O mundo de Ernesto Fraga naufraga. Basta saber se o Brasil se deixará imergir sob as águas turvas de uma tormenta ou se descobrirá nela apenas uma marolinha.
A nomeação do chanceler para o Ministério havia acendido um alerta para aqueles que reconheceram a tradição de pensamento por detrás das suas ideias: o velho anti-iluminismo, que esteve na origem dos fascismos do século XX. Conhecendo o “espírito” de sua reforma no MRE, não ficamos surpresos pelo atual clima de caça às bruxas, nem tampouco pela demissão do diplomata Paulo Roberto de Almeida da presidência do IPRI. O que explica que um diplomata marginalizado pelos governos do PT e de convicções liberais, com livro sobre nada menos do que Roberto Campos, seja defenestrado por ter postado textos críticos sobre a política exterior no seu Blog?
Quem leu com atenção os escritos de Ernesto Araújo percebe facilmente seu anti-modernismo. Não lhe bastam críticas aos mercados mundializados, à racionalidade tecnológica, ao universalismo “abstrato”, à laicidade e ao “desconstrutivismo” e “relativismo” das esquerdas. Ele se mostra, sobretudo, avesso ao pluralismo liberal e, com isso, parece ser mais um dos que falam em nome da liberdade, exigindo que “sejamos nós mesmos”, ao mesmo tempo em que impõem o dever de sermos “obedientes àquele que nos dita” (isto é, ao ditador). Por isso, seu inimigo suposto não é apenas o chamado “marxismo cultural”, mas também os fundamentos liberais da ordem política: o universalismo dos direitos humanos, o constitucionalismo, o pluralismo da nação, o direito internacional e as organizações intergovernamentais.
Sob o mote de uma luta contra o “globalismo”, o Itamaraty é visto como devendo estar em busca de um Ocidente perdido, muito embora esteja ainda, claramente, sem qualquer bússola. Para tanto, sinceramente ou não, de forma autêntica ou oportunista, Ernesto Araújo se filia ao núcleo de ideias da extrema direita do século XX. Em uma linguagem sedutora, porque faz eco aos ideais românticos da vida, da autenticidade e dos sentimentos, e porque mistura o pop e o erudito, ele afirma que é o mito, e não a racionalidade ou a ética, que forma o fundamento legítimo da comunidade humana; ele elogia a guerra como meio de construção de identidade; ele reivindica o culto patriota dos heróis e dos antepassados; ele recusa um fundamento não religioso para a ordem política; e ele afirma a defesa de valores particularistas contra pretensos universais, incluindo o sublime derramamento de sangue de patriotas em defesa de sua terra. Sob a veste de um “amor cristão”, anuncia-se em sua fala uma visão bem mais antiga, bastante “pagã”, de um amor à tribo e à cidade que se afirma na guerra com “amor e coragem”. Com isso, ele não apenas tira conclusões anti-iluministas, pseudo-eruditas, de filósofos distantes de sua ideologia (Burke, Herder, Nietzsche e Hegel), como também se guia por autores de extrema direita (Heidegger em modo nazista, Julius Evola e René Guénon).
Para ele, seguindo o pessimismo cultural de Oswald Spengler, o Ocidente, outrora vivo, pujante e orgânico, estaria decadente e agonizante, ameaçado de um apocalipse e precisando de salvação. Felizmente, teríamos novos messias que nos fazem reconhecer a verdade esquecida que nos salvará: o amor à nossa pátria. Quem traria a boa nova? Para o mundo, Trump, o único que “ainda pode salvar o Ocidente”; e para terras tupiniquins, imagino que Bolsonaro teria a mesma bendita exclusividade. Desta forma, Jair Messias Bolsonaro, “o mito”, alinha-se a Donald John Trump, o mitificado - um liberando o Ocidente do “globalismo”, e o outro libertando o Brasil do “marxismo”. O “America first” de Trump traduz-se, assim, no Brasil, por um “Ocidente primeiro” sob liderança dos EUA, de tal modo que, entre nós e eles, “the sky is the limit!”. Cabe-nos concluir que isso significa dizer mais uma vez, só que agora em inglês ou tupi, que “a ideologia vem primeiro e o resto é detalhe!”.
Com esta atitude de mundo, bem conforme ao autoritarismo rompante, soam ilegítimos os apelos ao pluralismo e ao debate. Muito mais do que uma luta contra o “marxismo cultural” que teria infestado o Estado, trata-se de um projeto de “unidade patriótica” em um Itamaraty renascido, em que os inconformes se tornam rapidamente hereges. Isso se aplica inclusive aos conservadores, pois o governo Bolsonaro está longe de formar um conservadorismo sem tensões internas: o tradicionalismo messiânico do chanceler, típico do que o diplomata Rubens Ricupero chamou de “franja lunática” do trumpismo, está em clara contradição com o neoliberalismo liderado pelo superministro Paulo Guedes, e não se confunde nem com o conservadorismo pragmático, técnico e nacionalista de militares, nem com o conservadorismo moral-religioso de grupos cristãos evangélicos e católicos. É certo que composições são possíveis e estão sendo feitas; contudo, na chancelaria, temos a ala alinhada à ortodoxia de extrema-direita ascendente mundialmente e, por isso, é extremamente preocupante o eventual ganho de sua autoridade e seu peso no Governo Bolsonaros (sic.).
Portanto, se não houver respostas categóricas contra quaisquer desvios autoritários, a ala “trumpista” pode acabar por pesar mais forte e, quiçá, prevalecer. Quando escutamos a existência de um informal “comitê de tutela militar sobre o chanceler”, cremos que esse será mais um caso de radicalismo a ser neutralizado por setores esclarecidos do Estado, ou simplesmente a naufragar diante da primeira grande onda a abatê-lo. De todo modo, sabemos, por experiência recente, que os lunáticos de ontem podem se tornar os messias de amanhã. Neste caso, ironicamente, os náufragos seriam os inimigos de outrora, conservadores, liberais e esquerdas, lançados abraçados ao mar pela tragicômica Caravela nacional do bolsonarismo trumpista, navegando então por mares nunca d’antes navegados rumo às terras de um Brasil Restaurado.
* É livre-pesquisador e diretor do Ateliê de Humanidades