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quarta-feira, 29 de abril de 2020

A arte da diplomacia e da negociação como fundamentos das relações internacionais - Paulo Roberto de Almeida

Não costumo, a não ser que eu seja obrigado a fazê-lo, ler textos em palestras, aliás nem em aulas magnas, pois esse nome não me impressiona muito, e creio que leituras monótonas costumam ter virtudes dormitivas.
Prefiro falar livremente, o que me permite inovar no desenvolvimento dos meus argumentos em face de uma audiência que pode ter outros estímulos do que palestras ex-cathedra.
Mas, sempre quando tenho algum convite para uma palestra, costumo escrever algumas notas, rascunhos, ou até trabalhos formais, como referência de base ou texto de apoio do que pretendo abordar ou desenvolver no evento, mas deixando, portanto, algo formal para a audiência visada e para o meu próprio registro formal da participação nessa atividade.
Esses textos escritos são geralmente oferecidos antes da palestra, seminário, exposição ou qualquer outro evento que requer uma intervenção minha. 
O ideal é que possam ler, entender, despertar curiosidade sobre algum dos argumentos – o que nem sempre é possível no imediato da hora, e nem sempre se pode anotar as minhas palavras.
Esta é a razão de escrever e de circular antes temas "parecidos" aos argumentos que pretendo abordar, ou o que foi solicitado pelos organizadores.
Acabo de redigir este texto, que não vou ler nesta "aula magna" deste dia 30/04.

3656. “A arte da diplomacia e da negociação como fundamentos das relações internacionais”, Brasília, 29 abril 2020, 14 p. Texto de apoio para uma aula magna no curso de Relações Internacionais da Universidade Salvador (BA), a convite do Prof. Felippe Ramos, no dia 30/04/2020, 19hs, via online (?). Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/42893937/A_arte_da_diplomacia_e_da_negociacao_como_fundamentos_das_relacoes_internacionais_2020_)

A arte da diplomacia e da negociação como fundamentos das relações internacionais

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: Notas para aula magna no curso de Relações Internacionais da Universidade Salvador (BA), no dia 30/04/2020; finalidade: informação preliminar aos alunos]


Sumário: 
1. A maneira antiga das artes da negociação
2. A maneira moderna de fazer diplomacia
3. Desafios das relações internacionais na globalização e na desglobalização
4. Mudanças na geopolítica e na geoeconomia mundiais decorrentes da pandemia
5. O desaparecimento do Brasil dos radares da globalização e da racionalidade

Ler a íntegra neste link: 

https://www.academia.edu/42893937/A_arte_da_diplomacia_e_da_negociacao_como_fundamentos_das_relacoes_internacionais_2020_


sábado, 25 de abril de 2020

Sobre uma suposta e inexistente, nunca proclamada, saída da Argentina do Mercosul - Paulo Roberto de Almeida

Leiam primeiro os anúncios da Argentina e da presidência pró-tempore do Mercosul: 
https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/acordos-externos-do-mercosul-argentina.html

E minha postagem no Facebook: 
Sobre uma suposta e inexistente, nunca proclamada, saída da Argentina do Mercosul (1) As pessoas acabam se "informando" pelo Facebook – que é o maior disseminador de fakenews e de besteirol do planeta, da galáxia – e se esquecem de buscar as fontes de informação fiáveis, que continuam a ser a "grande mídia" – a despeito do desprezo que lhe devotam alucinados, aloprados, desvairados, da esquerda e da direita – e as fontes oficiais de governos (não todos claro; tinha a Pravda e a Tass do socialismo real, assim como temos hoje a Secretaria de (Des)Informação do (des)governo Bolsonaro). Eu sempre busco a informação fiável, e por isso fui ler o que disse o governo argentino e o que disse a presidência pró-tempore do Mercosul, o Paraguai, e já tinha colocado, desde ontem, os anúncios no meu blog Diplomatizzando (que os apressados não leem). Transcrevo ambos abaixo, para não dar muito trabalho aos apressadinhos, e depois volto em nova postagem para comentar... Paulo Roberto de Almeida.
Ler os anúncios aqui: 
https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/acordos-externos-do-mercosul-argentina.html

Sobre uma suposta e inexistente, nunca proclamada, saída da Argentina do Mercosul (2)
Paulo Roberto de Almeida (meus comentários à postagem anterior, como acima)

Não houve, e não haverá, nenhuma decisão argentina de saída do Mercosul. Ainda não nasceu o político que decretará o fim do Mercosul, mesmo que ele perca substância e finalidade, sob qualquer evolução futura da dinâmica econômica e comercial dos países membros, ou a partir de sua inserção em novos e futuros acordos comerciais em âmbito regional, plurilateral, multilateral ou unilateral (sim, as pessoas existem que medidas de política comercial podem ser tomadas sem precisar negociar com qualquer outro parceiro externo: basta mudar a sua legislação e avisar o mundo).

O Mercosul é, supostamente, uma união aduaneira – meio esfarrapada, e verdade, uma colcha de retalhos esgarçada, mas ainda assim é a sua definição junto ao Gatt 1947 e depois 1994, mas aproveitando as facilidades da Cláusula de Habilitação de 1979 – que é assim uma promessa de casamento, um noivado, em direção do casamento sob a forma de um mercado comum, algo meio inalcançável e meio inatingível no momento presente (ou seja, nos 15 últimos anos).
Uma união aduaneira, como promessa de casamento, é diferente de uma zona de livre comércio, que é uma espécie de "free sex for all", como diriam os ingleses, ou seja, aquela farra de zonas. Isso quer dizer que numa ZLC cada um é autorizado a fazer o que quiser, em qualquer posição, com parceiros externos, à condição que mantenham o livre comércio para dentro. Mas cada país conserva a sua Tarifa Comercial autônoma (soberana e nacional, diriam os petistas e, agora, os bolsonaristas).
Ser uma UA significa que os países membros deixaram de ter uma Tarifa Externa nacional (PERDERAM SOBERANIA, vamos falar claramente, contra petistas e bolsonaristas), para adotar uma TEC, uma Tarifa Externa Comum, devidamente declarada ao Gatt, e como tal registrada na OMC e submetida ao Trade Policy Review Committee, o comitê de exame das políticas comerciais da OMC, a que o Mercosul se submeteu e ao qual precisa prestar informações sobre o caos que é sua política aduaneira esquizofrênica, onde existem exceções NACIONAIS (essas sim, soberanas) e não exceções do BLOCO, ainda que estas possam existir também.
O fato que é que essa UA meio envergonhada tem algumas regras de política comercial, mas não TODAS que deveriam exibir um bloco a caminho de realizar a sua conjunção carnal do casamento. Isso faz com que alguns temas (tarifários em sua maior parte) sejam discutidos e negociados com terceiras partes conjuntamente e outras não (como deveriam ser, com luvas de pelica, os acordos de investimentos com partes de fora).
O fato de ser uma UA, ainda que esburacada, impede, em princípio, que os países façam acordos comerciais com terceiras partes, o que não é um impeditivo absoluto, desde que não derrogando a tarifa externa comum de modo absoluto (ou seja, usando a cláusula de habilitação da forma tão maliciosa quanto a China faz para algumas de suas práticas e políticas) e desde que preservando a cláusula MFN para dentro. Mas, existia uma resolução do Conselho impedindo a negociação solitária na fase de transição, assim como existe uma resolução de 2000 prometendo a mesma disciplina, pós-Protocolo de Ouro Preto.
Mas, como diria o Conselheiro Acácio, resoluções políticas são resoluções políticas, ou seja, podem ser derrogadas por outra resolução política. O problema é que resta a questão da TEC registrada no Gatt e o fato de que o Mercosul tem de falar com uma só voz a esse respeito, e não de forma isolada e aventureira.
Na verdade, essa resolução só interessa aos nossos industriais predadores, que fizeram a sua reserva de mercado no Cone Sul e impedem os outros países membros de negociarem acordos mais favoráveis (para os seus nichos de mercado) com parceiros externos. Se a coisa virar um "free sex for all", os nossos exportadores perderão a sua reserva de mercado.
Tanto é assim que a TEC é perfurada sempre para cima, pelo Brasil, o mais protecionista do planeta nos últimos 200 anos, e perfurada para baixo pelos demais sócios, com exceções pontuais da Argentina, o segundo ou terceiro país mais protecionista do planeta (tem a Índia que faz forte concorrência nessa inglória disputa).

Mas, o anúncio da Argentina NÃO TEM NADA A VER COM ISSO, e me desculpo por ter desviado a atenção de vocês para toda essa chorumela, mas ela é importante para perceber o que é o Mercosul no contexto esquizofrênico que é o seu.
O que ela anunciou em Assunção é que não participaria mais de negociações de novos acordos de abertura econômica ou de liberalização comercial, além dos que já tinham sido feitos antes da assunção do presidente Alberto Fernández (aquele que foi hostilizado pelo nosso presidente ignorante e seu chanceler acidental, que agravou o caso, ofendendo diretamente o então candidato, e depois não se desculpou com o presidente, assim como não o fez em relação às últimas ofensas à China, feitas pelo debiloide do ministro da Educação).
Em outros termos, a Argentina disse que fica no banco de reserva, lambendo suas feridas e aguardando dias melhores, o que coloca um problema para os outros membros. O mais provável, se os países quiserem "legalizar" a relação de noivado aberto, vão ter de fazer uma nova resolução, estabelecendo as condições e requerimentos pelos quais os países membros, isoladamente ou em conjunto, mas à exclusão de um ou dois, podem negociar e implementar novos acordos (derrogando, portanto, muitos itens da TEC), e como declarar isso no Gatt-OMC, sem afetar muito a credibilidade do Mercosul (já sem muita importância efetiva no plano global).
De toda forma, são escassas as chances do acordo com a UE entrar em vigor no futuro previsível, e o com a EFTA não tem muita dimensão substantiva para criar caso.
O Mercosul continua a sua irrelevância, que começou justamente com a crise argentina de 2001, e continuou sendo aprofundada sob o regime lulopetista, e agora não parece próximo de se restaurar e se reforçar, sob políticas comerciais divergentes nos países membros (isso quando existem quaisquer políticas, o que não parece ser o caso). Mas, como eu disse, ele não será declarado morto e acabado.
Burocracia – e a do Mercosul não é grande – nunca morrem, depois que são criadas: permanecem na paisagem como dinossauros, ou como as baratas, até que sejam extintos por alguma catástrofe natural. Por decisão de governos, não vejo nenhuma chance.

Eu já escrevi muito sobre o Mercosul, três livros e incontáveis artigos. Vocês podem achar alguns no Google, ou mais exatamente na minha página em Academia.edu. Vou juntar esses artigos e fazer um volume de autor.
Mercosulianos e anti-Mercosulianos, não se desesperem. Como dizem os uruguaios, "no pasa nada". Como é que poderia acontecer alguma coisa, quando vocês têm governos malucos em quase todas as partes?
O mundo gira, e a Lusitana roda, mas não sei se ainda existe a Lusitana. Se não existe mais, foi por razões empresariais, pois se fosse estatal continuaria existindo.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 25 de abril de 2020

O futuro do Brasil e os seus generais bem comportados - Paulo Roberto de Almeida, Thais Oyama (UOL)

O futuro do Brasil e os seus generais bem comportados
Paulo Roberto de Almeida

Os generais do salazarismo também ficaram sustentando o regime até quase o final: se beneficiavam das benesses do regime, como os nossos generais. 
Até que vieram os capitães do 25 de Abril de 1974, para acabar com aquela fancaria, que estava condenando vários filhos à morte nas insanas guerras coloniais. Um general, dos mais fascistas – assassino do líder do PAIGC na Guiné Conacri – acabou se desviando ligeiramente do regime, escrevendo um livro meio insosso, chamado "Portugal e o futuro", apenas preocupado com o desgaste da não-descolonização, mas interessado em conservar pratas e baixelas na metrópole. 
Acabou sendo atropelado pelos jovens oficiais, que quase instalaram uma Leningrado sobre o Tejo. Mas, os coronéis logo retomaram o comando, e a coisa toda se encaminhou para uma democracia quase estável, com alguns percalços pelo caminho.
Quando é que os nossos generais vão bater na consciência e concluir que é melhor acabar logo com a loucura do olavo-bolsonarismo antes que os insanos do regime atual consigam destruir metade ou praticamente todo o país? 
Já passou o tempo: estão com medo de serem acusados de golpistas? 
Não precisam dar golpe: basta usar as informações de que dispõem para "renunciar" o capitão.
Vou ser acusado de golpista? 
Pode até ser, mas o destino da nação me interessa mais do que meros conceitos, vazios de significado, ante o desastre a que assistimos...
Paulo Roberto de Almeida​

Os militares vão com Bolsonaro até o fim 
https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/04/25/os-militares-irao-com-bolsonaro-ate-o-fim.htm

Thaís Oyama 
Colunista do UOL,  25/04/2020 

 As incertezas que a vitória do ex-deputado de baixo clero Jair Bolsonaro suscitou nas eleições de 2018 foram amenizadas por uma convicção. O ex-capitão podia não ser o presidente ideal nem mesmo para alguns dos que votaram nele, mas estava apoiado por um tripé que lhe garantia sustentação: o ministro Paulo Guedes na economia, o ministro Sérgio Moro na Justiça e o núcleo militar, como "poder moderador" e executor. 

Treze meses se passaram desde então.
Paulo Guedes nunca esteve tão escanteado. A crise do coronavírus transformou em pó o discurso da responsabilidade fiscal do economista, obrigado a escancarar as comportas do Tesouro que ele vigiava com zelo e obstinação. Junte-se a essa desgraça, a existência de um chefe inconformado com a enorme possibilidade de ter seu capital político erodido pela crise. "Paulo, abra as comportas". Como a ordem de Bolsonaro e a natureza do posto Ipiranga colidissem, a missão foi transferida para o general Braga Netto, de DNA desenvolvimentista e formação que faz de cada missão dada uma missão cumprida. 

Na foto dos ministros que ladeavam Bolsonaro no calamitoso discurso de ontem, o fato de Guedes ser o único ministro de máscara (e sapatos descartáveis de hospital!) parecia querer mostrar que ele já não pertencia mais àquele time.

Moro, o símbolo da luta contra a corrupção e a haste ética do tripé de Bolsonaro, foi-se da pior forma possível. De chancela moral do presidente, passou a seu acusador. O figurino de paladino da Justiça, terror de corruptos e algoz da iniquidade, fez com que cada frase do seu pronunciamento de ontem, emitida na mesma baixa frequência com que costumava interrogar os réus da Lava Jato, entrasse como uma faca no peito de Bolsonaro.

Horas depois da fala de Moro, o presidente sangrava a céu aberto nas redes sociais. Pela primeira vez, perdeu milhares de seguidores nas plataformas da internet. Nos grupos bolsonaristas de Whatsapp, o que se viu foi uma debandada maciça e tristemente silenciosa de apoiadores decepcionados. Com mais ou menos estridência, desembarcaram da canoa do bolsonarismo empresários, comentaristas políticos e tios do zap.
Restaram os militares.
Restaram?

Por enquanto, sim.

Bolsonaro havia se reaproximado do núcleo de generais do Planalto - cujo limite foi expandido com a chegada de Braga Netto, na Casa Civil, e do almirante Rocha, no gabinete presidencial. No Palácio e no comando de programas oficiais, os militares passaram a ser uma onipresença no governo, vozes a legitimar cada escolha do presidente.

A fala de Moro quebrou também essa haste do tripé.

Perplexos e consternados ficaram os militares do Planalto. Ao menos um foi visto tirando um cisco dos olhos molhados durante a fala do ex-ministro da Justiça. Não que os generais desconhecessem as inclinações insubordinadas do ex-capitão. Mas as revelações de suas tentativas de usar a Polícia Federal em benefício próprio -feitas de forma explícita e, acima de tudo, feitas por Sérgio Moro—deixaram os generais no chão.

No Planalto e fora dele, na ativa e na reserva, os militares, em sua esmagadora maioria, veneram o ex-juiz que encarnou a luta anticorrupção, além do antipetismo, sentimento inalienável da categoria.

Os generais do Planalto consideraram "gravíssimas" as acusações de Moro contra o presidente, e "desastroso" o discurso de Bolsonaro feito horas depois da demissão do ex-ministro. Mas consideram que: 

1) Deixar o governo neste momento está fora de cogitação. Significaria abandono de "missão" e a entrega de Bolsonaro aos políticos do Centrão e ao núcleo ideológico, formado por fanáticos olavistas e comandado pelos filhos do presidente.

2) Recomendar a renúncia seria, além de um passo institucional indevido, inútil. Bolsonaro não cogita a possibilidade.

3) O limite para a sustentação do presidente será uma eventual culpabilização de Bolsonaro por crime de responsabilidade ou crime comum. Em quaisquer dos casos, os generais pretendem se manter com o ex-capitão até o fim dos ritos, seja o do impeachment, seja o de um processo iniciado na Procuradoria Geral da República. Como afirma um interlocutor do Palácio do Planalto parodiando a frase dita por um peemedebista no impeachment de Dilma, os militares "segurarão a alça do caixão até a cova". Cumprido o ritual do sepultamento, se houver, terão a consciência do dever cumprido e a satisfação de, agora, sim, estarem em casa. Terão Hamilton Mourão.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Uma palestra sobre duas pandemias, a global e a nacional - Paulo Roberto de Almeida

Pandemia global e pandemia nacional: 
um futuro pior que o passado


Paulo Roberto de Almeida
Texto auxiliar para palestra online
Universidade Salvador (Unifacs)
Curso de Relações Internacionais – NERI
Quinta-feira, 23/04/2020, 20hs, via Instagram.


Pandemia global e pandemia nacional: cada qual no seu contexto
Todos sabem o que é a pandemia global do Covid-19; ela não necessita de mais apresentações. Cabe certa dúvida, contudo, quanto ao que seria a “pandemia nacional” da segunda parte do título: ela não tem nada a ver com o Covid-19, ainda que conviva com ele, mas apenas casualmente, como elemento paralelo, ou ator coadjuvante na outra tragédia que o Brasil enfrenta no momento presente: a falência da governança nacional, atingindo um pouco todas as instituições, adicionalmente ao esgotamento da inteligência e a descoordenação de várias instâncias da federação, com conflitos entre poderes e acrimônia entre seus principais personagens. Essa pandemia nacional é representada pela incompetência total da chefia do executivo, não apenas em exercer liderança para fazer face ao desafio da pandemia global, mas sobretudo em atuar, ao que parece deliberadamente, a contrário senso de toda e qualquer noção de responsabilidade no cumprimento de suas funções intransferíveis como chefe de governo, como dirigente da nação. A pandemia nacional possui nome e sobrenome, mas a sua nova designação também poderia ser algo como o “coveiro da democracia brasileira”. 
Venho agora ao subtítulo, “um futuro pior que o passado”. Eu o copio da palestra feita na Academia Brasileira de Letras, em 29 de agosto de 2019, pelo embaixador Rubens Ricupero, no 6º ciclo de conferências “O que falta ao Brasil?”, cujo título completo era exatamente este: “Um futuro pior que o passado? Reflexões na antevéspera do bicentenário da Independência” (disponível em formato de vídeo no site da Academia, neste link: http://www.academia.org.br/eventos/um-futuro-pior-que-o-passado-reflexoes-na-antevespera-do-bicentenario-da-independencia). Meu subtítulo apenas retirou o ponto de interrogação, uma vez que, no momento em que escrevo, tanto a pandemia global, quanto a nacional permitem confirmar amplamente que, sim, nosso futuro será pior do que o passado. Quanto pior ainda não sabemos, mas pressentimos.
Bem entendido, essa deterioração das condições globais sob o impacto do Covid-19 não é exclusiva ao Brasil: todos os países, todas as economias, grandes e pequenas, todas as nações, desenvolvidas e em desenvolvimento sofrem e sofrerão o impacto, não apenas das mortes – que podem até ser limitadas em comparação com a pandemia precedente, a chamada “gripe espanhola”, que pode ter vitimado entre 50 e 100 milhões de pessoas em diferentes países, entre os anos de 1917 e 1919 –, mas sobretudo o impacto devastador de seus efeitos econômicos e no terreno social, numa escala provavelmente maior do que aqueles provocados pela Grande Depressão dos anos 1930 (bem mais grave do que a mera crise da bolsa de Nova York em outubro de 1930, praticamente reabsorvida em meados de 1930). 
Mas é no Brasil que as duas pandemias prometem causar uma destruição tão maciça ou ainda mais importante quanto as crises econômicas que já enfrentamos em nossa história, sendo que a última, à qual eu chamo de Grande Destruição do final do regime lulopetista, foi bem mais ampla e recessiva do que os dois anos de recessão vividos pelo Brasil em 1930 e 1931. Como já disse um humorista, o “macaco Simão”, todos os países enfrentam um poderoso inimigo; só o Brasil enfrenta dois: o Covid-19 e o Bolsovirus, especialmente destruidor das instituições democráticas e potencialmente genocidário, igualmente, ao se contrapor, pelo exemplo e pelos dizeres, às medidas de contenção repetidamente recomendadas pelas autoridades sanitárias e até pela maioria do seu próprio governo, que ele se empenha impavidamente em desacreditar.
Não creio ser necessário retomar, neste momento e neste espaço, os impactos mais gerais, inclusive geopolíticos, do Covid-19 em escala mundial, inclusive porque a pandemia ainda não cessou de produzir os seus efeitos; aliás, um sem número de organizações internacionais, think tanks, entidades oficiais nacionais, acadêmicos e pesquisadores de todas as especialidades vêm oferecendo um número incrivelmente alto de dados, estudos prospectivos, simulações sobre a evolução da epidemia global e todos os tipos de informações e especulações sobre o que será o mundo sob o impacto do evento mais devastador desde as duas guerras globais do século XX. Eu mesmo já ofereci, em meados de março passado, um pequeno estudo contendo minha visão sobre as “Consequências geopolíticas da pandemia Covid-19”, consolidando comentários pessoais sobre as mudanças em curso no cenário global sob o impacto do surto pandêmico, em especial no que se refere aos papeis dos EUA e da China (ver blog Diplomatizzando; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/03/consequencias-geopoliticas-da-pandemia.html). Não pretendo, portanto, voltar a discutir esses aspectos geopolíticos da primeira grande pandemia do século XXI (mas certamente outras virão, não se sabe se tão devastadoras quanto a atual).
Vou retornar, portanto, à “pandemia nacional”, uma epidemia de natureza basicamente política, que se caracteriza por uma deterioração sensível nas condições de governança, cujo vetor, um vírus ou um bacilo (segundo o que poderão detectar os analistas da área) que invadiu os tecidos e os pulmões do sistema político. Ele se espalhou pela sociedade, transmitido sobretudo por uma tribo de fanáticos, sectários e fundamentalistas – o que é uma tripla redundância –, colocadas a serviço de um candidato a ditador, que jamais terá chances de confirmar qualquer monopólio de poder, mas que paralisa o funcionamento normal das instituições, e dificulta o próprio processo de ajustes econômicos que se encontrava em curso desde o governo anterior. 
A pandemia nacional provocada pelo “Bolsovirus” ameaça provocar um real colapso no âmbito da outra pandemia, a do Coronavirus global, empilhando mortos e mais mortos em diversas capitais do país. Tal se dá em vista dos exemplos criminosos oferecidos pelo chefe de Estado, um irresponsável que carrega justamente o ônus humano pela sua total falta de responsabilidade no sentido de se conformar às recomendações sensatas, e absolutamente necessárias, das autoridades sanitárias, que ele se encarregou de jogar no descrédito todas as vezes que insistiu em contrariar os protocolos epidemiológicos e até o simples bom senso. Numa área específica, porém, a “pandemia nacional bolsonariana” já acarretou um desgaste sensível para o país, a sua imagem internacional, em função de uma política externa tresloucada – que sequer existe como programa formalizado – e de uma diplomacia ainda mais esquizofrênica. 

Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty
Já dediquei a essa política externa e a essa diplomacia um primeiro livro, escrito muito rapidamente, em meados de 2019, apenas como reação aos primeiros episódios, absolutamente surpreendentes, de uma condução canhestra, amadora, mal informada, inadequada, desastrosa para os padrões usualmente de grande qualidade substantiva da diplomacia profissional. Este livro – Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty – encontra-se livremente disponível, em duas edições, no mesmo blog Diplomatizzando, e deve preceder uma outra obra, com análises mais focadas em questões concretas da agenda diplomática, e menos nos textos e discursos do chanceler acidental, que não parece ter muita importância doutrinal ou operacional, seja na determinação conceitual (se tal existe, o que é altamente duvidoso) da política externa, ou na condução efetiva da diplomacia, que não cessa de surpreender diplomatas e observadores externos. 
O que está ocorrendo atualmente no Itamaraty é absolutamente inédito em sua história quase bissecular: não existem registros, em quaisquer épocas, de um chanceler que tenha antagonizado tanto a Casa de Rio Branco, e a própria política externa, quanto o faz atualmente aquele a quem eu chamo de chanceler acidental, Ernesto Araújo. Eu o chamo assim pois que ele conquistou esse cargo não por ter se distinguido, ao longo da carreira, por eminentes serviços prestados ao Itamaraty ou à política internacional do Brasil, tornando-o uma personalidade conhecida, capaz, portanto, de reunir ao apoio da maioria dos diplomatas ou de conhecidos especialistas em relações internacionais. Não; ninguém o conhecia fora do ambiente restrito em que circulou na diplomacia. Tanto é verdade que, assim que ele foi anunciado, na tarde do dia 14 de novembro de 2018, era virtualmente desconhecido da maior parte dos jornalistas, analistas acadêmicos, e até dos próprios colegas. Apenas naquele momento foi conhecido o blog que ele havia criado para apoiar a candidatura do capitão: Metapolítica 17: contra o globalismo
Muitos dos que leram suas postagens pré-eleitorais, assim com várias outras, escritas nos dias e semanas seguintes, ficaram estarrecidos ao ler as invectivas saídas da mente perturbada do desconhecido colega: carregadas do olavismo mais exacerbado, de um pensamento de extrema direta, bastante agressivo contra o suposto marxismo, do esquerdismo inaceitável que parecia grassar e abundar no Itamaraty, essas postagens já antecipavam a intenção até então secreta daquela turma. O objetivo, finalmente exposto, era o de extirpar tudo o que representasse esquerdismo no cenário político nacional. Foi só aí, também, que os jornalistas especializados puderam, finalmente, ler o artigo que ele havia publicado um ano antes na revista do IPRI, os Cadernos de Política Exterior: “Trump e o Ocidente”: tratava-se de um ajuntamento heteróclito de ideias confusas, em nada condizente com o espírito e os objetivos da revista, misturando religião e política, história e filosofia, mas que em resumo anunciava o salvamento do Ocidente cristão por ninguém menos que o presidente dos Estados Unidos.  
Foi a partir dali, ou seja, nas semanas finais de 2018, que os colegas diplomatas e os observadores externos se deram conta de que muita coisa iria mudar no Itamaraty, mas ninguém antecipava, sequer imaginava, a extensão e a profundidade das mudanças introduzidas a partir de janeiro de 2019, a começar pela guilhotina geracional que ceifou as chefias mais antigas (que a do próprio chanceler) das nove subsecretarias até então existentes: foram todas substituídas, com uma única exceção, por ministros de segunda classe, que passaram a chefiar embaixadores mais antigos, numa reprodução daquela inversão de hierarquias que os militares chamam de “coronéis mandando em generais”. Toda a estrutura da Secretaria de Estado foi também alterada, mas secretamente, sem qualquer consulta aos diplomatas, feita com um pequeno grupo de amadores no bunker do Centro Cultural do Banco do Brasil, que serviu de escritório para a equipe de apoio ao novo governo, nas semanas finais de 2018. 

O papel do Itamaraty no âmbito de um governo altamente disfuncional
A política externa tem, realisticamente, um papel secundário em face dos grandes problemas nacionais. A maior parte desses problemas são “made in Brazil”, e devem receber respostas e soluções puramente nacionais. O ambiente externo tem sido, na verdade, favorável ao crescimento dos países que souberam aproveitar os impulsos e as oportunidades externas para alavancar avanços internos. A política externa poderia ter um papel relevante na agenda nacional se o Brasil fosse mais aberto ao comércio internacional e bem mais receptivo aos investimentos estrangeiros e associações com os países mais avançados tecnologicamente, fatores relevantes para projetos nacionais de desenvolvimento. Uma comparação entre os países de mais alta renda per capita e seus respectivos coeficientes de abertura externa comprovam esta assertiva. 
Este deveria ser um argumento suficientemente convincente para justificar um processo de abertura comercial e de maior aproximação aos países líderes do desenvolvimento tecnológico e cultural no mundo. Uma política externa compatível com os interesses nacionais precisaria se concentrar numa agenda desse tipo. Mas pode o Brasil encarar, internamente, a ampliação de facilidades no comércio exterior, com o desmantelamento de entraves administrativos e sistêmicos a uma elevação dos fluxos de exportações e de importações? Tal processo teria de ser paralelo e coincidente com um processo de diminuição da carga tributária sobre as empresas, insuportável sob qualquer critério que se examine. 
Paralelamente seria iniciado um esforço de revisão completa das bases de funcionamento da união aduaneira do Mercosul, a começar pela alternativa entre: (a) unificação de suas regras de aplicação; ou (b) negociação de um protocolo adicional ao Protocolo de Ouro Preto (POP), introduzindo a possibilidade de negociação externa individual de novos acordos de liberalização, com preservação da cláusula de nação-mais-favorecida para dentro. Sob a segunda hipótese, o Brasil poderia negociar outros acordos comerciais, com a Aliança do Pacífico e até com os EUA, prevendo redução de tarifas, abertura a comércio de serviços, defesa de propriedade intelectual e regras estáveis para investimentos, abertos aos membros do Mercosul, se estes o desejassem. 
O acordo com a UE, concluído em junho de 2019, não deve entrar em vigor, não apenas devido aos problemas da pandemia, mas também em função da postura anti-ambientalista do próprio presidente: na época, o parlamento da Áustria, e o próprio executivo francês, sinalizaram que teriam dificuldades em apoiar um acordo com um país que não cumpre o mínimo estabelecido no Acordo de Paris sobre aquecimento global, ou que não respeita outros padrões ambientais e humanitários condizentes com o que se tem estabelecido como normas mínimas no contexto multilateral.
Por outro lado, não há muito que o Brasil possa fazer no plano das negociações comerciais multilaterais, seja no âmbito da Rodada Doha (paralisada e provavelmente moribunda). O que cabe, sim, é examinar os demais acordos plurilaterais existentes no sistema multilateral de comércio, verificar a compatibilidade com o processo (a ser conduzido) de reforma na política comercial nacional, e considerar a hipótese de aderir a esses outros instrumentos de abertura e facilitação.
A política industrial está intimamente relacionada à política comercial, e, na sua vertente externa, deveria dedicar-se a atrair o máximo possível de investimentos estrangeiros e incentivar associações com o que há de mais tecnologicamente avançado no mundo. Independentemente de o Brasil ser ou não membro da OCDE, caberia associar-se ao Comitê de Indústria dessa organização e passar a examinar todos os protocolos, códigos e demais normas voluntárias estabelecidas naquele âmbito, de maneira a colocar a indústria brasileira num contexto de plena conformidade com os padrões internacionais nessa área. 
A política externa precisa retornar aos padrões habituais de profissionalismo e de isenção na análise técnica dos problemas que sempre estiveram afetos ao Itamaraty. Ambos, a política e a instituição, foram bastante deformados nos anos de lulopetismo diplomático, quando uma e outra foram submetidas e ficaram ao sabor das preferências e alucinações partidárias, quando não a serviço de outras causas que não o interesse nacional. A mesma realidade parece se reproduzir atualmente, sob o olavo-bolsonarismo diplomático, que possui muito mais deformações do que jamais tínhamos visto sob o lulismo. A ideologia é muito mais explicita, desde a origem e atualmente, o que torna a nossa política externa errática e altamente instável, pois as expressões equivocadas das políticas nessa área têm de ser corrigidas posteriormente pelos setores prejudicados, como o agronegócio, por exemplo. O Itamaraty não teria nenhum problema em cumprir uma nova pauta na política externa, pois sempre foi muito disciplinado no cumprimento das diretrizes do chefe do executivo, mas ele necessitaria de uma exposição coerente e abrangente sobre quais são as prioridades na frente externa, o que até o presente momento nunca ocorreu. 

Qual a atuação do chanceler acidental no contexto do governo atual?
Desde antes da posse do governo Bolsonaro, a partir de sua participação clandestina na campanha eleitoral presidencial no segundo semestre de 2018 (contra recomendações da Comissão de Ética da Presidência da República), assim como por suas declarações agressivas contra os diplomatas do corpo profissional do Itamaraty e contra a política externa do governo Temer e as dos governos anteriores, amplamente divulgadas pela imprensa, nos dois últimos meses do ano, ficou meridianamente claro que o escolhido pelo presidente eleito para chefiar o Itamaraty não possuía condições políticas e o necessário equilíbrio pessoal para se desempenhar em tão importante cargo na estrutura governamental do Brasil, inclusive por sua interface externa, colocando o Brasil no âmago das relações internacionais em todas as quais categorias (bilateral, regional, multilateral e em foros especializados).
A revelação chocante da existência de seu blog (não identificado com seu nome pessoal), “Metapolítica 17: contra o globalismo”, com postagens altamente controversas sobre a política internacional, mas também com críticas acerbas aos seus próprios colegas, chocou os diplomatas e observadores externos, ao evidenciar uma agressividade verbal só encontrada, até aquela época, no guru presidencial, um autoproclamado filósofo, mas que na verdade é um sofista expatriado nos Estados Unidos, de onde dispara invectivas contra todos aqueles que não partilham de suas poucas ideias políticas, ou de seus imensos equívocos em matéria de política internacional. Desde então, declarações, postagens, discursos e entrevistas se mantêm na mesma linha, com agressões aos supostos inimigos do Brasil, que seriam todos comunistas, ou no mínimo esquerdistas.
O fato é que o, até junho de 2018, simples ministro de segunda classe Ernesto Araújo enveredou pela construção de um perfil político que jamais tinha sido revelado em seus 30 anos precedentes de carreira na diplomacia profissional. Pode-se dizer, sem margem de erro, que a despeito de opiniões pessoais presumivelmente de direita – mantidas cautelosamente sob reserva até então –, o diplomata em questão construiu artificialmente uma personalidade que nunca tinha exibido anteriormente: a de um cruzado da extrema-direita, um inimigo do multilateralismo (que é a base principal da atividade diplomática desde o nascimento da ONU e de suas agências especializadas), um opositor das causas mais comuns na agenda mundial de negociações em grandes temas, que ele desdenhosamente passou a chamar de globalismo, climatismo, comercialismo, marxismo cultural, ideologia do gênero, afastamento da religião e vários outros ismos combatidos por um dos patronos à sua candidatura à chancelaria – o guru expatriado –, assim como pelos áulicos mais próximos, sobretudo da família Bolsonaro.
Depois dos artigos no blog, o seu discurso de posse, no dia 2 de janeiro, chocou colegas diplomatas e observadores dos meios políticos e da mídia, por destoar daquilo que normalmente se esperaria de um chanceler. O choque, aliás, ocorreu no dia anterior, na posse do próprio presidente, quando o chanceler, secundado pelo chefe de Estado, disse, na presença do Secretário de Estado dos EUA, presente à cerimônia, ser a favor da instalação de uma base americana no Brasil, no que foi imediatamente rechaçado por todos os ministros militares e outros altos oficiais trabalhando para o governo. Logo em seguida, demonstrou explícito apoio aos planos do presidente americano para forçar uma mudança de regime na Venezuela, no que teve, mais uma vez, de ser contido pelos mesmos altos responsáveis das FFAA.
Diversos outros episódios se sucederam, absolutamente inéditos para os padrões da diplomacia brasileira profissional, sempre aderente aos valores e princípios da Carta constitucional e às normas do Direito Internacional e resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas. O caso da Venezuela talvez seja o mais emblemático da falta de rumos e da trágica esquizofrenia da atuação do chanceler e de seus mentores na presidência e na CREDN-CD. Chegou-se a uma decisão inexplicável, tomada ao início de março de 2020, no sentido de fechar todas as representações brasileira no país e retirada total do pessoal diplomático e consular (inclusive descredenciamento de cônsules honorários e dispensa de todo o pessoal de apoio), ademais dos adidos das FFAA, da ABIN e da Receita, deixando as centenas, talvez milhares, de brasileiros residente totalmente desassistidos e sem qualquer contato com representação terceira.
O caso da China é diferente, na natureza e na forma, mas não se distingue no que se refere à gravidade das afrontas feitas ao nosso principal parceiro comercial. Desde antes da posse do chanceler, ele acusava uma suposta “China maoísta” – que não existe há mais de 40 anos – de pretender estender o comunismo no mundo. Mais graves foram as ofensas gratuitas lançadas contra a China pelo presidente da CREDN-CD, objeto de uma deplorável troca de notas e tweets entre o chanceler e o embaixador da China, depois dirimidas por telefonema entre os dois chefes de governo. Mas elas foram seguidas, pouco depois, por uma lamentável postagem do ministro da Educação, sem quaisquer desculpas que deveriam ter sido apresentadas pelo governo brasileiro ou por sua chancelaria, como solicitado pelo embaixador chinês.
Existem outras graves questões de direito internacional que estão sendo confrontadas constantemente pela atual chefia da chancelaria– ou seus mandatários efetivos –, em total afronta a compromissos assumidos pela diplomacia brasileira em decisões formais do sistema da ONU ou inscritas em normas consagradas do multilateralismo contemporâneo. As raras notas expedidas pelo Itamaraty – que não devem ter sido redigidas por diplomatas, em vista do Português sofrível e da ausência quase completa de conceitos diplomáticos – por ocasião da morte do general iraniano Suleimani, no Iraque, quando da apresentação do “plano para a paz na Palestina” do presidente Trump – sequer endossada por qualquer outro aliado americano na OTAN –, por ocasião do voto a propósito das sanções unilaterais americanas contra Cuba, bem como em diversos outros episódios setoriais (direitos humanos, questões de gênero ou de minorias, temas ambientais ou sociais e laborais, etc.), não se conformam a nenhum padrão conhecido de nossas tradições diplomáticas quase bisseculares. Essas notas, assim como outras tomadas de posição da chancelaria atual, constituem uma vergonha para o corpo profissional; elas atuam, ainda mais decisivamente do que as intervenções orais, para diminuir o prestígio e a imagem do Brasil no plano mundial.
Independentemente de questões propriamente diplomáticas, ou seja, integrando a agenda mundial de questões que devem ser tratadas nos seus canais próprios, as tomadas de posição pessoais do chanceler, sobre questões filosóficas, políticas ou religiosas, evidenciam uma personalidade altamente problemática, sem o necessário equilíbrio emocional para representar o Brasil nas esferas internacionais. Basta lembrar as agressões feitas por ele, em algumas secundando o presidente, contra mandatários de países vizinhos – o então candidato à presidência argentina, depois eleito presidente –, ou então, os esforços dispendidos em direção de líderes de extrema direita de determinados países, alienando relações tradicionais mantidas com democracias de mercado com fortes interfaces bilaterais com o Brasil. O auge dessas tomadas de posição profundamente repulsivas para o histórico de autonomia sempre exibido pelo Brasil no plano externo é representado por uma adesão gratuita, unilateral, em direção, não apenas dos Estados Unidos, mas ao seu atual presidente, o que é profundamente perturbador para o futuro das relações bilaterais, regionais e hemisféricas do Brasil.
Outras questões, altamente problemáticas, não têm tanto a ver tanto com a política externa e sim com o funcionamento da chancelaria, ou seja, com o ambiente próprio à diplomacia profissional. Nesse âmbito, existem diversos problemas, atinentes bem mais ao direito administrativo, em conexão com os métodos de trabalho e normas de funcionamento do próprio Itamaraty, atualmente vivendo sob certo stress funcional e alta tensão interna, dadas as já referidas inversões de hierarquia e várias reformas perturbadoras para os padrões tradicionais de trabalho da Casa. Aparentemente, o Itamaraty se encontra politicamente paralisado, por falta de governança racional, no plano interno, e por indevidas e amadoras intromissões externas, que são as de quem realmente decide as principais orientações da política externa.
Em face dessas constatações – válidas não apenas para a política externa, no sentido estrito, mas possivelmente aplicáveis também a outros aspectos das políticas públicas –, pode-se tranquilamente confirmar o sentido implícito ao subtítulo do presente ensaio: sim, tudo indica que o futuro do Brasil, de curto e de médio prazo, será bem pior do que aquele conhecido no passado relativamente recente. Tal se dá quase exclusivamente em função da grave pandemia política que aflige atualmente o país, sem que se possa prescrever quaisquer vacinas ou métodos curativos apropriados, uma vez que tal pandemia nacional se apresenta sob formas e conteúdos inéditos em toda a nossa história política. Tinha razão o embaixador Rubens Ricupero em sua conferência de 2019 na ABL, bastando retirar a interrogação do título: recomendo que todos a assistam. 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 23 de abril de 2020

Profunda vergonha de nossa atual diplomacia - Paulo Roberto de Almeida

Como diplomata, ou melhor, como simples cidadão brasileiro, estudioso de nossa história diplomática, lamento profundamente que a atual diplomacia bolsonarista tenha descido tão baixo na escala dos princípios e valores que sempre foram os nossos no trabalho normal da política externa, de um país outrora integrado e ativo nas frentes abertas à nossa inserção internacional pela via da cooperação em prol da humanidade.

O Brasil hoje virou um pária no cenário mundial, desprezado pelas mais vibrantes democracias, ignorado pelos chefes de Estado que possuem visão de ação conjunta em prol da Humanidade.

Como cidadão, mas também como servidor do Estado, declaro-me em total oposição a tudo o que o presente (des)governo representa supostamente em nome do povo brasileiro.

 Solitariamente, apenas em função de minha própria consciência, mas também confiante numa função voluntariamente assumida de representação da quase totalidade do corpo diplomático do Brasil, declaro que essa diplomacia e esse governo não representam o povo brasileiro e, ao contrário, envergonham profundamente a nação.

PS.: Minha nota foi formulada nas primeiras horas da manhã desta sexta-feira, 24 de abril, sem qualquer conexão com a demissão do ministro da Justiça Sergio Moro, e se referia exclusivamente ao ambiente diplomático e à política externa governamental.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 24 de abril de 2020

terça-feira, 21 de abril de 2020

Consequências geopolíticas da pandemia Covid-19 - Paulo Roberto de Almeida

Nova postagem, na medida em que o debate sobre o Covid-19 assume importância cada vez mais em nosso país. Mas o artigo trata apenas dos aspectos históricos e internacionais da questão.

Consequências geopolíticas da pandemia Covid-19

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: debate público; finalidade: esclarecimento pessoal] 

Grandes mudanças nos equilíbrios econômicos e políticos em escala global costumam ocorrer em consequência de eventos ou processos de grande impacto nacional e mundial: desastres naturais – catástrofes da natureza, epidemias, justamente – e, mais frequentemente, guerras civis e revoluções (domésticas) e guerras entre Estados. Estas são mudanças que podem ocorrer em curto ou médio prazo, e podem ajudar, ou postergar, mudanças “naturais” que já vinham ocorrendo mais gradualmente, sob o peso da demografia, dos grandes deslocamentos de populações – invasões “bárbaras” no Ocidente entre a Antiguidade e a Idade Média, por exemplo – e, mais frequentemente, como resultado de avanços materiais e progressos tecnológicos, que alteram, gradual ou repentinamente, os modos de produção e de intercâmbio entre sociedades e regiões inteiras: disseminação de novas culturas e criações (intercâmbio de espécies nos grandes espaços abertos, como descrito por Jared Diamond em seu clássico Armas, Germes e Aço), invenções práticas (arado, contabilidade de partida dobrada, caravelas, revolução científica, máquinas a vapor, motor a explosão, válvulas, transistores, etc.) e novidades nos meios de intercâmbio (moeda, lettera di câmbio na Idade Média, bill of exchangetelegráfico no século XIX, transações financeiras instantâneas na era contemporânea). Dentre as grandes calamidades epidêmicas, permanecem paradigmáticas, na história da humanidade, a Peste Negra na Europa do século XV – que, contraditoriamente, representou um crescimento da produtividade econômica, ao diminuir a população total – e a “Gripe espanhola”, em 1918-19, que pode ter vitimado entre 50 e 10 milhões de pessoas.
Existem outras mudanças, de natureza contingente ou conjuntural, que também podem alterar profundamente as relações entre Estados, impérios, nações, tanto quanto a evolução interna das sociedades, ações que são o resultado de decisões de dirigentes, atuando sob o impacto de paixões momentâneas, cálculos estratégicos ou pressão das circunstâncias: guerra de Troia, queda de Roma imperial, expansão árabe do islamismo e cruzadas vindas da Europa cristã, invasão mongol do império Song, guerras entre impérios bizantino e persa, invasão otomana do Império Romano do Oriente e nas franjas balcânicas da Europa e na África do norte, e, finalmente, expansão europeia a partir dos Descobrimentos e consequente dominação ocidental sobre o resto do mundo pelos cinco séculos seguintes (até a Segunda Guerra Mundial pelo menos). Acredito que se possa colocar entre essas mudanças de tipo contingente a decisão de um novo Secretário-Geral do PCUS da União Soviética de não continuar preservando as estruturas atrasadas do planejamento centralizado e o duro regime de censura autocrática do Partido. A implosão subsequente do socialismo na Europa foi a “grande transformação” na política e na economia global desde a Grande Guerra, da qual tinha justamente emergido a contestação bolchevique à economia capitalista e às democracias de mercado. Estas são as grandes mudanças de impacto monumental nos últimos três mil anos (desde a guerra de Troia, tão mítica quanto possa ser), ou desde os impérios romanos (república e império) e chineses (várias dinastias sucessivas), até o século XX. 
Ao lado dessas mudanças “objetivas”, existem as grandes mudanças “imperiais” que resultam de choques entre pretensões hegemônicas concorrentes, em diversas regiões: no caso da Europa, o chamado “equilíbrio de potências” do final do século XIX foi precedido de guerras devastadoras entre os impérios britânico, francês, dos Habsburgos, dos czares e muitos outros. A Revolução francesa de 1789 – independentemente do fato objetivo que ela atrasou relativamente o capitalismo na França, segundo Hobsbawm, quando a Grã-Bretanha surfava praticamente sozinha na onda da primeira revolução industrial – representou, em seus muitos episódios e desdobramentos – sob o Diretório, Consulado e Império napoleônico –, a maior alteração conhecida até então naquela ponta da Eurásia: guerras napoleônicas, com o fim do Império Romano Germânico, da Liga Hanseática, impacto nas dinastias da península ibérica e, a partir daí, nas suas colônias do Novo Mundo, que caminharam uma a uma para a independência política, depois das treze colônias da América do Norte pouco antes. 
A segunda revolução industrial sinalizou o processo que os economistas historiadores chamam de “Grande Divergência”, ou seja, o aprofundamento da distância entre as nações industrialmente avançadas e as dependências coloniais e nações periféricas que preservaram essa status praticamente até a contemporaneidade; apenas recentemente, a partir da terceira onda da globalização (desde os anos 1980), o processo se encaminha para uma Convergência que atinge mais decisivamente os novos países industriais que se inseriram nas grandes cadeias de valor da nova interdependência global. Mas, o evento ainda mais decisivo para uma alteração radical nas relações interimperiais e entre grandes economias foi representado pela Grande Guerra (1914-1918), que modificou profundamente não apenas a geopolítica do mundo contemporânea, mas também as bases de funcionamento da economia global. Ao lado das demais mudanças políticas – fim de impérios: alemão, austríaco, russo, otomano; criação de novos Estados, no quadro dos princípios wilsonianos das negociações de 1919 –, o que repercutiu gravemente pelo resto do século foi a intervenção estatal na vida econômica, com toda a panóplia do regulacionismo intrusivo e da assunção pelo Estado de inúmeros setores de interesse público: não apenas energia, transportes e comunicações, mas também indústrias ditas “estratégicas”. 
O multilateralismo nascente, na Liga das Nações, não foi capaz de evitar o crescente apelo ao nacionalismo econômico, ao protecionismo, às políticas de “beggar-thy-neighbour” (empurre a crise para o seu vizinho). Foi o que justamente ocorreu a partir da crise da bolsa de Nova York, em outubro de 1929 (aprovação de novas tarifas americanas, em 1930), mas sobretudo a partir da quebra de bancos em 1931, que precipitou o mundo numa nova e gigantesca crise: fim da conversibilidade, restrições quantitativas, desvalorizações agressivas e, enfim, a Grande Depressão que se arrastou praticamente até a Segunda Guerra Mundial. Esta precipita movimentos que já tinham começado na Grande Guerra: erosão paulatina dos grandes impérios europeus e emergência de duas grandes potências antagônicas, que vão marcar os quarenta anos seguintes de Guerra Fria, sob o signo do terror nuclear e da oposição irredutível entre o mundo socialista e o capitalista, com um Terceiro Mundo espremido entre os dois. A grande divisão geopolítica do mundo, resumida nas obras clássicas de John Lewis Gaddis, nunca representou, na verdade, um congelamento do poder mundial, pois que outras potências, grandes e médias, continuaram emergindo e alterando gradualmente o verdadeiro nervo central dos equilíbrios mundiais, o poder econômico, os novos “Estados comerciais”, na caracterização de Richard Rosencrance (Rise of the Trading State: Commerce and Conquest in the Modern World; mais aplicável a Japão, Alemanha e outros).
A ordem econômica multilateral de Bretton Woods seguiu uma trajetória de sucesso a partir do segundo pós-guerra, com percalços eventuais, sobretudo representado pela quebra do padrão ouro-dólar (1971-73) e suas crises habituais absolutamente “normais”: do petróleo (1973-79), da dívida externa dos países emergentes (1982-90), das crises financeiras dos países asiáticos e da Rússia (1997-98), com seus efeitos no resto do mundo. A crise de 2008-09, precedida da bolha imobiliária e das instituições financeiras (2007-08), esteve mais centrada nos próprios países avançados, num momento em que a China já despontava como a segunda grande potência econômica mundial, ao lado dos velhos parceiros-inimigos do CSNU, que são também as potências nucleares “autorizadas”.
Cabe agora contemplar o cenário atual, absolutamente inovador por causa da irrupção da pandemia do Codiv-19, cuja “globalidade” deve provocar imensos efeitos econômicos em todo o mundo e também mudanças geopolíticas no momento imprevisíveis, mas que podem confirmar certas tendências já presentes na fase pós-Guerra Fria. Nos 30 anos seguintes, o mundo parecia se encaminhar para um cenário de “convivência pacífica” entre grandes contendores econômicos, comerciais e tecnológicos, ou seja, a substituição da antiga Guerra Fria geopolítica da era nuclear para uma nova Guerra Fria Econômica, que teria tudo para se desenvolver de modo relativamente harmônico, não fossem as novas tendências surgidas a partir do relativo declínio das antigas potências industriais do século XX. Observadores otimistas – como Niall Ferguson, por exemplo – chegaram a cunhar o termo de “Chimerica”, que seria uma espécie de osmose entre as duas grandes economias planetárias, absolutamente complementares entre si, e que poderiam, se animadas pelos princípios cooperativos do multilateralismo econômico – Gatt-OMC, instituições de Bretton Woods, Ocde, etc. – contribuir para uma nova fase de prosperidade universalmente partilhada por países ricos, emergentes e em desenvolvimento, assim como ocorreu nas “trinta gloriosas”, as três décadas de crescimento contínuo no pós-Segunda Guerra, mas que beneficiaram mais os países avançados do que os socialistas (et pour cause) ou os países “subdesenvolvidos”. 
Infelizmente essa perspectiva de um reforço na interdependência global não se materializou, em virtude da introversão dos países ricos, em especial os EUA, no novo protecionismo comercial (mais padrões do que tarifas), no nacionalismo xenofóbico, nas políticas tendentes a preservar suas estruturas industriais já condenadas desde o declínio da segunda revolução industrial. Depois da fase otimista da “globalização”, o mundo caminhou para uma “desglobalização” moderada, até a irrupção catastrófica do Codiv-19 a partir do final de 2019, mas que só revelou toda a sua extensão nos primeiros meses de 2020. O que pode ocorrer a partir de agora, em termos de impacto na economia global, no emprego e na renda de centenas de milhões de pessoas, na política de diferentes regimes ao redor do mundo, é propriamente imprevisível, mas algumas tendências poderiam ser sinalizadas. 
Não há por que subestimar o impacto amplamente catastrófico da pandemia atual, em termos humanos, sociais e econômicos, mas existem, igualmente, consequências geopolíticas do Covid-19, com incidência progressiva ou continuada em termos de mudanças no cenário global, principalmente quanto aos papeis globais dos EUA e da China. Esta vem sendo acusada de responsável pela disseminação do elemento vetor, que se converteu na maior pandemia conhecida na história da humanidade, com capacidade de superar, talvez, em incidência, a chamada “gripe espanhola”, ainda que não dotada, provavelmente, da mesma letalidade que o influenza de cem anos atrás. No plano estritamente técnico, cabe registrar que o regime autoritário chinês pode, sim, ser acusado de ter postergado as primeiras reações ao novo vírus em sua província central, mas, uma vez aferida a seriedade e gravidade desse desafio, atuou prontamente, em bases científicas e em total cooperação com a OMS, para lugar contra seus efeitos mais nefastos em seu próprio território e em direção dos demais países. A hostilização ideológica da ditadura chinesa não contribui em praticamente nada para o esforço conjunto de combate à pandemia, tanto porque os ensinamentos e lições derivadas do dramático episódio chinês podem servir, e em alguns casos estão sendo, de aprendizado a novos países afetados pelo mesmo mal. A centralização dos esforços e a rápida introdução de medidas coercitivas de isolamento, de controle, prevenção e remissão dos vetores constituíram, possivelmente, para o virtual corte nas novas fontes de contaminação, sendo que novos casos detectados são todos importados. Ou seja, depois de estar na origem da pandemia, a China passa a oferecer know-how, cooperação técnica, equipamentos e pessoal aos países afetados, com destaque para a Itália e o próprio Brasil.
O que parece relativamente certo é que, sendo a epidemia global, sua reversão não se fará facilmente em bases puramente nacionais ou exclusivamente autocentradas, o que pode dificultar a necessária coordenação e cooperação entre países e organismos internacionais. Aqui se situam as possíveis consequências geopolíticas do Codiv-19, e tal perspectiva se situa inteiramente na capacidade de projeção externa das grandes economias do mundo atual, a partir de uma sólida base nacional. Desde os tempos nos quais a Grã-Bretanha se constituiu como o berço e o motor da primeira revolução industrial, não se assistia a uma mudança tão rápida na geopolítica do poder mundial. A Royal Navy exerceu uma preeminência notável sobre quase todos os oceanos no decorrer do século XIX, assim como a libra britânica e a City de Londres se constituíram na base incontornável dos grandes fluxos e circuitos de comércio, de investimentos, de finanças internacionais durante mais de um século, enquanto a Europa ocidental se alçava na liderança do mundo na passagem para a segunda revolução industrial (que também foi a era dos impérios e colonialismo contemporâneo). A Alemanha caminhou rapidamente para estabelecer sua supremacia no continente, e ao fazê-lo, devido à natureza de seu regime político, foi responsável por três guerras – começando pela de 1870, mas se prolongando mais enfaticamente em 1914 e 1939, a “segunda guerra de Trinta Anos” – que justamente destruíram o poderia europeu sobre resto do mundo, abrindo o caminho para a emergência dos dois grandes da era nuclear. 
Os Estados Unidos emergiram como a grande potência econômica e tecnológica no bojo da segunda revolução industrial e recuperaram, parcialmente, o papel econômico da Grã-Bretanha no comando da economia mundial no decorrer do século XX. Sua emergência como potência militar se dá apenas no decorrer e após a Segunda Guerra Mundial, mas sua base econômica continuou declinando relativamente, pari passu à emergência de novos competidores: Alemanha, Japão, e desde o início do novo milênio, a China. O fato de a atual liderança política nos EUA estar retrocedendo o país para um tipo semelhante – não similar – de isolacionismo como o conhecido no entre guerras pode acelerar o declínio relativo da potência hegemônica do pós-Guerra Fria, que o historiador Niall Ferguson gostaria que assumisse, como novo Colossus, o papel anteriormente exercido pelo Empire britânico. Este é um fato objetivo, confirmado pelas tendências detectadas no período recente, assim como pelas políticas implementadas no país, ambas coincidentes no retrocesso à introversão. 
Mais importante ainda, em termos geopolíticos, são duas outras tendências que podem ser detectadas em dois ambientes paralelos na governança dos grandes impérios, dois típicos símbolos do poder estatal, exemplificados nas figuras que Raymond Aron identificava como os personagens centrais desse poder: o soldado e o diplomata. O primeiro, sabe-se desde as lições de Clausewitz, representa a ultima ratio da defesa e da projeção do poder do Estado; o segundo também emerge na mesma época, ou seja, o Congresso de Viena, como o enviado formal e regular para administrar as relações cooperativas, ou seja, amistosas, e não bélicas, entre os países. O diplomata é uma espécie de acadêmico que está a serviço dos governos, ao passo que o soldado é o braço armado do Estado, para ser usado apenas em última instância. 
Paradoxalmente, a arrogância imperial faz com que a paranoia normal dos militares – que é necessária por pura coerência com os seus propósitos, de dissuadir e de ameaçar – seja projetada igualmente entre acadêmicos e diplomatas, com o que se constrói um ambiente pouco propenso à construção da interdependência global que deveria abrir uma nova era de prosperidade para o mundo. Ao eleger a China, não como mera concorrente tecnológica ou militar, mas como “adversária estratégica”, os paranoicos do Pentágono podem estar dando início a uma nova corrida armamentista, como já houve tantas no passado – entre Roma e Cartago, entre os impérios centrais que precipitaram a Grande Guerra, entre a URSS e os EUA, na Guerra Fria – e que pode desviar importantes recursos econômicos numa conjuntura de esgotamento dos Tesouros nacionais para cuidar do declínio demográfico e da pressão competitiva dos mercados emergentes. Por outro lado, a adesão de diplomatas e acadêmicos a essa visão confrontacionista do ambiente internacional impede, paralelamente, ou pelo menos retrasa, a integração econômica e cultural do mundo, tal como construída pela globalização microeconômica, aquela conduzida por empresas e indivíduos (em contraposição ao segundo tipo de globalização, a macroeconômica, isto é, aquela administrada por governos e entidades internacionais, e que pode ser, na verdade, uma antiglobalização).
Tal como eu vejo o atual cenário mundial no plano geopolítico, creio que as atuais tendências e políticasnacionalistas em ação em importantes países do Ocidente – uma manifestação que vem sendo identificada com o paranoico fenômeno do antiglobalismo – farão retroceder a interdependência global, mas elas serão tanto mais prejudiciais às economias nacionais quanto mais seus dirigentes adotarem o recurso ao nacionalismo protecionista. Na outra vertente do mundo, defendendo resolutamente a globalização, o livre comércio, a abertura aos investimentos – ainda que fazendo um uso malicioso das regras multilaterais que eventualmente regulem essas áreas, e recorrendo também a práticas desleais nos mercados globais –, situa-se a China atual, lançada com ardor na nova interdependência, embora agora temporariamente afetada pelo seu terrível surto epidêmico (em remissão). Como interpreto o curso da atual Guerra Fria Econômica em curso no mundo – com suas evidências tópicas simbolizadas pelo Belt and Road, 5G, conflitos em termos de propriedade intelectual de inovações tecnológicas, práticas desleais de comércio, etc. – aplicando, como se deve, justamente os critérios de tendências e políticas, acredito que a China já emergiu dessa “guerra” como a vencedora indiscutível nesse processo, uma vez que ela apresenta tendências e políticas coincidentes e conducentes com os requerimentos da globalização no seu presente estágio de desenvolvimento. A pandemia pode frear moderadamente o ritmo desse processo, mas assim como a Europa emergiu mais forte e mais produtiva da sua terrível experiência com a Peste Negra, acredito que a China emergirá mais capacitada, mais bem dotada de know-how, experiência e conhecimento, ou seja, melhor preparada para enfrentar eventuais choques entre impérios, fricções normais no longo caminhar do processo histórico.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19 março 2020.