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domingo, 18 de outubro de 2020

Na origem do conceito de América do Sul no discurso diplomático do Brasil: um texto de 1992 - Paulo Roberto de Almeida

Quando se começou o movimento para o impeachment do presidente Fernando Collor, creio que eu estava ainda no Uruguai, em Montevidéu, servindo como conselheiro, e representante alterno, da Representação do Brasil junto à ALADI, quando tive a oportunidade de negociar um dos primeiros documentos posteriores à assinatura do Tratado de Assunção, criando o Mercosul, que foi o Protocolo (depois chamado "de Brasília") sobre Solução de Controvérsias no Mercosul. Assim que completei dois anos no posto, fui removido de volta a Brasília, para servir na recém instituída SGIE, Secretaria Geral de Integração Econômica, sob a direção do embaixador Rubens Barbosa, que também me quis remover de Genebra – onde servia sob as ordens do embaixador Rubens Ricupero, na Delegação junto aos organismos econômicos – assim que chegou a Montevidéu, o que recusei, ficando meus três anos completos na cidade suíça, a mais internacional de todas.

A minuta abaixo, de um projeto de discurso do novo chanceler do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, no governo Itamar Franco – creio que aproveitado praticamente na íntegra (pois que, como registrado na ficha deste trabalho, reproduzida abaixo), tal como publicado no Boletim de Diplomacia Econômica, que eu também passei a dirigir, junto com o BILA, Boletim de Integração Latino-Americana, que eu criei na SGIE – para a posse do embaixador Lampreia como SG do Itamaraty, a convite de FHC (chanceler até maio de 1993), tem um parágrafo que já ressalta a "América do Sul", como espaço prioritário para a atuação do Brasil no processo de integração, mas o texto preparado também discorre sobre os demais tópicos da política externa.

284. “Minuta de discurso sobre política externa”, Brasília: 7 outubro 1992, 7 p. Texto conceitual, expondo as novas bases da política externa brasileira, utilizado integralmente no pronunciamento do Chanceler Fernando Henrique Cardoso, por ocasião da posse do Secretário-Geral das Relações Exteriores, Emb. Luiz Felipe Palmeira Lampreia, feita no Itamaraty em 09/10/1992. Discurso transcrito no Boletim de Diplomacia Econômica (Brasília: MRE/SGIE-GETEC, n. 13, novembro 1992), p. 11-17. Sem inscrição na relação de publicados. 

Eu até me permiti incluir uma menção a um dos meus pensadores-escritores favoritos, George Orwell, e outra menção ao parlamentarismo, que não sei se foram preservadas no discurso finalmente lido pelo chanceler FHC: eu precisaria conferir nesse Boletim de Diplomacia Econômica ou no Repertório de política externa do Brasil, relativo ao ano de 1992, que deve existir online. Aliás, coloquei muitas outras coisas, que eu mesmo pretendia que FHC abordasse – como o fato de que o diplomata não poder ser alguém desconectado da sociedade –, mas não sei agora se foram preservadas: como se sabe, os Gabinetes costumam podar qualquer ideia fora do padrão tradicional, e só costumam conservar o bullshit habitual do diplomatês insosso, o que nunca foi meu estilo.

Faço este registro, pois que acabo de receber um trabalho no Academia.edu que trata do tema, cuja informação completa segue in fine: 

A integração da América do Sul no discurso da política externa brasileira (1992-2010)
Samir Perrone


Eis a minha minuta, que merece confronto com o texto do discurso oficial: 

(Minuta)

Discurso do Senhor Ministro de Estado das Relações Exteriores

por ocasião da posse do Sr. Secretário-Geral

 

(Palácio Itamaraty, 09/10/92)

 

Senhor Secretário-Geral das Relações Exteriores, 

Embaixador Luiz Felipe Palmeira Lampreia,

Senhoras e Senhores,

 

[Lampreia, Seixas Correa...]

 

Tenho perfeita consciência do privilégio de assumir o cargo de Chanceler do Governo Itamar Franco numa época de reafirmação dos valores da ética e da democracia. Embora assumindo a direção de nossa política externa nas circunstâncias políticas por demais conhecidas de todos, minha vinda para o Itamaraty não pode ser considerada como um evento fortuito, um raio no céu azul da política nacional. Longe disso. 

Meu interesse nos temas de política exterior e de relações internacionais vem de longa data e não preciso recordar aqui a experiência acadêmica e política adquirida em diversas passagens e estadas, voluntárias ou involuntárias, em países da América Latina, da Europa e nos Estados Unidos. No período recente, já membro do Congresso brasileiro, mas ainda conservando laços com a academia, pude aprofundar minha visão da inserção internacional do Brasil, seja como membro da Comissão de Relações Exteriores do Senado Federal, seja ao participar de inúmeros eventos onde aflorava no debate a questão de nossas relações internacionais e a posição peculiar do Brasil num mundo em transformação.

 

Minha chegada ao Itamaraty coincide com um momento decisivo e inovador da História do Brasil: o desafio de conciliar a busca do desenvolvimento econômico com o imperativo da justiça social, o crescimento com equidade, o progresso social com a repartição equilibrada das conquistas materiais.

Não há mais lugar, no Brasil de hoje, para o que tentam aferrar-se a privilégios e arbitrariedades; não há mais espaço para os que buscam vantagens pessoais sob o manto da impunidade.

 

Nestas últimas semanas e dias, o Brasil deu ao mundo uma perfeita lição de exercício democrático, reafirmando o grau de amadurecimento de suas instituições. A hora, portanto, é de afirmação da democracia, do primado do direito e das liberdades individuais, do pluralismo, da moralidade no trato da coisa pública, do respeito à vontade da maioria e da proteção das minorias.

 

A política externa de um país é, poder-se-ia dizer parafraseando um autor por demais famoso, a continuação de sua política interna por outros meios. O Brasil de hoje, que me cabe representar internacionalmente, caracteriza-se por uma conjuntura política onde vigora plenamente a ordem democrática e onde o amadurecimento das instituições — ainda agora testadas em seus mecanismos mais sensíveis, quais sejam o da máxima direção do Estado e o da vigência de normas constitucionais que regulam o funcionamento do Governo — nos permite vislumbrar um cenário de intensificação, mas também de normalização, do diálogo entre as forças políticas nacionais.


Sendo assim a projeção de sua política interna, a política externa do Brasil democrático só pode ser uma política externa democrática, aberta aos influxos da sociedade e plenamente sintonizada com os interesses da Nação em seu conjunto.


O Itamaraty deve desempenhar um papel de relevo na construção de uma nova nacionalidade, suscetível de propiciar ao País uma inserção internacional de acordo com seus legítimos interesses internos e de contribuir igualmente para a redução do imenso atraso social e material em que ainda vegeta grande parte de sua população.


O diplomata não pode ser um cidadão isolado das realidades sociais de seu País, um indivíduo desconectado do cenário interno, alheio aos problemas materiais e humanos que afetam seus concidadãos. A ordem democrática no plano das relações exteriores deve permitir justamente que essa dimensão social interna possa refletir-se no trabalho de formulação e de execução da política externa governamental.


O Governo que agora assume tem plena consciência de suas responsabilidades para com a sociedade, em outros termos de transformações nas esferas política, econômica e social. Ele está disposto a enfrentar as demandas por mudanças profundas na vida do País, tomando iniciativas nos campos institucional, legislativo e administrativo. Essa agenda deve ser igualmente transposta para o campo da política externa. O dinamismo no plano  interno não pode conviver com o imobilismo no plano externo.

 

A conjuntura externa impõe, aliás, mudanças na postura internacional do Brasil. O fim da guerra fria, o término do confronto Leste-Oeste, a desideologização das relações internacionais, já conformam, por eles mesmos, os novos elementos de um cenário mundial sensivelmente diferente daquele em que crescemos e fomos educados: os velhos conceitos, os antigos argumentos, os discursos tradicionais podem ser guardados na estante. A linguagem da diplomacia contemporânea deve necessariamente ser diferente, menos preocupada com os equilíbrios estratégicos e as disputas pela hegemonia e mais voltada para a superioridade tecnológica e a performance econômica.


A ordem econômica mundial não pode mais ser moldada pela vontade de algumas poucas economias dominantes: a globalização dos circuitos produtivos, dos fluxos de comércio e de investimentos, cria uma enorme rede de interesses interdependentes, muito embora alguns participantes dessa imensa fazenda econômica sejam, como na fazenda imaginada por George Orwell, mais interdependentes do que outros. Alguns, “mais iguais do que outros”, avançam na conformação de espaços econômicos exclusivos, num movimento já conhecido como de regionalização e ao qual não podemos ficar alheios.


Os países em desenvolvimento são, precisamente, frágeis em sua interdependência com o mundo, em especial com os parceiros desenvolvidos, dependentes que são do acesso a capitais e fontes externas de tecnologia moderna. A América Latina, particularmente, perdeu espaço relativo nos mercados internacionais nos últimos dez ou doze anos, enquanto a Ásia caminhava celeremente na busca de uma nova inserção internacional.


Esse contraste, doloroso para nós, acostumados que estávamos a décadas de crescimento contínuo, ilustra com força a importância do componente econômico na agenda diplomática contemporânea. Não se trata aqui de reduzir a importância do aspecto político, mas de reconhecer a primazia dos interesses econômicos e comerciais na projeção externa do País.

 

Daí derivam novos princípios que deverão orientar a política externa do Brasil nos anos 90. Nossa diplomacia, em respeito a suas tradições, deve procurar antecipar-se aos movimentos do presente, orientando seu instrumental de análise e de atuação para detectar, como bem disse o Chanceler Celso Lafer, os nichos de oportunidade que assegurem ao Brasil melhor acesso aos mercados e aos fluxos de capitais e tecnologia.

 

Realismo e objetividade no tratamento dos temas de interesse concreto do Brasil de hoje devem caracterizar essa política externa preocupada com nossa inserção no mundo contemporâneo. Sem descurar os temas tradicionais da agenda diplomática brasileira, a política exterior em minha gestão dará prioridade às matérias relacionadas com o comércio exterior e a integração regional.


O Brasil é um país a vocação ecumênica, uma nação cujos interesses espelham a vontade política, e mesmo a necessidade econômica, de um relacionamento verdadeiramente universal. No campo comercial, onde somos um global trader, é preciso desenvolver uma visão estratégica do comércio exterior, captando as novas oportunidades surgidas em áreas dinâmicas, seja em termos de produtos de alta demanda potencial ou de mercados promissores.


Para realizar a já chamada inserção competitiva do Brasil na economia mundial, a ação diplomática externa estará voltada, em especial, para a consolidação dos compromissos do País com o sistema multilateral de comércio, em especial com o GATT. Cabe operar aqui o abandono das posturas essencialmente defensivas e protecionistas  neste e em outros foros, pois é do nossos interesse que a regulamentação de novos temas da agenda econômica mundial seja feita no GATT e em outros foros multilaterais, com vistas a reduzir o potencial discriminatório de medidas nacionais unilaterais, de iniciativas puramente regionais ou resultando de acordos entre blocos ou parceiros mais poderosos.


O Brasil deve colocar-se numa postura receptiva ao desenvolvimento de novas frentes de negociação externa objetivando a liberalização dos fluxos de comércio e o aumento das condições de acesso de produtos brasileiros aos mercados internacionais. Na política comercial externa deve procurar-se seguir uma estratégia diferenciada, com a busca aludida de nichos de mercado nos países desenvolvidos e uma maior agressividade nos mercados regionais e dos países em desenvolvimento.


O MERCOSUL representa, obviamente, prioridade fundamental de nossa política externa, não apenas em termos econômicos, mas também nos planos político e diplomático. Na área econômica, porém, atenção especial deve ser dada às negociações tendentes ao pleno atingimento dos objetivos propostos no Tratado de Assunção e confirmados na decisão de Las Leñas do Conselho do Mercado Comum, que estabeleceu um cronograma de medidas a serem cumpridas até o final da fase de transição, em 31 de dezembro de 1994. 


A América do Sul, no contexto da integração regional, constitui um espaço econômico relevante para nossos interesses comerciais e econômicos: aqui é preciso definir políticas e ações positivas que permitam ao Brasil tomar iniciativas regionais, e não reagir a elas de maneira defensiva, dentro do realismo, gradualismo e equilíbrio que caracterizam [essa nova orientação.]


A política de integração, no plano hemisférico, deve ser vista como uma ação complementar aos esforços de modernização tecnológica, de melhora de competitividade e de uma melhor inserção externa. A negociação da integração regional deve articular-se com a política econômica externa vis-à-vis os países desenvolvidos, dos quais continuará a derivar o essencial dos nossos instrumentos de modernização tecnológica.


A Ásia assumirá importância crescente para a política externa brasileira, em especial em sua vertente econômica: em seu conjunto, o continente asiático, já foi, em 1991, o terceiro mercado para as exportações brasileiras.  Nesses termos, continuaremos a examinar com interesse o aprofundamento de nossas relações com o Japão e os países de crescimento dinâmico, procurando igualmente intensificar as relações de cooperação científica e tecnológica com a China e a Índia, países com os quais temos uma certa afinidade de interesses no cenário macropolítico mundial.


A prioridade em relação à África - em especial os países de língua portuguesa - é reflexo de nossa própria identidade cultural: os laços de sangue e os vínculos culturais constituem uma base sólida para a continuação de um relacionamento exemplar. Examinarei com atenção as possibilidades de cooperação com esse continente, particularmente nos campos da prestação de cooperação técnica e de participação em projetos de desenvolvimento.


Também na área cultural, o papel do Itamaraty, como difusor dos valores e bens da civilização brasileira deve ser reforçado e ampliado. Em coordenação com o Ministério da Cultura, necessitamos redefinir o alcance e as prioridades de nossa política de difusão cultural. Em minha gestão, tenciono dar ênfase à diplomacia cultural, estreitando os vínculos com a comunidade ibero-americana e com os países da África lusófona.

 

Pretendo abrir o Itamaraty para um amplo diálogo com as forças políticas nacionais, representadas no Congresso ou presentes na sociedade civil. Num momento em que a nacionalidade se apresta a discutir a opção parlamentarista, à qual me filio particularmente, o Itamaraty deve estar pronto para participar dessa revisão fundamental dos princípios operacionais de nossa democracia, inclusive no que se refere ao processo decisório e de implementação da política externa.

 

É minha intenção igualmente manter estreito contato com os setores produtivos, para que estes possam fazer o acompanhamento da agenda econômica externa, nos foros multilaterais ou no MERCOSUL, com plena consciência de suas implicações para as empresas e os agentes econômicos internos.

 

Refletindo as prioridades que pretendo desenvolver à frente da Chancelaria, estou reestruturando o funcionamento das Subsecretarias e de outras unidades subordinadas, com vistas a unificar, por exemplo, o tratamento dos temas econômicos.

 

Desde os primeiros momentos na chefia da Casa, dediquei atenção especial às questões administrativas, que tanto afetam o Itamaraty e sobre as quais espero em breve dar boas notícias a todos os funcionários, no Brasil ou no exterior.

 

Conclamo a Casa a participar deste esforço. Espero contar com a colaboração, o entusiasmo e a dedicação desse corpo de funcionários diplomáticos altamente qualificado, e de funcionários administrativos e de apoio, que, apesar das dificuldades materiais e das limitações orçamentárias, continuam a dar o melhor de seus esforços para o Itamaraty.  Quero manter estreito contato com a Casa e aproveitar suas virtudes.

 

[segue texto final do Gabinete]

 

Relação de Trabalhos n. 284


Anexo: 

A integração da América do Sul no discurso da política externa brasileira (1992-2010)

Published 2014
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Esta tese aborda a construção do discurso da política externa brasileira acerca da integração da América do Sul, particularmente a partir da década de 1990. Através da perspectiva de estudos da Análise de Política Externa e com relevantes contribuições do campo da Análise do Discurso, este trabalho enfoca o desenvolvimento desta noção de integração sul-americana ao longo dos governos de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Assim, a pesquisa apresenta uma discussão teórica acerca do estatuto do discurso na área de política externa, seguida por um levantamento do histórico de aproximação entre o Brasil e seus vizinhos da América do Sul. Com base nestes elementos, o trabalho examina as características institucionais e os principais agentes envolvidos no processo de construção do discurso da política externa brasileira para a integração regional. A seguir, a análise se volta para os aspectos discursivos, com ênfase nos pronunciamentos dos chanceleres e dos presidentes brasileiros, para compreender suas condições de emergência e existência, bem como verificar as continuidades e rupturas no desenvolvimento desta “nova” noção de região. O objetivo desta análise consiste em identificar os principais elementos políticos, sociais e simbólicos mobilizados na articulação deste discurso da política externa para a integração da América do Sul.