Paulo Roberto de Almeida
Creio que se podem tirar lições das três matérias, abaixo, na sequencia, sobre o que se poderia chamar de "caso Seitenfus", o representante da OEA no Haiti, de nacionalidade brasileira, destituído do cargo pelo SG-OEA Insulza por ter feito críticas diretas à comunidade internacional e às próprias organizações internacionais, a começar pela ONU -- cujo trabalho no Haiti ele julga equivocado --, o que aparentemente motivou sua demissão. Digo aparentemente porque não se sabem quais seriam os motivos exatos, além dessa entrevista, que possam explicar essa decisão. Suspeito que existam outras razões, além da entrevista, na qual ele diz exatamente o que pensa sobre a ineficácia da ajuda ao Haiti e a terrível situação que ainda prevalece naquele pobre país caribenho, o exemplo mais conspícuo, na região, do que habitualmente se chama de "Estado falido".
Se a entrevista foi o que motivou a demissão, Seitenfus tem toda a minha solidariedade, pois não acredito que alguém possa ser demitido sumariamente apenas por uma entrevista, ainda que ela seja inconveniente do ponto de vista das posições oficiais (sempre hipócritas) da burocracia onusiana. Se foi por outro motivo, posso reconsiderar minha solidariedade, até informações suficientes ou explicações mais confiáveis.
Em todo caso, quero deixar de pronto estabelecido o que considero correto ou incorreto nessas matérias e entrevistas com Seitenfus.
Seitenfus critica países e organizações por não ajudarem suficientemente o Haiti, como se países e organizações devessem sempre servir de baby-sitters para governos ineptos, corruptos ou incapazes de resolver os grandes problemas nacionais. Concordo em que a assistência humanitária é incapaz de "produzir" desenvolvimento; ela apena remedia, não resolve, situações emergenciais, mas acaba drogando os recebedores na dependência da ajuda estrangeira, desestimula a produção doméstica, como Seitenfus aponta muito bem, mas não consegue interagir com governos que descambam frequentemente para a corrupção e o mal-governo.
Não creio que se deva recuar muito na história para contar a história de tragédias do povo haitinao, segundo ele "culpado", aos olhos das potências ocidentais, por rejeitar o colonialismo em 1804, e pagando portanto um alto preço por isso. Afinal de contas, mesmo com toda a dívida cobrada pela França -- por propriedades e expulsões decretadas naquela época -- o país dispos de pelo menos 150 anos de vida independente para tentar resolver seus problemas.
Os culpados pela situação atual do Haiti são, pela ordem:
1) As elites haitianas, corruptas, ineptas, vendidas; continuam assim...;
2) o povo haitiano, mas deve-se considerar a ignorância geral do povo, como fator atenuante nessa tragédia ecológica que o próprio povo provocou (mas relembre-se que populações pastoris, ou agrícolas sedentárias, ao longo da história, sempre souberam administrar seus recursos escassos para não inviabilizar completamente seu modo de vida; que o povo haitiano não o tenho feito, pode ser um fator culpabilizante, também);
3) as organizações internacionais, como a ONU e a OEA, que insistem em "empurrar" ajuda em moldes tradicionais, criando a situação de dependência nefasta que se apontou;
4) as ONGs caritativas, que fazem uma indústria dessas atividades, agravando a dependência e tutelando clientelas, contornando os problemas reais que são os da construção do Estado e a emergência de lideranças representativas da população;
5) países potencialmente "acolhedores" de boat-people e refugiados econômicos, como seriam os EUA e a França, que assim transferem a ingênuos, como o Brasil, a tarefa de reter os haitianos em seu lugar, administrando um problema de "segurança", para o que é uma tarefa de governança fracassada.
Não creio que se deva atribuir agora responsabilidade às ex-potências coloniais, como a França, que se desligaram há muito tempo do Haiti, e que continuaram a colaborar com o país, com ditadura ou sem ditadura, e acolheram bastante dos seus filhos...
Resumindo: Seitenfus acerta em algumas coisas, erra em outras, e creio que sua crítica faz mais bem do que mal ao Haiti, mas obviamente organismos internacionais, como a ONU e a OEA, vivem em perpétua situação de hipocrisia e de erros burocráticos, que na verdade apenas perpetuam as próprias organizações e suas burocracias mastondônticas, cuja única razão de ser, justamente, é a de se perpetuar como burocracias dotadas de sua própria razão de existir, e seus milhares de funcionários inúteis (e bem pagos).
Ele erra ao pretender mais ajuda, mais engajamento da comunidade internacional, para finalmente se fazer "mais do mesmo", pois não é isso que vai "salvar" o Haiti. Confesso, porém, que não vejo solução para o Haiti, uma vez que o país não dispõe de elites comprometidas com os problemas do país e da população, apenas com seu próprio conforto e renda. O problema é que abandonar o Haiti tampouco é a solução, pois como no caso do Afeganistão, pode se tornar um porto seguro para bandidos de todas as espécies, no caso, traficantes de drogas e mercadores de armas e de todos os tipos de crimes.
A preocupação dos EUA e outros países é apenas com isso, não com o problema real do Haiti, embora existam, nos EUA e outros países, pessoas e ONGs sinceramente comprometidas em ajudar. O problema é que ninguém consegue ajudar um povo que não ajuda a si mesmo.
Quanto ao Brasil, não deveria ter ido, e só foi pela ânsia de prestígio internacional de seus dirigentes sedentes de reconhecimento exterior. O problema do Haiti ultrapassa a capacidade do Brasil resolver a situação e por mais que aumente a ajuda, pouco será feito, pois os recursos são dilapidados numa tarefa de Sísifo, sempre rolando a pedra montanha acima, para vê-la despencar ladeira abaixo pouco depois.
Paulo Roberto de Almeida
Há dois anos como representante da OEA no Haiti, Ricardo Seitenfus se viu no meio de uma polêmica após criticar, em entrevista ao jornal suíço "Le Temps", o papel da comunidade internacional no Haiti. De férias a contragosto, o gaúcho afirma que voltará ao Haiti, embora admita que não deve mais reassumir seu posto. Em entrevista ao GLOBO, por telefone, ele diz que a ONU se equivoca ao ver o Haiti apenas como uma questão de segurança, afirma que o auxílio através das ONGs não ajuda a fortalecer o Estado e adianta que o segundo turno não será mais realizado em janeiro por falta de tempo hábil. "Se nem conseguimos organizar uma eleição e ter um governo legitimamente eleito, é um fracasso político", disse.
O senhor foi destituído do cargo de representante da OEA no Haiti?
RICARDO SEITENFUS: O que ocorreu é que eu devia ter entrado de férias no dia 17 e, em razão da crise pós-eleição, decidi permanecer no Haiti. Mas o secretário-geral (José Miguel Insulza) me pediu na segunda-feira que mantivesse as férias. Retorno ao Haiti no dia 26. A novidade é que provavelmente não reassumirei. Pelo que entendi, não serei mais o representante.
A entrevista ao "Le Temps" causou desconforto na OEA?
SEITENFUS: É possível. Provavelmente o secretário-geral considera que sejam incompatíveis as funções de representante com as posições críticas no balanço do mundo na cooperação com o Haiti.
Foi comentado que numa reunião da comunidade internacional chegou-se a levantar a hipótese de o presidente René Préval deixar o país e de se formar um novo governo interino...
SEITENFUS: Foram levantadas as duas hipóteses. A segunda ainda é discutida. A minha posição e da OEA enquanto eu estava à frente dela é que um governo interino seria um retrocesso. Em relação a Préval, no dia 28 de novembro houve uma discussão e um dos temas era o encurtamento do mandato dele. O premier perguntou se o mandato de Préval era algo que deveria ser negociado. Houve silêncio. E ele disse: "Não contem comigo para qualquer fórmula à margem da Constituição." Como ninguém respondeu, eu disse que considerava qualquer discussão sobre o mandato um golpe.
O senhor questiona a presença de tropas da ONU?
SEITENFUS: Eu questiono a inexistência de estruturas de prevenção e solução de litígios, sejam da OEA ou da ONU, que possam tratar de forma construtiva casos como o do Haiti. O Haiti não é uma ameaça à paz regional. Está frente ao que chamo de conflito de baixa intensidade, a luta pelo poder entre os atores políticos. E o Conselho de Segurança considerou essa luta ameaça à segurança internacional. Não se trata disso, mas de encontrar uma forma de fazer com que o país saia dessa situação de miséria generalizada.
Depois de seis anos no país, a comunidade internacional está fracassando?
SEITENFUS: Acho que sim, se nem conseguimos organizar uma eleição e ter um governo legitimamente eleito, é um fracasso político. Sem falar nos desafios sociais e econômicos. É difícil aceitar a ideia de uma missão de estabilização onde há mais de 80% de desemprego. É contraditório. Diria até imoral. Mas não tem a ver com a Minustah. A ONU não tem sido suficientemente dedicada ao caso haitiano, imaginando que seja uma questão de segurança.
Muito dinheiro prometido após o terremoto não chegou. Outra parte foi através de ONGs. Como ficou a questão?
SEITENFUS: Existem muitas miragens acenadas pela comunidade internacional para os haitianos e que desaparecem quando eles se aproximam delas. O trabalho das ONGs logo após o terremoto foi extraordinário, mas depois se estruturou como um subsídio ao fraco Estado. Não é possível reconstruir um país sem a presença do Estado.
Muitos não contribuem diretamente com o governo devido a acusações de corrupção...
SEITENFUS: Esse discurso justifica a não ajuda direta. Todos os projetos que vejo anunciados são através de ONGs. Elas fazem o que bem entendem. Dez mil atuam no país. A quase totalidade não passa pelo controle do governo. Nenhum país do mundo aceitaria essa situação. O governo diz que não vê esses recursos e, o pior, o povo não vê os resultados. A caridade internacional não pode ser o motor das relações internacionais.