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segunda-feira, 6 de março de 2023

Centro de Política Tributária da OCDE elogia proposta de reforma tributária do Brasil - Estevão Taiar (Valor)

O que talvez a Diretora da OCDE não saiba é que o Brasil foi um dos primeiros países do mundo, depois da então Comunidade Econômica Europeia, a adotar o sistema tributário do IVA, em meados dos anos 1960, por reformas promovidas pelo então ministro do Planejamento Roberto Campos, o ICM, que depois foi sendo deformado nos anos seguintes, em especial pela Constituição de 1988, até virar o "manicômio tributário" de que fala o vice-presidente Geraldo Alckmin.

Paulo Roberto de Almeida

 Centro de Política Tributária da OCDE elogia proposta de reforma tributária do Brasil

Por Estevão Taiar, Valor — Brasília

06/03/2023 11h54  Atualizado há uma hora

A diretora do Centro de Política Tributária da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Grace Perez Navarro, elogiou nesta segunda-feira (06) a proposta de reforma tributária do governo federal, baseada no Imposto sobre Valor Agregado (IVA).

A afirmação foi feita por Navarro a jornalistas antes de ela participar de reunião com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, na sede da pasta. Segundo ela, a proposta está “em linha” com as diretrizes da OCDE. A reforma “é um passo muito positivo”, disse.

Um ponto que Navarro abordaria com Haddad na reunião seriam as mudanças nos preços de transferência, como é chamada a tributação que incide sobre transferências realizadas por um mesmo grupo empresarial entre países diferentes.

“Estamos trabalhando com o Brasil nisso há cinco anos, então estamos muito ansiosos para ver [as mudanças] completamente implantadas”, afirmou.

Ela também defendeu que o Brasil adote o imposto global mínimo ligado à digitalização da economia. “Isso vai garantir que, não importa qual o planejamento tributário das multinacionais, o Brasil tenha um imposto mínimo efetivo de 15%”, afirmou.
Por fim, destacou a importância de o Brasil adotar medidas, de precificação ou não, que ajudem a diminuir as emissões de carbono. Navarro afirmou que o combate às mudanças climáticas é uma das prioridades do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A acessão do Brasil à OCDE era um dos principais pontos da agenda do ex-ministro da Economia, Paulo Guedes, durante o governo Bolsonaro. A organização é uma espécie de clube global de boas práticas de políticas públicas.

Em janeiro, Lula disse que “o Brasil tem interesse em participar da OCDE”, mas também destacou que gostaria de “saber qual será o papel” do país na organização.

 “[O Brasil] não pode participar como se fosse um país menor, como se fosse um país observador”, disse. “Estamos dispostos a discutir outra vez e saber quais são as condições da entrada do Brasil na OCDE.”

Haddad, por sua vez, já afirmou que a “aproximação” com a organização estava “acontecendo naturalmente” e que seria necessário “ver com o Itamaraty e o presidente da República os próximos passos”.

“Temos de desenhar a política que vai ser feita para se alinhar às determinações do presidente da República”, disse. 


https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/03/06/centro-de-poltica-tributria-da-ocde-elogia-proposta-de-reforma-tributria-do-brasil.ghtml


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Gelson Fonseca: Qual é a principal regra que o Brasil violou, segundo o diplomata mais citado em estudos acadêmicos - Diego Viana (Valor)

 Qual é a principal regra que o Brasil violou, segundo o diplomata mais citado em estudos acadêmicos


“O Brasil tem 200 anos de tradição diplomática sólida. Vai recuperar seu lugar, usando suas vantagens no meio ambiente, no comércio”, diz Gelson Fonseca Junior

Por Diego Viana — Para o Valor, de São Paulo
10/02/2023 05h02  Atualizado há 2 horas

Após duas décadas em que as instituições multilaterais ganharam fôlego nas relações entre os países, com foros globais de tomada de decisão, como as conferências do clima, e debates no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Mundial do Comércio (OMC), a ascensão da China como nova grande potência pode estabelecer uma nova bipolaridade no mundo, justamente quando os problemas do cenário internacional são mais claramente globais, a começar pela emergência climática.

Uma nova crise do multilateralismo seria apenas um novo capítulo de uma história composta de crises, aponta o embaixador Gelson Fonseca Junior, diretor do Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD) da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), ligada ao Ministério das Relações Exteriores. Com todas as dificuldades, ferramentas multilaterais estão disponíveis e funcionam, diz. Os atritos entre americanos e chineses são decisivos para o futuro das instituições multilaterais, mas há temas em que os avanços são possíveis, sobretudo o meio ambiente. Nesse cenário, o Brasil pode ter posição de destaque, graças em parte a sua tradição diplomática realista.

Em janeiro, o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e a Funag publicaram o livro “O Brasil no mundo: Estudos sobre o pensamento de Gelson Fonseca Junior”, com contribuições de diplomatas e professores sobre a obra do embaixador. Entre outros cargos, Fonseca foi representante permanente do Brasil na ONU de 1999 a 2003. É autor de obras que são referência no estudo das relações internacionais no Brasil, como o livro “A legitimidade e outras questões internacionais” (Paz e Terra, 1998), e dedicou diversos artigos à questão do multilateralismo. É o diplomata mais citado em estudos acadêmicos em relações internacionais no Brasil.

Valor: Um dos principais temas de sua trajetória é o multilateralismo. Hoje, com a escalada do atrito entre EUA e China, ele está em risco?
Gelson Fonseca Junior: Não me lembro de um momento em que o multilateralismo não estivesse em crise. A ONU foi criada com a expectativa de ter um grande papel na segurança internacional, mas isso foi logo antes de estalar a Guerra Fria. Então ela cumpriu esse papel em alguns momentos mais, em outros menos. Nos anos 90, pensávamos que, sem Guerra Fria, a ONU deslancharia. De fato, foram feitas conferências globais e criou-se um padrão de ação multilateral. Mas persistiu o problema do jogo de poder. Na Guerra Fria, os instrumentos de manutenção da paz eram prejudicados pela disputa global, mas as instituições multilaterais funcionaram. Muita coisa aconteceu, como a descolonização. Os países em desenvolvimento se juntaram para propor uma nova ordem econômica. Hoje, a questão de como vai evoluir a relação entre EUA e China é que vai definir o futuro do multilateralismo. Vai haver um confronto? Eles vão se acomodar? Esses países têm uma relação íntima na área financeira e na tecnológica. É possível desligar essa relação e partir para o confronto? O que as instituições multilaterais podem fazer para atenuar o conflito, que já se manifesta em protecionismo tecnológico? As respostas, quando vêm, envolvem muita torcida. Quem deseja a paz olha para o lado positivo: a China investe nos EUA, os dois ganham com as trocas. O quadro de instituições multilaterais está funcionando. Mas nada disso invalida a armadilha de Tucídides: a China cresce e os EUA querem manter a hegemonia, o que leva ao confronto. O militar pode ser descartado, porque daria cabo de ambos. Aliás, de nós também.

Valor: Um mundo bipolar fortalece a capacidade de negociação dos países emergentes?
Fonseca: Hoje, um problema ao falar de emergentes é: existe um pleito em comum dos emergentes? Nos anos 60, era fácil criar um grupo de emergentes, que partiam de realidades comuns e tinham demandas semelhantes. Hoje, esses países são muito diversos e os interesses idem. Não se pode ter política comum sem uma base comum. As posições estratégicas também mudam muito. Alguns são mais próximos da China, outros ligados aos EUA. E a agenda internacional ficou muito fragmentada. Qual seria a plataforma comum dos emergentes no meio ambiente? E em direitos humanos? Na reforma do Conselho de Segurança? Esse é o dilema. Em matéria de meio ambiente, tem algumas plataformas comuns. Nos direitos humanos, não. No caso do comércio, é complicado, porque temos problemas com a Índia, por exemplo.

Valor: E a governança global? O clima, por exemplo, exige um alto nível de articulação.
Fonseca: Temas como clima e saúde são por natureza globais. Mas outros também, como a aviação comercial e as telecomunicações. Alguns podem ser resolvidos tecnicamente, outros são mais complicados. Quando a humanidade vai perceber que é preciso ter regras mais constrangedoras em matéria ambiental? Para que houvesse ONU, morreram 40 milhões de pessoas. Só aí se decidiu avançar no sistema global de governança. Mas uma vez iniciado, é difícil controlar o processo. Entram questões políticas e de interesse. No clima, apesar das dificuldades, existe a consciência comum de que é preciso agir. Há pressão social e científica. Quando se chega ao plano da política, vemos que há perdas e renúncias, os países ricos não querem desembolsar tanto quanto os pobres exigem, e por aí vai.

Valor: O tema da governança revive a antiga questão da paz perpétua. É um beco sem saída?
Fonseca: O problema da governança global é imaginar uma racionalidade que resolva problemas irracionais. Hoje, instrumentos de governança existem. O primeiro é a ONU, cuja atuação é limitada. O problema não está nos instrumentos. Está na criação de vontade política para que os instrumentos funcionem. Por que a regulação do tráfego aéreo funciona? E por que os instrumentos da segurança não funcionam? Já a pergunta dos autores antigos, em seus projetos de paz perpétua, era: por que há guerras? Era o grande tema da humanidade. Ainda é, vide a Ucrânia. Teoricamente, o conselho de segurança poderia se reunir e mandar a Rússia voltar atrás. Mas pode? Pode no caso do Iraque. As instituições multilaterais têm sempre uma reserva de soberania. Na Carta da ONU, consta que os Estados têm o direito de atuar por fora em situações de legítima defesa. Então eles inventam uma razão para atacar uns aos outros invocando legítima defesa. Não tem como desligar um processo internacional da realidade do poder. As questões são levaas adiante se houver uma liderança que queira levar adiante. Quem lidera as negociações do clima? Não tem um país que seja o dono da história e possa se impor. É preciso articular, e esse é um processo difícil.

Valor: Lula assume com a mesma ambição do primeiro mandato: dar protagonismo global ao Brasil. O mundo atual não é o de 2003. Pode haver barreiras para esse protagonismo?
Fonseca: Por seu tamanho e a importância que temos em áreas como o meio ambiente, o Brasil é sempre protagonista. O mundo é outro, mas um lugar de importância para o Brasil está reservado. Nossa capacidade de mobilização é forte e conhecida na agenda multilateral, na OMC, na ONU. A expectativa de que o Brasil voltasse a ter papel relevante era natural. Somos protagonistas na cena internacional, não como superpotência, nem potência secundária, mas somos. Como, então? Tem um tipo de poder em que o Brasil se destaca. Não temos poder militar, nem ideológico, nem econômico, ou só em algumas áreas. Mas temos um poder diplomático. A tradição brasileira é de uma visão bem realista de como o mundo é e do que podemos fazer nele. E temos um comportamento diplomático que nos ajuda nesses processos de negociação. Tudo é negociado e o Brasil sabe negociar.

Valor: O período em que o Brasil abdicou desse realismo deixa cicatrizes?
Fonseca: Foi um período curto, em que se infringiram não só tradições da diplomacia brasileira, mas regras da diplomacia em geral. Um colega dizia que só há uma regra na diplomacia: seja gentil com as pessoas. E deixamos de fazer isso por alguns anos. Fechar a embaixada em Caracas foi inusitado. Nem os americanos, que impõem sanções a Cuba, deixaram de ter um escritório em Havana. Mas o Brasil tem 200 anos de tradição diplomática sólida. Vai recuperar seu lugar, usando suas vantagens no meio ambiente, no comércio e outras. Entre os parceiros, existe a torcida para que o Brasil volte ao protagonismo. Líderes da Europa, dos EUA, da América Latina, querem o Brasil participando das decisões. Os vizinhos querem que o Brasil ajude a consertar o Mercosul, a aumentar as relações comerciais desses países, a organizar uma frente comum de atuação.

Valor: Em 1981, sua tese no Itamaraty defendia a aproximação da diplomacia com o mundo acadêmico. Qual foi sua motivação?
Fonseca: Estava claro que a democratização iria acontecer. A pergunta era: como o Itamaraty vai viver a nova situação? Minha geração começou na ditadura e pensava a política externa na perspectiva dela. Nós nos preocupávamos com as limitações impostas por um governo militar. Meu primeiro chefe foi João Augusto de Araújo Castro, que tinha sido ministro de João Goulart e mantinha uma boa relação com jornalistas. E trabalhei com Ítalo Zappa, para quem o que dava legitimidade à política externa era o modo como ela era passada à sociedade. Mesmo na ditadura, o Itamaraty tinha uma relação com a imprensa diferente dos outros ministérios. Mas fui olhar para a relação para a universidade, onde, nos anos 80, havia um grupo muito pequeno, mas visivelmente de muita qualidade, estudando relações internacionais na universidade. Até então, não era comum que pessoas de formação acadêmica estudassem as relações internacionais. Meu chefe, Ronaldo Sardenberg, começou a interlocução com esse grupo. Hoje, o campo está consolidad.


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Passo cadenciado' do governo Lula na relação com a OCDE - Assis Moreira (Valor)

Passo cadenciado' do governo Lula na relação com a OCDE


Sinalização é de menos ‘agenda Faria Lima’’ e mais ‘agenda face humana’’ de temas sociais
Assis Moreira
Valor — Genebra, 31/01/2023 

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidirá em algum momento como tratará efetivamente as negociações para o Brasil entrar como sócio da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Economico (OCDE). Em entrevista ao lado do chanceler alemão Olaf Scholz, Lula sinalizou que o Brasil se interessa em participar da organização - ou seja, não vai fazer como a Argentina que congelou as discussões sobre a adesão.

De toda maneira, diante do pouco entusiasmo até agora demonstrado por Lula, alguns interlocutores falam de adoção de ‘passo cadenciado’’ e reorientação forte na relação com a OCDE, com menos ênfase na ‘agenda Faria Lima’’, restrita a questões econômicas, e bem mais na ‘agenda face humana’’ ou temas sociais.

Na verdade, nos próximos 18 meses não há grandes decisões políticas sensíveis que o governo precisará tomar nas negociações. O que está previsto é muito trabalho em comitês técnicos, com preparação de relatórios, questionamentos e respostas sobre diferentes aspectos da situação brasileira.

É preciso, porém, calibrar bem mesmo esse dito ‘passo cadenciado’’, porque é melhor estar dentro, e quanto mais cedo melhor, do que fora de uma organização com crescente influência na definição de padrões internacionais e com consequências econômicas concretas.

Há muitas questões a tratar com a OCDE, e a organização também sabe que a presença de um emergente de peso como o Brasil dá uma capacidade de legitimidade que ela ainda não tem. Alguns países membros parecem querer politizar mais a OCDE, como a Austrália, que se diz ‘preocupada’’ com relação à Rússia. Mas não são os australianos que vão definir o futuro da OCDE. Além disso, a avaliação de importantes observadores é de que nada obriga um país sócio a ter postura anti-China, por exemplo. O Brasil não vai ser menos desenvolvido por aderir à organização.

A OCDE de hoje não é controlada por uma agenda puramente neoliberal que alguns setores do governo parecem identificar. Dos 38 países membros, 20 tem governos de centro-direita ou de direita, mas a verdade é que a maioria da população vive sob governos de centro-esquerda.

Uma agenda progressista dentro da entidade avança, com a enfase a temas como educação, busca de uma globalização que possa gerar bons empregos, igualdade de gênero, proteção dos povos indígenas, proteção da floresta.

Uma das batalhas do precedente secretário-geral da OCDE, Angel Gurria, com a então administração de Donald Trump foi que Washington queria priorizar economia, enquanto Gurria insistia na importância de agenda social. Com a saída de Trump, essa tensão deixou de existir.

O que é discutido na OCDE interessa a diferentes setores no Brasil, não apenas ao setor produtivo. A Nova Zelândia e o Canadá estão fortemente interessados em discutir formas de melhorar a situação econômica e social dos povos indígenas, algo que é prioridade também do governo Lula.

A OCDE é cada vez mais um centro da gestão da economia internacional e um definidor de agenda. Com a paralisia da Organização Mundial do Comércio (OMC), a OCDE toma a dianteira sobre definição da precificação do carbono, algo de peso na transição para a economia verde.

A possibilidade de influência brasileira na agenda internacional se ampliaria como membro ao mesmo tempo da OCDE, do Brics (grupo de grandes emergentes) e do G20, uma situação única entre os sócios. Também reforçaria a voz latino-americana, juntando-se a México, Colômbia, Chile, Costa Rica na entidade.

É preciso ver que, na verdade, a intensificação da cooperação entre o Brasil e a OCDE começou no governo Lula, e não antes. Foi em 2007, quando o país se tornou um dos parceiros do ‘engajamento ampliado’, facilitando sua participação nas atividades da organização.

Em 2015, com Dilma Rousseff, o Brasil aprofundou esse relacionamento, por um acordo assinado pelo então ministro de Relações Exteriores, Mauro Vieira. Alguns membros do governo queriam dar mais um passo, quando veio o impeachment de Dilma.

Foi no governo de Michel Temer que o Brasil, em 2017, encaminhou à OCDE a comunicação solicitando o início do processo de acessão à organização.

Quando veio o governo de Jair Bolsonaro, a demanda foi tirada do curso normal pelo Ministério da Economia, que viu uma oportunidade para promover a agenda de reformas estruturais.

Cinco anos depois do pedido brasileiro, em janeiro do ano passado, o conselho de ministros da OCDE aprovou convite ao Brasil para “abertura das discussões de adesão”. Às vésperas do primeiro turno da eleição presidencial, o governo Bolsonaro enviou à OCDE um memorando com cerca de mil páginas para começar efetivamente as negociações de acessão à entidade.

Pelos parâmetros históricos, um processo de acessão na OCDE dura em média cinco anos.

Como a negociação envolvendo o Brasil começou no ano passado, Lula, se quiser, poderá conclui-la no prazo normal até o final de seu mandato de quatro anos e elevar a presença brasileira na governança global.

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Brasil assume presidência do G20 em dezembro e precisa se preparar logo - Assis Moreira (Valor)

 Brasil assume presidência do G20 em dezembro e precisa se preparar logo


A presidência do G20 será uma plataforma gigantesca para o novo governo realmente trazer o Brasil de volta ao mundo – mas não pode improvisar

Assis Moreira — Genebra
Valor, 02/01/2023

O Brasil assumirá no dia 1º de dezembro deste ano a presidência rotativa do G20, o principal grupo da governança econômica global reunindo as maiores economias desenvolvidas e emergentes. Esta será a grande oportunidade para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva realmente retomar o protagonismo nos mais diversos temas da agenda global.

Como a equipe de transição destacou, a combinação entre o desmonte de políticas públicas, em nível interno, e o predomínio de visão isolacionista do mundo, no nível externo, afetou a imagem do país e prejudicou a capacidade brasileira de influir. A presidência do G20 será assim uma plataforma gigantesca para o novo governo realmente trazer o Brasil de volta ao mundo – mas não pode improvisar.

Uma urgência nos 100 primeiros dias do ministro Mauro Vieira no Itamaraty deve ser prioridade na organização do G20 no país. Isso passa por juntar rapidamente os melhores quadros, que conhecem bem os trabalhos do grupo, para projetar a presidência brasileira, que vai até o fim de novembro de 2024.

O que vai ser possível fazer dependerá bastante de como estiver o impasse na cooperação entre as maiores economias do mundo. Em 2022, na presidência da Indonésia, a ausência de comunicados nas reuniões do G20 representou um dos pontos mais baixos da cooperação global, em meio a intensa tensão geopolítica e riscos de recessão global. Até o fim de novembro, a Índia estará na presidência do grupo. O Brasil com Lula assumirá a presidência em dezembro sempre num momento crítico nos assuntos globais.

Um ex-ministro brasileiro chegou a dizer que o G7, grupo das maiores economias desenvolvidas (EUA, Alemanha, Japão, França, Reino Unido, Canadá e Itália) tinha acabado, depois que o G20 foi formado em 1999. Hoje, na verdade, o G7 está muito coeso, até pela saída da Rússia (era então G8), e tem gerado iniciativas que depois vão desembocar justamente no G20 – onde se confrontam com emergentes, por exemplo.

O Brasil na presidência do G20 organizará dezenas de reuniões ministeriais envolvendo os mais diversos temas, desde macro economia, finanças, agricultura, energia, meio ambiente, transformação digital, comércio, investimentos, indústria, saúde etc. A presidência brasileira culminará com a cúpula dos chefes de Estado e de governo em 2024.

Cada presidência do G20 tem poder de criar agendas. Para o governo Lula, é preciso definir logo quais os temas relevantes como eixo central, e se preparar com estudos para ser capaz de liderar as discussões e propor soluções para ação coletiva. A diplomacia brasileira é reconhecida pela competência. Mas é preciso definir o que vai querer, rapidamente, para saber a direção que tomará.

Se o governo Lula, por meio do Itamaraty, não se preparar rapidamente, instituições internacionais vão progressivamente querer impor sua própria visão da agenda internacional na preparação da próxima presidência do G20.

Tipicamente, países que organizam o G20, com custos de milhões de dólares ao longo do ano, tem duas equipes: uma dita 'substantiva', para tratar de temas e calendário, e outra para logístico-administrativa.

Em termos de prioridade, parece evidente que o governo Lula vai dar uma ênfase ao combate à crise alimentar global. A inclusão social deve cobrir tanto combate a fome, como de acesso à saúde, educação, transferência de renda, capacidade e treinamento para as pessoas buscarem empregos. Lula certamente convidará países africanos para participar dos trabalhos do G20 sob a presidência brasileira.

Outra ênfase é nas questões ambientais e de mudança climática, até pelo fato de o país ter se tornando um pária por causa do desmatamento da Amazônia nos quatro anos do governo Bolsonaro. A ideia do governo Lula de apostar na Amazônia em nível internacional é forte e bem apreciada. Não será surpresa se a reunião de ministros de meio ambiente for organizada em Manaus. A agenda de sustentabilidade deve cobrir proteção ambiental, mitigação da mudança do clima, combate a desmatamento, mercado de carbonos, financiamento verde.

Tema forte será também infraestrutura. O G20 pode ter papel mais forte tanto no lado financiamento para melhorar o direcionamento de recursos públicos internacionais, como também sobre melhores modelos de financiamento e execução de projetos, impacto para o desenvolvimento sustentável e outros, envolvendo água, saneamento, energia renovável, conectividade, logística, transformação digital.

O fortalecimento do multilateralismo, em meio a incertezas e sucessivas crises, o reforço de financiamento de bancos de desenvolvimento e vários outros temas podem ser incluídos na agenda.

Quanto à parte logística, a negociação precisará começar rapidamente com cidades para sediar diferentes reuniões ministeriais ou a nível de vice-ministros. Uma questão é como acomodar todo mundo – delegações oficiais, ONGs, imprensa. Em todo o caso, será uma oportunidade de mostrar o Brasil para o mundo. O governo vai precisar levar em conta também os eventos paralelos, com entidades da sociedade civil, por exemplo.

Quanto ao local da cúpula dos chefes de Estado e de governo, é uma decisão política a ser tomada pelo governo Lula. São Paulo e Rio de Janeiro são privilegiados, pela rede hoteleira, para receber delegações de Joe Biden, Xi Jinping, Vladimir Putin e outros. Se dependesse do voto de membros do G20, a cúpula seria no Rio.


Itamaraty, desbolsonarização e criação de um ‘Conselhão’ - Assis Moreira (Valor)

Itamaraty, desbolsonarização e criação de um ‘Conselhão’

Assis Moreira

É correspondente do Valor em Genebra desde 2005. Cobriu 20 vezes o Fórum Mundial de Economia, em Davos, e dezenas de conferências ministeriais em vários países.

Valor Econômico, 03.01.23, 18:23

 

Brasil de volta ao mundo – mas não pode improvisar

Novo chanceler prometeu um ‘enorme trabalho de reconstrução’ da política, desbolsonarização e participação social na política externa.

 

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva volta ao poder num momento internacional significativamente mais grave do que em 2003, quando assumiu pela primeira vez a presidência. Era um momento de relativo otimismo e moderação, fim da guerra do Iraque, hegemonia americana, China crescendo muito, boom de commodities, Brasil crescendo pela primeira vez em mais ou menos em linha com a média mundial, e a América Latina subindo junto. 

Hoje é o contrário, com efeitos persistentes da covid-19, acirramento da competição estratégica entre China e EUA, guerra na Europa, ameaça de recessão global, e securitização de todos os temas. Se em 2003 se estava negociando Rodada Doha de liberalização comercial, hoje o foco é em segurança energética, segurança alimentar, guerra e controle de exportação de chips, uso do argumento de segurança nacional para fechar as fronteiras, lógica de blocos em vez de multilateralismo. 

Em 2003, o mundo passava por um momento de estabilidade das relações internacionais. Estava tudo mais ou menos funcionando. Agora, há uma tremenda confusão e mais imprevisibilidade. É um cenário tenso, que trouxe a geopolítica para o dia a dia das considerações de cada governo e empresas. 

O Brasil é um país com boa complementaridade com a China, mas habita em outra vizinhança. A pressão vai persistir para nações como o Brasil se reposicionem. O que todo mundo tem feito é procurado evitar decisão, para um ou outro lado, americano ou chinês. Existem limites para a ação diplomática do novo governo Lula, mesmo em movimentos pequenos. 

Além dessa primeira grande condicionante, que é a situação internacional, tem a situação interna, altamente polarizada, com uma política externa que foi muito contestada muito contestada por causa do isolamento especialmente na área ambiental. Isso vai levar ao que parece ser a mais evidente correção de rumos. O risco, para certos analistas, é de um excesso de correção, fazer tudo o que parceiros exigem e passar de mau aluno para aluno modelo num cenário complicado. 

Basta ver que uma legislação da União Europeia para proibir commodities originárias de desmatamento, com alto risco de seletividade que aumentará o custo da produção agrícola. O mesmo ocorrerá na área industrial com a taxa de carbono na fronteira que a UE vai impor sobre siderurgia e outros produtos. Bruxelas usa unilateralmente sua capacidade regulatória como um fator de distorção do comércio. Uma questão é como o novo governo em Brasília vai conciliar os interesses do agronegócio e dos ambientalistas, e responder na prática aos europeus. 

O novo governo prioriza também aumentar a integração com a América do Sul e a retomada da cooperação com a África. Mas a capacidade brasileira de fazer coisas concretas é menor, hoje. O Brasil diminuiu de perfil mundial nos quatro anos de Bolsonaro. Agora, o governo Lula tem uma série de aspirações políticas, mas se defronta com restrições do mundo real. 

É preciso ver como o Itamaraty se encontra hoje. É uma instituição inchada no topo ao longo dos anos. Aumentou a idade da aposentadoria para 75 anos, colocou mais gente nos seus quadros e a soma das ambições individuais é muito maior do que o Itamaraty. Com isso, surgem brigas entre diferentes gerações de diplomatas, diferentes grupos de diplomatas, entre homens e mulheres diplomatas, e entre identidade de diplomatas (étnica, sexual etc). 

Uma frase repetida em Brasília é a de que a melhor tradição do Itamaraty é saber renovar-se. Mauro Vieira é considerado como tendo a experiência e sensibilidade para modernizar a instituição nesses tempos conturbados. Mas um artigo de um jovem diplomata em licença remunerada, e atualmente professor da Queen University of London, Felipe Antunes de Oliveira, mostra que a tarefa não será fácil. 

Para ele, mesmo se a desastrosa política internacional do governo Bolsonaro está prestes a acabar, o bolsonarismo continua vivo dentro do Itamaraty. ‘Há um bolsonarismo arraigado no Itamaraty. Enquanto não houver uma profunda reforma da política externa brasileira e da instituição responsável por sua implementação, qualquer combinação entre más ideias e péssima implementação continua possível’, escreveu Antunes. 

A base material do bolsonarismo latente no Itamaraty, segundo Antunes, se assemelha a uma grande linha de produção com quatro engrenagens articuladas entre si: elitismo sistêmico, formação continuada de baixíssimo nível, infantilização funcional permanente e falta de transparência e previsibilidade nas práticas de promoção e remoção, gerando uma série de incentivos negativos ao longo da carreira de todos os diplomatas – e tudo isso tem efeito sobre políticas públicas. 

A possibilidade de Ernesto Araújo ter chegado ao posto de chanceler e durar mais de dois anos, implementando a política externa que implementou, mostra que a sociedade não pode deixar o Itamaraty dirigindo a política externa em piloto automático, diz essencialmente Antunes. 

O reconhecimento da política externa como política pública, e inseparável da política interna, deveria levar ao estabelecimento de um mecanismo permanente de diálogo com a sociedade civil. A necessidade de institucionalização da abertura do Itamaraty à sociedade, com as devidas atenções à especificidade da diplomacia, já foi tema de tese no Itamaraty, como o da diplomata Vanessa Dolce de Faria. 

A ideia de um grande ‘Conselho’ para debater linhas gerais da política externa, com participação de diferentes setores da sociedade, chegou a ser explorada nas gestões dos ministros Antonio Patriota e Luiz Alberto Figueiredo. Proposta de criação de um Conselho Nacional de Política Externa também foi encaminhada a Mauro Vieira quando chanceler de Dilma Rousseff. Ele tem nova oportunidade de tratar do tema, agora, num novo governo que fala muito de transparência e participação social. 

 

 

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Seleção para novo presidente do BID prossegue e Ilan é sabatinado - Lu Aiko Otta (Valor)

 Seleção para novo presidente do BID prossegue e Ilan é sabatinado


Processo de escolha que tem o brasileiro Ilan Goldfajn como candidato não foi adiado, como queria o ex-ministro Guido Mantega

Por Lu Aiko Otta — De Brasília
Valor, 14/11/2022 05h00  Atualizado há 3 horas

O processo de escolha do novo presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) prosseguiu normalmente, apesar da articulação do ex-ministro da Fazenda Guido Mantega para adiar a eleição. Os cinco candidatos foram sabatinados por integrantes dos 48 países sócios. Foi uma reunião que durou seis horas e na qual o candidato brasileiro, o expresidente do Banco Central Ilan Goldfajn, se sobressaiu, segundo avaliou um espectador. Não sendo mais possível adiar a eleição, marcada para domingo, ou trocar candidatos, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva enfrenta o seguinte dilema: ou apoia Ilan ou apoia um candidato estrangeiro.

Segundo se avalia nos bastidores, o Brasil nunca esteve tão perto de presidir o BID. Seria uma oportunidade para Lula iniciar o governo com o país no comando da maior instituição financeira multilateral da América Latina.

Na sabatina, Ilan foi o único dos candidatos a fazer uma apresentação estruturada sobre como o BID pode ajudar os países da região, disse a fonte. Os demais leram discursos. 

No momento em que as mudanças climáticas são tema urgente, por causa de seu impacto econômico no Caribe, Ilan trouxe sua experiência como embaixador da Fundação Amazônia Sustentável e expôs ideias de preservação.

Falou sobre programas de combate à pobreza e à desigualdade e sobre inclusão financeira. Expôs planos para fazer com que o capital do banco, insuficiente ante as necessidades da região, seja usado para alavancar projetos de investimento com participação privada.

A larga experiência de Ilan nos setores financeiros público e privado é um ponto que eleva as chances de ele ter sua candidatura apoiada pelos Estados Unidos.

O país é decisivo no processo eleitoral, pois detém a maior parcela do capital do banco, o que determina que seu voto tem mais peso. O país não se posicionou oficialmente.

Nos bastidores, integrantes do governo norte-americano deram sinais favoráveis a Ilan. Eles buscam um perfil de alta qualificação e eminentemente técnico, depois do desgaste de ver seu indicado para o cargo, Maurício Claver-Carone, ser demitido por problemas éticos.

Também disputam o posto: Cecilia Todesca Bocco, pela Argentina, Gerard Johnson, por Trinidade e Tobago, Gerardo Esquivel Hernández, pelo México, e Nicolás Eyzaguyirre Guzmán, pelo Chile.

https://valor.globo.com/politica/noticia/2022/11/14/selecao-para-novo-presidente-do-bid-prossegue-e-ilan-e-sabatinado.ghtml

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Ingresso na OCDE: etapas iniciais do Brasil - Lu Aiko Otta (Valor)

 Países ricos reavaliam relação com Brasil, afirma Guedes

Na visão de ministro, país nunca foi tão respeitado no exterior

Por Lu Aiko Otta — De Brasília
Valor Econômico, 07/10/2022

Os países mais avançados estão reavaliando as relações com o Brasil, que em breve poderá ser o único a integrar o G20, o Brics e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), disse ontem ministro da Economia, Paulo Guedes.

A afirmação foi feita durante solenidade no Palácio do Planalto em que foi anunciada a entrega do “memorando inicial”, um relatório de mais de mil páginas que informa o quanto o Brasil está de acordo com as práticas adotadas pelos países-membros da OCDE. Isso é parte do processo de ingresso no organismo.

“Já é quase outro portal de entrada de acesso, quem sabe, ao Conselho de Segurança da ONU”, disse o ministro. A conquista de uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU foi um dos pilares da política externa dos governos do PT. Já o ingresso na OCDE não era prioridade. No de Michel Temer e no de Jair Bolsonaro, a acessão à OCDE tem funcionado como espécie de guia para as principais reformas econômicas.

Encaminhado ontem, o “memorando inicial” informa que, dos 230 instrumentos definidores para o ingresso do Brasil na OCDE, o país já aderiu a 108. Outros 45 estão em avaliação pela organização. Faltam, portanto, 77. “O Mathias Cormann insinua que o Brasil está bem à frente dos demais candidatos”, disse Guedes, referindo-se ao secretário-geral da OCDE.

A partir da entrega do memorando inicial, começa uma interação entre o Brasil e a organização. É um processo que normalmente levaria de dois a cinco anos, afirmou o ministro. “Temos confiança de que será substancialmente encurtado.”

Segundo o ministro da Economia, o Brasil nunca esteve tão respeitado no exterior. Ele disse que o desempenho do país tem sido reavaliado, pelo fato de haver vacinado uma elevada parcela de sua população e atravessado as ondas da covid e da recessão pós-pandemia.

“Estamos crescendo”, disse. “Tirando o Japão, teremos inflação menor do que os países do G7.” O Brasil criou mais empregos do que EUA, Alemanha e o Reino Unido juntos, frisou. O ministro das Relações Exteriores, Carlos França, disse que a acessão à OCDE é um antigo sonho do Itamaraty, que deu os primeiros passos nessa direção em 1991.

O país terá acesso às melhores práticas no mundo em áreas que não são só a econômica, mas também no meio ambiente, nuclear e outras, comentou. Com isso, segundo França, governo e iniciativa privada estarão equipados para fazer as reformas internas necessárias.

A entrada do Brasil na OCDE é importante também para a organização, disse o chanceler. Ele afirmou que o país tem muito a contribuir com sua política ambiental, seu peso econômico e comercial. O desmatamento tem sido um ponto de resistência ao Brasil entre os demais membros da OCDE.

O governo deverá editar “nas próximas semanas” uma medida provisória tratando das regras de preços de transferência, disse o secretário-executivo do Ministério da Economia, Marcelo Guaranys. Ele afirmou que esse é um ponto “importantíssimo” e “dos mais difíceis de superar”. Por isso tem sido tratado com prioridade por toda a equipe do Ministério da Economia, inclusive a Receita.


segunda-feira, 27 de junho de 2022

Putin promete fertilizantes a Bolsonaro - Matheus Schuch (Valor)

 Em conversa com Bolsonaro, Putin promete fornecimento ininterrupto de fertilizantes, diz Kremlin


Presidente da Rússia teria reforçado ainda a importância de restaurar o livre comércio de alimentos; Palácio do Planalto e o Itamaraty não se manifestaram

Por Matheus Schuch, Valor — Brasília
27/06/2022 13h24

Em conversa por telefone com o presidente Jair Bolsonaro, o líder russo Vladimir Putin prometeu garantir o fornecimento ininterrupto de fertilizantes ao país e renovou a intenção de cooperar para ampliar as relações entre os países em áreas como agricultura e energia. As informações foram divulgadas pelo Kremlin. Até agora, o Palácio do Planalto e o Itamaraty não se manifestaram.

Em nota publicada em sua página oficial, o governo russo disse que Putin reforçou a importância de restaurar o livre comércio de alimentos e fertilizantes, destruído, na sua opinião, por sanções impostas pelo Ocidente. As medidas foram adotadas após Putin invadir a Ucrânia.

Bolsonaro, que visitou Putin no Kremlin em fevereiro, dias antes do início da guerra, tem defendido o estreitamento das relações com a Rússia como forma de garantir os insumos necessários para a produção agrícola brasileira.

Confira, abaixo, a íntegra da nota divulgada pelo governo russo, em tradução literal: "Conversa telefônica com o presidente do Brasil Jair Bolsonaro

Os problemas da segurança alimentar global são considerados em detalhes. O presidente da Rússia fez uma avaliação detalhada das causas da difícil situação do mercado mundial de produtos agrícolas e fertilizantes. A importância de restaurar a arquitetura do livre comércio de alimentos e fertilizantes, desmoronada pelas sanções ocidentais, foi enfatizada.

Nesse contexto, Vladimir Putin ressaltou que a Rússia está empenhada em cumprir suas obrigações de garantir o fornecimento ininterrupto de fertilizantes russos aos agricultores brasileiros.

A intenção mútua de fortalecer consistentemente a parceria estratégica entre os dois países foi confirmada, incluindo a expansão da cooperação mutuamente benéfica em vários campos, incluindo agricultura e energia.

Alguns assuntos da agenda internacional também foram abordados, inclusive levando em conta a presidência rotativa do Brasil no Conselho de Segurança da ONU a partir de 1º de julho.

Foi acordado continuar os contatos em vários níveis."

https://valor.globo.com/politica/noticia/2022/06/27/em-conversa-com-bolsonaro-putin-promete-fornecimento-ininterrupto-de-fertilizantes-diz-kremlin.ghtml

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Um precedente relevante no Direito Internacional Comercial: a aplicação unilateral de retaliações - Assis Moreira (Valor)

 Brasil adotará retaliação unilateral tendo Índia e Indonésia como primeiros alvos


Por Assis Moreira, Valor — Genebra
Valor Econômico, 12/01/2022 13h37  Atualizado há 45 minutos

O governo brasileiro vai se dotar de arsenal para aplicar retaliação unilateral contra países que foram condenados por medidas ilegais sobre exportações brasileiras, mas usam artimanhas para manter as restrições, conforme o Valor apurou.

Uma medida provisória (MP), já aprovada em reuniões ministeriais, e atualmente na Casa Civil, autoriza o Poder Executivo a retaliar proporcionalmente e de forma unilateral, em casos de ganhos de contenciosos na OMC, quando o país perdedor fizer a chamada “apelação no vazio”.

Foi o que aconteceu nesta semana com a Índia, na disputa do açúcar, e com a Indonésia, no fim de 2020, num contencioso envolvendo barreiras à entrada de carne de frango. Os dois países recorreram ao Órgão de Apelação sabendo que o mecanismo está inoperante e não pode decidir; daí o termo “apelação no vazio”. Com isso, na prática, travam a vitória brasileira e mantêm as medidas julgadas ilegais pelo painel (comitê de investigação) que custam milhões de dólares de prejuízos a produtores brasileiros.

Índia e Indonésia são assim potencialmente os primeiros ameaçados quando a MP entrar em vigor. Uma retaliação ocorre na forma de sobretaxa sobre bens e serviços provenientes dos países alvejados ou também suspensão de direitos de propriedade intelectual.

O secretário de Comércio Exterior e de Assuntos Econômicos do Itamaraty, Sarquis J. B. Sarquis, enfatizou que “a atual paralisia do Órgão de Apelação da OMC está na origem da iniciativa concebida pelo Itamaraty, que visa tanto proteger os interesses comerciais legítimos do País no marco do sistema multilateral do comércio, como promover o próprio funcionamento pleno do sistema baseado em regras e nos princípios fundamentais da OMC”.

Uma vez que o Órgão de Apelação da OMC volte a funcionar a contento, a iniciativa terá cumprido seu propósito”, completou.

Na mesma linha, o secretário de Comércio Exterior do Ministério da Economia, Lucas Ferraz, afirmou: “Entendemos que é um mecanismo muito importante para enfrentarmos a situação atual de apelações no vazio. O governo brasileiro está empenhado no processo de reformas da OMC, assim como no restabelecimento tempestivo do seu Órgão de Apelação. Não podemos compactuar com o uso oportunístico da situação atual, em claro prejuízo ao nosso setor produtivo.”

As regras atuais da OMC permitem que um país aplique retaliação comercial se o condenado não implementar as recomendações do Órgão de Apelação, espécie de corte suprema do comércio internacional.

Ocorre que o Órgão de Apelação está paralisado, sem nenhum dos sete juízes permanentes, porque Washington bloqueia a nomeação de novos árbitros. Enquanto perdurar esse fato jurídico, que ninguém tinha previsto, os membros da OMC têm a possibilidade de contornar as condenações estabelecidas por painel e evitar alterar as medidas consideradas ilegais.

O Brasil seguirá agora o exemplo da União Europeia, com o mecanismo de retaliação unilateral. Enquanto o Órgão de Apelação não funcionar, e o país condenado não participar de um mecanismo paralelo de arbitragem, Brasília vai impor o que negociadores chamam de princípio de precaução para proteger interesses dos produtores nacionais.

Um grupo de 25 membros da OMC, incluindo a União Europeia (27 países), tentou atenuar o problema do bloqueio do Órgão de Apelação criando um sistema de arbitragem paralelo plurilateral. Os contenciosos entre seus participantes têm assim decisão final. Por exemplo, a mais recente disputa aberta pelo Brasil, que é contra a UE envolvendo barreiras a carne de frango no mercado europeu, está assegurado que terá decisão implementada, porque ambos participam desse mecanismo plurilateral

Já a Índia e a Indonésia não participam desse mecanismo plurilateral. Em 2019, quando o Brasil denunciou a Índia por políticas ilegais de apoio ao setor açucareiro, que afetam os preços internacionais, o Itamaraty mencionou que estimativas de especialistas apontavam prejuízos de até US$ 1,3 bilhão para os exportadores brasileiros por ano.

No caso da Indonésia, os cálculos são de que o Brasil poderia vender até 3 mil toneladas de carne de frango por ano na fase inicial, se restrições condenadas fossem levantadas. Mas o governo indonésio resiste há anos.

O Brasil ganhou, sem realmente levar, uma disputa contra o país asiático em 2017. Um painel (comitê de investigação da OMC) deu razão ao Brasil naquele ano. A Indonésia teve prazo até julho de 2018 para implementar as recomendações dos juízes. Fez algumas modificações que o Brasil considerou insuficiente.

Um outro painel foi então aberto para examinar a implementação das recomendações dos juízes, e o Brasil ganhou de novo, ao comprovar que os indonésios mantiveram restrições às exportações brasileiras. A Indonésia então apelou ao vazio em dezembro de 2020, sabendo que o Órgão de Apelação da OMC não funciona.

Índia e Indonésia estão hoje entre os países que mais subsidiam a agricultura no mundo. E a paralisia do órgão de apelação da OMC acaba na prática por beneficiá-los. “O Brasil continua trabalhando ativamente para o restabelecimento do Órgão de Apelação e para o pleno desenvolvimento das regras e da reforma da OMC, inclusive em agricultura e disciplinas para subsídios, conforme termos e mandatos estabelecidos desde a Rodada Uruguai”, disse Sarquis.

A paralisia do Órgão de Apelação provocada pelos norte-americanos “é muito grave, dá a impressão de que os EUA não querem mais a OMC, no sentido de um sistema de regras e de disciplinas multilaterais, consentidas, aplicadas, com um processo de contencioso que obriga a parte perdedora a obedecer” a decisão, nota Pascal Lamy, ex-diretor-geral da OMC

Ele lembra que essa obrigação de respeitar as decisões, sob pena de retaliação, é que distinguia a OMC de outras organizações cujas regras são mais ou menos aplicadas e onde os Estados, quando eles perdem um caso diante da Corte de Justiça de Haia, por exemplo, guardam a soberania de aplicar ou não o resultado.

Lamy avalia que os EUA são obcecados pela China, querem poder bater unilateralmente sem estar ligados ao respeito de regras da OMC e a decisões de seu Órgão de Apelação. Essa ausência americana provoca uma degradação do sistema multilateral, e mais países buscam arsenais unilaterais.

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/01/12/brasil-adota-retaliacao-unilateral-na-omc-tendo-india-e-indonesia-como-primeiros-alvos.ghtml

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Ditadura em transformação na China e a verdadeira ameaça ao Ocidente: Jean-Marie Guéhenno, entrevista a Assis Moreira (Valor)

 Ditadura em transformação na China e a verdadeira ameaça ao Ocidente

Ex-secretário-geral adjunto da Organização das Nações Unidas (ONU) e chefe das operações de manutenção da paz entre 2000 e 2008 lança o livro “O primeiro século XXI, da globalização à pulverização do mundo”

Por Assis Moreira — De Genebra

Valor Econômico, 01/10/2021 07h55 


Para Jean-Marie Guéhenno, a verdadeira ameaça está no interior das sociedades ocidentais, na fragmentação crescente, que não se sabe ainda como superar 


Ex-secretário-geral adjunto da Organização das Nações Unidas (ONU) e chefe das operações de manutenção da paz entre 2000 e 2008, o diplomata francês Jean-

Marie Guéhenno publica um novo livro, intitulado Le premier XXIe siècle, de la globalisation à l’émiettement du monde (O primeiro século XXI, da globalização à pulverização do mundo, Flammarion), no qual avalia que o Ocidente democrático atravessa sua crise mais grave desde o fim da Guerra Fria.

Especialista de relações internacionais e questões de defesa e hoje professor na Universidade Columbia, de Nova York, Guéhenno observa que o período atual tem, em todo o caso, pouco a ver com a precedente Guerra Fria, e o sucesso chinês coloca o Ocidente capitalista numa situação bem diferente em comparação à confrontação com a União Soviética.E TRÈS POPULAIRE TRÈS POPULAIRE

TRÈS POPULAIRE TRÈS POPULAIRE TRÈS POPULAIRE

Para ele, o medo cresce em sociedades desorientadas e extremamente polarizadas, e isso pode alimentar a chamada “tentação chinesa”, a atração pelo modelo chinês. Guéhenno avalia que a ditadura chinesa parece tentar indivíduos em vários países, com seu sucesso material que fascina e sua capacidade de manter uma certa harmonia da sociedade.

Usando o poder das novas tecnologias, a China procura passar da ditadura repressiva - descrita por George Orwell, baseada no terror - à ditadura preventiva descrita por Aldous Huxley, baseada num controle dos espíritos em que a pessoa não se sente em prisão. Mas, para o autor, a verdadeira ameaça está no interior das sociedades

ocidentais, na sua fragmentação crescente, que não se sabe ainda como superar.

Xi Jinping procura aumentar seu controle sobre as grandes empresas de dados porque ele percebe a dimensão desse poder”


Guéhenno aborda o que chama de ilusão da nova ordem mundial, o indivíduo perante a sociedade, a crise da política tradicional, a nova política e novos nacionalismos, o poder das grandes companhias digitais, o futuro da guerra em sociedades pulverizadas.

No capítulo sobre a nova política, Guéhenno destaca como certos líderes não procuram mais o terreno comum na política, para superar diferenças e agregar pelo compromisso eleitores diversos. Ao contrário, procuram aprofundar as clivagens. Pela brutalidade da linguagem e dos atos, o partido acentua o que o diferencia de seu adversário. Não ofender é visto como começar a mentir. Não tenta sequer se fazer

“respeitável”, seguindo a lógica de partidos fascistas.

Guéhenno nota que nesse cenário a diferença entre o fato e a ficção, entre o verdadeiro e o falso, não existe mais. Destaca o cinismo de líderes que fazem as pessoas acreditarem nas declarações mais absurdas um dia, certos de que podem dizer todo o contrário no dia seguinte como uma espécie de habilidade tática superior na política.

Assim, o espaço compartilhado da razão, que desde a antiguidade foi a base do debate democrático, se fragmenta numa multitude de ilhas de certezas incompatíveis e irreconciliáveis, observa Guéhenno.


Trechos da entrevista:

Valor: O sr. diz que o Ocidente democrático passa pela mais grave crise

desde o fim da Guerra Fria. O que deu errado?

Jean-Marie Guéhenno: Durante toda a Guerra Fria não pensamos sobre

quem éramos, porque tínhamos como adversário o bloco comunista, a

União Soviética, e víamos que nossa sociedade, com todas suas

deficiências e fraquezas, era ainda assim bem superior à deles. Em 1989

(queda do Muro de Berlim), ficamos sem inimigo. Naquele momento, em

vez de nos indagarmos sobre o que faz uma sociedade, o que nos une,

quais os valores em que acreditamos, qual é nossa vontade coletiva para

o futuro, o que fizemos foi simplesmente celebrar o fato de termos

ganhado e fomos triunfalistas.

Esse foi o pecado original. Confundimos o colapso de um sistema

soviético em fim de linha com o triunfo da democracia. Mas democracia

é muito mais que eleições, é um conjunto social de valores

compartilhados que permite eleições. Eleições são evidentemente muito

importantes, mas sem debate público, sem um alicerce compartilhado

entre os cidadãos, tornam-se o que Fareed Zakaria (analista de política

internacional) chama de democracia iliberal, que pode conduzir na

verdade ao contrário da democracia.


Valor: E resulta no triunfo do indivíduo?

Guéhenno: Sim. Essa ideologia do indivíduo vem de longe, da ruptura na

relação direta do indivíduo ao divino. Foi uma ruptura da religião que

colocava antes de tudo a família, a tribo, como base da sociedade. Essa

ideia do indivíduo foi fundamental para o desenvolvimento do mundo,

com sua liberdade de espírito e de empreender. Mas, com o colapso do

comunismo, o que vimos como triunfo do indivíduo foi ao mesmo tempo

o apogeu e a descoberta de seus limites. Porque o indivíduo de algum

modo isolado, cortado do coletivo, é algo muito angustiado.

O indivíduo precisa de fronteiras, de uma comunidade, de um

engajamento coletivo. O que temos hoje são indivíduos que se afogam

num mundo que eles não controlam. Daí esse sentimento de angústia e

reação de xenofobia, nacionalismo, tudo isso que vemos e que é

desastroso. É uma reação a essa imensa discrepância entre o indivíduo, a

quem prometemos todos os poderes, e um mundo que o esmaga mais

que o libera.

Para os europeus, para os brasileiros, sempre

haverá maior proximidade com parceiros com

tradição democrática”


Valor: Isso explica a crise da política tradicional e o aparecimento de

forças como Trump e suas cópias em outros países?

Guéhenno: Sim, acho que explica amplamente. Quando o comunismo

desmoronou, inicialmente a social-democracia achou que sua hora tinha

chegado. Mas, no rastro disso, houve uma perda de confiança no Estado,

na capacidade do poder público de mudar a sociedade. Rapidamente a

social-democracia foi identificada a uma forma de suavizar o capitalismo

puro e duro, mais que de transformar realmente a sociedade. E partidos

conservadores, que também podiam pensar que era sua hora, ao

celebrar o mercado sem nuance, como vimos com Margaret Thatcher,

que foi um grande sucesso político, igualmente atingiu o movimento

conservador clássico.

Apareceram esses novos movimentos políticos que não são baseados

em programas - e muito mais em identidade. Essa é uma mudança

profunda. Frequentemente se vincula o populismo a razões puramente

socioeconômicas, como erosão da classe média e aumento das

desigualdades. Sim, é uma parte da explicação, mas só uma parte.

Quando vemos a ascensão do que chamamos preguiçosamente de

populismo no mundo, vemos que isso acontece em países

extraordinariamente diferentes. O Brasil é diferente dos EUA, que é

diferente do Reino Unido, que é diferente da Índia, que é diferente da

Itália, e as situações socioeconômicas são diferentes. Há outras razões

que são mais políticas.


Valor: Por exemplo?

Guéhenno: Por exemplo, o sentimento de que em todos os países há

uma perda de controle, de que somos dependentes de ações que estão

bem além de seu país e fora de seu alcance. Outro elemento são as

novas tecnologias, com influência sem precedentes, e que facilitam a

emergência de novos partidos num mundo inicialmente virtual, onde

competem e desestabilizam estruturas políticas tradicionais. Antes a

política evoluía lentamente, marcada pela proximidade. Agora, as

pessoas se encontram na internet. E o mundo virtual encoraja a

brutalidade. Estudos mostram que se pode ter muito mais sucesso na

política evitando nuances. Na “nova política”, que agrupa pela identidade,

mais que em torno de projetos, um discurso equilibrado, que mostra o

pró e o contra, não interessa. O que interessa é o julgamento pleno de

certeza, determinado. A lógica das comunidades virtuais é da violência.

Primeiro, é uma violência virtual, e depois, quando se é suficientemente

numeroso, o que chamo no meu livro de rio subterrâneo que incha fora

da vista, pode fazer irrupção no mundo territorial. E nesse momento

pode ter um impacto devastador, surpreende, sacode ou pode quebrar

os partidos tradicionais, como a vitória de Donald Trump à Presidência

dos EUA (em 2016), em que ninguém ou poucos acreditavam antes.

Valor: O sr. fala de declínio da democracia...

Guéhenno: Há um declínio porque justamente a democracia é reduzida

à pura mecânica eleitoral, onde é transposta a ideologia do mercado pela

qual o melhor produto é aquele que se vende melhor. Ora, o centro da

democracia é a deliberação, a troca de ideias, a negociação de interesses.

E quando se reduz a democracia à pura mecânica para determinar um

vencedor, perdemos o que faz seu valor.


Valor: A truculência do discurso político é a tendência para atrair os

eleitores?

Guéhenno: Sim, na política tradicional os partidos tentavam ganhar

eleitores do centro, mostrar algo para eles se identificarem ao partido.

Os partidos convergiam para o centro, em algum momento, e contendo

extremos. Hoje, novos movimentos procuram sobretudo mobilizar sua

base, marcar sua diferença. E assim acentuam o que os separam do

adversário, endurecem o discurso, ofendem, buscam ser o mais violento

possível, porque é isso que vai energizar a base. A linguagem política

encolerizada se tornou a linguagem em várias democracias ocidentais.


Valor: O sr. menciona uma escolha entre GAFA, os gigantes do digital, e a

China. Como explicar isso?

Guéhenno: O fenômeno que sacode tudo é a nova economia dos dados,

que é tão importante quanto a Revolução Industrial. A revolução de

dados muda a maneira como o poder e o saber vão ser distribuídos. O

poder e a riqueza estão hoje na coleta e na gestão de dados. Há

inquietações sobre efeitos mais visíveis desse poder, como a capacidade

de espionagem que ameaça o espaço privado, a capacidade de

manipulação que pode ameaçar as campanhas eleitorais. Mas os efeitos

são muito mais profundos, porque é a estrutura mesmo das sociedades,

nas suas dimensões políticas e econômicas, que estão sendo redefinidas

pelos novos controladores de dados. Por isso que essas grandes

empresas, todas americanas, passaram a ter uma importância

gigantesca no mundo ocidental. A China também tem grandes empresas

de dados e tem o Partido Comunista (PC). É interessante como o

presidente Xi Jinping procura aumentar seu controle sobre as grandes

empresas de dados porque ele percebe a dimensão desse poder. E ele

provavelmente não quer um centro de poder independente do PC que

se desenvolva na China e que um dia se torne mais importante que o

partido. Isso coloca a China diante de escolhas difíceis e não sabemos

como vai acabar. Se Xi e o partido querem controlar o poder dos dados

com uma ditadura tradicional, colocando censores, vigilantes em todo

lugar, não vão conseguir, ou o que vão é causar uma ossificação da

sociedade, pois não se controla um país com 1,4 bilhão de habitantes

dessa maneira. Outra solução é dar o poder aos algoritmos. É o que se

passa no Ocidente, com Facebook, Twitter etc. Aceita deixar os

algoritmos livres, mas não para polarizar, pelo contrário, para

harmonizar, e isso causa muito medo. No Ocidente, vemos os algoritmos

do lado comercial e vemos uma exaustão, um esgotamento dessa

sociedade disfuncional onde todo mundo disputa com todo mundo.


Valor: O sr. aponta riscos de “tentação chinesa”. E pergunta se a China é

o nosso futuro. Qual é a resposta?

Guéhenno: A grande diferença entre a China e a URSS é que a URSS era

um fiasco econômico e a China é um sucesso econômico. Vemos em

pesquisas que, no fundo, a ideia de país onde se fabrica uma espécie de

bolha de felicidade é uma tentação forte. Alguns aspectos do dito

modelo chinês, comparado a nossas sociedades democráticas em

decomposição, ameaçam se tornar mais atrativos. A China tem tanto a

repressão horrível aos uigures como tem a ditadura amena, quase

invisível. O sistema chinês de crédito social, que Pequim tenta

implementar, procura criar uma espécie de harmonia social que pode

alimentar desejos de indivíduos desorientados em outras sociedades.

Quando se combina isso com medo, porque em nossas sociedades hoje

a única coisa que as mobilizam é o medo, isso pode resultar numa

demanda de autoridade e de controle. É um verdadeiro risco em

sociedades desorientadas, confusas, ao mesmo tempo hiperconectadas

e hiperfragmentadas. Isso provoca a demanda de um poder que o

protege como uma bolha e que gera suas emoções.


Valor: Os EUA com essa confrontação com a China colocam freios à

“tentação chinesa”?

Guéhenno: Os americanos justamente estão numa situação difícil para

contrapor-se ao modelo chinês porque o que vemos dos EUA hoje não é

muito encorajador. É um país extraordinariamente polarizado, suas

instituições políticas funcionam mais e mais dificilmente, as relações são

ainda mais judicializadas e colocam um peso ainda maior nas costas dos

juízes. Uma questão é se a Suprema Corte, com maioria de juízes

nomeados por presidentes republicanos, e que sempre foi considerada

acima da política, se ela manterá sua legitimidade numa sociedade mais

e mais polarizada. Vemos uma fragmentação da sociedade americana

que não é invejável. Há também as grandes desigualdades na sociedade

americana, que o presidente Joe Biden tenta corrigir um pouco. Ele tem

limites, com um Partido Democrata também rachado sobre a questão.

Assim, o modelo americano como alternativa à China tem muito menos

atrativo que tinha face à URSS. Ao mesmo tempo, é verdade que o

mundo da internet é dominado por empresas americanas, e essa

influência americana continuará muito potente no mundo. Mas no

momento ela consegue mais fragmentar o mundo do que uni-lo, de

forma que o triunfo americano é de uma certa maneira também o que

fragiliza um pouco o mundo hoje. Os EUA vão colocar em ordem de

batalha essas empresas digitais para fazer contrapeso à influência

chinesa. Da mesma maneira que Xi Jinping tenta reforçar o controle

sobre empresas de dados, nos EUA não é evidentemente o mesmo

sistema, mas a lógica da confrontação com a China produzirá

provavelmente uma aproximação mais e mais importante entre o Estado

e essas empresas.


Valor: Entramos numa segunda Guerra Fria?

Guéhenno: A história aqui não se repete realmente. As economias

ocidental e soviética eram dois mundos separados. Hoje, a China é o

maior detentor de títulos do Tesouro americano, é um parceiro

comercial fundamental para a Alemanha e mesmo para os EUA, é o

primeiro cliente da Austrália. Não vejo muito uma dissociação aí. Os

chineses construíram uma espécie de muralha da China virtual para a

internet. Mas, ao mesmo tempo, sabem que para gerir suas empresas

de maneira eficaz é preciso uma circulação de dados global. Distinguir

entre dados a bloquear ou não é muito complicado. Assim, os dois

mundos estão muito mais interligados do que ocorreu na Guerra Fria.

Também a distinção hoje entre política externa e política interna é

menos e menos pertinente. Os dois mundos são muito porosos. E cada

um procurará influenciar, fazer mover do interior o outro país, e cada um

vai procurar manipular a interdependência para seu proveito. Em vez de

guerra fria no sentido clássico que conhecemos, hoje temos é uma

competição muito mais difusa.


Valor: O recente acordo militar para transferência de tecnologia

americana de submarinos para a Austrália amplia até que ponto a

tensão entre americanos e chineses?

Guéhenno: O aspecto mais importante é que os EUA romperam uma

espécie de acordo tácito, de consenso ocidental, de não transferir essa

tecnologia muito proliferadora de submarino nuclear. Mudar sua posição

é um fato importante e militariza ainda mais a rivalidade com a China. E

isso significa que o prognóstico de 15 anos, 20 anos, é o de uma

confrontação militar. O lado chinês vai acelerar o reforço da capacidade

marítima chinesa, acelerar uma corrida aos armamentos na região do

Pacífico, mas ao mesmo tempo essa rivalidade tomará vários outros

caminhos. E os chineses esperam contornar a rivalidade militar por todo

o tipo de meios que não são militares.


Valor: Uma confrontação militar é inevitável?

Guéhenno: Acho que nada é inevitável. É preciso confiar na capacidade

humana de não fazer sempre besteiras. Mas vejo riscos reais de erro de

cálculo. A China foi uma potência dominante do mundo por séculos.

Quando ela renunciou à potência naval, na época do Renascimento, se

isolou e perdeu o movimento de modernização que começou no século

XVI e se acelerou no fim do século XVIII. Ela foi humilhada e tem uma

revanche a tomar. Mas, nesse mundo complicado, fragmentado, um

elemento de esperança é justamente que há uma multitude de vínculos

que conectam o mundo. É um fator de inquietação, mas que pode

também se tornar um fator de estabilização. Os Estados podem fazer

erros catastróficos, que nos levariam a confrontação. Mas podemos

esperar que todos esses vínculos paralelos aos Estados possam nos

ajudar a não chegar a esses confrontos.


Valor: Os parceiros serão obrigados a escolher claramente entre EUA e

China em certo momento?

Guéhenno: Espero que não. Acho que para os europeus, para os

brasileiros, sempre haverá maior proximidade com parceiros com

tradição democrática. Ao mesmo tempo, creio que há um desejo que

cresce de um país não estar em situação de “conosco ou contra nós”. Um

mundo onde há diferentes maneiras de pensar a relação do indivíduo ao

coletivo é a melhor garantia de pluralismo e de paz. Países que não estão

na linha de confrontação direta, como o Brasil e como os europeus, têm

todo interesse de conversarem, não para formar blocos, mas para

mostrar que pode haver respostas diferentes.


Valor: Crise do Ocidente, tentação chinesa, potência de dados. Quais

alternativas a tudo isso?

Guéhenno: Tento desenhar algumas respostas no livro. Acho que

devemos refletir sobre uma nova governança de dados, pela qual o

poder dos dados não fique nas mãos de empresas nem nas mãos de um

Estado. Creio que essa é uma das questões que pessoas que prezam o

pluralismo devem se colocar. Quanto à questão de legitimidade da

autoridade, acho que toda tentativa de democracia direta, e até sorteio,

por exemplo, é uma resposta superficial, porque não é reproduzindo

uma sociedade disfuncional que vamos torná-la funcional e isso

tampouco resolve a falta do debate. Também num mundo em que o

conhecimento supera mais e mais a capacidade de cada indivíduo, a

relação entre saber e poder está mal resolvida hoje. Vimos na pandemia

de covid-19 de um lado governos que procuram ignorar o saber, o que é

catastrófico, e de outro governos que se escondem atrás do saber. Ora,

há espaço para o saber e para reconhecer sua utilização e há questões

que são de natureza política. A medida do risco é uma questão científica.

O grau de risco a que estamos dispostos é do campo da política.