Vou resumir, agradecendo em primeiro lugar a Augusto de Franco a transcrição deste belo artigo de Eduardo Affonso sobre a divisão radical que paralisa o Brasil.
Já estivemos divididos no passado por essas arquiteturas políticas binárias: Liberais e Conservadores no Império, varguistas e antivarguistas na República, Arena e MDB na ditadura, depois tucanos e petistas durante certo tempo e agora os tais comunistas e fascistas da atualidade, ou petistas e bolsonaristas por enquanto.
Que bipartição miserável esta nossa. (PRA)
Belíssimo artigo do @eduardoaffonso hoje n'O Globo. Augusto de Franco
Veados e caranguejos
Eduardo Affonso
O Globo (17/02/2024)
O Brasil é uma grande Andrelândia, aprisionado em modelo binário (e eventualmente paradoxal)
Andrelândia é uma cidadezinha do Sul de Minas, daquelas que poderiam perfeitamente ser o cenário de uma bucólica novela das 7 (no tempo em que novelas das 7 eram bucólicas). O casario colonial se espalha, como as contas de um rosário, em torno da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Porto da Eterna Salvação (é assim que o hino municipal descreve a enorme praça ovalada, mais parecendo uma nau) no centro histórico daquela que um dia foi a Vila Bela do Turvo.
A meio caminho entre Ibitipoca e São Thomé das Letras, Andrelândia não ostenta a natureza intocada de uma nem os toques sobrenaturais da outra. Mas tem algo que a faz única: um bipartidarismo próprio, que — para o bem e, principalmente, para o mal — sobreviveu aos mais de 150 partidos políticos da nossa História.
Nas cédulas e nas urnas eletrônicas, as siglas podiam ser UDN, PR, PL, PSD, PTB, PCdoB, MDB, Arena, PSDB, Novo, PT; na cabeça do eleitor, o voto seria nos veados ou nos caranguejos.
Esta é outra peculiaridade, e remonta ao século XIX, quando um grupo se insurgiu contra a hegemonia do Partido Liberal e fundou o Partido Republicano do Turvo. Os eleitores do primeiro, tradicionalistas, perderam terreno. Andaram para trás, viraram caranguejos. Os do segundo, dando saltos adiante, se autodenominaram veados — e desde então Andrelândia deve ser o único lugar em que esse termo tem uma acepção ideológica.
Emulando as mesquinharias da política nacional (em que Bolsa Família vira Auxílio Brasil para depois voltar ao nome original — que já era um rebranding dos vários programas de transferência de renda de outro governo), as obras dos veados eram abandonadas nas administrações dos caranguejos, e vice-versa. Como a resultante das forças dos que saltavam para a frente e dos que andavam para trás é nula, a cidade estagnou.
O Brasil é uma grande Andrelândia, aprisionado no modelo binário (e eventualmente paradoxal) em que se muda o rótulo, mas os ingredientes permanecem os mesmos. Lá, os veados — outrora reformadores — se acomodaram no PMDB; e foram os tucanos que acolheram os conservadores caranguejos. Mais ou menos como, noutra escala, os “progressistas” defendem estatização, protecionismo, censura — enquanto “reacionários” propõem liberalismo econômico (e um golpe de Estado, de vez em quando).
O mais ilustre dos andrelandenses, o historiador José Murilo de Carvalho (ocupante por quase 20 anos da cadeira 5 da Academia Brasileira de Letras) escreveu que os quatro pecados capitais do Brasil eram a escravidão, o latifúndio, o patrimonialismo e o patriarcalismo. Poderia ter incluído um quinto: o maniqueísmo. Esse que faz com que, em 2024, ainda sejamos divididos entre fascistas e comunistas — categorias do início do século XX, ressuscitadas como espantalhos.
Nesta semana, o apresentador Luciano Huck foi xingado no Xuíter por compartilhar um artigo pró-democracia. Como se sabe, só quem é esquerdista desde criancinha pode — mesmo apoiando ditaduras e terroristas — se considerar um humanista, um democrata.
É o mal de pertencer a uma fauna limitada a cervídeos e crustáceos, que insiste em negar a diversidade, a nuance, a complexidade, a possibilidade de convergência.
Quem souber como superar o estágio de veados x caranguejos em Andrelândia talvez tenha a chave para destravar o Brasil.