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quinta-feira, 29 de junho de 2023

Derrota de Putin na Ucrânia pode ter consequências inimagináveis - Thomas Friedman (NYT, OESP)

 Derrota de Putin na Ucrânia pode ter consequências inimagináveis 

Thomas Friedman, THE NEW YORK TIMES
O Estado de S. Paulo, 29/06/2023

Os acontecimentos recentes na Rússia se parecem com o trailer do próximo filme de James Bond: o ex-chefe, hacker e mercenário de Vladimir Putin, Ievgeni Prigozhin se rebela. Prigozhin, parecendo com um personagem saído diretamente de ‘Doctor No’, lidera um comboio de ex-detentos e mercenários em uma corrida excêntrica para tomar a capital russa, derrubando alguns helicópteros no caminho. Eles encontram tão pouca resistência que a internet está cheia de imagens de seus mercenários esperando pacientemente para comprar café pelo caminho, como se dissessem: ‘Ei, podem colocar uma tampa no café? Não quero sujar meu blindado.”

Ainda não está claro se o frio e calculista Putin dirigiu qualquer ameaça direta a seu velho amigo Prigozhin, mas o líder mercenário, sendo um velho laranja de Putin, claramente não estava assumindo riscos. E com razão. O sempre útil presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, que abrigou Prigozhin, relatou que Putin compartilhou consigo o desejo de matar o mercenário e “esmagá-lo como um inseto.”

Como o sinistro Ernst Stavro Blofeld, o vilão dos filmes de James Bond que lidera o sindicato internacional do crime Spectre e sempre era visto acaraciando seu gatinho branco enquanto tramava algum ardil, Putin é quase sempre visto em sua longa mesa branca, com as visitas geralmente sentadas no lado oposto da peça, onde, é possível suspeitar, uma armadilha espera pronta para engolir qualquer um que saia da linha.

A minha reação inicial ao ver o drama se desenrolar na CNN foi questionar se tudo aquilo era real. Não sou fã de teorias da conspiração, mas 007 — Viva e Deixe Morrer não tem nada a ver com esse motim com um roteiro escrito em Moscou — um roteiro ainda em produção, enquanto um Putin analógico tenta alcançar com a TV estatal russa um Prighozin digital que o cerca com sua comunicação via Telegram.

Responder a pergunta que muitos me fazem — O que Putin fará agora — é impossível. Eu seria cauteloso, no entanto, em tirá-lo de cena tão rápido. Lembrem-se: Blofeld apareceu em seis filmes do James Bond até que o 007 finalmente o derrotasse.

Tudo que se pode fazer por enquanto, creio, é tentar calcular os diferentes equilíbrios de poder envolvidos nessa história e analisar quem, nos próximos meses, pode fazer o quê.

As fraquezas de Vladimir Putin
Permitam-me começar com o maior equilíbrio de poder em questão, que nunca pode ser deixado de lado. E o presidente Biden merece os aplausos por ele. Foi graças à ampla coalizão reunida pelo presidente dos Estados Unidos para enfrentar Putin na Ucrânia que expôs a face do vilarejo Potemkin do líder russo.

Gosto da argumentação de Alon Pinkas, ex-diplomata israelense sediado nos EUA, em um artigo publicado no Haaretz nesta semana. Segundo ele, Biden entendeu desde o começo que Putin é o epicentro de uma constelação antiamericana, antidemocrática e fascista que precisa ser derrotada. E com ela, não há negociação possível. O motim de Prigozhin fez na prática o que Biden tem feito desde a invasão da Ucrânia: expôs as fraquezas de Putin, ferundo sua já abalada aparência de invencibilidade e sua suposta condição de gênio estrategista.

Putin, há muito, governa com dois instrumentos: medo e dinheiro, cobertos com uma capa de nacionalismo. Ele comprou quem poderia comprar e prendeu ou matou quem não podia. Mas agora alguns observadores do que acontece na Rússia argumentam que o medo está se dissipando em Moscou. Com a aura de invencibilidade de Putin abalada, outros poderiam desafiá-lo. Veremos.

Se eu fosse Prigozhin ou um de seus aliados, ficaria longe de qualquer um que passasse na calçada em Belarus com um guarda-chuva em um dia de sol. Putin tem feito um trabalho bastante efetivo eliminando seus críticos e ninguém pode subestimar o temor profundo dos russos sobre qualquer retorno ao caos do período pós-soviético, no início dos anos 90. Muitos deles ainda são gratos a Putin pela ordem que ele restaurou no país.

Um plano que pode dar certo
Quando analisamos o equilíbrio de poder de Putin com o resto do mundo as coisas ficam complicadas. No Ocidente, temos de temer as fraquezas de Putin tanto quanto tememos suas forças.

Ainda não há um sinal de que o motim de Prigozhin ou a contraofensiva ucraniana tenham levado a qualquer colapso significativo das forças Rússias na Ucrânia. Apesar disso, ainda é cedo para qualquer conclusão.

Fontes do governo americano dizem que a estratégia de Putin é exaurir o Exército ucraniano até o ponto em que ele não tenha mais suas peças de artilharia howitzer de 155 milímetros nem seus sistemas antiaéreos cedidos por Washington. Essas peças são a principal arma das forças terrestres ucranianas. Sem elas, a Força Aérea Russa teria alguma supremacia até que os aliados ocidentais tenham seus recursos exauridos, ou até Donald Trump voltar à Casa Branca e Putin conseguir algum acordo sujo com ele que salve sua pele.

A estratégia não é maluca. A Ucrânia gasta tanto esse tipo de munição — cerca de 8 mil por dia — que o governo americano está tentando encontrar reposição para elas antes que novas entregas industriais dessas peças cheguem no ano que vem.

Além disso, a logística é importante numa guerra. Também é importante se você está no ataque ou na defesa. Atacar é mais difícil e os russos estão entrincheirados e com toda sua linha defensiva minada. É por isso que a contraofensiva ucraniana tem sido tão lenta.

Como me disse Ivan Krastev, especialista em Rússia e diretor do Centro de Estatégias Liberais na Bulgária: “No primeiro ano da guerra, quando a Rússia estava no ataque, todo dia sem uma vitória era uma derrota. No segundo ano, todo dia em que a Ucrânia não está vencendo é uma vitória para os russos.”

Nós não devemos subestimar a coragem dos ucranianos. Mas também não podemos superestimar a exaustão do país como uma sociedade.

E como a história ensina, o Exército da Rússia tem aprendido com seus erros. John Arquilla, professor da Escola Naval de Pós-Graduação na Califórnia e autor de Blitzkrieg: os novos desafios da guerra cibernética, “os russos sofrem, mas aprendem.”

Segundo o professor, o Exército de Putin ficou melhor em manter a hierarquia da tropa no front. Além disso, segundo Arquilla, eles aperfeiçoaram o uso de drones em combate. Ao mesmo tempo, os ucranianos mudaram sua estratégia inicial, de usar unidades móveis menores, armadas com armas inteligentes, para atacar um imóvel Exército russo, para um perfil mais pesado e maior, com tanques e blindados.

“Os ucranianos agora estão cada vez mais parecidos com o Exército russo que estavam derrotando no ano passado”, disse Arquilla. “O campo de batalha nos dirá se essa é a melhor estratégia.”

Os riscos de uma Rússia sem Putin
Isto posto, devemos nos preocupar tanto com a perspectiva de uma derrota de Putin quanto de qualquer vitória. E se ele for derrubado? Não estamos mais na época do fim da União Soviética. Não há ninguém bonzinho ou decente ali. Nenhum personagem inspirado em Yeltsin ou Gorbachev está à espreita para assumir o poder.

“A velha União Soviética tinha algumas instituições estatais que eram responsável por manter o funcionamento da burocracia, bem como alguma ordem de sucessão. Quando Putin entrou em cena, ele destruiu ou subverteu todas as estruturas sociais e políticas além do Kremlin”, me explicou Leon Aron, especialista em Rússia do American Enterprise Institute, cujo livro sobre a Rússia de Putin sai em outubro.

No entanto, a História da Rússia traz algumas reviravoltas surpreendentes, ele diz. “Apesar disso, numa perspectiva histórica, os sucessores de líderes reacionários no país costumam ser mais liberais: o czar Alexander II depois de Nicolas I, e na URSS, Kruschev depois de Stalin, e Gorbachev depois de Andropov. Então, se houver uma transição pós-Putin, há esperança.

Apesar disso, no curto prazo, Se Putin for derrubado, podemos acabar com alguém pior. Como você, leitor, se sentiria, se Prigozhin estivesse no Kremlin desde hoje cedo comandando o arsenal nuclear da Rússia?

Um outro cenário possível é a desordem ou uma guerra civil e a consequente implosão da Rússia nas mãos de diversos oligarcas e grupos armados. Por mais que eu deteste Putin, eu odeio o caos ainda mais, porque quando um Estado do tamanho da Rússia colapsa é muito difícil reconstruí-lo As armas nucleares e a criminalidade derivadas dessa catástrofe mudariam o mundo.

E isso não é uma defesa de Putin. É uma expressão de raiva pelo que ele fez a seu país, tornando-o uma bomba-relógio continental. Ele fez o mundo inteiro refém.

Se Putin vencer, o povo russo perderá. Mas se ele perder e for substituído pelo caos, o mundo inteiro sairá derrotado.


segunda-feira, 26 de junho de 2023

Como será o dia em que Putin desligar todos os cabos submarinos? - Moisés Naim (OESP)

Como será o dia em que Putin desligar todos os cabos submarinos?

Moisés Naim

O Estado de S. Paulo, 25/06/2023

 É fácil imaginar a internet como um fenômeno etéreo, imaterial. Nestes tempos é normal, por exemplo, conectar-se à rede sem necessidade de cabos, guardar dados na “nuvem” e supor que a informação flui sem “sujar-se” no mundo tátil.

Pena que essas suposições sejam errôneas. A rede da qual dependemos é alarmantemente física e eminentemente vulnerável. Segundo o marechal Edward Stringer, ex-diretor de operações do Ministério de Defesa britânico, 95% do tráfego internacional de dados passa por um pequeno número de cabos submarinos. Estamos falando de meros 200 cabos, cada um da grossura aproximada à de uma mangueira de jardim e capaz de transferir cerca de 200 terabytes por segundo.

Por essa rede física trafegam US$ 10 trilhões em transações financeiras a cada dia. Como explica Stringer, nos últimos 20 anos, a Rússia investiu fortemente em sistemas capazes de atacar essa rede de cabos submarinos. O Kremlin conta hoje com uma frota de sofisticados submergíveis não tripulados projetados especificamente para esses fins. E a China também.

De fato, não se trata de uma ameaça teórica. Em outubro de 2022, o cabo submarino que conecta as Ilhas Shetland com o restante do mundo foi cortado em dois pontos. Poucos dias antes, havia sido detectada presença nessa região de um barco russo de “investigação científica”.

Não é possível vincular a presença do barco com o corte do cabo. De fato, na maioria das vezes os cortes se devem a acidentes com embarcações pesqueiras ou a eventos sísmicos no leito marinho. Mesmo assim, essa coincidência preocupou muito as agências de segurança das potências ocidentais, que perceberam o incidente como uma advertência enviada pelo Kremlin.

Outro evento relevante nesse sentido foi a decisão tomada em fevereiro de 2023 pelas duas maiores empresas de telecomunicações chinesas, que decidiram se retirar do consórcio internacional encarregado de desenvolver uma rede de 19,2 mil quilômetros de cabos submarinos que conectam o sudoeste da Ásia e a Europa Ocidental.

Os impactos de um ataque coordenado contra os principais cabos submarinos em nível global seriam incalculáveis. Um ataque simultâneo paralisaria o comércio global, os mercados financeiros, o trabalho remoto e as indústrias de tecnologia e comunicação, provocando uma recessão mundial.

Mas o problema não seria meramente financeiro: as cadeias de fornecimento do século 21 dependem da transferência constante de dados para coordenar a entrega de bens e produtos. A interrupção deste fluxo poderia causar um efeito dominó de atrasos e cancelamentos que restringiria a integração econômica, política e até cultural de diferentes zonas geográficas.

Ainda mais, a crise financeira e econômica que um ataque desse tipo precipitaria nem sequer seria o maior dos problemas. “Desconectar” os cabos de potências rivais desembocaria numa crise inadministrável, especialmente se for possível atribuir a responsabilidade a algum ator estatal específico, o que poderia provocar conflitos e reconfigurar alianças. Os países que dependem em grande medida da infraestrutura digital seriam os mais afetados, e aqueles com capacidades autônomas de comunicação e tecnologia poderiam obter vantagens estratégicas.

Desafortunadamente, tais cenários não podem ser ignorados, porque no alto-mar reina a anarquia. Os tratados internacionais existentes sobre direito de navegação não cobrem satisfatoriamente o caso dos cabos submarinos. Trata-se de um exemplo emblemático de uma realidade global que, apesar de ser de grande interesse público, não está adequadamente protegida nem física nem legalmente.

Até agora, as potências marítimas se abstiveram de atacar em grande escala as infraestruturas submarinas. Obviamente, atacar os cabos e conexões submarinas do rival provocaria custosas retaliações. Mas o equilíbrio atual é instável e inerentemente suscetível a perturbações que podem desestabilizar o sistema mundial da noite para o dia.

Quando imaginamos que eventos seriam capazes de suscitar uma escalada entre o Ocidente e seus rivais, nós tendemos a nos esquecer dessa realidade. As sociedades contemporâneas não podem funcionar sem a transmissão de dados facilitada pela internet que, por sua vez, não pode funcionar sem infraestruturas muito difíceis de defender.

A sensação de invulnerabilidade do Ocidente é ilusória, e seus rivais entenderam bem que certas infraestruturas — começando pelos cabos submarinos — são seu calcanhar de Aquiles. Essa realidade sublinha a necessidade de manter relações minimamente funcionais na arena internacional.

A interdependência entre os países não é apenas um conceito usado por diplomatas. É uma realidade que define o mundo de hoje. Este é um mundo no qual os problemas, riscos e ameaças se fazem cada vez mais internacionais, enquanto as respostas dos governos seguem sendo predominantemente nacionais. Há problemas que nenhum país consegue resolver atuando sozinho. A necessidade de coordenar respostas e responder coletivamente com eficácia às ameaças é um objetivo para o qual o mundo não está preparado. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

https://www.estadao.com.br/internacional/como-sera-o-dia-em-que-putin-desligar-os-cabos-da-internet-mundial-leia-a-coluna-de-moises-naim/

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Como a Economia global pode ajudar novamente o governo Lula - Luiz Guilherme Gerbell (OESP)

 Como a Economia global pode ajudar novamente o governo Lula

Por Luiz Guilherme Gerbelli
O Estado de S. Paulo, 11/06/2023

O início da nova gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem tido uma ajuda inesperada da economia global. Na virada do ano, o que boa parte dos analistas esperava era uma atividade mundial bem mais fraca do que os últimos indicadores têm revelado.

A conjuntura mais positiva deve fazer com que o Brasil colha um novo ano de bom resultado da balança comercial. Uma parte dos bancos e consultorias prevê um superávit acima de US$ 70 bilhões em 2023, o que marcará um recorde se confirmado.

O estágio atual da economia está longe de ter como pano de fundo a forte expansão observada na primeira década dos anos 2000, fundamental para sustentar o crescimento econômico nos dois primeiros mandatos de Lula (2003-2010). Mas o fato de o mundo ter se mostrado resiliente neste início de ano pode ajudar a repetir, ainda que em uma escala menor, o ambiente internacional favorável enfrentado pelo petista no passado.

“Há sinais de desaceleração na atividade global, mas não é um colapso”, afirma Julia Passabom, economista do Itaú Unibanco.

Os analistas ainda tentam entender o que explica essa força acima do esperado na atividade global. O mundo lida com um cenário pouco comum. Enquanto a confiança de consumidores e empresários está em queda - o que indica uma menor propensão para investir e comprar –, os dados de atividade, sobretudo no setor de serviços, ainda não apresentaram uma desaceleração tão acentuada.

“Há sinais de desaceleração na atividade global, mas não é um colapso”, afirma Julia Passabom, economista do Itaú Unibanco.

Os analistas ainda tentam entender o que explica essa força acima do esperado na atividade global. O mundo lida com um cenário pouco comum. Enquanto a confiança de consumidores e empresários está em queda - o que indica uma menor propensão para investir e comprar –, os dados de atividade, sobretudo no setor de serviços, ainda não apresentaram uma desaceleração tão acentuada.

A economia brasileira começou a registrar robustos resultados comerciais no início dos anos 2000, quando o gigante asiático ingressou no comércio internacional e passou a crescer de forma mais acelerada - em alguns anos, o avanço do PIB superou 10%. De 2001 a 2022, as exportações de produtos básicos do Brasil cresceram de US$ 23,8 bilhões para US$ 158,9 bilhões, de acordo com dados tabulados pela Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior (Funcex).

Hoje, os sinais de desaceleração da economia global levam a uma queda nos preços, que subiram de forma acelerada depois de superada a fase mais aguda da crise sanitária. O Brasil, no entanto, tem conseguido compensar essa redução com o aumento na quantidade de produtos vendidos. O País colheu uma supersafra de grãos e é dono de um agronegócio que se destaca pela sua elevada produtividade.

“O Brasil está performando bem por conta própria, pelos próprios méritos”, afirma Fabio Akira, economista-chefe da BlueLine Asset. ”Houve um choque de oferta no setor exportador. É o que chamo de milagre de multiplicação. Consegue dar uma turbinada no PIB, simultaneamente alivia a inflação e beneficia as contas externas.”

Nos últimos anos, a subida da cotação das commodities ajudou a colocar o comércio internacional do País em outro nível. Um estudo feito pelo Bradesco mostra que o peso da corrente de comércio (soma da importação e exportação) no Produto Interno Bruto (PIB) ultrapassou a marca de 30% desde 2021, o maior patamar desde o início da série histórica, em 1960 - em média, essa relação sempre rondava os 20%.

“É verdade que esse movimento foi fruto do efeito da explosão de preços na pandemia, mas o fato é que houve um efeito multiplicador no crescimento da economia”, avalia Honorato, do Bradesco. “Parte importante da surpresa de crescimento tem a ver com o fato de a força do preço das commodities ter sido subestimada.”

Setor externo melhor
Os resultados da balança comercial devem contribuir para melhorar o resultado do setor externo brasileiro como um todo. Nas contas do Itaú, o déficit em conta corrente do País deve recuar dos atuais 2,7% do PIB no acumulado em 12 meses para 1,7% do PIB ao fim de 2023. “É um número melhor do que a média recente. Nos últimos três anos, ficou ao redor de 2,5% do PIB”, afirma Julia, economista do banco.

O setor externo brasileiro também se beneficia de uma situação confortável no volume de investimentos diretos no País (IDP). Em 12 meses até abril, o IDP somou US$ 82 bilhões (ou 4,17% do PIB), um pouco abaixo do apurado em março (US$ 89,7 bilhões ou 4,57% do PIB), mas muito superior ao verificado em abril de 2022 (US$ 54,3 bilhões ou 3,12% do PIB).

“Bem ou mal o Brasil se livrou dos desequilíbrios externos há algum tempo”, diz Barbosa, do Bradesco. “Hoje, o nosso déficit, comparativamente aos países da América Latina, não chega a chamar tanta atenção.”

O Brasil é um nova Suíça?
Nas últimas semanas, os resultados da balança comercial levaram o economista-chefe do Instituto de Finanças Internacionais (IIF, na sigla em inglês), Robin Brooks, a afirmar que o Brasil caminha para se tornar “a Suíça da América Latina”.

“Está surgindo um enorme superávit comercial, diferente de qualquer outro país da região. Isso vai dar ao Brasil estabilidade externa e uma moeda forte”, publicou o economista no Twitter.

Os números positivos mais recentes do setor externo não apagam o início confuso da gestão Lula na economia. Os ataques do governo ao Banco Central e a incerteza fiscal assustaram os investidores. A nova gestão petista ainda tentou rever o marco do saneamento e questionou a privatização da Eletrobras, o que não foi bem visto. No diálogo com o agronegócio, também houve entraves, com os atos do Movimento dos Sem Terra, que culminaram numa Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). O ministro da Agricultura foi desconvidado da Agrishow, a maior feira do setor.

Do lado positivo, os fatores que ajudam a mitigar essas preocupações e ainda colocam o Brasil no radar do comércio internacional vêm da aprovação na Câmara dos Deputados do arcabouço fiscal - que reduziu o temor com o forte aumento do endividamento do País nos próximos anos -, a investida na reforma tributária, e o discurso ambiental.

“É um governo percebido pela comunidade internacional como tendo um compromisso com o meio ambiente e que tem falado mais da agenda de transição energética. Para o fluxo futuro, isso deve ser importante”, diz o economista-chefe do Bradesco.


quarta-feira, 7 de junho de 2023

Que Brasil Lula projetará nas próximas viagens? - Paulo Sotero (OESP)

 Paulo Sotero, um experiente jornalista, indica que o crédito diplomático concedido a Lula e ao Brasil no momento eleitoral e no início deste governo está se esvaindo, pelo fato do presidente estar fazendo as escolhas erradas, não só com respeito à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, mas também na própria região, ao preferir elogiar ditaduras e esquecer suas vítimas. A Venezuela, sem guerra nenhuma, “exportou” tantos cidadãos quanto a Síria, em guerra civil há 12 anos. PRA

O Estado de S. Paulo.

ESPAÇO ABERTO

Paulo Sotero

Jornalista, É Pesquisador Sênior Do Brazil Institute Do Wilson Center, em Washington

Que Brasil Lula projetará nas próximas viagens?

Seria uma lástima se Lula e Biden desperdiçassem a oportunidade de serem sal da terra e luz do mundo, com a bênção do papa e o aplauso da comunidade mundial

Por Paulo Sotero

07/06/2023 


Visto de Washington, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não fez amigos nem influenciou países no acanhado começo de seu inusitado terceiro mandato no Palácio do Planalto. Ao contrário, desapontou aliados tradicionais na Europa e nas Américas ao persistir na conhecida trilha das oportunidades perdidas, que vai no sentido oposto do objetivo declarado de promover o interesse nacional e fazê-lo projetando a liderança do Brasil em temas centrais para nós e nossos vizinhos. Quem sabe as bênçãos de Santo Antônio, São João e São Pedro iluminarão o caminho do presidente e o ajudarão a colher bons frutos em sua próxima viagem internacional, este mês, durante as festas juninas.

Em Paris, Lula tratará com seu colega francês, Emmanuel Macron, de dois assuntos que estão no topo na agenda internacional: a guerra deflagrada pela injustificável invasão da Ucrânia pela Rússia, a primeira entre duas nações europeias desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945; e o urgente desafio de conter as mudanças climáticas e preservar o meio ambiente – este tema da primeira encíclica do papa Francisco, que pede um envolvimento substantivo do Brasil. Ambas as discussões continuarão no Vaticano, com votos de sucesso dos amigos do País ao redor do mundo.

O que fará Lula? Adiará a escolha e correrá o risco de perder o bonde da História, calculando que o País será chamado à mesa de negociações quando a realidade as impuser? Se esse cálculo se comprovar correto, o que o Brasil aportará, além de boas intenções e capacidade diplomática? Mas, se o cálculo se mostrar equivocado e o País for alijado das conversas, por irrelevante ou não confiável, hoje um cenário plausível, o que fará o presidente?

Não há respostas prontas para essas perguntas, até porque elas só terão credibilidade se resultarem de um debate interno que o País até hoje não teve fora dos rarefeitos círculos acadêmicos e intelectuais. Fazê-lo agora, para começar, impõe o difícil reconhecimento de que o Brasil diminuiu de tamanho relativo na última década, especialmente durante o abjeto governo de Jair Bolsonaro, e terá de encontrar seu caminho num ambiente internacional muito diferente daquele no qual Lula ascendeu ao poder na primeira década do século.

As escolhas que Lula fez até agora, com a ajuda de seu assessor internacional, o ex-chanceler Celso Amorim, claramente não foram satisfatórias para uma parcela importante dos eleitores que o levaram ao poder num país dividido e polarizado. A demora em condenar a criminosa invasão russa da Ucrânia e o desejo de ficar em cima do muro em nome de uma suposta neutralidade expuseram a pusilanimidade nacional ao mundo, que esperava mais da maior democracia do Hemisfério Sul. Nos EUA, onde os funcionários mais e melhor conhecem o Brasil, a decepção veio à tona em declarações públicas hostis de ex-diplomatas e comentários de gente influente no Executivo e no Congresso. Resumindo, o Brasil deixou de reconquistar o espaço que perdeu durante o calamitoso governo de Bolsonaro e terá a missão de Sísifo para reparar o mal feito.

Some-se a isso uma pronunciada queda de interesse pelo País em Washington, o que dificulta a construção de agendas positivas de cooperação e investimentos. Este panorama desolador pode ser revertido por Lula, se ele tiver interesse e disposição política para tomar um rumo mais produtivo nas relações com aliados tradicionais como os EUA, sem prejudicar os laços com a China, hoje o maior parceiro comercial do Brasil.

Para tanto, o líder brasileiro terá de superar ressentimentos e preconceitos ideológicos e retomar o caminho virtuoso das escolhas corajosas que fizeram dele e do Brasil na década de 1980 exemplos a serem seguidos. Terá Lula a energia e a ousadia necessárias para reinventar-se aos 77 anos? Uma visita bem preparada à Casa Branca e um fim de semana com o presidente Joe Biden em Camp David certamente ajudariam, e por isso merecem consideração em Brasília e em Washington. Tais eventos seriam recebidos como golaços diplomáticos nos dois países e alterariam o panorama internacional de forma significativa. Abririam perspectivas de cooperação econômica, política e cultural entre as duas maiores democracias multirraciais e multiculturais das Américas, para benefício de ambas e de seus vizinhos.

Não menos importante, Biden e Lula, de 80 e 77 anos respectivamente, projetariam a vitalidade das sociedades que lideram e reacenderiam a chama da esperança num mundo melhor em dois países que ainda enfrentam as consequências de séculos da escravidão de africanos que, libertados, deram a ambos e ao mundo culturas densas e ricas nas artes, na música e na literatura. Seria uma lástima se Lula e Biden, dois homens de origens humildes, desperdiçassem a oportunidade única que a História lhes oferece de serem sal da terra e luz do mundo, com a bênção do papa Francisco e o aplauso da comunidade mundial. Não é pouco. E, quem sabe, talvez seja suficiente para o Nobel da Paz.


terça-feira, 23 de maio de 2023

O gradual esvaziamento do Itamaraty - Rubens Barbosa (OESP)

 O GRADUAL ESVAZIAMENTO DO ITAMARATY

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 23/05/2023

 

A política externa, nos últimos 200 anos do Brasil independente, sempre teve um papel muito relevante na defesa do desenvolvimento econômico, dos interesses concretos do país, de sua projeção externa e mesmo de uma atuação, muitas vezes, acima da capacidade de seu poder efetivo. 

 

Nos últimos 30 anos, o Itamaraty vem perdendo espaço no contexto dos sucessivos governos por razões de política interna e mudanças externas. Internamente, emergiu uma tecnocracia que passou a representar interesses setoriais no exterior, como a área econômica, o setor agrícola, o de defesa e o de polícia. Externamente, o mundo se transformou pela rapidez da informação, a facilidade dos contatos entre chefes de estado com conversas e encontros frequentes. Nos últimos 15 anos, um novo elemento contribuiu para o esvaziamento do Itamaraty: a politização e a partidarização da política externa e a atração de lealdades ao presidente, ao ministro e `as ideias por eles defendidas. Essa tendência vem acompanhada pela redução de recursos orçamentários e de crescentes dificuldades enfrentadas pelos diplomatas em termos de fluxo de carreira que tornaram o seu trabalho mais difícil e suas funções diplomáticas mais burocráticas e menos estimulantes para o desempenho de suas missões. Exemplos recentes desse esvaziamento político são a retirada da CAMEX, da APEX, a dualidade de funções entre a assessoria presidencial e o ministro do exterior, a perda de espaço nas secretarias internacionais dos ministérios, a ação subnacional, a marginalização dos embaixadores nas reuniões em nível de chefe de Estado, a perda da coordenação das negociações internas nas áreas de comércio exterior, inclusive no tocante ao Mercosul, ao meio ambiente e às agendas multilaterais (direitos humanos, energia, costumes, gênero e outras).

 

Isso significa que estamos assistindo o fim da presença do Itamaraty e a perda de espaço das embaixadas no exterior? Fora dos quadros do Itamaraty a quase 20 anos, tenho um distanciamento que me coloca em posição de oferecer algumas considerações pessoais longe de interesses corporativos ou posições defensivas, mas apenas voltadas para o que me parece mais relevante para o país.

 

Nos dias de hoje, visto do ângulo dos interesses permanentes do Brasil e não do governo de turno, o Brasil e o mundo mudaram. Quatro milhões de brasileiros em todos os continentes, esperam assistência não só para providências pessoais, mas sobretudo para apoio em momentos de crise nos países em que vivem. O cenário global, para países do porte do Brasil, apresenta novos e significativos desafios geopolíticos que, em muitos casos, parecem ser ignorados internamente como se o país fosse imune ao que acontece no exterior, seja na área econômica, na de defesa, na saúde, na inovação e na tecnologia. A pandemia e a guerra na Ucrânia, além da rápida mudança na ordem internacional com o isolacionismo dos EUA, a crescente tensão entre os EUA e a China, o reaparecimento da Rússia transformaram o cenário global, colocando os países, e o Brasil não é exceção, cada vez mais dependentes do exterior em muitas áreas, inclusive tecnológicas e industriais. O 5G e a Inteligência artificial, as restrições derivadas de preocupações protecionistas e de meio ambiente e mudança de clima, sem falar nas questões de segurança e de defesa são novos desafios. Integração regional (que o Brasil deveria liderar), abertura de novos mercados para produtos brasileiros, novos acordos de livre comércio, a formação de blocos políticos e econômico-comerciais são algumas das realidades que qualquer governo brasileiro terá de enfrentar nos dias de hoje e no futuro previsível.

 

O Itamaraty, como sempre fez no passado, poderá, de maneira eficiente, ajudar a interpretar o momento de transição para um mundo pós ocidental, como acentuado por Lula na reunião do G7. Nesse contexto, ao invés de esvaziar a Instituição, os governos teriam de fortalecer a estrutura da chancelaria, com reforço orçamentário e humano, para que possa atuar como uma antena de captação dessas mudanças e oportunidades, um instrumento de negociação em novas áreas (tecnologia e inovação), um braço (assistência técnica) para o exercício de “soft Power” na América Latina e na África, um fator de inteligência para a segurança nacional e defesa, um suporte eficiente para a ação de outros órgãos federais, estaduais e de apoio à comunidade brasileira no exterior e aos empresários.

 

No momento de polarização interna, deve ser lembrado, tanto aos governantes, quanto aos diplomatas do Itamaraty, que a diplomacia, como carreira de Estado, tem um dever de lealdade ao governo legitimo do momento ao implementar suas decisões, sem evidentemente ser partidária e muito menos militante do partido e do governo no poder.  O embaixador, como representante do Presidente da República, do governo e de seus ministros, é o responsável pela autoridade do Estado no país em que está acreditado e uma relação de confiança deve existir como pressuposto de seu trabalho. O Itamaraty tem de ser revigorado e recuperar sua capacidade de interpretação do sentido das mudanças globais e sua competência para articulação e coordenação interna de todas as ações do governo no exterior.

 

Rubens Barbosa, ex-embaixador em Londres e em Washington. Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)

 

terça-feira, 25 de abril de 2023

A parceria estratégica com a China - Rubens Barbosa (OESP)

 A PARCERIA ESTRATÉGICA COM A CHINA

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 25/04/2023

 

         O saldo da visita de Lula a China foi positivo, mas, de novo, o marketing foi muito negativo em função dos arroubos verbais presidenciais sobre a guerra na Ucrânia e a parceria estratégica com a China. Apesar de toda sua experiência, Lula está ignorando alguns princípios básicos na diplomacia: saber ficar calado, falar pouco e ter um discurso moderado. Era previsível a repercussão na mídia norte-americana e nacional pelo que foi interpretado como mudança da posição do Brasil e pelas críticas aos EUA. A coincidência da visita do ministro do exterior da Rússia Sergey Lavrov, logo em seguida a visita a Beijing, e a notícia do veto russo `a venda de munição a Alemanha para fornecimento a Ucrânia e possível cooperação nuclear também ajudaram a colocar em dúvida a equidistância brasileira. 

Quando a China propôs uma parceria estratégica com o Brasil na década dos 90, o governo brasileiro apreciou o gesto e proclamou o novo nível do relacionamento bilateral. Acontece que o governo chines havia estudado por muito tempo o que queria dessa parceria e, nos últimos 15 anos, definiu seus interesses e objetivos na área agrícola e mineral. Passados três décadas dessa parceria estratégica, o Brasil ainda não definiu como quer se beneficiar dela.

O comunicado conjunto, publicado ao final da visita, em grande parte incluiu declarações de intenção, que poderiam estabelecer as bases da parceria estratégica, segundo o interesse brasileiro: cooperação nas áreas de economia digital, comércio eletrônico, tecnologia de informação, IA, centro de pesquisa, desenvolvimento e inovação, luz sincroton, cooperação espacial. Caso o governo, o setor privado e a universidade realmente se emprenharem para concretizar essas intenções, tecnologia e inovação poderiam sintetizar o interesse brasileiro na parceria estratégica. Assim, como fez a China nas áreas de seu interesse, cabe ao Brasil tomar as medidas internas necessárias para desenvolver a cooperação em todas essas áreas. O Brasil está atrasado nos avanços científicos e tecnológicos em muitas áreas. Surge a oportunidade de recuperar o tempo perdido e colocar o país na linha de frente da pesquisa e desenvolvimento na inovação, no 5G e na IA. Esse pode ser a longo prazo o principal resultado da visita. Caso a parceria estratégica entre o Brasil e a China se desenvolva e se amplie, será importante dinamizar os mecanismos de cooperação existentes com os EUA, assinar o Acordo com a UE e continuar os entendimentos para a adesão a OCDE ou com quem estiver disposto a colaborar com o Brasil. 

Apesar da retórica da reforma da governança global, o comunicado defende o fortalecimento da ONU e da OMC. A China evitou comprometer-se quanto a candidatura brasileira ao Conselho de Segurança da ONU, quanto a proposta de formação de um grupo da paz para o fim das hostilidades na Ucrânia e a compra de aviões da Embraer. E o Brasil, a aderir `a Rota da Seda. Houve, em separado, uma longa declaração sobre meio ambiente e mudança de clima, acordo do BNDES e Banco chines para empréstimo de US$1,1 bilhão para investimento em infraestrutura, além de acordos comerciais entre empresas e estados.

         Os contrastes e os resultados entre a visita a Washington e a Beijing ficaram evidentes, mas podem ser explicados pela diferente natureza dos encontros com Biden e com Xi Jinping. Nos EUA, a ênfase foi política, com o fortalecimento da democracia e das instituições, além da nova prioridade de meio ambiente e mudança de clima. Na China, foi econômica e comercial, tanto que os aspectos políticos da guerra na Ucrânia, da Rota da Seda, dos semicondutores, da moeda foram minimizados no comunicado conjunto.

         Apesar das críticas, até aqui, não há evidência concreta de que o Brasil esteja abandonando a política, na defesa do interesse nacional, de manter-se equidistante nas tensões entre os EUA e a China, mesmo com a contradição entre princípios e valores e interesses, como de resto ocorre com todos os países, inclusive os EUA e as nações europeias. As declarações presidenciais sobre a guerra na Ucrânia – retificadas no discurso escrito durante a visita do presidente da Romênia e atenuadas ainda mais na visita a Portugal – não devem gerar consequências negativas contra o Brasil, mas podem acelerar o gradual esvaziamento do Itamaraty, como evidenciado na entrevista ao final da visita a Beijing, conduzida por Mercadante e Haddad e não por Mauro Vieira e nas viagens de Amorim a Colômbia, a Rússia e a Ucrânia.

Com a crescente tendência geopolítica de formação de dois polos, repetindo em outras bases a Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética, o Brasil tem de definir de forma mais clara seus interesses a fim de sobreviver `a divisão das atuais superpotências. Para manter uma autonomia estratégica na confrontação, não ideológica e militar, mas econômica, comercial e tecnológica, entre as superpotências, e apoiar a multipolaridade, o Brasil tem de manter seu relacionamento com os EUA, a China e a Rússia afastado de considerações partidárias, ideológicas e agora também geopolíticas, que possam, de uma maneira ou de outra, acarretar algum tipo de restrição econômica ou comercial contra interesses concretos brasileiros.

 

 

Rubens Barbosa, presidente do IRICE e membro da Academia Paulista de Letras

 

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Lula perdido no vasto mundo - Rolf Kuntz (OESP)

ESPAÇO ABERTO

Lula perdido no vasto mundo

Rolf Kuntz

O Estado de S. Paulo, 23/04/2023

Com muito falatório e pouco governo, Lula se afunda em bobagens, iguala agressor e agredido e assusta os parceiros ocidentais 

O mundo, mundo, vasto mundo de Carlos Drummond de Andrade é certamente maior que o universo petista, insuficiente até para eleger o candidato Luiz Inácio Lula da Silva em 2022. Aparentemente esquecido da ampla diversidade política de seus eleitores, o presidente Lula insiste em agir como se o Brasil e o sistema internacional fossem extensões de Vila Euclides, berço sindical de sua carreira pública. Rebaixado à condição de pária pelo presidente Jair Bolsonaro, o País começou, com a mudança de governo, a retomar sua posição no sistema regional e na ordem global. Esse retorno seria mais fácil e mais seguro se o principal porta-voz brasileiro parasse de falar bobagens, levasse em conta o Direito Internacional, deixasse de afrontar sem razão Estados Unidos e Europa e considerasse mais seriamente os interesses nacionais.

O presidente brasileiro poderia, talvez, pensar no exemplo de seus gentis anfitriões na China, maior parceira comercial do Brasil. Sem descuidar de seus interesses, os chineses continuaram, nos últimos três anos, tomando espaço dos exportadores brasileiros nos maiores mercados sul-americanos. Em 2022, ocuparam o primeiro lugar nas vendas à Argentina.

O presidente Lula conseguiu impedir, por enquanto, acordos comerciais entre a China e outros países do Mercosul. Mas só impedirá a desorganização do bloco se coordenar uma negociação conjunta com os chineses. Isso dependerá muito mais de ação diplomática e de bons argumentos práticos do que de retórica. Paraguaios e uruguaios têm respeitáveis motivos, há muito tempo, para abandonar a fidelidade a um bloco estagnado e distante dos objetivos originais de cooperação produtiva e de inserção global.

Mas o presidente Lula tem mostrado mais inclinação para a retórica, para as picuinhas e para o falatório de palanque do que para a administração e para as políticas mais ambiciosas. Demorou cerca de três meses e meio para apresentar suas metas fiscais e formalizar o compromisso, ainda discutível, com o equilíbrio das contas públicas. Esse objetivo dependerá, como já indicaram analistas, de maior arrecadação, embora o ministro da Fazenda negue a intenção de impor maior peso aos contribuintes. Além disso, nenhum plano ou roteiro de governo foi apresentado até agora. Mas o presidente encontrou tempo para tolices administrativas, como a transferência da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), importante instrumento da política agrícola, para o insignificante Ministério do Desenvolvimento Agrário – uma decisão tecnicamente injustificada e obviamente ideológica.

Na política externa, as manifestações mais ostensivas têm sido grotescas ou desastrosas. A viagem à China foi encerrada com uma declaração infantil sobre a predominância do dólar em negócios internacionais. Sem se envolver no episódio ridículo, o presidente Xi Jinping até pode ter gostado da canelada nos Estados Unidos, mas certamente conservará o enorme volume de reservas cambiais em moeda americana, cerca de US$ 3,1 trilhões.

Se a segunda maior economia do mundo conserva esse dinheiro, deve haver uma razão ponderável, assim como deve haver uma boa razão para o uso do euro no dia a dia da União Europeia. Ninguém está proibido de negociar com outras moedas, especialmente em blocos econômicos, mas quem quer acumular reservas em reais, liras turcas ou pesos argentinos? Lula terá, em algum momento, considerado essas questões?

Nem todas as falas de Lula têm sido, no entanto, inconsequentes e engraçadas. Ao tratar como equivalentes um Estado agressor, a Rússia, e um Estado agredido, a Ucrânia, o presidente brasileiro atropelou uma das noções mais importantes do Direito Internacional, enunciada no artigo 51 da Carta das Nações Unidas e amadurecida em séculos de negociações e de elaborações teóricas.

Pelas normas internacionais, a violência só é admissível como resposta a um ataque. Também é inaceitável a chamada agressão preventiva – quando se fala, por exemplo, no perigo potencial gerado pela expansão da Otan ou quando se denuncia, com ou sem razão, a existência de armas de destruição em massa num país qualquer. O ataque à Ucrânia é tão contrário à regra internacional quanto foi a invasão do Iraque no começo deste século.

Pode-se até desculpar, em Lula, a ignorância da lei internacional, mas, neste caso, ele ignorou também uma norma simples do Código Penal e, é claro, uma regra básica da ética e da civilidade. Ao cometer esse erro, alinhou o Brasil à política criminosa de um autocrata. Diante da reação internacional, e certamente aconselhado por auxiliares mais informados e mais sensatos, o presidente mudou suas palavras e condenou, na terça-feira, a violação territorial da Ucrânia. Mas a tentativa de correção soou fraca e foi insuficiente para anular o enorme equívoco das declarações anteriores. Com tantos desastres, Lula talvez entenda, finalmente, a conveniência de falar menos, de consultar mais os assessores mais prudentes e de – afinal – dar mais atenção ao trabalho e começar, de fato, a governar o País.


segunda-feira, 17 de abril de 2023

Rui Barbosa, internacionalista - Celso Lafer (OESP)

 

RUI BARBOSA, INTERNACIONALISTA!

Celso Lafer, professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores
 O Estado de S. Paulo, 16/04/2023

 Rui é um paradigma de advogado que soube valer-se do Direito como instrumento estratégico da sua ação política. Foi o que o singularizou no cenário nacional, mas é também a relevante marca de sua atuação internacional. Dela advém o seu legado para a construção do capital diplomático do Brasil e a contribuição para pioneiramente afirmar o lugar do nosso país no mundo.

A Conferência de Paz de Haia de 1907 foi o primeiro grande ensaio da diplomacia multilateral do século 20, pela abrangência dos 44 Estados soberanos da época que dela participaram. Foi também a primeira expressão da “diplomacia aberta”, sensível às aspirações pacifistas da opinião pública internacional da época.

Rui foi o chefe da delegação brasileira e atuou em estreita coordenação com o chanceler Rio Branco. Tinha todas as qualidades para o novo da diplomacia parlamentar do multilateralismo: o pleno domínio dos assuntos da pauta, a vocação de infatigável trabalhador, a capacidade de exprimir-se – inclusive de improviso e com perfeição – em francês, a língua oficial da conferência. A isso se conjugou a combatividade, que sempre o caracterizou, como advogado, político e parlamentar.

Rui em Haia contestou a igualdade baseada na força e sustentou a igualdade dos Estados lastreada no Direito. Essa contestação colocou em questão o exclusivismo até então preponderante das grandes potências na ordem mundial. Sua posição representou a primeira formulação do Brasil em prol da democratização do sistema internacional. Abriu espaço para respaldar inovadora perspectiva da nossa política externa: a pauta diplomática do País não se circunscreve a questões específicas; transita pelos seus “interesses gerais” na dinâmica do funcionamento da ordem mundial.

Em Haia, Rui valeu-se do Direito como instrumento de sua ação. Tinha muita consciência da interação política/Direito. “Não há nada mais eminentemente político do que a soberania.” A diplomacia, dizia, “outra coisa não é que a política (...) sob a mais elegante de suas formas (...)”.

Traçou neste contexto para o Brasil uma política do Direito Internacional. Esta retém plena atualidade na sintonia com os princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil. Em Haia, encontrou o tom certo de um estilo diplomático para afirmar com firmeza e sobriedade a posição independente do País, cuja especificidade era distinta dos que imperavam na “majestade de sua grandeza” e dos que se encolhiam “no receio de sua pequenez”.

Rui fez uma observação que antecipou o tema da credibilidade internacional e do soft power: “Hoje, com efeito, mais do que nunca, a vida assim moral como econômica das nações é cada vez mais internacional. Mais do que nunca em nossos dias os povos subsistem de sua reputação no exterior”.

Outra ação diplomática de Rui foi em Buenos Aires, onde representou o Brasil no centenário da independência da Argentina. Ali, destacou a relevância do potencial de cooperação entre Argentina e Brasil na “ideia a realizar” de uma vasta construção política, econômica e jurídica. É, assim, um patrono da parceria que antecipou a atualidade de um dos temas fortes da agenda diplomática de nosso país.

Em conferência na Faculdade de Direito de Buenos Aires, analisou o impacto no Direito da escalada da violência que estava caracterizando a 1.ª Guerra. Observou que, dada a “interdependência em que as nações mais remotas vivem uma das outras, a guerra não pode isolar-se nos Estados entre os quais se abre o conflito”. Seus estragos e misérias repercutem sobre a fortuna dos povos mais distantes. Antecipou, assim, o tema da indivisibilidade da paz, cuja atualidade a guerra da Ucrânia realça.

Rui extraiu de sua avaliação da guerra um novo papel para a neutralidade: “A imparcialidade na justiça, a solidariedade no Direito, a comunhão na manutenência das leis escritas pela comunhão: eis a nova neutralidade”.

E mais: “Entre os que quebram a lei e os que a observam não há neutralidade admissível. Neutralidade não quer dizer impassibilidade; quer dizer imparcialidade, e não há imparcialidade entre o Direito e a injustiça. Quando entre ele e ela existem normas escritas, que os definem e diferenciam, pugnar pela observância dessas normas não é quebrar a neutralidade: é praticá-la”. Foi nesta moldura jurídica que o Brasil se incorporou aos aliados em 1917. Da lição de Rui tenho me valido para indicar qual deve ser a posição do Brasil na guerra da Ucrânia.

Rui internacionalista voltou-se para a afirmação e a legitimação do lugar do Brasil no mundo. Resultaram de seu empenho em arguir a partir da perspectiva do Brasil, que não era e não é uma grande potência, os méritos da reputação e da credibilidade nacional e, ao mesmo tempo, a validade mais abrangente da domesticação pelo Direito da Força e do Poder, assim como o do benefício da juridicidade nas relações internacionais. Valeu-se neste empenho do Direito com ideias próprias, fruto da transformação reflexiva da abrangência dos seus conhecimentos jurídicos na condução diplomática.

quinta-feira, 16 de março de 2023

Após denúncias contra diplomatas, Itamaraty realiza seminário para combater assédio - Julia Lindner (OESP)

Após denúncias contra diplomatas, Itamaraty realiza seminário para combater assédio

Por Julia Lindner
Estadão, 16/03/2023 | 06h00

O Itamaraty organizou um seminário interno sobre as condutas exigidas dos diplomatas em serviço no exterior. Proposto pela corregedoria do ministério, terá como um dos temas “Assédio moral e sexual: como evitar e como denunciar”.

No mês passado, o Ministério de Relações Exteriores (MRE) afastou embaixadores do Brasil em Mali e no Kuwait após acusações de assédio moral contra funcionários e ações inapropriadas.

https://www.estadao.com.br/politica/mariana-carneiro/apos-denuncias-itamaraty-realiza-seminario-para-combater-assedio-moral-e-sexual/ 

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Se posso oferecer alguma contribuição, seria este livro, no qual consta um capítulo meu, sobre o Itamaraty, mais algumas matérias sobre meu caso pessoal:

4051. “Assédio institucional no Itamaraty: breve abordagem e depoimento pessoal”, Brasília, 21 dezembro 2021, 25 p. Ensaio preparado como colaboração a livro a ser editado pela Afipea, sob coordenação de José Celso Cardoso: “Assédio institucional no Setor Público Brasileiro”, tratando do caso do Itamaraty. Revisão entre 24/12/2021 e 12/02/2022. Publicado in: José Celso Cardoso Jr., Frederico A. Barbosa da Silva, Monique Florencio de Aguiar, Tatiana Lemos Sandim (orgs.), Assédio Institucional no Brasil: Avanço do Autoritarismo e Desconstrução do Estado. Brasília: Afipea; João Pessoa: Editora da Universidade Estadual da Paraíba, 2022, capítulo 9, p. 389-427 (livro disponível no link: https://afipeasindical.org.br/content/uploads/2022/05/Assedio-Institucional-no-Brasil-Afipea-Edupb.pdf); divulgado no blog Diplomatizzando (4/07/2022; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2022/07/assedio-institucional-no-brasil-avanco.html). Relação de Publicados n. 1448.


3614. “Kafka no Itamaraty”, Brasília, 1 abril 2020, 3 p. Nota sobre a intimidação sobre diplomatas pela Administração do MRE. Divulgada no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/kafka-no-itamaraty-paulo-roberto-de.html), FaceBook (link: https://www.facebook.com/paulobooks/posts/3128277090569053?__cft__[0]=AZVQH0N6bVCmc6pj5lVtkLPG6lEBu1QZ66IBGy8T9XXw7rCaqc_BMEocYXK75Os6L-dw0DGS5gibOM67gEsC6_dOvBmSN0RmVYiMVQS3ommSBbJ0jAM_cahMHU8d6X4VSf4&__tn__=%2CO%2CP-R) e Twitter (https://twitter.com/PauloAlmeida53/status/1246137308098768896). Reproduzido no jornal GGN, de Luís Nassif, son o título “Como Ernesto, o idiota, se tornou chanceler” (3/04/2020, link: https://jornalggn.com.br/artigos/kafka-no-itamaraty-por-paulo-roberto-de-almeida/). Matéria na revista Veja, versão eletrônica, sobre o mesmo tema, “Embaixador vai à justiça contra assédio moral e perseguição no Itamaraty”, por Edoardo Ghirotto (3/04/2020; links: https://veja.abril.com.br/politica/embaixador-vai-a-justica-contra-assedio-moral-e-perseguicao-no-itamaraty/ e https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/embaixador-vai-justica-contra-assedio.html), que remete à matéria “Os veteranos encostados no Itamaraty”, por Denise Chrispim Marin(20/09/2019; link: https://veja.abril.com.br/mundo/itamaraty-veteranos-encostados/); matéria atual reproduzida no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/embaixador-vai-justica-contra-assedio.html) e em diversas ferramentas de comunicação social.


Putin e Netanyahu provam por que coisas ruins acontecem para líderes ruins - Thomas Friedman (OESP)

Putin e Netanyahu provam por que coisas ruins acontecem para líderes ruins

Por Thomas Friedman
15/03/2023 | 20h00Atualização: 16/03/2023 | 07h34

É chocante para mim perceber o quanto Vladimir Putin e Binyamin Netanyahu têm em comum atualmente: ambos consideram a si mesmos grandes enxadristas estratégicos em um mundo que, pensam eles, todos os demais só sabem jogar damas. Mas ambos se equivocaram completamente em sua leitura do mundo em que operam.


Na realidade, eles erraram tão absolutamente que seu jogo dá a parecer que não é xadrez nem damas — é uma roleta russa; e de um só jogador. Roleta russa não deve ser jogada sozinho, mas é assim que ambos se encontram.


Putin pensou que era capaz de capturar Kiev em poucos dias e, portanto, sob um custo muito baixo, usar a expansão russa para a Ucrânia para impedir definitivamente a expansão da União Europeia e da Otan. Ele pode ter chegado perto disso, apesar do fato de seu isolamento e autoilusão terem resultado em seu equívoco em relação ao seu próprio Exército, ao Exército da Ucrânia, aos aliados da Otan, a Joe Biden, ao povo ucraniano, à Suécia, à Finlândia, à Polônia, à Alemanha e à União Europeia. Nesse processo, Putin transformou a Rússia em uma colônia chinesa de produção de energia que implora drones ao Irã.


Para alguém que está no comando do Kremlin desde 1999, é bastante erro.


Netanyahu e sua coalizão acharam que poderiam se sair bem com um rápido golpe no Judiciário disfarçado como uma “reforma” judicial, que os permitiria explorar uma eleição vencida por pouquíssima margem — cerca de 30 mil votos em um eleitorado de 4,7 milhões — para permitir a Netanyahu & Cia. governar sem ter de se preocupar com a única fonte de comedimento e contrapeso no sistema de Israel: seu Judiciário e Suprema Corte independentes.


De maneira interessante, na primeira reunião formal do gabinete de Netanyahu, em dezembro, o primeiro-ministro listou quatro prioridades de seu governo: bloquear o Irã, restaurar a segurança para todos os israelenses, enfrentar a crise no custo de vida e a escassez de moradia e ampliar o círculo de paz entre Israel e os países árabes de seu entorno. Netanyahu não falou nada a respeito de subverter o Judiciário, na esperança de empurrar sua manobra sem o público perceber.


Erro. A vasta maioria da população israelense entendeu tudo imediatamente e respondeu com a maior manifestação pública contra qualquer proposta de legislação já considerada na história do país.


A oposição agora se espalhou por toda a sociedade israelense e além: Netanyahu se equivocou com seu Exército, com o setor de startups de tecnologia de seu país, com Joe Biden e, mostram as pesquisas, com a maioria dos eleitores israelenses. Netanyahu também se equivocou com a base de seu partido: enquanto todas as semanas protestos massivos, de base ampla, têm sido organizados contra sua reforma judicial, nenhuma manifestação em grande escala de suas bases tem ocorrido em apoio à manobra.


Netanyahu equivocou-se até com alguns de seus mais ardentes apoiadores, os judeus americanos de direita. Miriam Adelson denunciou no Israel Hayom — jornal israelense de direita fundado por seu falecido marido bilionário, Sheldon — a maneira com que o primeiro-ministro tenta “avançar apressadamente” com uma mudança tão significativa. Isso levanta “dúvidas sobre objetivos fundamentais e preocupação de que esse movimento seja precipitado, insensato e irresponsável”, escreveu ela, acrescentando, “Motivações ruins nunca ocasionam bons desdobramentos”.


Para um indivíduo no sexto mandato de primeiro-ministro, é muito erro.


E então, o que vem depois? Você adivinhou: Netanyahu e Putin estão culpando agitadores e financiadores estrangeiros por seus problemas. É a cartilha do ditador. Enquanto Putin culpa regularmente os EUA e a Otan por suas derrotas na Ucrânia, o Times of Israel noticiou durante o fim de semana que Netanyahu e sua família começaram a sugerir que o Departamento de Estado é a mão invisível que financia os enormes protestos.


O jornal citou declarações de uma “autoridade graduada do governo” sobre uma viagem recente de Netanyahu a Roma — com uma atribuição de fonte jornalística usada costumeiramente pelo primeiro-ministro para ocultar sua identidade em reportagens — afirmando: “Há um centro organizado, a partir do qual todos os manifestantes se encadeiam de maneira ordenada. Quem financia o transporte, as bandeiras, os palanques? Para nós, isso é evidente.” O jornal acrescentou, “Outro membro do alto-escalão do premiê confirmou que a autoridade graduada se referiu aos EUA”.


Muito tempo no poder

Como dois líderes podem ter errado tanto apesar de estar no poder há tanto tempo? A pergunta responde a si mesma: eles estão no poder há muito tempo. Ambos têm inimigos fortalecidos e rastros de suspeitas de corrupção que lhes fazem sentir que não lhes resta alternativa a não ser governar ou morrer.


No caso de Netanyahu, isso significaria morrer figurativamente: ele está sendo julgado por várias acusações de corrupção e, se for condenado, poderá ser preso e testemunhar o fim de sua vida na política. No caso de Putin, significaria morrer literalmente, pelas mãos de seus inimigos.


Os temores “governar ou morrer” de Netanyahu o levaram a formar uma coalizão com dois condenados pela Justiça e uma galeria de violadores supremacistas judeus. Primeiros-ministros anteriores se esquivaram de muitos deles — incluindo o próprio Netanyahu. Mas em seu desespero, ele teve de buscar esses aliados porque tantos políticos decentes do Likud o abandonaram.


Putin, lamentavelmente, está muito além da construção de coalizão e do compartilhamento de poder. Esse era o Putin 1.0, no início dos anos 2000. O Putin 2.0, depois de 24 anos no comando, sabe bem que um líder como ele — que roubou tanto dinheiro quanto ele — não pode confiar em nenhum sucessor que o permita aposentar-se pacificamente em sua já descrita mansão de US$ 1 bilhão no Mar Negro. (O salário oficial dele é de US$ 140 mil ao ano.) Putin sabe que para continuar vivo ou pelo menos seguir vivendo livremente tem de continuar presidente a vida inteira. Portanto, as duas principais inovações de Putin não passaram das cuecas e guarda-chuvas envenenados para dar cabo de inimigos percebidos.


O mais interessante para mim é como tanto Netanyahu quanto Putin se equivocaram em relação aos seus próprios militares. Putin teve de apelar cada vez mais para presidiários e mercenários para levar adiante a parte mais pesada de seu esforço de guerra na Ucrânia, enquanto dezenas de milhares de russos fugiram para o exterior para escapar da conscrição.


Em Israel, pilotos da Aeronáutica, médicos do Exército e combatentes cibernéticos alertaram que as Forças de Defesa de Israel (IDF) simplesmente não baterão continência para um ditador israelense. Entre os críticos estão três oficiais aposentados liderados por Joab Rosenberg, ex-vice-diretor de análise da inteligência militar de Israel, que foi a Washington arregimentar apoio americano para impedir o golpe em câmera-lenta de Netanyahu.


Como disse recentemente Moshe Ya’alon, ex-ministro da Defesa de Netanyahu e ex-chefe do Estado-Maior israelense, em um comício em Tel-Aviv: “De acordo com minha experiência pessoal como soldado e comandante, se, Deus nos livre, Israel se tornar uma ditadura, nós não teremos soldados suficientes dispostos a sacrificar sua vida para defender o país, e isso provocará uma ameaça existencial ao Estado de Israel. Basta ver o pobre desempenho das Forças Armadas de Putin, sem espírito, nem confiança em seu ditador e seu caminho”, para perceber o que uma ditadura faz com um Exército.


Finalmente, Putin e Netanyahu subestimaram completamente a velocidade com que o rebanho de investidores globais fugiria de seus países diante de seu comportamento irresponsável. De acordo com o banco de dados fDi Markets, do Financial Times, no ano passado apenas 13 projetos de investimento estrangeiro direto foram detectados na Rússia, “o nível mais baixo desde que os registros começaram, em 2003″.


https://www.estadao.com.br/internacional/thomas-friedman-putin-e-netanyahu-provam-por-que-coisas-ruins-acontecem-para-lideres-ruins/

O temor de uma crise global: mercados financeiros cresceram enormemente - Celso Ming (OESP)

A ameaça de crise global | Crise no mercado financeiro exigirá dos bancos mecanismos de autodefesa, como contração de crédito e redução dos juros, que vão comprometer ainda mais a economia global


Por Celso Ming

             O Estado de S. Paulo, 15/03/2023


O colapso do Silicon Valley Bank nos Estados Unidos é a ponta de um iceberg que mostra vulnerabilidades do sistema financeiro global.


Por tudo quanto se sabe, o banco quebrou não por fraude ou por aplicação em ativos de qualidade duvidosa. Quebrou porque estava superaplicado no mais seguro título do mundo, o do Tesouro dos Estados Unidos (o treasury).



É fácil entender por que o treasury pode se desvalorizar e deixar um grande banco na pior, como aconteceu. Se os juros sobem rapidamente, os detentores de títulos não conseguem revendê-los no mercado pelo mesmo preço de face. Numa conta sem rigor aritmético, um treasury de US$ 1 mil que paga juros de 2% ao ano rende US$ 20 ao ano. Se os juros sobem para 5% ao ano, o novo treasury paga US$ 50 ao ano. Para render os mesmos US$ 50, o título de US$ 1 mil com juros contratuais de 2% ao ano tem de ser negociado no mercado a US$ 953. No caso do Silicon Valley, os correntistas correram aos saques – o banco teve de vender seus ativos a preços mais baixos e, de uma hora para outra, ficou sem caixa.


Isso não tem a ver com falta de segurança do título. Bastaria esperar pelo vencimento para garantir os retornos contratuais. O que houve foi um descasamento de prazos. Se essa complicação derrubar mais bancos, com fragilidades dessa ou de outra ordem, como é o caso do Credit Suisse, poderá tornar-se crise sistêmica.


No final dos anos 1970 e início dos 1980, o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos), dirigido então por Paul Volcker, atirou de repente os juros para 20% ao ano para combater a inflação. Mas, apesar da forte recessão que se seguiu, nada parecido aconteceu, porque o mercado financeiro dos Estados Unidos e do mundo era relativamente pequeno. Em 2015, o valor total dos ativos das instituições financeiras do planeta era de US$ 325 trilhões, cerca de quatro vezes o PIB global daquele ano. Hoje, está em torno de mais de US$ 485 trilhões. Uma trinca nessa barragem ficou muito mais perigosa.


Agora os organismos reguladores do sistema financeiro global e os grandes bancos centrais têm de dar prioridade para debelar o risco de uma crise sistêmica. Isso exige redução dos juros – o contrário do que vinha sendo programado. A dominância financeira, digamos assim, impede que os grandes bancos centrais executem a política monetária (política de juros) mais adequada para reconduzir a inflação para as metas estabelecidas.


Essa não é a única consequência macroeconômica importante. Os bancos serão obrigados a acionar mecanismos de autodefesa e isso exigirá contração do crédito e, assim, cobrará um preço em recessão.


Embora esteja menos exposto do que os países centrais, o Brasil não está ileso. O Banco Central do Brasil provavelmente terá de reduzir os juros. Forte retração do crédito, já restringido pelo fator Americanas, ficou mais provável. E o climão geral está mais para algum contágio via recessão.


https://www.estadao.com.br/economia/celso-ming/a-ameaca-de-crise-global/


China de Xi Jinping persegue maior relevância global - Joe McDonald (OESP)

 China de Xi Jinping persegue maior relevância global


Governo chinês tem sido cada vez mais assertivo desde que líder assumiu o poder, em 2012

Por Joe McDonald

ESTADÃO 13/03/2023


O presidente Xi Jinping conclamou a China a desempenhar um papel maior nos assuntos globais nesta segunda-feira, 13, após o governo chinês marcar um golpe diplomático ao se posicionar como anfitrião das negociações que produziram acordo entre Arábia Saudita e Irã no sentido da reabertura de suas relações diplomáticas.


Xi não deu detalhes sobre os planos do Partido Comunista, governante, no discurso que pronunciou na legislatura cerimonial da China. Mas o governo chinês tem sido cada vez mais assertivo desde que Xi assumiu o poder, em 2012, e pediu mudanças no Fundo Monetário Internacional (FMI) e outras entidades que, segundo Pequim, não refletiam os desejos de países em desenvolvimento.


A China deveria “participar ativamente na reforma e construção do sistema de governança global” e promover “iniciativas globais de segurança”, afirmou Xi, o líder chinês mais poderoso em décadas. Isso adicionará “energia positiva à paz mundial e ao desenvolvimento”, afirmou.


Na sexta-feira, Xi foi nomeado para exercer mais um mandato na presidência cerimonial, após romper com a tradição, em outubro, e se outorgar um terceiro mandato de cinco anos como secretário-geral do partido governante, colocando-se a caminho de se tornar líder vitalício.


O Congresso Nacional do Povo cimentou no domingo o domínio de Xi, endossando a indicação de seus apoiadores para primeiro-ministro e outras graduadas funções, em uma mudança que ocorre a cada década. Xi escanteou possíveis rivais e povoou os cargos mais graduados do partido governante com seus apoiadores.


O novo primeiro-ministro, Li Qiang, tentou tranquilizar empreendedores na segunda-feira, mas não deu detalhes sobre possíveis planos para melhorar as condições após o governo de Xi passar a década recente fortalecendo empresas estatais que controlam os setores bancário, energético, metalúrgico e das telecomunicações, entre outros.


Os comentários de Li ecoaram promessas feitas por outros líderes chineses nos últimos seis meses de apoiar empreendedores que gerem empregos e riqueza. Eles prometeram simplificar regulações e impostos, mas não deram nenhuma indicação de que pretendam controlar empresas estatais que, reclamam os empreendedores, drenam seus lucros.


O partido governante “tratará empresas de todos os tipos de propriedade igualmente” e “apoiará desenvolvimento e crescimento de empresas privadas”, afirmou Li. “Nossos principais quadros em todos os níveis devem cuidar sinceramente das empresas privadas e servi-las.”


Anteriormente, autoridades chinesas indicaram a realização de operações antimonopólio e de segurança de dados que retiraram dezenas de bilhões de dólares do valor de mercado das ações do gigante do comércio online Alibaba Group, e outras empresas de tecnologia estavam fechando. Mas os empreendedores se animaram novamente em fevereiro, quando um banqueiro famoso, que desempenhava um papel importante nos contratos do setor de tecnologia, desapareceu. A empresa de Bao Fan afirmou que ele está “cooperando em uma investigação”, mas não deu detalhes.


Li afirmou que criação de emprego será prioridade de Pequim, conforme o governo tenta ressuscitar o crescimento econômico, que despencou para 3% no ano passado, ao segundo menor nível em décadas. A meta oficial de crescimento para este ano é de “aproximadamente 5%”.


‘Dividendo demográfico’

O primeiro-ministro afirmou estar confiante de que a China será capaz de prosperar enquanto sua força de trabalho encolhe. O número de possíveis trabalhadores com idades entre 15 e 59 anos caiu mais de 5% em relação ao pico registrado em 2011, um declínio excepcionalmente abrupto para um país de renda média.


Segundo Li, ainda que a China esteja perdendo seu “dividendo demográfico” de trabalhadores jovens, mais educação significa que o país está ganhando um “dividendo em talentos”. Ele disse que cerca de 15 milhões de pessoas ainda ingressam anualmente na força de trabalho. “Recursos humanos abundantes ainda são a vantagem notável da China”, afirmou ele.


No exterior, a força de Pequim tem se construído sobre o volume de crescimento da China e sua posição enquanto segunda maior economia a promover iniciativas de comércio e infraestrutura que, preocupam-se Washington, Tóquio, Moscou e Nova Délhi, expandirão a influência estratégica dos chineses à sua custa.


Esses esforços incluem a Iniciativa Cinturão e Rota, para a construção de portos, ferrovias e outras infraestruturas relacionadas ao comércio em um arco de países que se estende do Sul do Pacífico até Ásia, África e Europa. A China também está promovendo iniciativas em comércio e segurança.


Uma Iniciativa Global de Segurança revelada em fevereiro afirmou que a China está “pronta para conduzir cooperação bilateral e multilateral em segurança com todos os países”. Pequim se ofereceu para ajudar países africanos a resolver disputas e estabelecer “um novo enquadramento de segurança no Oriente Médio”.


Também no mês passado, a China pediu um cessar-fogo na guerra da Rússia contra a Ucrânia. O presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, elogiou o posicionamento chinês, mas afirmou que o sucesso de uma trégua necessitaria ações, mais que palavras. Pequim recusou-se a criticar o ataque do presidente Vladimir Putin contra a Ucrânia e acusou países ocidentais de provocar a invasão.


O governo de Xi desafiou EUA e Austrália no início de 2022 quando assinou um acordo com as Ilhas Salomão que permitirá que navios da Marinha e de forças de segurança da China permaneçam estacionados no país do Pacífico Sul.


O ministro de Relações Exteriores, Qin Gang, alertou Washington na semana passada a respeito da possibilidade de “conflito e confrontação” se os EUA não mudarem de curso nas relações, que têm sido tensionadas por conflitos sobre Taiwan, direitos humanos, Hong Kong, segurança e tecnologia.


Autossuficiência

Xi pediu na segunda-feira desenvolvimento tecnológico mais ágil e mais autossuficiência, em um discurso carregado de terminologias nacionalistas. Ele mencionou oito vezes o “rejuvenescimento nacional” ou restaurar à China seu lugar de direito enquanto líder econômica, cultural e política. Ele afirmou que, antes do partido governante assumir o poder, em 1949, a China estava “reduzida a um país semicolonial, semifeudal, sujeito a intimidação de outros países”.


“Finalmente nos livramos da humilhação nacional e o povo chinês é mestre de seu próprio destino”, afirmou Xi. “A nação chinesa se levantou, enriqueceu e está se fortalecendo.”


Xi também conclamou seu país a “alcançar indefectivelmente” o objetivo da “reunificação nacional”, uma referência à reivindicação de Pequim sobre Taiwan, a ilha democrática e autogovernada, como parte de seu território, a ser unificada obrigatoriamente à China, pela força se necessário.


O presidente da Micronésia, um arquipélago a leste das Filipinas, acusou a China de “guerra política”, em uma carta de 9 de março obtida pela Associated Press. David Panuelo afirmou que Pequim estava usando espionagem e propinas em um esforço para garantir que a Micronésia fique do lado da China ou neutra em um possível conflito com Taiwan. O Ministério das Relações Exteriores da China negou as alegações. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO


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