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segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Bicentenário da Independência: A Construção da Nação e o seu futuro - Canal YouTube do IAB, 5/09/2022, 10:00hs

Nesta manhã, 5/09/2022, o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), promove mais um evento da série Bicentenário da Independência, desta vez sobre A Construção da Nação e o seu futuro

O Evento será transmitido pelo Canal YouTube/IABNacional.

Clique no link abaixo para assistir ao webinar: 

www.youtube.com/user/tviab


sábado, 6 de agosto de 2022

"A hora da diplomacia brasileira voltar a priorizar seu retorno regional": Policy Paper do Núcleo América do Sul do CEBRI


O Núcleo América do Sul do CEBRI convida para o evento de lançamento do Policy Paper "A hora da diplomacia brasileira voltar a priorizar seu retorno regional".

Data e hora: 9 de agosto, terça-feira, às 17h

Evento presencial em São Paulo, vagas limitadas.
Inscrição presencial: rsvp@cebri.org.br
Assista ao evento ao vivo AQUI 

Endereço: USP - Cidade Universitária -  Prédio do Instituto de Relações Internacionais
Avenida Professor Lúcio Martins Rodrigues, Tv. 4 e 5/2º andar, Butantã, São Paulo

Em caso de dúvidas, por favor, entrar em contato pelo e-mail rsvp@cebri.org.br




sexta-feira, 13 de maio de 2022

Vale comemorar o bicentenário da independência? - palestra de Rubens Ricupero, Livraria Tapera Taperá, 21/05/2022, 10:00hs

Rubens Ricupero profere conferência sobre os sentidos do bicentenário da independência brasileira. Evento gratuito marca reabertura do espaço Tapera Taperá.

No dia 21 de maio, sábado, às 10 horas, o Instituto Diplomacia para Democracia, em parceria com a Cátedra Jose Bonifácio da USP, promoverá conferência do embaixador Rubens Ricupero “Vale comemorar o bicentenário da independência? O que fizemos em 200 anos? O que deixamos de fazer ou fizemos errado?”.

Partindo de texto recente de sua autoria, a conversa propõe “abordagem do bicentenário na base da raiz etimológica de com-memorar, lembrar juntos, em atitude voltada não ao passado, mas empenhada em dar balanço no que se fez e propor uma visão sobre o que falta fazer na construção perene do país”. 


Reabertura da Tapera

O evento marcará a reabertura da livraria e espaço cultural Tapera Taperá, desde março de 2020 sem atividades. Situada no bairro da República, no centro histórico de São Paulo, a Tapera pretende retomar tradição de debates e de ponto de apoio, nestes tempos difíceis, para a afirmação de um Brasil de esperança.


Serviço

Conferência aberta e gratuita “Vale comemorar o bicentenário da independência? O que fizemos em 200 anos? O que deixamos de fazer ou fizemos errado?”.

Com o embaixador Rubens Ricupero, autor de A diplomacia na construção do Brasil, entre outras contribuições.


Sábado, 21 de maio, 10 horas – Tapera Taperá: Avenida São Luis, 187, 2º andar, Loja 29 - Metrô República – São Paulo/SP. info@taperatapera.com.br; 11 3151-3797.

Lugares por ordem de chegada.

Transmissão ao vivo pelos canais do Instituto Diplomacia para Democracia e da Tapera Taperá 


segunda-feira, 21 de março de 2022

Impactos da Guerra na Ucrânia, com Rubens Ricupero - Canal Livre da BandNews TV

 Eis o link: https://www.youtube.com/watch?v=iMMblv8LI4c

domingo, 6 de março de 2022

Rubens Ricupero: "O interesse de Putin é destruir o sistema internacional criado após o final da Guerra Fria - entrevista com Marco Antonio Villa

Blog ADL

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06 março 2022

Rubens Ricupero: "O interesse de Putin é destruir o sistema internacional criado após o final da Guerra Fria."

Em entrevista concedida ao professor universitário aposentado, historiador e youtuber Marco Antonio Villa, o professor e diplomata brasileiro Rubens Ricupero lançou as seguintes opiniões (ideias), dentre outras: "Putin pretende afirmar nas fronteiras governos títeres."; "Nenhum dos vizinhos confia no governo russo."; "Aderir a uma aliança não é contra o Direito Internacional."; "A Rússia é uma potência do futuro."; "A invasão da Ucrânia abre uma nova etapa da história.". 

Para ver a entrevista na íntegra, veja o vídeo

https://blog-adl.blogspot.com/2022/03/rubens-ricupero-o-interesse-de-putin-e.html

 


Horário: 1:02:00 PM 

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https://twitter.com/PauloAlmeida53/status/1500534856241106948

06/03/2022 17:07


sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

O risco russo diante da História: entrevista com Rubens Ricupero - Miriam Leitão (O Globo)

O risco russo diante da História

Por Míriam Leitão

O Globo, 24/02/2022


O momento é de extremo perigo global, e o que o presidente Vladimir Putin está fazendo pode significar o fim do mundo como o conhecemos desde o pós-guerra. É o que pensa o embaixador Rubens Ricupero. Para o mercado financeiro, a análise é a de que “já está no preço” uma ocupação ao leste do país, mas não uma invasão total. Eles se prepararam para essa reação de Putin e em relatório aos clientes os bancos já explicavam que era dado como certo que a Rússia enviaria mais tropas para a Ucrânia.

O que todas as análises concordam, seja no mercado financeiro, seja na política internacional, é que as sanções não vão deter Putin. O governo russo está sentado numa montanha de reservas cambiais, US$ 640 bilhões, e pode resistir à suspensão do acesso ao mercado internacional de capitais. Num relatório, o banco UBS avalia que se houver uma escalada do conflito isso levaria a um boicote completo do petróleo e gás russos. Com isso, o petróleo iria a US$ 125 o barril por dois trimestres, o que elevaria a inflação e reduziria em 0,5 ponto percentual o crescimento mundial.

Para quem tem uma visão mais ampla, o que está acontecendo é gravíssimo, lembra o início dos piores momentos do século passado e tem uma responsabilidade histórica bem mais complexa do que parece.

— Putin está adotando uma atitude que de fato põe em perigo mortal este mundo que conhecemos e que durou quase 80 anos, em que houve guerras localizadas, mas nunca um dos principais atores assumiu uma posição tão descaradamente contra a ordem estabelecida. Ele está usando métodos que levaram à Primeira e à Segunda Guerras Mundiais e já violou a Carta da ONU —diz Ricupero.

Olhando o passado recente, o embaixador avalia que há culpas do Ocidente também porque aproveitando-se da fraqueza russa após o fim da União Soviética expandiu a Otan além do razoável. Desde 1997, a Aliança Militar incluiu 14 países que haviam sido satélites soviéticos ou membros da própria União Soviética: República Checa, Hungria, Polônia, Eslováquia, Eslovênia, Bulgária, Romênia, Estônia, Lituânia, Letônia, Albânia, Croácia, Montenegro, Macedônia do Norte.

— Nada justifica o que Putin está fazendo hoje, mas a raiz histórica desse problema envolve responsabilidade do Ocidente — lembra o embaixador.

Para ele, o paralelo que pode ser feito é com o que houve na Alemanha de Hitler:

— Desde que Putin começou a fortalecer seu poder militar, ele fez questão de exibir isso. Invadiu a Geórgia em 2008, anexou a Crimeia em 2014, estimulou os separatistas do leste da Ucrânia, interveio violentamente na guerra civil da Síria. Em todos esses casos, alguns disseram que ele se daria mal, mas ele teve êxito. É um pouco como aquela história do Hitler. No início, tudo o que Hitler fez deu certo. Anexou a Áustria, depois os Sudetos, que eram regiões da Checoslováquia com populações que falavam alemão, um pouco como acontece agora na Ucrânia. No Acordo de Munique as potências cederam os Sudetos na expectativa de que, com isso, ele não invadiria a Checoslováquia. Hitler em seguida invadiu a Checoslováquia. Putin tem tido o mesmo êxito — avalia o embaixador.

Como a Ucrânia não é da Otan, não está protegida pelo artigo quinto do Tratado de Washington que estabelece que todos são solidários, quando um dos países for invadido. Então Putin só não teria invadido se avaliasse que seria muito alto o custo de uma campanha militar e de sanções prolongadas.

Esse foi o cálculo feito no mercado financeiro também. É interesse da Rússia continuar fornecendo matérias-primas e energia para a Europa. A Rússia é grande exportadora de petróleo, gás natural, trigo. O mercado sugere, como hedge, investir em commodities, porque se houver “disrupção de fornecimento”, os preços vão subir.

Quem entende a História sabe que, se houver a escalada de um conflito, não há proteção possível. A Rússia é detentora da maior quantidade de ogivas nucleares no mundo, mas é um país intermediário do ponto de vista econômico e em rápido declínio demográfico. 

— O tempo corre contra a Rússia. Esses são os países mais perigosos. Como eram a Áustria, Hungria e a Rússia czarista em 1914. O que Putin fez já abriu um rombo enorme no sistema criado em 1945. Entramos no tempo do imprevisível — explica Ricupero.

O agravante é o fato de que, como diz o embaixador, o traço tradicional da psicologia da política russa é a ideia de que eles estão cercados.


Com Alvaro Gribel (de São Paulo)

 

 

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Entrevista Rubens Ricupero: ‘Bolsonaro é o sintoma mais alarmante da deterioração do sistema político‘ - revista Política Democrática (Fundação Astrojildo Pereira)

Entrevista com o embaixador Rubens Ricupero (4 de fevereiro de 2022), promovida pela revista Política Democrática, da Fundação Astrojildo Pereira, da qual participei por gentil convite do embaixador André Amado, ex-diretor do Instituto Rio Branco. Equipe da RPD e participação especial do Embaixador Paulo Roberto de Almeida

Revista Política Democrática n. 40, online, 16/02/2022

https://www.fundacaoastrojildo.org.br/bolsonaro-e-o-sintoma-mais-alarmante-da-deterioracao-do-sistema-politico/# 


Revista Política Democrática Online (RPD): São múltiplos os temas que se podem explorar com o Embaixador Rubens Ricupero no amplo universo da celebração do bicentenário da independência do Brasil, sobretudo agora que também assume a cátedra José Bonifácio, da Universidade de São Paulo. Vamos centrar-nos, no entanto, em torno de três balizas fundamentais. A primeira seria um balanço do que o Brasil fez até agora, isto é, um stock taking de 200 anos de Estado Nação e 130 anos de República, sublinhando o que se deixou de fazer e o que cumpre fazer. A segunda: como conciliar uma visão apologética do que o governo tentou fazer em 200 anos e uma abordagem crítica do Brasil nesse bicentenário em setembro próximo. E a terceira: como edificar uma sociedade melhor do que a que herdamos. Embaixador, vale a pena comemorar o bicentenário da independência? 

Rubens Ricupero (RR): Eu me alegro muito que essa conversa prometa conduzir a uma abordagem mais ampla do tema, porque há muito tempo me preocupa essa questão do bicentenário. Em palestra na Academia Brasileira de Letras, em 2019, no ciclo “O que falta ao Brasil”, indiquei que faltava a esperança, a esperança no sentido laico de que o amanhã será melhor do que o ontem, e que o futuro, melhor do que o passado e melhor do que o presente. Dei à minha palestra o título “Brasil, um futuro pior que o passado?”, com ponto de interrogação porque, de uns anos para cá, estávamos em fase aguda de auto questionamento. Muito intenso, o processo não começara com o governo Bolsonaro, mas bem antes, a partir de 2013/2014, resultando no impeachment e no que veio depoisForam crises sucessivas de natureza política, econômica-social, moral, que, a exemplo do que vivem os argentinos há mais de 80 anos, não desembocam em nenhum verdadeiro começo novo, mas apenas falsos começos, que chegam acompanhados de sinais inquietantes como a incapacidade, desde os anos 80, de crescer economicamente. Passamos décadas praticamente estagnados, com recessões cada vez mais graves, interrompidas por espasmos curtos de recuperação, logo seguidos por quedas muito fortes. 

Tomados em conjunto, tais sinais configuram uma crise de sistema, não só econômico, mas político e social. Sinto apreensão cada vez maior com o sistema político brasileiro – sistema como sinônimo de regime, isto é, de uma determinada configuração histórica que começa em certo momento, que tem uma estrutura de poder definida, uma Constituição formal, certas características de regime eleitoral, partidário, relações entre os poderes de Estado e que, cedo ou tarde, deixa de ser funcional, passa por crises sucessivas e finalmente se esgota e dá lugar a novo sistema. Desde a independência, a história do Brasil pode ser vista como uma sucessão de regimes. 

O primeiro, que não chega a ser um regime pela fugacidade, foi o do início da independência, com duração de menos de dez anos, que termina com a abdicação de Dom Pedro I. Foi consequência do que Otávio Tarquínio de Souza chamava do equívoco de se ter feito a independência do Brasil com um príncipe português. Foi uma falsa independência, ou uma independência parcial. Tanto assim que muitos autores do século 19 achavam que a verdadeira independência principiava no sete de abril de 1831, quando o imperador abdica. Nesse momento, ele reassume sua tendência natural que era a de se preocupar com os assuntos da sua dinastia em Portugal. Era esse o interesse existencial de Dom Pedro I, não os destinos do Brasil. 

O segundo regime, passada a fase tumultuada da regência, começa com a maioridade de Dom Pedro II, não no sentido cronológico de 1840, data em que tinha 15 anos incompletos, mas 1848, quando começa efetivamente a governar. Vai durar uns 40 anos, de 1848 a 1889, o regime do Segundo Império, de uma estabilidade que é sinônimo de estagnação, crescimento econômico anêmico, timidez em enfrentar o problema da escravidão e outros desafios. 

Esse regime morre em 1889 porque não foi capaz de se auto reformar, de se modernizar, de se tornar mais efetivo, demorou demais em enfrentar a necessidade de grandes reformas, a maior das quais a abolição, e morre por causa disso. Começa então a Primeira República que também não data propriamente de 1889 porque esses primeiros anos de turbulência, intervenções militares, guerra civil na época de Floriano, representam as dores do parto de um novo regime. Ele começa, de fato, com Prudente de Moraes, Campos Salles e vai durar até 1930. Mas, já a partir de 1910 com Hermes da Fonseca se inicia o declínio, fases prolongadas de crises entrecortadas por momentos de aparente recuperação. Mais uma vez se configura o problema que já tínhamos identificado antes, isto é, o regime não é capaz de autorreforma, não é capaz mesmo quando começa o movimento tenentista, as denúncias sobre o sistema eleitoral, sobre a oligarquia, a escolha dos presidentes por um pequeno grupo e acaba derrubado pela revolução de 1930. Portanto, a duração real, de 1894, começo do governo de Prudente de Moraes, até outubro de 1930, não chega a 40 anos. 

A seguir, temos esse período dos 15 anos que é o nascimento do Brasil moderno, da indústria, da modernização da administração, que coincide com evolução institucional agitada – Revolução de 30, Revolução de 1932, Constituição de 1934 – passa pela fase repressiva, sombria, do Estado Novo, chegando ao fim em 45. A partir de 46, temos outro regime – o da Constituição de 1946 – um dos mais curtos, durará menos de 20 anos, encerrando-se com o golpe militar de 1964. Após os 20 anos do regime militar, com atos institucionais, constituições passageiras, violações frequentes da própria institucionalidade imposta pelos militares, inaugura-se o período atual. 

O sistema corrente tem início em 1985 com a saída dos militares do poder e com a estruturação institucional da Constituição de 1988, com nova organização partidária, eleitoral, papel ativo do Ministério Público, do Supremo Tribunal, tudo que conhecemos. Esse sistema tem um início tumultuado: a morte de Tancredo, a posse de Sarney, o enfrentamento da dupla herança maldita dos militares: a da crise da dívida externa e da tendência à hiperinflação (os militares deixaram o poder em parte porque fracassaram em enfrentar essas duas questões). 

O começo da incapacidade brasileira de crescer já se inicia, portanto, no regime militar, é alguma coisa que antecede a Nova República, que finalmente se consolida depois do impeachment de Collor, com Itamar, o Plano Real e vai ter seu período de fastígio. Assim como a República Velha teve sua idade dourada, o período dos governos de Rodrigues Alves, Afonso Pena, um pouco mais, uns nove anos de estabilidade e prosperidade, o da Nova República serão os 16 anos dos mandatos duplos de Fernando Henrique e de Lula. 

Depois disso, percebe-se o início de uma decadência ininterrupta, que temo ser difícil de reverter, uma espécie de caminho de autodestruição do sistema político, devido às razões conhecidas: legislação permissiva favorecendo a proliferação de partidos, na verdade mais sindicatos de interesse para ter acesso aos recursos do fundo partidário, dificuldade de maioria em parlamento fragmentado, com poderes quase de regime parlamentarista que exacerba ao máximo o patrimonialismo, a utilização dos mandatos para controlar recursos públicos para fins ilícitos ou irracionais, culminando na situação atual na qual o Congresso controla a parte mais importante do orçamento, sem nenhuma responsabilidade em relação aos efeitos negativos para a economia, perpetuando a estagnação e o desemprego. 

 

RPD: Há tempo para se corrigirem as distorções? Por exemplo, as eleições de outubro próximo poderão contribuir para um novo Brasil? 

RR: O que temos visto até agora é a incapacidade de autorreforma pela velha razão de os principais beneficiários do sistema serem os que teriam de fazer as reformas, cortando na própria carne. Nesse sentido, Bolsonaro representa o sintoma mais alarmante da deterioração mórbida do sistema, um indício de que sua disfuncionalidade atingiu um nível em que ele começa a se autodestruir. Não acredito que a eleição vá representar em si mesma uma saída para a crise do sistema. Se a eleição levar ao poder não só um presidente, mas também um Congresso mais consciente da gravidade da crise, menos patrimonialista, poderá surgir a oportunidade de uma ampla negociação para enfrentar esses problemas que vêm da legislação partidária, da eleitoral, do orçamento “secreto”, das emendas de relator, tudo o que tem de ser modificado para que o sistema recupere um mínimo de funcionalidade. Se não conseguir fazer isso, o novo presidente não conseguirá governar, a crise se agrava e em algum momento, o regime que já dura há 37 anos (1985-2022) acabará como acabaram seus antecessores por meio da ruptura institucional. 

 

RPD: Até onde chegamos nesses 200 anos? 

RR: Chegamos aos 200 anos de vida independente em um momento negativamente crítico de nossa história. Há certos centenários ou bicentenários mais propícios. Por exemplo, os argentinos se orgulham de que o primeiro centenário deles coincidiu com momento de apogeu do país (1910). Essa é uma visão nostálgica, de certa forma aristocrática, dos que se identificavam com o regime liberal das grandes famílias, que deliberadamente ignoram que os festejos do centenário argentino ocorreram sob estado de sítio, diante de ameaças anarquistas, do medo causado pela “Semana Roja” das greves proletárias. Um analista político argentino, Rosendo Fraga, chegou a afirmar: "No segundo século, os argentinos se empenharam em destruir tudo que haviam construído no primeiro". Embora exagerada, essa visão serve para mostrar que, no caso da Argentina, havia ao menos circunstâncias objetivas que justificavam a gabolice. Era um país que parecia ter dado certo, admirado no exterior, recebia importantes visitantes estrangeiros, ocupava posição de destaque entre as economias do mundo e os maiores exportadores. 

O Brasil nunca viveu situação semelhante. O primeiro centenário brasileiro não foi um momento de euforia. Em 1922, o Brasil fizera um balanço de seu passado, sobretudo dos 35 anos da república, e tinha encontrado um déficit monumental. Houve até um esforço da geração nascida com a República, que não conhecera a monarquia, a levar avante o que, na época, chamavam de inquérito, uma consulta a intelectuais. Vicente Licínio Cardoso, organizador do inquérito, publicou o livro À margem da história da República, que continha artigos de Oliveira Viana, Alceu Amoroso Lima, Gilberto Amado, de alguns dos principais intelectuais de então. Foi um livro de consciência crítica sobre a república, revelando realizações muito aquém do esperado. 

Os acontecimentos que marcaram o primeiro centenário nem sempre estavam explicitamente ligados ao centenário, mas exprimiam o desejo de uma reconstrução de alguma forma inspirada pelo centenário. A Semana de Arte Moderna teve essa intenção de modernizar a cultura e a percepção do Brasil, de redescobrir a vida e a cultura do povo. Tratava-se, pois, de uma inspiração ligada em sentido amplo ao centenário. Na mesma linha, situou-se a fundação em Niterói do Partido Comunista do Brasil e, quase ao mesmo tempo, a do Centro Dom Vital por Jackson de Figueiredo, renovação do pensamento católico. O movimento tenentista de cinco de julho também visa justamente a mudança do sistema político-eleitoral. O ano do centenário no caso brasileiro vale não tanto pela grande exposição que foi feita no aterro, depois da demolição do Morro do Castelo – note-se, deixando sem moradia milhares pessoas pobres. Vale não pelos acontecimentos festivos e sim por esses esforços de refundação. 

 

RPD: Podemos supor que a celebração agora poderá voltar-se mais para estudos históricos de nossos primeiros 200 anos independentes? 

RR: Espero que sim, embora já se tenha feito muito a respeito. Na elaboração do meu artigo sobre o bicentenário, me inspirei na obra monumental de Pierre Nora “Os Lugares da Memória”. Num trecho do livro, o autor afirma que vivemos hoje uma situação curiosa, uma espécie de tensão dialética. De um lado, uma multiplicação dos aniversários a comemorar, uma espécie de mania de comemorações. A França chegou até a criar uma repartição pública para a coordenação das comemorações nacionais. E, do outro lado, uma contestação cada vez mais dura às comemorações, cuja expressão mais recente é a destruição de monumentos e estátuas. No caso brasileiro, tenho a impressão de que a prioridade não seja tanto de promover grandes estudos históricos. É claro que sempre há espaço para dizer coisas novas, mas, se tivermos de escolher, eu escolheria me concentrar em uma visão de futuro. Já tivemos na USP trabalhos admiráveis sobre o período da formação do Estado. O professor István Jancsó, que morreu em 2010, coordenou um projeto temático que se chamava “Brasil, a formação do Estado e da Nação”, uma obra enorme com 20 e poucos pesquisadores de mais de dez universidades. Como já existem também vários trabalhos recentes sobre José Bonifácio, concluí que não deveríamos nos propor a refazer esses trabalhos, como ocorreu no centenário, por exemplo, com a publicação dos Anais da Independência, de toda a documentação sobre o reconhecimento, tudo isso é louvável, mas na minha situação, quase com 85 anos, com pouco tempo disponível, prefiro olhar para a frente. 

 

RPD: Qual deveria ser o balanço dessa produção com olhos no futuro? 

RR: Como o balanço de qualquer país, o nosso também se divide em luzes e sombras. Gosto de usar a imagem da construção, que aliás não tem nada de original, a ideia de construção ou formação é uma ideia presente, como mostrou Antônio Candido, na obra de quase todos os intérpretes do Brasil, a ideia de formação, da sociedade patriarcal, da economia, do Brasil contemporâneo, até no livro do próprio Antônio Cândido sobre a formação da literatura brasileira. É uma ideia antiga que vem dos anos 20, dos anos 30. 

Parece óbvio que toda nação seja uma construção permanente, que não termina nunca, a não ser quando é demolida e vira ruínas como em Roma até aparecer nova construção em cima. Mas a história é isso, é uma construção permanente com altos e baixos. Estamos vivendo no Brasil um momento de demolição. O presidente Bolsonaro mesmo declarou em várias ocasiões que tinha vindo não para construir alguma coisa e sim para demolir. 

Temos 200 anos de história com muita coisa admirável realizada, que não se deve ignorar, dando ênfase apenas ao que falta. Em contraste com o orgulho dos argentinos sobre o seu primeiro centenário, o que vemos se olharmos para 1922? Um país que não tinha nenhuma universidade, a não ser a criada no papel em 1921. Mesmo em 1950, ano da eleição de Vargas, havia somente 45 mil ou 46 mil pessoas inscritas em cursos superiores. No ano passado, chegou-se a oito milhões e 600 mil. Não se pode dizer, então, que o Brasil ficou parado. Entramos no século 20, em 1900, com 17 e meio milhões de habitantes, dos quais 86% de analfabetos totais, muitos remanescentes da escravidão, recém terminada. Havia enorme população marginal, com subemprego. A expectativa de vida mal chegava a 30 anos. No Rio de Janeiro, até Oswaldo Cruz se tornar o diretor da saúde pública, em todos os anos, desde a época de Dom João VI até 1906 ou 1907, os óbitos eram mais numerosos do que os nascimentos, a cidade só crescendo por migração. Maria Luiza Marcilio, fundadora da história estatística no Brasil, escreveu um belo estudo a esse respeito, baseado em pesquisas primárias em arquivos de paróquias. Não se pode dizer, portanto, que o Brasil não caminhou nada nesses 200 anos, por isso é preciso assinalar o que se fez e o que se deixou de fazer.

 

RPD: A celebração do bicentenário tem data marcada para terminar? 

RR: O bicentenário brasileiro está em curso e não terminará no marco cronológico, que é sete de setembro. Vai terminar apenas na data das eleições porque uma coisa é a cronologia, outra coisa é a realidade, é a história, é o espírito de uma época. É como se costuma dizer que o século 20 não começou em 1901, começou de verdade em 1914, quer dizer, o espírito do século começa em 1914 com a Grande Guerra. No nosso caso, o terceiro centenário só começa depois que terminar essa fase penosa a que estamos assistindo, que esperamos seja superada pelo processo eleitoral. A partir de então, começará nosso terceiro centenário, oxalá sob o signo da esperança. 

O historiador argentino Luis Alberto Romero, que escreveu ensaios interessantes sobre o bicentenário argentino, diz algo que é evidente, mas vale a pena lembrar. Diz ele: os grandes aniversários, como os centenários de uma nação, impõem duas perguntas obrigatórias, ou melhor, uma pergunta e um desafio, a primeira pergunta é: o que nós fizemos? E o desafio é: o que nos falta fazer, o que nós temos que fazer? 

 

RPD: Aproveitando esse gancho, pergunto o que podemos fazer para recuperar a imagem do Brasil no exterior e infundir nos jovens a honra do serviço à pátria também no exterior? 

RR: Não me vejo em condições de dizer o que o Brasil deve fazer. Posso dizer o que eu gostaria que o Brasil fizesse. É um processo, não propriamente reservado a intelectuais porque a questão da comemoração do bicentenário é um dever de cidadania, que todos devem cumprir, isto é, a ideia de comemorar, de lembrar juntos significa que temos de indagar se existe uma memória coletiva unificada, indiferenciada ou se essa memória coletiva é formada de fragmentos de memória, e, nesse caso, até que ponto os fragmentos de memória convergem como peças de mosaico para formar algum desenho com sentido. 

É possível dizer que exista uma memória unificada brasileira sem levar em conta a memória nos negros, a memória dos povos originários, a memória das mulheres, a memória de todos aqueles que nunca tiveram uma posição de direção do processo histórico e, ao contrário, foram oprimidos e marginalizados? Acredito que não. O que existe na realidade é uma memória fragmentada. A única maneira de tentar juntar os fragmentos de memória é dando voz às pessoas, em uma primeira etapa, para exprimirem suas queixas e, em uma segunda etapa, para manifestarem o que desejariam construir. 

A cátedra José Bonifácio é algo de limitado à USP. Por isso, preciso da ajuda de vocês, para a melhor disseminação de ideias que espero possam ser compartilhadas pelo maior número possível de pessoas da população. Reconheço para isso meus limites: não conheço as pessoas representativas da comunidade negra, do movimento dos povos originários e outros similares. 

Sobre como redespertar nos jovens a esperança, gostaria de contar experiência que tive, anos atrás, antes do ano 2000, quando estava ainda na UNCTAD. Na ocasião, sugeri a Michel Camdessus, ex-diretor do FMI e meu amigo pessoal desde os tempos em que éramos ambos frequentadores da missa da igreja dos jesuítas de Georgetown, em Washington, ideia inspirada na Revolução Francesa. Como se sabe, a Revolução teve sua origem na eleição para a Assembleia Nacional, do Terceiro Estado, da nobreza e do clero, sobretudo a eleição para o terceiro Estado que se fez por paróquias. Em cada paróquia, as pessoas redigiam um cahier de doléances, um caderno de dores, de queixas, de reclamações. Milhares desses cadernos sobreviveram, e é isso que permite um retrato fantástico de qual era o estado da França no fim do Antigo Regime e na véspera da Revolução. Todo ano, Camdessus reunia no verão, em sua casa de Bayonne, um grupo de amigos para debater ideias. Naquele ano, o tema era o que esperar do século 21 e o novo milênio. Sugeri então: por que, em vez de cahiers de doléances, não escrevemos cahiers d’espérance? Isto é, quais são as razões credíveis, não fantasias, que nos levam a crer que o terceiro milênio será melhor que o segundo ou o primeiro? 

A primeira resposta foi a de Michel Camdessus, que me pareceu notável: “A razão de acreditar que o terceiro milênio vai ser melhor é a emancipação da mulher. A mulher até agora praticamente não tinha voz, ocupava na maioria das culturas posição subalterna, dominada. Vivemos milênios, na maior parte da história, como se a humanidade utilizasse apenas metade do cérebro, agora passamos a utilizar a outra metade”.

Esse exemplo pode ser adaptado ao nosso propósito. Temos de indagar: “quais são as razões para crer que o terceiro século do Brasil será melhor que os dois anteriores? Em outros termos, o que temos de fazer para que a realidade futura seja melhor que a presente e a passada? 

Refiro-me não a motivos de political fiction, sim a motivos credíveis, razoáveis, quais são as condições para que o futuro do Brasil seja melhor que seu passado? É claro que cada um, cada setor tem de partir de sua própria realidade para responder. Não me cabe, por exemplo, falar em nome dos negros, dos indígenas, dos marginalizados. Imagino que haverá muita queixa, muita expressão legítima de mágoa contra a história brasileira, que foi madrasta para muitos setores do povo. 

Esses setores não têm razão nenhuma para fazer uma celebração festiva ou apologética do bicentenário. O índio no Brasil viu sua condição piorada, passou a viver sob ameaça de extinção desde o começo da colonização dos portugueses. No ano 2000, na comemoração dos 500 anos da chegada dos portugueses, o governo se esqueceu dos índios, o que causou naturalmente uma reação da parte deles de contestação à comemoração do que para os povos originários não passara do começo do extermínio, da escravização. 

O negro então tem razões especiais para ser contra o bicentenário. Logo no começo da independência, pressionado pelos ingleses, o governo brasileiro assinou o tratado para pôr fim ao tráfico a partir de 1830. Em novembro de 1831, a lei votada na época da Regência Trina, quando o ministro da Justiça era o padre Feijó, proibia a importação de africanos e determinava que qualquer africano introduzido no Brasil, a partir daquela data, fosse imediatamente libertado. Não aconteceu nem uma coisa nem a outra. Mais de um milhão de africanos foram importados ilegalmente, com a conivência, a cumplicidade ativa das autoridades. O Brasil se tornou, assim, o único caso de país que teve uma escravidão contra sua própria lei, ao menos no caso dos escravizados chegados depois de 1831 e de seus descendentes. Estou convencido de que, em termos puramente jurídicos, os negros brasileiros teriam direito líquido e certo a uma indenização porque o Estado brasileiro violou sua própria lei. A escravidão era legal, mas o tráfico não era. 

Como mencionado antes, o processo de construir o futuro tem de ter duas etapas, o cahier de doléances e o cahier d’espérances, e tem de dar voz a quem não tem voz. Não é a minha voz. Ontem (3/02), por exemplo, conversei por zoom com a Marta Suplicy sobre a exposição alusiva à Consciência Negra da prefeitura de São Paulo, que teve uma primeira edição no ano passado e agora se prepara a segunda. Ela talvez tenha como tema o bicentenário. Quem deve planejar não seremos nós, a ideia é chamar negros representativos para que se organizem e digam o que esperar do terceiro centenário no Brasil. São os membros da comunidade negra que têm de dizer o que, do ponto de vista deles, desejariam que fosse o terceiro século do Brasil. 

 

RPD: Qual seria a melhor maneira de seu ponto de vista de celebrar o bicentenário/ 

RR: Minha visão de brasileiro, de 84 anos, descendente de imigrantes italianos, embora muito pobres, branco, de olho azul, não é a mesma de outros brasileiros. Tenho de comparar minha visão com a dos outros. O maior desafio da escolha do objeto de reflexão no bicentenário é que não podemos abarcar tudo, como uma espécie de “museu de tudo”, desde agricultura, indústrias, minas, instituições políticas, eleitorais, cultura, seria uma enciclopédia do Brasil, isso não vamos poder fazer. 

Diante de desafio semelhante na Argentina, Luis Alberto Romero declarou: "No meu artigo, vou deixar de fora a sociedade e a economia, porque não tenho condições de falar sobre isso. Vou me concentrar só em três elementos: a Nação, a República e o Estado". Ora, já isso é gigantesco, um programa para uma vida toda, não é? Se, ao lado disso, tivermos de analisar a economia, a sociedade, a universidade, então é um mundo... 

Temos de escolher alguns temas que sirvam como eixos principais, talvez quatro ou cinco: desigualdade, democracia, meio ambiente, desenvolvimento, cultura. O primeiro seria a desigualdade. Se fizermos um inquérito com os brasileiros, veremos que a maioria, quando interrogado sobre: “Qual a pior herança dos 200 anos, o que faltou fazer?", não hesitaria em responder: "É a herança da desigualdade". Não somos o único país desigual, todos os países são desiguais em algum grau, mas sabemos que, no nosso caso, a situação é excepcional, terrível, assustadora. Não se pode sair à rua sem que o problema nos entre pelos olhos. Vejo isso aqui, em São Paulo, minha cidade, uma das mais avançadas do país. Outro dia fui à Praça da Sé, o centro antigo da cidade. Vi a praça inteira ocupada por um acampamento imenso de tendas de pessoas que não têm onde morar. A periferia, aquilo que ficava a quilômetros e que em São Paulo não se via por causa da topografia da cidade, a periferia virou o centro. Aquilo que se dizia no Rio de Janeiro nos anos 50, que o morro um dia vai descer, já aconteceu. Não dá mais para ignorar o problema da desigualdade. 

Não tenho receita de como resolver isso, temos de ouvir os cientistas sociais que vêm aperfeiçoando ideias efetivas sobre como lidar com a desigualdade no Brasil. Não me refiro apenas à desigualdade de renda e de fortuna, mas à desigualdade de cor, o problema do racismo, o problema dos negros, dos índios, dos refugiados e imigrantes, o problema da igualdade de gênero, da mulher, tudo isso na rubrica desigualdade. 

Um segundo tema seria a democracia, que abarcaria o sistema político, o sistema eleitoral, o sistema partidário, o parlamento, o acesso de todos à justiça, a polícia, em suma, os Direitos Humanos na sua totalidade, só aí já é outro universo. Uma terceira rubrica é o meio ambiente. Se não acertarmos com a solução adequada para evitar o agravamento do aquecimento global, a destruição da Amazônia, das florestas, das nascentes de água, nem precisaremos nos preocupar com os demais problemas porque a sociedade tal como a conhecemos deixará de existir. Um quarto grande tema será o desenvolvimento, a economia, a vida material, pois sem base econômica, não temos como fazer funcionar o restante. Como podemos voltar a crescer? 

Esses grandes temas não esgotam a agenda: por exemplo, educação e saúde podem ser incluídos tanto em desigualdade como em democracia. Mas aquelas quatro rubricas pelo menos permitiriam organizar a reflexão e a discussão. Faltaria ainda falar sobre a necessidade de renovação da cultura, das ideias, das artes.

Resumindo, diria que a visão de futuro deve começar pelas queixas, não tanto ou somente do passado, mas, sobretudo, do presente, cahier de doléances. Um exemplo concreto: os negros e índios vão querer conservar as cotas, ampliar as ações afirmativas. Cada setor terá um determinado programa. 

 

RPD: Apesar de tudo, embaixador, o senhor é otimista? 

RR: Essa questão demanda qualificações. Impressiona-me que a ascensão da extrema direita no Brasil tenha começado no terreno intelectual. Há entre nós a atitude de não levar a sério pseudo filósofos como Olavo Carvalho e discípulos, porque de fato são charlatães, mas charlatães que tiveram impacto. Olavo de Carvalho atingiu milhares de pessoas e desencadeou um movimento de ideias e de ação, utilizando ideias vindas de filósofos e intelectuais italianos, franceses, fascistas, pós-fascistas, tradicionalistas reacionários e transformou isso tudo em ideias pasteurizadas de fácil consumo por pessoas sem formação universitária. Foi um movimento que começou no domínio das ideias mediante a criação de editoras, lançamento de cursos de Filosofia online. Tudo isso ocorreu fora da universidade e da academia, que os desprezavam pelo primitivismo intelectual, pela irracionalidade, pela linguagem, os palavrões escatológicos de Olavo de Carvalho, sem que a academia percebesse que Olavo atraia militares, policiais militares, financiadores, gente de todo tipo, fazendo a cabeça de toda essa gente. 

É uma ilusão pensar que essas coisas vão desaparecer por milagre se Bolsonaro for derrotado nas urnas. Se Lula for eleito, vai voltar ao poder 12 anos depois que o deixou. Nesse intervalo de tempo considerável, o Brasil e o mundo mudaram, não são mais os mesmos. O Brasil de hoje não é o Brasil de 2010, quando Lula terminou seu segundo mandato, em 2010 não havia, por exemplo, uma extrema direita organizada e coordenada no país. Será que Lula está consciente disso? 

Toda essa mudança começou no domínio da cultura, da vida intelectual, das ideias. Mesmo que as desprezemos por considerá-las ridículas, muitas vezes lunáticas, são ideias que produziram graves efeitos. Vejam os Estados Unidos, um país cujo futuro me preocupa mais que o do Brasil porque lá a divisão é mais profunda, a extrema direita é incomparavelmente mais forte do que aqui, com grande chance de voltar ao poder. E lá também tudo começou no domínio das ideias que circulam à margem das academias. 

Temos de reagir, entre outras maneiras, por uma revolução da cultura, porque nossa cultura não está respondendo à altura. Nossa cultura tradicional, da academia, ficou demasiado presa a essas bobagens do tipo currículo Lattes, de revistas de peer review que contam pontos na carreira universitária, coisas em si necessárias, mas que, em excesso, transformam a vida do espírito em burocracia universitária, em torre de marfim, mandarinato. Perdeu o contato com o mundo real das pessoas de carne e osso, não há nem de longe uma figura comparável a Mário de Andrade. Por mais que hoje tenha se tornado moda criticar o movimento de 22, a verdade é que ele foi uma autêntica revolução cultural, uma profunda mudança na maneira pela qual os brasileiros se viam a si mesmos, ao povo simples, a arte popular, a herança do passado. Mário de Andrade fez a cabeça das pessoas, sou velho o suficiente para ter ouvido Tristão de Ataíde no centro Dom Vital dizer em uma conferência: "Toda minha geração antes do Modernismo sentia vergonha do passado colonial, do estilo barroco, de Minas Gerais, nós, quando se começou a demolir as antigas casas do velho Rio, achávamos ótimo porque tínhamos vergonha de que um francês viesse ao Brasil e visse aquilo; quem nos abriu os olhos foi o Mário, foi ele que nos tomou pelas mãos, nos levou a Ouro Preto, nos levou a todos os lugares em que se precisava valorizar essa raiz brasileira". 

Hoje, não temos gente assim. É preciso começar a reconstrução por meio da cultura brasileira, das ideias, do pensamento. 

Vocês me perguntam se sou otimista. Penso nisso como Gramsci que, em certa ocasião, escreveu ao irmão Carlo para censurá-lo por haver contado à mãe sobre o estado lastimável em que o tinha encontrado na prisão. Aliás, o próprio Gramsci ao ser transferido de prisão e rever, depois de anos preso, seu rosto no espelho do banheiro do trem, teve um choque fortíssimo de não reconhecimento. Na carta ao irmão, Gramsci reformulou o programa de vida traçado por Romain Rolland “pessimista na inteligência, otimista na vontade”. Assim descrevia seu ideal, que me permito fazer meu: 

 “o homem deveria alcançar um grau máximo de serenidade estoica, e adquirir a convicção profunda de que possui em si mesmo a fonte das próprias forças morais, de que tudo depende dele, de sua energia, de sua vontade, [...] – a ponto de jamais desesperar e não cair nunca mais naqueles estados de espírito – vulgares e banais – a que se chamam pessimismo e otimismo. Meu estado de espírito sintetiza esses dois sentimentos e os supera: sou pessimista com a inteligência, mas um otimista com a vontade”.

No fundo, o que Gramsci e outros fizeram foi dar expressão a uma verdade que todos temos presente na consciência, a de que o futuro não está traçado, não está pré-determinado, ele não está escrito nas estrelas, o futuro vai depender do que a gente fizer ou deixar de fazer, tanto o futuro do Brasil como o de qualquer outro país. Até pouco tempo atrás, a gente tinha aquela ilusão de que os Estados Unidos, por exemplo, seriam um país de democracia irreversível, que só poderia se aperfeiçoar com o tempo. Com a eleição de Trump e tudo que aconteceu, vimos que não era assim. Já tínhamos aprendido isso com o nazismo na Alemanha, antes disso com o fascismo na Itália, isto é, nenhuma comunidade humana, nenhuma formação social, nenhuma nação, pode afirmar: “Cheguei ao ponto mais alto de realização, a partir de agora, vou me deitar na rede e usufruir porque não terei mais problemas”. Na realidade, nada está garantido, tudo pode piorar, caminhar para trás, uma linha tênue separa a civilização da barbárie, a história tem um componente muito grande de tragédia. 

 Receio que o futuro brasileiro, nos próximos 100 anos, terá momentos muito difíceis. Vejo com dificuldade como esse sistema político que temos dará lugar a um sistema menos disfuncional, pode ser que isso venha acompanhado de violência. Todos os regimes ou sistemas políticos que tivemos terminaram por ruptura institucional, isto é, por rompimento das regras constitucionais. 

A ruptura da base institucional é violenta por abandonar as regras anteriormente aceitas, porque a mudança não ocorre em obediência, mas em violação às normas estabelecidas. Nem sempre vem acompanhada de violência física, de guerra civil, de destruições, apesar da frequência dos câmbios violentos. A frase de Marx em O Capital de que “A violência é a parteira de toda a sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova” tem muito de verdade. 

Basta pensar nas convulsões da França na Revolução de 1789, nas de 1830, 1848, na Comuna de 1871; no final wagneriano do nazismo na Alemanha, do fascismo na Itália. Até os Estados Unidos não escaparam à prova da violência no nascimento da sociedade pós-escravagista com a espantosa e mortífera violência da Guerra Civil. 

Já no caso do Brasil, felizmente fomos em geral poupados de extremos de violência física nas rupturas da proclamação da República, da própria Revolução de 30, não tanto no golpe de 1964, no seu melancólico fim. Quem sabe o que reserva a história para o carcomido regime brasileiro? 

 

RPD: O senhor nos deixa com certo sentimento antecipado de inveja por não podermos desfrutar dos diálogos que promoverá na Cátedra José Bonifácio. 

RR: Não se preocupe, serão todos transmitidos por canais virtuais. É de meu interesse também que as discussões se multipliquem, para compensar esse debate paupérrimo que nos assola, sobretudo em ano de eleições. É claro que não vamos conseguir afetar diretamente a campanha eleitoral, mas a gente deveria fazer um esforço para que o resultado das reflexões sobre o bicentenário influencie de alguma maneira o debate público. 

 

SAIBA MAIS SOBRE O ENTREVISTADO


 *Rubens Ricupero é diplomata aposentado e historiador. Embaixador junto à ONU e ao GATT em Genebra, nos Estados Unidos e na Itália. Assessor de Tancredo Neves e José Sarney. Ministro do Meio Ambiente e da Amazônia. Ministro da Fazenda. Secretário-Geral da UNCTAD (Genebra). Professor do Instituto Rio Branco e da UnB. Atualmente é titular da Cátedra José Bonifácio da USP. Autor de vários livros, sua última obra é A diplomacia na construção do Brasil 1750-2016 (Editora Versal, 2017)”.

** Entrevista especial produzida para publicação na Revista Política Democrática Online de fevereiro/2022 (40ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

O programa da Cátedra José Bonifácio da USP para 2022 - Rubens Ricupero

Ideias preliminares sobre a Cátedra José Bonifácio -USP

2021-2022


Rubens Ricupero


         O próximo período da Cátedra José Bonifácio coincide com o Bicentenário da Independência do Brasil. O patrono da cátedra foi a figura principal da independência, ao lado de Dom Pedro I. A dupla circunstância do aniversário nacional e do papel central nele desempenhado pelo Patrono da Independência quase que impõem de forma natural que a reflexão sobre o Bicentenário ocupe espaço central nos estudos e pesquisas da cadeira neste ano.

         José Bonifácio se destaca como figura original, quase única, entre os fundadores de nações nas Américas durante a era da independência. Não foi chefe militar, nem era jurista primordialmente. Homem de ciência num país sem ciência, universitário em terra sem educação superior, educado nas melhores universidades e centros científicos europeus, aplicou seu espírito científico a imaginar o que poderia vir a ser a nação cuja existência apenas começava naquele momento. Propôs ideias para resolver praticamente todos os desafios principais do país: a escravidão, o tráfico de escravos, a situação dos indígenas, o acesso à terra, o crédito, o desenvolvimento das minas e da indústria, a educação, a imigração. 

         A mais importante biógrafa moderna do Patriarca, a Professora da USP, Míriam Dolhnikoff, elaborou um livro intitulado Projetos para o Brasil José Bonifácio de Andrada e Silva (São Paulo: Companhia das Letras, 1998), que reúne e organiza todos esses projetos para criar um país moderno e aberto ao futuro. Em fins de 1990, poucas semanas antes de sua morte, José Guilherme Merquior havia feito uma conferência em Paris sobre os grandes projetos históricos de Brasil-nação. O primeiro consistia no que chamava de “Projeto Andrada”, resumido em executivo forte, imigração para substituir a escravatura e crédito do Banco do Brasil para desenvolver o país. 

         Os projetos que o Patriarca sonhou para a nação poderiam servir-nos de inspiração na hora de planejar as atividades da Cátedra JB nos próximos meses. Não para levar avante um programa de estudos históricos sobre a Independência, o que já foi feito de forma magnífica e recente por pesquisadores da USP por meio, sobretudo, do projeto temático Brasil: Formação do Estado e da Nação. Sob coordenação e liderança do professor da USP, István Jancsó, falecido em 2010, o projeto reuniu 22 pesquisadores de dez universidades. Resultou na publicação da obra: István Jancsó (organizador), Brasil: Formação do Estado e da Nação. (São Paulo: Hucitec, Unijuí, FAPESP, 2003).  

         Levando em conta o estudo histórico já realizado, os projetos de Brasil-nação nos fornecem inspiração sobretudo porque, na maioria dos casos, se não na totalidade, os mesmos problemas ou suas sequelas continuam a interpelar os brasileiros na véspera do terceiro século da existência do país independente. Um centenário na vida da nação se presta sempre a duas perguntas inevitáveis: o que se fez? O que falta fazer? As grandes exposições universais do passado se compraziam em inventários exaustivos, balanços que mereceriam o nome de “museus de tudo”: as artes, as invenções, os produtos da indústria, da agricultura, das minas. Nosso propósito, mais realista, se concentraria em partir da situação atual em alguns setores-chaves, poucos e decisivos, como base para reflexão sobre o futuro.

         De fato, o programa da Cátedra se voltaria resolutamente para a frente, para responder, acima de tudo, à questão relativa ao que faltou e falta fazer. A ênfase necessariamente recairá no Brasil, pois é do Bicentenário do país que vamos nos ocupar. Nossa Independência, longe de ter sido fenômeno isolado, constituiu o capítulo brasileiro de um processo global: o fim do Antigo Regime, as revoluções atlânticas, as guerras napoleônicas. Tais causas produziram consequências análogas do México à Argentina, englobando praticamente toda a Ibero-América. A dimensão comparativa com os demais países do nosso entorno geográfico e existencial não poderia, portanto, faltar no programa, o que o insere claramente na característica central da cadeira, o estudo da realidade ibero-americana. 

         Com diferença de poucos anos, os países latino-americanos comemoraram ou ainda devem comemorar seus bicentenários de independência. A Argentina, o mais próximo pela contiguidade e importância, ostenta até dois bicentenários, o da Revolução de 25 de maio de 1810 que derrubou o vice-rei espanhol e instituiu a primeira Junta de Governo e o de 9 de julho de 1816, quando o Congresso de Tucumán proclamou a independência das Províncias do Rio da Prata. Ao escrever sobre o Bicentenário de 2010, o historiador argentino Luís Alberto Romero procurou comparar esse segundo aniversário com o primeiro (1910), no artigo La Argentina en el espejo de los Centenarios, (Nuevo MundoMundos Nuevos, 2010, publicado também em forma mais resumida e com alterações como El espejolejano del primer Centenario, Revista Ñ, Clarín, 26/5/2010). 

         Os dois escritos de Romero podem nos ajudar na necessária reflexão coletiva que deveremos fazer ao longo dos próximos meses sobre o nosso Bicentenário. Não tanto no conteúdo da análise e sim na metodologia, na forma de abordar a questão, tomando de empréstimo, entre outros aspectos, a comparação entre o primeiro e o segundo centenário, o panorama ao fim de cada um dos dois séculos de existência independente. Ele partiu das duas questões incontornáveis, que chama de uma pergunta e um desafio: o que fizemos? O que podemos fazer? Sua resposta é que se deve buscar um objetivo duplo: dar um balançono que se fez ou deixou de fazer e propor um programa para o futuro, para o que falta fazer ou corrigir. 

Tendo de escolher entre um mundo de coisas realizadas em duzentos anos, Romero viu-se obrigado a deixar de lado elementos importantes como a economia e a sociedade. Preferiu concentrar a atenção em três questões: o Estado, a República e a Nação. Esclareço que não proponho reproduzir em relação ao Brasil no programa da cátedra o balanço e o programa que o intelectual portenho levou a efeito sobre a Argentina. Ele escreveu, com efeito, no momento em que se completava, em 25 de maio de 2010, um dos Bicentenários argentinos. 

Em nosso caso, enfrentamos situação bastante diferente. Em primeiro lugar, na cronologia, já que o bicentenário brasileiro em tese se completa apenas em 7 de setembro de 2022, portanto além da data do encerramento do programa. Outra diferença reside na coincidência, no mesmo ano, entre o Bicentenário do Brasil e eleições que decidirão sobre o futuro de governo que representa uma “ruptura de civilização” no curso dos 200 anos da história do país independente. Não seria, assim, possível dispor de balanço definitivo desse período e muito menos de programa de futuro antes de saber o que nos reservam as eleições. Em termos de fato, se não de cronologia, o segundo século brasileiro só termina depois das eleições de 2/30 de outubro de 2022.

Por essas razões, proponho a esta altura somente um roteiro e um método para o exercício de reflexão que deveremos empreender como forma ideal de viver o Bicentenário. “Viver”, não “lembrar”, “recordar”, pois uma coisa é trazer à memória acontecimentos passados e acabados, a assinatura do Tratado de Petrópolis, a batalha do Riachuelo. Outra, bem diversa, é evocar um processo vivo em pleno andamento, inacabado, que necessita de nossa ação para que se tente imprimir-lhe sentido de criação do futuro. 

Neste caso, temos de viver o processo de dentro, como operários de uma construção em curso. Quanto mais agora que teremos pela frente um bicentenário coincidente com campanha eleitoral decisiva. Dessa campanha deveria fazer parte a discussão de nosso passado e a proposta de razões para crer que o futuro será superior ao presente e melhor do que foi o passado. Longe da posição do analista de fora, somos autores, sujeitos de um processo que se confunde com nosso próprio destino. 

É obrigação de cada um fazer com que a comemoração do Bicentenário supere em muito a do Centenário de 1922 em qualidade e, acima de tudo, em participação universal, sem exclusões, de todos os setores da população que nunca tiveram voz. Quem sabe assim o terceiro século do Brasil será capaz de resgatar a dívida deixada pelos dois primeiros: dar sentido ao mosaico formado pelos incontáveis fragmentos partidos da memória, permitir a cada participante do povo brasileiro uma vida de trabalho digno, igualdade e realização cultural.


Rubens Ricupero

São Paulo, 15 de novembro de 2021


domingo, 9 de janeiro de 2022

"Paulo Roberto, o embaixador ombudsman" - Sérgio Abreu e Lima Florêncio (2022)


 Meu grande amigo e colega de carreira, o embaixador Sérgio Abreu e Lima Florêncio, que fez inúmeros postos na sua longa trajetória no Itamaraty, dos mais fascinantes (Genebra, Nova York) aos mais desafiadores (o Irã da revolução dos aiatolás), brilhante intelectual, está publicando seu livro de "memórias amenas", na quais ele recorda um pouco de tudo, do seu início da vida estudantil ao mais diferentes episódios na carreira. No início de 2021 ele fez um texto sobre este escrevinhador, no seguimento de uma homenagem que fez em sua residência de Brasília, em meados do ano anterior, chamando diversos colegas da Casa, o que muito me sensibilizou. 

Ele encontrou uma designação para mim na qual eu ainda não havia pensado: Ombudsman. Talvez seja o caso. De minha parte, costumo me descrever como um contrarianista, um cético sadio ou até um anarco-diplomata, mas aceito com prazer a nova "profissão", ao mesmo tempo em que aproveito para agradecer a enorme distinção que ele me faz. 
Afinal de contas, não é todo dia, aliás acho que nunca, que sou objeto de um capítulo em livro de amigos (ou inimigos, os quais também devo ter). Recebo, com humildade, todos os tipos de críticas, que sempre nos ajudam a melhorar; elogios são mais bem-vindos ainda.  

Transcrevo aqui o seu texto, um dos capítulos de seu livro, que deverá ser publicado proximamente. Ao final, transcrevo o belo prefácio do embaixador Rubens Ricupero.

Paulo Roberto de Almeida

 

 

2.2 PAULO ROBERTO, O EMBAIXADOR OMBUDSMAN 

 

In: Sergio Abreu e Lima Florêncio: Diplomacia, Revolução e Afetos: de Vila Isabel a Teerã (Curitiba: Editora Appris, 2022; p. 57-58)

  

Toda instituição de excelência necessita, com certa regularidade, fazer autocrítica. Entretanto, entre seus integrantes, poucos são aqueles com vocação ou capacidade para exercer essa difícil função. 

O Itamaraty tem o privilégio de contar, em seus quadros, com um diplomata com esse perfil. Tem nas veias o sangue da contestação intelectual, o fascínio pelo debate de ideias e o respeito ao contraditório. Pessoas com essas virtudes têm, em geral, um percurso profissional marcado por incompreensão, crítica e injustiça. Esse é o caso de Paulo Roberto de Almeida. 

Personifica a inteligência contestatária que, apesar dos pesares, a instituição teve a sabedoria de preservar. Entretanto, essa vertente iluminista foi esquecida ao longo de uma década e meia e, nos últimos dois anos, sepultada da forma mais devastadora e abjeta. 

Conheci Paulo no início do Mercosul, ele assessor do Rubens Barbosa, e eu, Chefe da primeira Divisão do Mercosul, junto a talentosos jovens diplomatas, como Eduardo Saboia, João Mendes, Haroldo Ribeiro e Raphael Azeredo. Já naquele tempo era visível sua obstinação pelo conhecimento multidisciplinar, pela pesquisa, pela rebeldia esclarecida, pela irreverência intelectual, pela destruição criadora shumpeteriana que estimula seus neurônios.

Sempre admirei essa essência anímica do Paulo – essa junguiana “chama da alma”. Diversas vezes o aconselhei a arrefecer a chama, mas jamais extingui-la. Na verdade, meu receio maior não residia na sua essência anímica, mas nos Bombeiros de Farenheit 451, sempre prestes a inverter a direção das labaredas. 

Paulo deu relevante contribuição para a política externa do período de Fernando Henrique, em especial no momento-chave da criação do Mercosul. Soube reconhecer os méritos da diplomacia de Lula, ao mesmo tempo em que se revelou crítico contundente dos graves excessos e desvios, particularmente comprometedores na gestão ineficaz e equivocada de Dilma. 

Pela crítica corajosa à influência negativa do PT sobre a diplomacia brasileira, foi vítima de prolongada e injusta marginalização que estacionou sua carreira. Apenas no governo Temer, com o Chanceler Aloysio Nunes, teve o reconhecimento merecido, mas adiado de forma injustificável por uma década e meia. Foi então nomeado Diretor do IPRI – Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais. Ali estava o homem certo no lugar certo. Teve desempenho brilhante e altamente dinâmico. 

Nessa época, os jovens diplomatas que, junto comigo, conheceram Paulo nos chamados tempos heróicos do Mercosul, haviam então galgado posições de direção e souberam fazer justiça a esse batalhador da nossa política externa. Além disso, Embaixadores de grande prestígio, como Rubens Ricúpero e Rubens Barbosa (seu chefe durante anos), defenderam Paulo e se empenharam por sua promoção a Embaixador. Foi nesse momento que organizei encontro em nossa casa para celebrar o tão adiado reconhecimento do mérito. Disse então que não estávamos festejando a promoção do Paulo, porque era o Itamaraty que estava sendo promovido. Promovido pelo resgate da justiça. 

Com a eleição de Bolsonaro, a política externa brasileira perdeu prin­cípios, valores e paradigmas que marcaram sua história. Nas áreas de meio ambiente, direitos humanos, multilateralismo, relações bilaterais, o Brasil tem hoje a diplomacia do delírio, da submissão e do prejuízo ao interesse nacional. É uma tragédia a gestão do Chanceler Ernesto Araújo. 

Paulo, uma das primeiras vítimas desse desvario, foi logo afastado da direção do IPRI. O motivo, de tão ridículo, vale aqui ser lembrado – autorizou a publicação de entrevistas de FHC, Rubens Ricupero e do próprio [EA] nos Cadernos de Política Exterior da Funag. 

Nesse momento sombrio, Paulo tem sido o mais obstinado e contundente crítico da desastrosa política externa. Ele personifica o Ombudsman de uma instituição dilapidada em seus alicerces pela irresponsabilidade do Presidente e do Chanceler.

 

Brasília, 30 de janeiro de 2021.


 

Prefácio

 

In: Sergio Abreu e Lima Florêncio: Diplomacia, Revolução e Afetos: de Vila Isabel a Teerã (Curitiba: Editora Appris, 2022; p. 11-13)

 

Se o livro de Sérgio Florêncio fosse uma composição musical, não seria uma sinfonia, mas sim um ciclo de canções ou de peças de piano como as de Robert Schuman, ligadas por um fio comum. Isto é, em lugar de uma peça única cheia de som e de fúria para orquestra grandiosa, o que nos oferece o livro é a escala humana intimista, em surdina, da música de câmara, um conjunto de breves textos alados, transpirando graça, leveza, humor e harmonia, durando dois ou três minutos no máximo, como as Cenas de Infância ou o Carnaval de Schumann.

Sérgio Florêncio inovou em dois gêneros, o da crônica e o da autobiografia, ou melhor, combinou ambos escrevendo uma autobiografia em crônicas. Esse enfoque lhe permitiu subverter o critério cronológico da autobiografia, com agilidade de cineasta que salta décadas para a frente e para trás no tempo, sem perder a unidade da narrativa. Começa não em Vila Isabel, como se poderia pensar erroneamente pelo título, mas sim por Teerã. Termina por uma das mais belas evocações que já li da figura de um pai ternamente amado, num texto ao mesmo tempo pungente e de humor malicioso.

Inverter a ordem cronológica e começar pelo meio, que é mais ou menos onde se situa a experiência do posto no Irã, foi um acerto por dar oportunidade de abrir o livro com o pico de intensidade histórica. O período passado em Teerã converteu o narrador na principal testemunha brasileira dos princípios tumultuados da Revolução Iraniana, condição privilegiada pelo seu significado muito além daquele instante. Testemunha inteligente, sensível à complexidade de um movimento surpreendente, que inauguraria uma teocracia justamente no país do Oriente Médio que se empenhara mais sistematicamente em ocidentalizar e modernizar suas estruturas.

Até nossos dias, transcorridos mais de 40 anos, a revolução contra o último Xá desafia a compreensão da imensa maioria dos analistas ocidentais. Desde o início, todos ou quase todos subestimaram as profundas raízes populares da revolução. Jovem diplomata, Sérgio Florêncio esteve entre os raros que percebeu a intensidade da reação da população iraniana a uma ocidentalização artificial, alienada em relação às tradições de uma antiga cultura, imposta de cima para baixo por regime corrupto, submisso a interesses estrangeiros.

A cegueira do preconceito que impede até diplomatas experimentados de reconhecerem as mudanças históricas se revela com força no diálogo de Sérgio com seu chefe. Representante da velha escola diplomática elitista, conservador próximo ao monarca e aos ocidentais, o embaixador descreve com nojo os populares que se haviam atravessado em seu caminho numa das manifestações que anunciavam o levante:

“Eu vi um bando de maltrapilhos, sujos, gritando como animais. Eram como ratos fugindo da sarjeta [...]”.

E a resposta do jovem secretário: “Eles querem construir um país digno, justo e livre”.

Nesse conflito de visões irreconciliáveis, a história daria razão ao diplomata mais moço, capaz de perceber por intuição e empatia a autenticidade do movimento. Mais tarde, Sérgio Florêncio analisaria a Revolução Iraniana num texto exemplar incluído como apêndice, intitulado “Imagens e Raio X de uma revolução”. Em contraste com as versões superficiais predominantes nos Estados Unidos e países ocidentais, a penetração crítica da análise nos faz entender por que a Revolução de 1979 teve capacidade de resistir a tudo: isolamento, boicotes, sanções, guerra desencadeada pelo ditador iraquiano Saddam Hussein.

Tratou-se, como indica o apêndice, de 

 

[...] um movimento popular de bases mais amplas e heterogêneas, que contou com o apoio dos mais expressivos segmentos da sociedade iraniana [...] produziu transformações talvez duradouras no país, alterou o equilíbrio regional e vem exercendo forte impacto sobre movimentos radicais de contestação, de inspiração político-religiosa, em numerosos países islâmicos.

 

Com a mesma agudeza que demonstrara ao reconhecer a força original da revolução, Florêncio registra desapaixonadamente sua inexorável transformação em sistema teocrático cruel e repressivo. Evoca mais uma vez o terrível destino das revoluções que devoram os próprios filhos, destruindo os que tinham sonhado edificar um país mais livre, humano, respeitador dos direitos humanos e da dignidade das pessoas.

A história da Revolução Iraniana, da mesma forma que a do golpe que, bem mais tarde, vai testemunhar no Equador, é transmitida ao leitor por meio de textos envolventes, que combinam a capacidade de análise sociológica com os relatos de vida de pessoas de carne e osso carregadas pelo turbilhão dos acontecimentos.

O embate de ideias, de posições contrastantes, encarna-se em seres com nomes e histórias: Majid, o amigo iraniano de Ottawa reencontrado em Teerã como opositor ao regime, preso pela polícia do Xá, em seguida, novamente detido e torturado pela repressão teocrática; Hadi, o cozinheiro da embaixada, antigo guerrilheiro afegão, que insiste em alimentar o recém-nascido filho de Sérgio com mamadeira de chá; o motorista Jafa, que, ao volante da Mercedes com a bandeira do Brasil, trafega a toda velocidade na contramão de ruas estreitas.

O nascimento de Thiago, chamado de Filho da Revolução, em meio à caótica fase revolucionária inicial, é contado com verve de romancista. No meio da noite, na cidade transtornada, Sérgio é obrigado a escalar o portão de ferro do hospital, saltar o muro, para acordar o porteiro adormecido com golpes contra a vidraça. O motorista Jafa ensina como primeiras palavras ao pequeno Thiago o grito da revolução iraniana: Allah Akbar! Khomeini Rahbah, “Deus é grande e Khomeini é nosso líder!”.

O livro todo alterna continuamente as crônicas da infância em Vila Isabel, as proezas de menino no futebol, a variada e colorida galeria de tios, primos, parentes, vizinhos de rua, com os estudos, as viagens, as peripécias da vida nos diversos postos. Sempre saborosas, as histórias fazem rir, outras vezes emocionam. A nota que predomina do começo ao fim é o amor da família e dos pais, de Sonia, com quem casou, dos filhos, netos, amigos, companheiros de trabalho humildes. Nada de pretensão, de esnobismo diplomático, de tristezas inúteis.

Simples, direto, despojado, o estilo cativa pelo encadeamento quase cinematográfico das cenas rápidas, não deixando cair nunca a narrativa nem enfraquecer o interesse do leitor. Sente-se em todas as linhas o som genuíno da voz de Sérgio, sua personalidade se expressa sem disfarces ou artifícios. Nem traços de vaidade, egocentrismo ou esnobismo. Nenhum exagero, nada de grandiloquência ou drama, uma vida limpa, íntegra, de amor e trabalho, devoção ao Brasil, às causas justas.

Acima de tudo, o que sobressai é a ilimitada capacidade de afeto, palavra do título que resume a essência dessa vocação notável de contador de histórias, muito mais histórias de afetos que de revolução. Aqui e ali uma ponta de nostalgia, de saudades dos que se foram, jamais amargura, ressentimento contra ninguém.

E, iluminando as páginas, a alegria, a ternura pela gente simples, a sensibilidade para o talento e a luta do povo humilde, o humor desentranhado das situações mais inesperadas. Nada melhor, nessa hora de abatimento e desânimo, que esta reafirmação implícita de fé na força do espírito brasileiro para fazer renascer a esperança e a alegria de nosso povo.

 

São Paulo, 15 de junho de 2021.

Rubens Ricupero