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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 2 de setembro de 2018

Como salvar judeus, por todos os meios possíveis - Jamil Chade (OESP)

 Os passaportes, a rigor, não eram falsos, e sim verdadeiros. O conteúdo é que não correspondia à informação correta dos detentores. Isso se fez por dinheiro? Certamente, mas provavelmente não por motivos sórdidos.
Paulo Roberto de Almeida 

Ajuda latino-americana salvou centenas de judeus do Holocausto
Passaportes falsos de Paraguai, Bolívia e Haiti foram usados para enganar
a repressão nazista e impedir que judeus poloneses fossem enviados ao Gueto de Varsóvia
Jamil Chade, Correspondente / Genebra, 
O Estado de S.Paulo, 02 Setembro 2018 | 06h00

GENEBRA - Centenas de judeus poloneses foram salvos do Gueto de Varsóvia graças a passaportes latino-americanos falsos. As informações constam em documentos encontrados em arquivos da diplomacia da Suíça, que mostram um novo papel para Paraguai, Honduras, Bolívia e El Salvador na 2.ª Guerra.
Em 1942, mais de 340 mil judeus ainda viviam no Gueto de Varsóvia. A ordem de deportação em massa veio no verão. Mas, pelas regras estabelecidas pelos nazistasalemães, judeus com passaportes de países neutros poderiam se salvar. O motivo: uma eventual troca por alemães detidos no exterior. O Brasil, que havia declarado guerra ao Eixo em agosto de 1942, deixara de ser um país neutro. 
Usando essa brecha, um diplomata polonês em Berna iniciou uma operação de falsificação de passaportes para retirar milhares de judeus de Varsóvia. Aleksander Lado e seus assistentes Juliusz Kühl, o cônsul Konstanty Rokicki e outros infiltrados, iniciaram a operação que ficaria conhecida como “Serviços de Passaporte”. 
A ideia surgiu depois do caso de Eli Sturnbuch, um polonês judeu que vivia na Suíça e falsificou um passaporte paraguaio para retirar do Gueto de Varsóvia sua noiva, Guta Eisenzweig.
De acordo com os documentos, a operação começou em outubro de 1941 e envolvia o suíço Rudolf Hugli, que na época era o cônsul honorário do Paraguai em Berna. Em troca de dinheiro pago pela própria embaixada da Polônia, ele garantiria lotes de passaportes falsos do país, que eram enviados ao gueto. 
A partir de 1942, uma lista de pessoas que deveriam ser resgatadas começou a ser feita na Suíça. Ela incluía professores, rabinos, estudantes e ricos empresários capazes de, uma ver terminada a guerra, restabelecer a influência dos judeus na região.

Fuga do Nazismo

Um dos retirados foi Aharon Rokeach, rabino da dinastia Belz Hasidic. Ele escapou dos nazistas graças a um dos passaportes fabricados pela rede clandestina de poloneses. Para que ele pudesse receber o documento, a Santa Sé garantiu a entrega. 
Aos poucos, outros países latino-americanos que tinham declarado neutralidade passaram a ser consultados e uma tabela de preços foi estabelecida. Para um passaporte paraguaio, o interessado deveria pagar 1,2 mil francos suíços, numa época em que o salário diário não chegava a 20 francos suíços. 
A notícia do esquema rapidamente chegou a Varsóvia. Dando propinas aos soldados alemães, judeus conseguiam enviar à Suíça cartas com fotos e dados pessoais. Improvisadas, algumas das fotos estavam distantes de qualquer padrão de documento oficial. Algumas delas eram recortadas de fotos de famílias. Em outras, quem buscava ser salvo estava em posições informais ou mesmo fumando. 
Os documentos, uma vez prontos, eram enviados de novo ao gueto e garantiam a sobrevivência dos judeus. Quem tivesse aquele passaporte estrangeiro era enviado para acampamentos e prisões, não para campos de extermínio. 
Segundo os arquivos, mais de 2,2 mil passaportes paraguaios foram comprados, além de centenas de outros dos demais países latino-americanos. Alguns documentos chegam a mencionar o fato de que o sistema fez circular mais de 4 mil passaportes. Durante dois anos, os funcionários da embaixada da Polônia preencheram à mão os nomes nos passaportes. 

Retaliação de Hitler

Quando o esquema foi descoberto pela polícia suíça, o temor de uma retaliação por parte de Adolf Hitler contra os países latino-americanos deu fim ao sistema. Ou seja, não evitou que milhares de judeus fossem enviados para Auschwitz. 
Os suíços, preocupados em não irritar Hitler, iniciaram investigações no início de 1943. Os alemães também começaram a desconfiar do número exagerado de latino-americanos que apareciam nos campos de Vittel, para onde os judeus estrangeiros eram enviados. 
Berlim consultou os governos latino-americanos, que desconheciam os cidadãos. Na segunda metade de 1943, os suíços desmantelaram o esquema. Em setembro, os diplomatas foram punidos com a retirada de seu status de representantes. 
A seguir, a repressão contra os judeus que receberam passaportes fez com que muitos fossem enviados a Auschwitz. A Polônia diz que 330 pessoas escaparam do gueto graças aos passaportes falsos. Outros 387 que já tinham recebido o documento foram enviados a campos de extermínio. Outros 430 desapareceram após receber os passaportes. 
No início de agosto, o governo polonês anunciou que, depois de meses de negociação, uma parte desses documentos, que estavam numa coleção privada em Israel, será entregue ao Museu Auschwitz-Birkenau, incluindo fotos e exemplares de oito passaportes falsificados. 

Um debate sobre o foco das politicas sociais - Roberto Mangabeira Unger, Paulo Roberto de Almeida

Um de meus últimos trabalhos do ano de 2003, um “debate” indireto com Roberto Mangabeira Unger, que havia publicado um daqueles artiguinhos desfocados na FSP. Para contestar-lo devo ter usado o dobro de caracteres para demonstrar os equívocos conceituais e os erros factuais em torno do falso debate da “universalização” ou da “focalização” dos gastos públicos. Como esse trabalho ainda não havia sido divulgado, fiz, como nos casos anteriores, esta postagem em meu blog: 

1166. “O social fora de foco?: um debate permeado de equívocos”, Brasília, 28 dezembro 2003, 7 p. Ensaio de comentários a artigo de Roberto Mangabeira Unger, “O social fora de foco” (FSP, 23/12/2003), demonstrando certos equívocos conceituais e erros factuais em torno do debate da “universalização” ou “focalização” dos gastos públicos. 

Transcrevo primeiro o artigo de Mangabeira, depois o meu.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 2/09/2018
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SOCIAL FORA DE FOCO

Roberto Mangabeira Unger
Folha de S.Paulo, 23 de dezembro de 2003

O governo Lula aderiu à ideia de "focalizar" as políticas sociais. Com isso, confirmou que está perdido. Focalizar as políticas sociais significa dirigir apenas aos mais carentes os recursos disponíveis para o social. A focalização se opõe a políticas ditas universais: destinadas a todos. Segundo o raciocínio da focalização, como o orçamento é limitado, precisa haver fila. Os mais pobres devem ser os primeiros na fila. Grande mal do Brasil, dizem, é que os benefícios sociais vão em peso para quem menos precisa deles: a classe média, que, por exemplo, frequenta as universidades públicas.

Focalizar parece, portanto, exigência de bom senso e de equidade. Nos Estados Unidos, onde fraqueja agora a imaginação transformadora, os filósofos se juntam aos técnicos para alardear as excelências dessa orientação. Não falta no Brasil quem os siga. Orientação errada. Política social é ramo da política, não da caridade. Nenhum dos países europeus em que se consolidou a socialdemocracia chegou lá priorizando políticas sociais focalizadas. Todos se dedicaram à construção de políticas universais de educação, saúde e previdência. Apenas sobre essa base ofereceram ajuda maior aos mais pobres. Reformaram instituições para conseguir mais igualdade. Usaram política social para capacitar seus cidadãos, não para atenuar os efeitos da falta de democratização de oportunidades.

Um dos objetivos da opção pela universalidade é formar maioria que defenda o Estado social por se beneficiar com ele. Outro é formar cidadania que tenha a segurança social necessária para constituir nação unida, capaz e inovadora. Política social não é distribuição de esmola a necessitados enfileirados por ordem de suas necessidades. É construção nacional.
Programas só para os mais pobres -em vez de programas que incluam os mais pobres- não resistem aos ciclos econômicos e políticos. Nos Estados Unidos, sede da propaganda em prol da focalização, as políticas sociais universalizantes do presidente Roosevelt perduram. A "guerra contra a pobreza" do presidente Johnson sumiu.

Esse debate tem significado especial para nós. O Brasil só muda quando a classe média se desgarra da plutocracia de viés colonial e passa a lidera reorientação do país em proveito de todos. Entre nós, focalização das políticas sociais é referência cifrada a guerra contra a classe média. Guerra que o governo atual conduz com afinco, convencido de ter na aliança entre financistas e famintos base melhor para hegemonia política duradoura. O exemplo mais claro do lado que o governo tomou será a campanha que ele está prestes a deslanchar contra a já destruída universidade pública e seus já arruinados professores.

Política séria é tragédia e transformação. É trágico não poder concentrar no atendimento dos mais sofridos os recursos limitados do Estado. Só por meio dessa tragédia, porém, é que se transforma sociedade de dependentes em república de cidadãos. Não culpemos pelo desvio da focalização os tecnocratas que fazem no governo o que sempre apregoaram. Responsável é quem os chamou: o homem que -sem clareza, sem coragem e sem fidelidade a compromissos históricos e eleitorais- ocupa a Presidência da República.

Roberto Mangabeira Unger
Harvard University
Law School

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O social fora de foco?: 
um debate permeado de equívocos

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de dezembro de 2003

É trágico, pelo menos teoricamente, que filósofos sociais se dediquem a opor, conceitualmente, focalização e universalização de políticas sociais. Por outro lado, chega a ser patético que essa oposição seja feita contra as políticas sociais que deveriam estar sendo implementadas pelo governo Lula, que tenta empreender uma saudável correção de rumos em relação a tudo o que se fez, durante décadas, no Brasil, em matéria de políticas públicas redistributivas. 
O artigo de Roberto Mangabeira Unger, “Social fora de foco” (23/12/2003), pratica essa espécie de dicotomia conceitual entre políticas “focadas” e políticas ditas “universais”, acusando o governo Lula de se afastar destas últimas para seguir o caminho das primeiras, como se houvesse oposição entre ambas e como se constituísse mesmo uma grande perversidade “focalizar” políticas redistributivas em direção dos mais pobres. 
Em primeiro lugar, caberia esclarecer que o governo Lula não aderiu a nenhuma ideia de “focalizar” o que quer que seja em matéria de políticas sociais, pela simples razão de que não ocorreu, até agora, nenhuma decisão de ordem filosófica que fizesse o conjunto do governo Lula reorientar o conjunto de suas políticas sociais numa dada direção de favorecer determinados estratos sociais em detrimento de outros. O que está em questão é um estudo do Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda que tenta fazer um balanço do perfil de gastos sociais do governo, constatando como certos fluxos beneficiam, justamente, determinados grupos sociais em detrimento de outros. Trata-se, portanto, de uma “especulação” com base nos dados disponíveis, ou se quisermos, de uma simulação de impactos de determinados gastos, não de uma decisão de governo quanto a uma “refocalização” de certas alocações sociais.
Aliás, ainda que o governo tivesse tomado a decisão de “refocalizar” os seus gastos sociais, qual seria o impedimento moral, filosófico ou prático a que isto ocorra? Desde que essa “refocalização” tivesse em mente uma maior eficiência do gasto público, uma melhor relação custo-benefício e o máximo de bem estar possível para os diferentes grupos sociais em que se divide o conjunto da população – o que é um dado estrutural de qualquer sociedade – ela seria extremamente bem vinda e deveria ser recebida com encômios pelos filósofos sociais, em lugar de receber reprimendas como se se tratasse de um atentado aos sagrados princípios da igualdade, da fraternidade e da solidariedade. Mas não é isso que está em causa e sim um debate até aqui meramente teórico e que incide sobre a forma pela qual são conduzidos os gastos sociais do governo e sobre quais grupos eles projetam um melhor nível de bem estar. 
Independentemente do debate – e seus equívocos propositadamente disseminados por uma certa categoria de cidadãos que pressentem alguma diminuição do “maná” que lhes chega às mãos (e aos bolsos) sem que eles façam grande esforço para isso – deve-se ressaltar, antes de mais nada, que não há, nem pode haver, nenhuma oposição entre gastos “focados” e gastos “universais”, pela simples razão de que o Estado pratica ambos ao mesmo tempo, mediante diferentes instrumentos que incidem desigualmente sobre os grupos sociais que podem (ou não) ter acesso aos vários programas redistributivos governamentais. Opor um ao outro significa, simplesmente, não refletir sobre a natureza dos gastos públicos e sua incidência diferenciada nas várias clientelas que compõem toda e qualquer sociedade. Assim como os impostos diretos devem ser, e presumivelmente o são, progressivos, isto é, atingem desigualmente os cidadãos em função da renda auferida em suas atividades tributáveis, os gastos sociais deveriam ser, idealmente, progressivos, atingindo os mais necessitados com uma fração maior da riqueza social.
Em outros termos, o Estado recolhe de cada um segundo a sua capacidade, e dispensa favores segundo as necessidades de cada um, dentro de um quadro “universal” de políticas públicas que nem por isso é menos “focado” em função do grau de carência relativo de cada grupo social. A escola pública, por exemplo, é um dever do Estado e um serviço público universal, mas nem todos são obrigados a “universalizarem” a educação dos seus filhos nas escolas públicas, facultando-se no Brasil a existência do mesmo serviço a cargo de particulares, que fazem dessa atividade um empreendimento lucrativo. Pode-se dizer, portanto, que os cidadãos mais ricos têm o produto de seus impostos “universalizado” em favor do conjunto da sociedade, mas que eles preferem “focar” os seus filhos em estabelecimentos privados, pagando, portanto, duplamente por um serviço que está normalmente coberto pelos gastos “universais” do Estado. 
O mesmo ocorre em outras esferas, na saúde, por exemplo, segundo o mesmo esquema da “universalização impositiva” e da “focalização” da utilização do serviço, ou ainda no terreno da previdência, mas aqui segundo uma outra lógica, na medida em que determinadas categorias de cidadãos conseguiram “focalizar” em suas aposentadorias uma fração proporcionalmente maior da contribuição “universal” imposta ao conjunto da sociedade. Ou ainda no campo da educação superior, “focalizada” vantajosamente com transferências desproporcionais em relação aos gastos “focados” nos dois primeiros níveis de ensino, a partir de impostos absolutamente “universais”. 
Em síntese (e esperando que esta pequena introdução à economia política do imposto tenha ficado clara), não há nenhuma oposição conceitual ou prática entre gastos “universais” e gastos “focalizados”, pela simples razão de ambos constituem facetas dos deveres do Estado de um ponto de vista estritamente técnico. Se quisermos porém tocar no problema da equidade, ou da ética do gasto público, parece ser igualmente claro que uma maior fração do gasto público deveria dirigir-se aos estratos mais carentes da população, por uma simples razão de solidariedade humana (que está na base de qualquer sociedade digna desse nome) e também por motivos de incorporação progressiva dos grupos menos privilegiados numa divisão social do trabalho mais racional e mais conforme aos verdadeiros princípios da “universalização” de gastos e de contribuições sociais. 
Parece evidente a qualquer economista normalmente constituído que os estratos mais pobres da população são taxados pelo Estado em níveis mínimos, em virtude de sua produtividade extremamente reduzida, o que os coloca nos níveis inferiores de renda imponível. Ou seja, sua contribuição para o “bolo social universal” apresenta uma “focalização regressiva”. Os grandes progressos distributivos na sociedade avançada do capitalismo ocidental tiveram lugar, precisamente, quando o Estado, em princípios do século 20, começou a redistribuir a riqueza social via imposição e “focalização” de gastos públicos, isto é, “universalização” de serviços públicos (como escola, saneamento e obras de infraestrutura) que, por acaso, beneficiaram desproporcionalmente os mais pobres, ou seja, aqueles que até então tinham ficando à margem dos progressos da civilização e da saúde moderna.
Mas deixemos David Ricardo e os fabianos de lado para nos concentrarmos agora no caso do atual governo do Brasil, que concentra a ira escrevinhadora do filósofo social Roberto Mangabeira Unger. Ele deve estar certamente de acordo em que o Sr. Antonio Ermirio de Moraes pague ao Estado mais impostos do que o Seu Zé das Cabras, perdido no interior de Cabrobó da Serra e à margem de muitos benefícios do Estado benefactor. Acredito também que ele deve achar um escândalo que um indivíduo de classe média, como eu por exemplo, assalariado do setor público ou professor universitário, pague tanto imposto quanto o Sr. Antonio Ermirio de Moraes, ou seja, 25% (agora 27,5%) sobre a renda de cada um de nós. Um Estado verdadeiramente “universal” deveria “focalizar” uma alíquota de 35% no Sr. Antonio Ermirio de Moraes e apenas 25% em mim, já que nossas produtividades são desiguais e a capacidade contributiva dele é muito maior do que a minha. 
Mas, digamos que minha “solidariedade contributiva” me coloque no mesmo patamar do Sr. Antonio Ermirio de Moraes e eu não possa fazer nada para paliar os efeitos indesejáveis dessa desigualdade impositiva: ainda que os 25 (ou 27,5)% do Sr. Antonio Ermirio de Moraes sejam um volume muito maior de recursos do que a minha “contribuição” de assalariado, ele continua a dispor de muito mais renda suplementar do que eu, que sou obrigado a cobrir determinados “serviços” obrigatórios – hospital e estudo especializado, por exemplo – com a fração restante que me restou pós-tributo. Eu gostaria, por exemplo, que o Estado “focalizasse” esses serviços com a renda “universal” que ele auferiu de mim e do Sr. Antonio Ermirio de Moraes, em igual proporção, mas não nos mesmos montantes (é a vez dele de prestar “solidariedade contributiva”).
Assim, quando se trata de “universalização” ou “focalização” dos gastos públicos, eu preferiria, por exemplo, que o Estado não gastasse dinheiro construindo heliportos que só podem beneficiar pessoas como o Sr. Antonio Ermirio de Moraes, e se dedicasse, alternativamente, à melhoria da infraestrutura urbana de transportes (metrô, ônibus etc.), que podem beneficiar um número muito maior de usuários. Mutatis mutandis, é o que ocorre todos os dias quando prefeitos ou governadores preferem investir na expansão “focalizada” de certos eixos viários, desproporcionalmente beneficiosos aos que possuem transporte individual (carro), em lugar de se dedicar, precisamente, ao transporte público “universal”. 
Eu pessoalmente acredito que o atual governo brasileiro fez um cálculo desse gênero, ao constatar que determinados gastos sociais aparentemente “universais” – como a previdência do setor público, ou a universidade “pública”, por exemplo – estão muito mais “focalizados” numa determinada categoria da população, digamos a classe média do Sr. Roberto Mangabeira Unger, do que no conjunto da sociedade, a começar pelos mais necessitados desse tipo de “favor” do Estado benefactor. Feita a constatação, nada de mais honesto do que tentar “refocalizar” os gastos públicos, de molde a que eles sejam o mais “universais” possíveis. Não apenas esse tipo de redirecionamento é absolutamente ético do ponto de vista da solidariedade social, como ele tenta, justamente, colocar o social dentro do foco que deveria ser o seu, o seja, o maior benefício possível para o maior número de pessoas. 
Os equívocos conceituais e históricos que atingem determinados filósofos sociais são ainda mais incompreensíveis quando o pensador em questão vive na própria sociedade de onde pretende retirar seus exemplos de gastos “universais” ou “focalizados”. Vejamos, por exemplo, este trecho do artigo do Sr. Roberto Mangabeira Unger: “Programas só para os mais pobres - em vez de programas que incluam os mais pobres - não resistem aos ciclos econômicos e políticos. Nos Estados Unidos, sede da propaganda em prol da focalização, as políticas sociais universalizantes do presidente Roosevelt perduram. A ‘guerra contra a pobreza’ do presidente Johnson sumiu”.
Nada de mais equivocado e historicamente incorreto. Em primeiro lugar, de um ponto de vista meramente instrumental, programas governamentais podem ser criados em função de um determinado ciclo econômico (supostamente “depressivo”), mas eles geralmente ultrapassam, por força da inércia burocrática (e dos interesses criados em função dele), seu próprio “ciclo de vida” e se tornam permanentes e extensos demais, criando outras distorções quando sua necessidade já foi superada por uma inversão daquele ciclo econômico original. A razão burocrática é uma das que mais apresentam capacidade de latência e resistência a mudanças absolutamente inevitáveis.
“Focalizando” agora as políticas presumivelmente “universais” do presidente Roosevelt, podemos constatar que ele criou determinados “colchões” de seguro social para os mais pobres – medidas “focadas” portanto – e “universalizou” determinadas conquistas sociais e laborais que estavam sendo implementadas pelos regimes socialdemocratas de alguns países europeus (e que já tinham sido iniciadas por regimes tão pouco progressistas como o de Bismarck, a partir de 1875), e que constituíam, na verdade, políticas “focadas” nas condições de trabalho da classe operária, e portanto nem um pouco “universalizadas” para patrões, empresários ou outras categorias sociais. Essas mesmas políticas foram “universalizadas” por Vargas, no Brasil, em favor da classe trabalhadora, uma fração (ou “foco”), portanto, da sociedade em seu conjunto, não tendo sido “universalizadas” em favor dos trabalhadores rurais senão um quarto de século mais tarde. Quanto aos programas “grande sociedade” e “guerra contra a pobreza” de Johnson, não apenas eles não sumiram como constituíram a base de todo o intervencionismo social do governo americano no pós-guerra (aliás idealizados a primeira vez pelo presidente Kennedy), tendo persistido até uma data bem recente, quando disfunções e desvios demonstraram, mais uma vez, a necessidade de sua reestruturação.
Para mencionar apenas alguns dos programas do presidente Johnson, eles “universalizaram” direitos como comida, assistência pública, seguro desemprego, assistência médica básica, ajuda habitação, com um “foco”, obviamente, nos mais necessitados, isto é, aqueles situados abaixo da linha da pobreza ou momentaneamente carentes de recursos. Mais uma vez, encontramos aqui a mesma ambiguidade estatal do “universal” e do “focalizado”, características que permeiam todo e qualquer programa governamental de caráter redistributivo. 
Mais perto de nós, e sem qualquer opinião pessoal sobre sua eficácia relativa, o que é o programa “Fome Zero” senão um imenso empreendimento “universal” de “focalização” de gastos em favor dos absolutamente carentes de nossa sociedade? Por sua extensão progressiva, o governo Lula pretende atingir o “universo” dos mais pobres no Brasil, com base em determinados critérios de renda e situação familiar (foco). O que é a reforma previdenciária, empreendida pelo governo FHC e continuada pelo governo Lula, senão uma tentativa – até aqui largamente frustrada – de desviar o “foco perverso” dos gastos previdenciários – pretensamente “universais” – em favor de uma minoria de privilegiados do setor público, que conseguiu, à golpes de decretos especiosos e outras artimanhas legais, “refocalizar” a riqueza “universal” da sociedade brasileira em seu próprio favor? O que é a pirâmide invertida dos gastos educacionais senão uma perversa “focalização” desses gastos setoriais com uma fração mínima da população brasileira, aquela que consegue acesso à universidade pública? 
Eu poderia repetir os exemplos de “focalização” restrita de recursos “universais” no Brasil, mas creio que estes bastam para “focalizar” o debate naquilo que vem tentando fazer, realmente, o governo Lula: o início da correção das imensas distorções sociais e desigualdades distributivas que fizeram do Estado brasileiro, não o “pai dos pobres”, mas a mãe dos ricos e da classe média. Por isso, encontro particularmente canhestra a caracterização do Sr. Roberto Mangabeira Unger de que, agora, no Brasil, “focalização das políticas sociais é referência cifrada a guerra contra a classe média.” Ele parece não considerar que, no Brasil, ao longo dos séculos e certamente no decurso do longo século republicano, as elites e a classe média souberam organizar-se para “socializar” os gastos do Estado, focalizando as despesas em áreas e programas que sempre beneficiaram elas próprias, em lugar dos mais pobres e necessitados. Não é outro o sentido do caráter não universal, ainda hoje, do ensino fundamental e médio, ou não é isso o que ocorre de fato?
Por estas e outras razões, seu artigo me parece singularmente “fora de foco” quanto ao verdadeiro sentido de políticas sociais públicas. Contrariamente ao que ele diz, tecnocratas do Estado podem, sim, conceber, aplicar e controlar políticas “focadas” de gastos sociais que sejam as mais “universais” e inclusivas possíveis, sob a orientação e a responsabilidade do homem que tem a seu encargo a ingrata tarefa de corrigir as muitas políticas “desfocadas” do Brasil injusto, para torná-lo uma nação menos desigual para o imenso universo de seus filhos mais pobres.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de dezembro de 2003

Meu diagnostico e propostas de ação para o governo em 2003 - Paulo Roberto de Almeida

Como eu via a situação no Brasil, recém desembarcado no Brasil do PT, depois de 4 anos em Washington? 
Ainda antes de partir para Brasília, fazendo trânsito por Porto Alegre, eu redigi, e enviei ao futuro chefe, uma nota bastante crítica quanto ao momento vivido no Brasil, nos planos econômico, político e moral, sendo progressivamente pessimista em cada um deles. Esse trabalho, exageradamente intitulado de “breve diagnóstico” e de “propostas para ação”, recebeu o n. 1137, e permaneceu inédito durante todo o tempo, sendo apenas agora divulgado sem cortes.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 2/09/2018

Breve diagnóstico e propostas de ação
Nota sobre a conjuntura em outubro de 2003

Paulo Roberto de Almeida
Reservado; não copiar, não distribuir.
Porto Alegre, 26 de outubro de 2003


Concentrarei minha breve análise do momento atual, e farei minhas sugestões de atuação no futuro imediato, em torno de três dimensões, apenas, da ação governativa: a econômica, a políticae a moral (ou ética). 
Do ponto de vista da economia, ao contrário do que vêm dizendo os críticos mais renitentes (que por acaso são os antigos e/ou velhos aliados da causa), a postura assumida pelo governo parece ser, a despeito dos riscos inerentes ao baixo crescimento e o escasso potencial de criação de empregos, a única possívelnuma conjuntura de dificuldades persistentes nos planos interno e externo. 
Independentemente do fato de que a estratégia de administração econômica tem agradado os banqueiros e os economistas ortodoxos e descontentado, como é notório, os economistas “alternativos” — como aqueles que se reuniram em Brasília, entre os dias 10 e 13 de setembro de 2003, no XV Congresso Brasileiro de Economistas, e aprovaram a “Carta de Brasília”, com uma forte posição crítica sobre os rumos atuais da política econômica — ou mesmo a comunidade mais ampla de “trabalhadores acadêmicos” — como os reunidos na ANPOCS, em Caxambu, de 21 a 24 de outubro de 2003 —, a única constatação que pode ser feita nesse capítulo é a de que os propositores de uma estratégia desenvolvimentista-distributivista falharam redondamente, até aqui, em propor alguma estratégia factível de gestão econômica alternativa, que logre assegurar estabilidade e que promova o crescimento, dentro das limitações empíricas existentes (que são totalmente ignoradas por esses críticos). 
Meu diagnóstico, portanto, é o de que a estratégia econômica deve ser não apenas mantidacomo preservadade críticas internas, com a sugestãode que o governo promova nova reunião interna com a base parlamentar (e eventualmente do PR com os ministros) com o objetivo de aprofundar os esclarecimentospertinentes e lograr coesão adicional em torno dessa estratégia de ação. Poderei fornecer, em documento à parte, “respostas” às críticas formuladas pelos economistas “alternativos”.
Do ponto de vista da política, por outro lado, não há como deixar de concordar com muitos analistas políticos e jornalistas sérios, de que uma metade do governo, pelo menos, tem deixado fortemente a desejar em sua ação (ou falta de), trazendo ônus reais para o PR, assim como para a gestão política global do governo. Em parte isso deriva do “custo natural” de um processo de transição inédito para os padrões da política brasileira, mas também pode ser explicado pela inexperiência administrativada nova equipe e pela composição heterogênea do primeiro escalão, fruto de uma composição partidária necessária no momento de assunção do governo.
Meu diagnóstico é o de que o governo tem funcionado com excesso de retórica e pouca ação coordenada ou, para resumir, mais com base em Antonio Gramsci (conceitos abstratos) do que com base em Peter Drucker (gestão pragmática e focada em resultados). As sugestões não são simples, mas talvez elas passem por um enxugamento mais ou menos radical da máquina e pela definição de um conjunto de ações governativas centradas no atendimento das questões mais cruciais de interesse direto da população. Essas questões me parecem ser basicamente duas: emprego (ou renda) e segurança.
O governo não está em condições de, nem poderá, garantir o primeiro elemento, pois isso incumbe à iniciativa privada, bastando que a macroeconomia não atrapalhe indevidamente a microeconomia (o que é problemático, uma vez que o Estado continua a ser o principal despoupador líquido da economia, afetando o sistema produtivo). Mas ele tem e precisa garantir o segundo elemento da equação, segurança, junto com o provimento de serviços básicos, que são essencialmente saúde educação (este o principal garantidor de que o coeficiente de Gini poderá mover-se um pouco mais para baixo até 2006). Minha sugestão concreta seria a de que o novo governo se concentrasse nessas ações básicas nos próximos três anos. 
A questão moral, finalmente, tem a ver com a credibilidade do governo, e esta me parece estar seriamente no limite de um diagnóstico negativo por parte da população, com base em alguns eventos ou episódios bastante conhecidos no período recente (nem todos, é verdade, situados na esfera do executivo, mas a população não tem a sutileza das necessárias distinções, atribuindo-os todos ao “governo”). A experiência indica que uma vez operada a caracterização da “indiferença” ou da “conivência” do governo, torna-se difícil reverter o grau de confiança antes disponível, isso no seio de uma grande massa que pode ter votado como o fez em outubro de 2002 não com base em considerações de natureza econômica ou política, mas essencialmente em função de preceitos éticos. Minha sugestão é a de que o governo atue pronta e radicalmente nessa frente, à margem e independentemente de qualquer processo futuro ou em curso de reforma ministerial.
A governabilidade exige que a economia funcione bem (ou que pelo menos ela não provoque desgastes adicionais), que a política seja eficiente (ou que pelo menos ela aparente ser) e que os padrões éticos do governo sejam inatacáveis (aqui sem qualquer compromisso). Estes critérios devem ser escolhas do estadista. Todo o resto é secundário.

Paulo Roberto de Almeida
Porto Alegre, 26 de outubro de 2003

Um exercicio de futurologia: o hemisfério americano em 2033 - Paulo Roberto de Almeida

Em setembro de 2003, um jornalista pediu-me que fizesse um exercício de futurologia 30 anos à frente, ou seja, em 2033.
Respondi às suas perguntas, mas ignoro se foram publicadas as minhas respostas em seu jornal. Já se passou a exata metade do tempo, e portanto só estamos com 15 anos restantes, para tentar detectar se minhas respostas são razoáveis ou um completo equívoco.
Transcrevo primeiro a consulta, depois as minhas respostas.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2 de setembro de 2018

------ Forwarded Message
From: "Leandro Xxxxxxx" xxxxxx@amanha.com.br
Organization: Revista Amanhã
Date: Mon, 22 Sep 2003 16:15:31 –0300
To: "'Paulo Roberto de Almeida'" 
Subject: Futurologia

Prezado Sr. Paulo Roberto de Almeida,

Gostaria de fazer um exercício de “futurologia” com você. Abaixo estão algumas perguntas que serão de extrema valia para a reportagem. Se puder, por favor, responda. Se quiser acrescentar outros comentários, fique à vontade.
Obrigado e um abraço do Leandro.

Imaginemos o ano de 2033, portanto, daqui há 30 anos... como estará a América nesse período com relação a:
  1. Moedas: quantas teremos, em que países?
  2. Taxas de juro e câmbio: haverá unidade na região?
  3. Parlamento único?
  4. Justiça unificada?
  5. Livre circulação de pessoas?
  6. Presença do Estado?
  7. O norte se firmará como fornecedor de tecnologia enquanto o sul fornecerá comida e água?

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Olhando para trás: o hemisfério trinta anos à frente

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 22 de setembro de 2003
Respostas a questões colocadas pot jornalista
da Revista Amanhã

            Considerando-se o estado precário da maior parte dos países da América Latina, ao início do século 21, assim como a persistência das desigualdades regionais e sociais entre o sul e o norte do hemisfério, como podemos imaginar a evolução continental nas próximas três décadas? O presente exercício selecionou alguns critérios econômicos e políticos e traçou algumas possíveis linhas de desenvolvimento ou prováveis itinerários, com base numa visão realista das possibilidades e limites dos países do hemisfério. 
            Alguns supostos são de rigor, como se explicita a seguir. Considerou-se, por exemplo, que nem os Estados Unidos nem o Canadá, as duas economias mais avançadas do hemisfério, têm um problema de desenvolvimento, mas tão simplesmente problemas variados de administração do jogo econômico, cabendo aos governos desses países regular despesas públicas para enfrentar a transição demográfica cada vez mais marcada em direção ao envelhecimento e ao aumento dos gastos oficiais com saúde da população em faixas etárias avançadas. Considerou-se também que, a despeito de progressos notáveis em direção da universalização de certos serviços básicos (educação, saneamento, transportes e comunicações), a América Latina continuará preservando padrões de desigualdade intersetorial e interclasses relativamente importantes. 
            Não se deve, contudo, acreditar demais no determinismo histórico ou nas regras ditas “inelutáveis” da história, pois fatores contingentes, assim como o grau de liberdade concedido aos homens – neste caso, líderes políticos ou estadistas – podem influenciar o curso futuro das sociedades humanas em direções por vezes imprevisíveis, tanto na direção da melhoria e do progresso social – o que desejamos todos – como por vezes no sentida da estanação e do desespero, como ocorrido tantas vezes no próprio continente.
            Feito este rápido prolegômeno, vejamos como responder a um conjunto de questões que não pertence ao mesmo universo de referência, nem mesmo à mesma escala de prioridades sociais.

1. Moedas: quantas teremos, em que países? 
            PRA: As moedas expressam a relativa “fortaleza”, ou então a fraqueza, do tecido econômico da sociedade. Uma projeção grosseira da provável evolução monetária no continente, levando-se em contra que a “soberania monetária” é uma das últimas a serem colocadas em questão, poderia indicar os seguintes desenvolvimentos.
            O dólar permanecerá como a moeda de troca, de reserva e de expressão de valor pelo futuro previsível, nos planos mundial, hemisférico e mesmo subregional do Mercosul. Ele sofrerá a concorrência parcial do euro, mas terá pela frente algumas das moedas conversíveis disponíveis na região, a exemplo da moeda única do Mercosul. A moeda americana sustentará o conjunto das trocas comerciais e os fluxos de capitais, mas o dólar canadense, o merco do Mercosul, além do próprio euro, também circularão sem restrições.
            O hemisfério terá no máximo quatro ou cinco moedas, conversíveis entre si e no plano mundial. O dólar canadense sobreviverá, mas estará tão conectado ao dólar comoestiveram em suas épocas respectivas o florim holandês e a coroa dinamarquesa ao deutsche mark. O dólar será a moeda comum da rede de acordos comerciais que unirão entre si os Estados Unidos, o México, a América Central, o Caribe e alguns países da América do Sul (possivelmente a Venezuela, a Bolívia e a Colômbia, além do Equador, já dolarizado). Países como Peru e Chile poderrão conservar sua moedas nacionais, ambas denominadas peso, mas serão muito demandados pelas zonas monetárias à sua volta, não apenas a do dólar, mas a do merco, do Mercosul (que chegou à moeda única recém em 2025, depois de muitos percalços e lutas pela estabilização). 

2. Taxas de juro e câmbio: haverá unidade na região? 
            Os juros continuarão seu movimento errático, seguido desde os tempos bíblicos praticamente, quando a usura era o outro nome da especulação. Pode-se prever um esforço de coordenação ao interior de cada zona monetária, ou ao abandono de fato do recurso nacional à fixação de uma taxa exclusivamente territorial nos casos de adesão ao dólar, o que impica a renúncia a qualquer soberania monetária de que ainda pudessem dispor os países que resolveram adotar outra moeda como meio circulante. 
            O câmbio será uniformemente flexível, o que obviamente incita à especulação e portanto a futuras crises monetárias, aliás quase tão recorrentes quanto os solstícios de inverno e os anos bissextos. Não se pode prever coordenação cambial entre zonas monetárias, embora não se possa descartar a hipótese tampouco.

3. Parlamento único? 
            Improvável, pelo menos a nível hemisférico. Continuará havendo arremedos de parlamentos unificados, do tipo do Parlatino ou do Mercosul, mas com muito poucos poderes efetivos e ainda menos recursos para criar o que gostariam os políticos: empregos para os próprios políticos e seus parentes. Reuniões continuarão a ser celebradas, resoluções a serem adotadas, mas o poder efetivo continuará com os executivos nacionais. O Congresso americano continuará sendo o Congresso americano, e os parlamentos latinos serão uma mistura dos parlamentos atuais e arremedos de corpos legislativos unificados, mais formais do que efetivos. 

4. Justiça unificada? 
            De nenhuma forma, embora se preveja o aumento da cooperação judicial e dos casos conduzidos em duas ou mais jurisdições criminais. Mas, o direito anglo-saxão, ou common law, preservará suas características peculiares, ao passo que o direito romano, ou das obrigações, tenderá a ver  o mundo pela ótica contratualista formal.

5. Livre circulação de pessoas? 
            Não de modo irrestrito e incondicional. Haverá livre circulação de quadros, isto é, pessoas dotadas de forte formação educacional e trabalhando em negócios legais, mas não de mão-de-obra não qualificada. Esta continuará a ser “regulada”, isto é a existir enquanto “exército industrial de reserva”, na exata medida dos interesses econômicos dos países provedores de emprego, ou seja, uma disponibilidade “ao alcance da mão”. A livre circulação de quadros continuará a atuar como um imenso sorvedouro de talentos e de mão-de-obra qualificada em favor das economias dinâmicas da região, entre as quais se incluirá o Brasil (mas isto não quer dizer que teremos conseguido eliminar o nosso próprio “exército industrial do reserva”). 

6. Presença do Estado? 
            Certamente, pelos bons e maus motivos. Como indutor de atividades econômicas, como “promotor” de desenvolvimento tecnológico, como “redistribuidor” de riqueza coletada sob forma de impostos e taxas. Será, de toda forma, um pouco mais eficiente na América Latina do que atualmente, mas nunca se pode olvidar a capacidade da classe política em contribuir para a deterioração ainda maior das instituições públicas. 

7. O norte se firmará como fornecedor de tecnologia enquanto o sul fornecerá comida e água? 
            Ainda sim, mas isso apenas residualmente e em vias de constituir uma rede de trocas mais interdependente. O sul certamente continuará fornecendo comida, mas esta terá alto componente tecnológico embutido nela, seja integrado na própria região, seja fornecido pelas empresas multinacionais (que existirão também no sul). Água não é um recurso escasso no norte do hemisfério, ainda que possa faltar em regiões delimitadas de ambos os continentes. Trata-se de um recurso natural, convertido em commodity, suscetível de aproveitamento cada vez mais racional (isto é, sinalizado pelos preços de mercado) e portanto objeto de transações sujeitas à lei da oferta e da procura. 

            Em resumo, a América Latina melhorará, perceptivelmente, mas a carga atual de miséria é muito grande para ser reabsorvida em apenas uma geração e um lustro. O narco-tráfico e a criminalidade organizada continuarão existindo, ainda que não detendo “territórios liberados”, como ocorre atualmente em certas regiões da Colômbia e em certas favelas do Rio de Janeiro. 
            Repetindo Mário de Andrade, falando do Brasil do início do século 20, “melhorar, melhoramos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade…”

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 22 de setembro de 2003