena Júnior e o próprio Hermes de Lima, a quem se referiu da forma que copio em seguida:
“Nascido em 1902, Hermes Lima estudou profundamente e ingressou na Faculdade de Direito em 1920 (…) Em 1924, antes de completar os 23 anos, Hermes Lima foi eleito deputado da Assembleia Legislativa da Bahia. (…) No ano de 1925, já em São Paulo, candidatou-se à Cátedra de Direito Constitucional, com duas brilhantes teses, Princípios Constitucionais e Direito da Revolução. (…) Vindo para o Rio de Janeiro disputou, em 1933, a cátedra de Introdução à Ciência do Direito, com a tese “Material para um Conceito de Direito”. O brilho das aulas e a maneira de ajustar-se aos estudantes e de ajustá-los à sua missão levaram-no a criar admiradores e adversários. (…) Com o motim de 1935, injustamente foi preso. (…) Quero apenas acrescentar que este foi o homem, o intelectual, que os ilustres acadêmicos conheceram, e o homem, o intelectual, o amigo, que conheci. (…)”
Na parte final do discurso Pontes de Miranda revela e comprova cultura enciclopédica aludindo às várias academias, de todos os tempos. Lembrou inicialmente a Academia da História Portuguesa, criada em 1720 e a Academia de Ciências de Lisboa, de 1779. Chamou a memória que no século III vários acadêmicos se reuniam no Museu de Alexandria. Mencionou os acadêmicos de Granada e de Córdoba.
Fez referências à Academia de Nápoles (1433); à Academia Platônica (fundada em 1474 por Lorenzo de Médici); à Academia Científica, de 1603, de que foi membro Galileu; à Real Academia de Ciências, de 1757; à Academia Francesa, de 1635; à Real Academia de Ciências fundada na Alemanha, em 1700, planejada por Leibniz; à Academia Imperial de Ciência de São Petersburgo, Rússia, que Catarina I instalou em 1725.
Lembrou que os norte-americanos fundaram a Sociedade Filosófica de Filadélfia, em 1727, a Academia de Artes e Ciências de Boston, em 1780, entre outras. Fechou esse ponto fazendo referências à experiência brasileira:
“No Brasil, houve e há, felizmente, muitas Academias. A Academia Brasileira da Bahia foi criada em 1724, dita dos Esquecidos, e a do Rio de Janeiro, a dos Felizes, em 1736, bem como a dos Seletos, em 1751. Em 1791, teve o Rio de Janeiro a Academia Científica; em 1786, a Sociedade Literária. Em 1896, criou-se a Academia Brasileira de Letras em que nos achamos. Todos nós, seres humanos, somos mortais; a Academia, não. O que se deve aos patronos das Cadeiras, aos fundadores e aos sucessores, inclusive aos atuais ocupantes, bem mostra o que o Brasil fez pela Academia.”
O discurso é simples, curto, objetivo, preciso. Pontes de Miranda encerrou registrando que ali estava para uma convivência intelectual e afetuosa, bem como agradecia os presentes pela atenção para com a sessão de posse. Um discurso marcado pelo afeto e pela adesão incondicional à cultura e ao pensamento, exatamente como foi a vida desse jurista incomparável.
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