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domingo, 3 de maio de 2020

Rubens Ricupero: "O cenário da política externa é um cenário de ruínas" - Consultor Jurídico

CENÁRIO DE RUÍNAS

"A 'lava jato' acabou, pertence mais ao domínio da história do que ao da realidade"

Em 2004, quando deixou sua carreira diplomática, Rubens Ricupero —ministro da Fazenda quando da implantação do Plano Real — tinha se acostumado com a posição de prestígio alcançada pela diplomacia brasileira. Historiador e formado em Direito pela USP, ele deu entrevista à ConJur, por telefone, analisando a política externa atual e o legado da "lava jato".
Desde a redemocratização, em 1985, o modo que o país encontrou para se projetar internacionalmente foi regido pelo mesmo princípio: diplomacia é a busca da autonomia por meio da participação. 
O conceito, segundo o diplomata, começou a cair por terra quando Jair Bolsonaro assumiu a presidência. De lá para cá, diz, a política externa se tornou cada vez mais alinhada ao governo de Donald Trump e contrária a Pequim.
Mas política externa, antes de vir ao mundo, é gestada intestinamente. Em 2016, Ricupero afirmou que existia à época um "partido togado", que podia interromper o jogo político a qualquer momento — em referência à força das autodenominadas "operações" que se arvoraram como combatentes da corrupção. 
Revisitando o assunto, diz que a "lava jato" perdeu força no decorrer dos anos e dá seus últimos suspiros. "Aqueles filhotes da 'lava jato' que tinham sido criados nas justiças federais de diversos estados continuam existindo, mas em fogo brando. Como fenômeno político-judiciário, a 'lava jato' hoje pertence mais ao domínio da história do que ao da realidade", afirma. A conversa ocorreu antes de Sergio Moro deixar o Ministério da Justiça. 
Se a "lava jato" é passado, o "partido da toga" legou ao país um novo presidente — e sua nova política externa, conduzida por agentes que negam o isolamento social como saída para enfrentamento da epidemia de Covid-19, mas que aceleram o isolamento do país no mundo.
"O saldo líquido das decisões brasileiras é nos levar ao isolamento — em todos os sentidos do termo — e a uma perda extraordinária do poder brando que o país tinha acumulado. Hoje, sem nenhum exagero, o Brasil é o país cujo governante figura entre os mais menosprezados e mais detestados do mundo. O cenário da política externa é um cenário de ruínas", afirma.
A entrevista foi feita antes de Sergio Moro ter se demitido do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Confira a entrevista na íntegra: 
ConJur — Em entrevista concedida ao El País, o senhor afirmou que havia dois teatros durante a ditadura: o da vida política e o dos bastidores. Os fardados podiam intervir, interrompendo a peça a qualquer momento. De lá para cá, referindo-se à "lava jato" em Curitiba, disse que o partido fardado deu espaço ao partido togado. Ainda vê essa força toda emanando da "lava jato"?
Rubens Ricupero —
 Vejo uma espécie de esgotamento natural da operação, em parte por mudanças políticas — a eleição do Bolsonaro, a decisão de Moro aceitar ser ministro da Justiça, as revelações [do site] Intercept e toda a desmoralização que veio disso. A "lava jato" acabou. Ela continua existindo em tese, porque há condenações pendentes, assim como os recursos relativos ao Lula. Muito está por resolver, mas a "lava jato" acabou, assim como a "mãos limpas" acabou na Itália. O juiz que substituiu Moro não tem, nem de longe, aquele tipo de ativismo jurídico que o Moro tinha, ou aquele entendimento com os procuradores. Houve também uma certa aversão do STF e de outras instâncias. Aqueles filhotes da "lava jato" que tinham sido criados nas justiças federais de diversos estados continuam existindo, mas em fogo brando. Como fenômeno político-judiciário, a "lava jato" hoje pertence mais ao domínio da história do que ao da realidade. 
ConJur — O senhor já afirmou em algumas ocasiões que o confronto inicial gerado pela "lava jato" teve importância e gerou consequências positivas. Hoje, com tudo que se sabe sobre a atuação do ex-juiz Sergio Moro e dos procuradores, mantém essa opinião?
Rubens Ricupero —
 Como consequência política, a "lava jato" teve um impacto enorme na história brasileira. É responsável por boa parte do que aconteceu nos últimos anos. Basta ver que os escândalos de corrupção colocaram fim ao período de hegemonia do PT. Até hoje o PT não se reergueu do golpe que levou. Por outro lado, sempre tive dúvidas sobre a duração da "lava jato", que parecia exagerada enquanto operação judiciária. Além desse aspecto, a operação, em essência, pela própria natureza do Judiciário, continha uma limitação que, cedo ou tarde, acabaria por comprometê-la: operações policiais e judiciárias podem ser importantes para trazer luz sobre esquemas de corrupção, mas não conseguem por fim a eles. Isso acontece porque as soluções só podem ocorrer por meio de mudanças legislativas, algumas até de ordem constitucional, já que o que existia na raiz da corrupção eram problemas que apontavam para as imperfeições das instituições, para os defeitos que vão desde a politização das estatais até a ineficácia dos mecanismos de fiscalização. 
O saldo da "lava jato" é que algumas pessoas foram punidas, com grau maior ou menor de adequação, mas as raízes do problema não foram removidas. Esse problema permanece, tanto que uma das suas consequências foi a de dar ao presidente Jair Bolsonaro a justificativa de não tentar fazer um presidencialismo de coalizão, negociando com os partidos políticos ministérios, verbas e cargos de estatais. Por outro lado, isso cria um conflito maior com o Congresso, o que, novamente, demonstra o quanto as instituições são defeituosas. Em resumo, vejo a "lava jato" como uma tentativa de atacar os sintomas, não as causas da doença. Talvez tenha conseguido inibir os sintomas por um tempo, mas não removeu as causas profundas e não fez isso porque não podia fazer. A operação teve um papel histórico, mas, por todos os defeitos práticos, e em certos momentos deixando visível um ativismo jurídico muito grande, a "lava jato" deixou de existir.
ConJur — Falando agora de política externa: é possível resumir a diplomacia brasileira, a partir da redemocratização, como a busca da autonomia por meio da participação. Com essa atuação, o país conquistou prestígio. Agora, a marca definidora da política externa é o alinhamento com os Estados Unidos. Quais os impactos disso?
Rubens Ricupero —
 É mais do que isso. Não é um alinhamento com os EUA, mas com o governo de Donald Trump, que, por sua vez, conduz uma campanha sistemática contra todas as instituições do sistema internacional criado no pós-guerra — o multilateralismo, um sistema que funciona na base de normas, de leis, não da força. Ao se alinhar com esse governo, o Brasil trabalha contra o seu próprio interesse, pois os EUA têm muito poder. Já o Brasil é um país com pouco poder, que pode se tornar vítima da força alheia. Nosso país não é uma potência econômica e militar. Mas tem poder brando, que é a diplomacia do convencimento, da persuasão, da negociação. Ao se alinhar com os EUA, abrimos mão disso e nos subordinamos a um país que, esse sim, tem poder e que pode utilizá-lo de maneira deflagradora, sem nenhum limite. 
O saldo líquido das decisões brasileiras é nos levar ao isolamento — em todos os sentidos do termo — e a uma perda extraordinária do poder brando que o país tinha acumulado. Hoje, sem nenhum exagero, o Brasil é o país cujo governante figura entre os mais menosprezados e mais detestados do mundo. O cenário da política externa é um cenário de ruínas.
ConJur — Outra consequência apontada é o esgarçamento da relação com a China. Essas relações podem se desgastar ainda mais?
Rubens Ricupero —
 Essa deterioração é, em grande parte, culpa daquele núcleo mais ideológico, mais fanatizado do governo brasileiro. Mas, para além disso, há uma competição estratégica entre EUA e China, em todos os sentidos — militar, econômico, político etc. Quando o Brasil se alinha a Trump, ele está comprando a agenda norte-americana, que vem com todas as inimizades que os Estados Unidos têm: contra a China, Rússia, Irã, Cuba, e assim por diante.
Portanto, sem nenhuma justificativa para isso, o Brasil está no momento em posição antagônica a todos esses países que constituem grandes mercados para as nossas exportações. É claro que de imediato a China não vai, por exemplo, deixar de comprar soja do Brasil, pois não há uma alternativa fácil para nos substituir como fornecedores de alguns produtos. Mas, no médio e longo prazo, as relações comerciais ser tornarão cada vez mais difíceis. O Brasil está jogando todas as suas esperanças em um país [EUA] do qual ele não pode esperar nada. Nem mercado, nem investimento. 
ConJur — Se não há justificativas, essa postura brasileira com relação à China ocorre por uma questão meramente ideológica?
Rubens Ricupero —
 Puramente ideológica. É o equívoco de uma maneira de ver o mundo. O Brasil vê o mundo com os olhos da guerra fria. É uma visão completamente fora do tempo histórico, anacrônica, porque o país se comporta hoje em relação à China como o governo militar do Castelo Branco em 1964 se comportava em relação à União Soviética. O Brasil vê a China como o centro do comunismo mundial, uma espécie de "origem do mal", quando nada disso corresponde à realidade internacional. 
ConJur — O senhor disse que os EUA — e agora o Brasil — se portam de modo contrário ao sistema criado no pós-guerra, indo no caminho do anti-multilateralismo. Agora o mundo passa por uma pandemia. O coronavírus matou o multilateralismo?
Rubens Ricupero —
 O que está acontecendo com a pandemia é que quase todas as reações têm sido majoritariamente de tipo nacional, infelizmente. Em um primeiro momento, é até compreensível que seja assim, porque diante de uma emergência cada nação reage da forma mais rápida que pode e isso quase sempre é mais fácil no plano nacional. Mas deveríamos rapidamente passar a uma fase de coordenação internacional, tanto para combater a doença quanto para combater as consequências econômicas dela. Há algum esboço para utilizar o Grupo dos Vinte [G20, formado pelos ministros de finanças e chefes dos bancos centrais das maiores economias do mundo] para sustentar a dívida dos países mais pobres durante um ano. Mas são reações fracas.
Mesmo na União Europeia, os países mais afetados pelo coronavírus, como a Itália e a Espanha, não receberam uma ajuda significativa da comunidade europeia. A Itália recebeu mais ajuda da China do que dos seus vizinhos no começo. Agora a União Europeia começa a reagir, mas o panorama é de sombras e luzes — mais de sombras. Existe algum grau de cooperação, mas é pequeno. E existe muitos, infelizmente muitos exemplos de egoísmo nacional, inclusive esses que afetaram o Brasil, de países que se atravessaram para comprar equipamentos que já tinham sido negociados. Então, sem dúvidas, o multilateralismo está em crise. Mas não desespero dele, porque acho que existem inúmeras perspectivas de que isso melhore. Por exemplo, ainda é incerto o que vai acontecer na eleição dos EUA. É possível que, devido a tudo isso, as eleições acabem enfraquecendo o atual presidente e ele não consiga se reeleger. Se ele não se reeleger, teremos condições de recuperar muito do que se perdeu em matéria de multilateralismo, porque 90% ou mais do que está acontecendo é praticamente resultado da ação do governo Trump. 
ConJur — Dentro desse cenário de pandemia, o senhor vislumbra a possibilidade de que surja uma nova ordem econômica e jurídica?
Rubens Ricupero —
 Sobre isso eu tenho dúvidas. Pandemias e epidemias, mesmo as muito mais graves que essa, em geral nunca mudaram o sistema econômico-político. Quando elas foram muito fortes, elas afetaram tendências que já existiam. Mas mesmo a peste negra, a peste bubônica, assim como as pestes que se seguiram, nunca afetaram o sistema político das monarquias da época. As tendências, as rivalidades que existiam, assim como os sistemas econômicos de troca, permaneceram iguais. Os sistemas econômicos, políticos e jurídicos obedecem à ação de forças profundas.
O que podem ocorrer são mudanças de curto prazo, que às vezes se seguem quando há acontecimentos suficientemente poderosos. Eu não ficaria surpreso, por exemplo se, passada essa crise, os países buscarem adquirir uma certa autonomia, uma certa autossuficiência em matéria de produtos farmacêuticos e médico-hospitalares. As nações podem buscar reduzir a dependência sobre esses produtos que existe com relação à China e outros países asiáticos. Isso pode acontecer, mas não vejo a possibilidade de uma reforma profunda na estrutura do capitalismo ou do sistema político que temos hoje. 
ConJur — Com o avanço do novo coronavírus, aliás, foram adotadas algumas medidas emergenciais. O Senado aprovou, por exemplo, o PL 1.179/20, que, entre outras coisas, flexibiliza dispositivos do Código Civil. O que acha de medidas como essa?
Rubens Ricupero —
 A ideia básica de tentar encontrar uma solução para o momento é correta. Há um abalo muito grande até no sistema normal de pagamentos. Muitas empresas e indivíduos não são capazes de cumprir suas obrigações. Em certos casos, as regras precisam ser suspensas, da mesma forma como está se fazendo com regras de contrato de trabalho, flexibilização que busca manter a existência do emprego. Portanto, acredito que essas iniciativas são necessárias. Não me refiro especificamente ao PL citado, mas à tentativa de dar uma resposta ao que está acontecendo. Os contratos são vigentes enquanto mantidas as condições em que eles foram celebrados. Quando as condições se alteram de modo muito radical, muitas vezes não há a possibilidade de manter os termos tal como foram acordados. 
ConJur — Nos últimos anos, uma série de conflitos entre Legislativo e Executivo acabaram sendo resolvidos pelo Judiciário. O que pensa a respeito dessa judicialização?
Rubens Ricupero —
 Eu tenho a impressão de que esse fenômeno coincide com o agravamento da crise institucional. Vivemos uma crise prolongada, que começa no primeiro governo da Dilma Rousseff e que se prolonga até hoje. O impeachment não resolveu a crise e em cada governo surgem problemas novos. No fundo, o quadro é de mau funcionamento das instituições. O sistema presidencialista tem uma rigidez que não permite a solução de problemas quando há impasse entre Executivo e Legislativo — e a tendência é a de que esses poderes entrem cada vez mais em conflito.
Um exemplo que vem logo à mente é a incapacidade que o Legislativo tem de resolver problemas com conteúdos ligados à questões de tipo moral: moral familiar, moral sexual, aborto, casamento entre homossexuais etc. O Legislativo fica paralisado diante dessas questões porque há uma representação grande de grupos religiosos. Então, embora sejam claramente do âmbito do Legislativo, esses temas acabam indo ao Judiciário. Quase todas as grandes decisões envolvendo temas como esses — o aborto no caso de fetos anencéfalos, casamento homoafetivo — foram talhadas pelo Judiciário. Creio que isso continuará acontecendo, porque a solução definitiva é fazer uma reforma profunda do sistema político, o que não parece estar no horizonte. Assim, as pautas continuarão indo ao Judiciário. 
ConJur — Em casos como esses, em que o Legislativo deixa um vácuo ao não tratar de certas questões, é justificável a atuação do Judiciário?
Rubens Ricupero —
 Existe a necessidade colocada pelo próprio sistema político. Não se pode conviver com o vácuo de poder. Há decisões que precisam ser tomadas. Se não forem pelas instâncias que normalmente deveriam resolver o problema, acabam indo aos tribunais. Nesse sentido, a necessidade justifica as decisões judiciais. Não é o ideal, mas não vejo outra saída. 
 é repórter da revista Consultor Jurídico.
 é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.


Desenvolvimento brasileiro, do século XIX à atualidade - Paulo Roberto de Almeida

Desenvolvimento brasileiro, do século XIX à atualidade:
economia, pobreza, trabalho e educação em perspectiva histórica


Paulo Roberto de Almeida
Ensaio sobre as carências do desenvolvimento brasileiro.


Sumário: 
1. Do Império à velha República: o lento desenvolvimento social
2. A modernização conservadora sob tutela militar: 1930-1985
3. As insuficiências sociais da democracia política: 1985-2020
4. Dúvidas e questionamentos sobre o futuro: o que falta ao Brasil?
1. Estabilidade macroeconômica (políticas macro e setoriais);
2. Competição microeconômica (fim de monopólios e carteis);
3. Boa governança (reforma das instituições nos três poderes);
4. Alta qualidade do capital humano (revolução educacional);
5. Abertura ampla a comércio e investimentos internacionais.


O Brasil é, notoriamente, um país contraditório: moderno e atrasado ao mesmo tempo, por vezes digno dos mais legítimos elogios, pela sua pujante economia, mas também sujeito às mais acerbas críticas pelas suas evidentes mazelas sociais. Ambas realidades estão presentes em qualquer análise superficial que se faça sobre o seu panorama econômico e sobre o seu cenário social numa perspectiva de longo prazo. 
Deixando de lado, nesta pequena síntese, os aspectos propriamente políticos, ou institucionais, de seu desenvolvimento no longo século republicano – mais de 130 anos atualmente –, e concentrando os esforços analíticos em apenas quatro áreas desse périplo – economia, pobreza, trabalho e educação –, vamos tentar, neste breve texto, oferecer uma explicação para essa trajetória desigual nos aspectos que contam para um indicador de bem estar social válido, ou seja, aquele que conta no plano individual. 
A realidade é esta: o Brasil se situa entre as grandes economias planetárias, entre as vinte maiores do mundo (e membro do G20), mas que pelo seu nível de renda per capita e nos demais indicadores sociais é remetido para o meio da lista no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano. De fato, ele foi um dos países que mais cresceu ao longo do século XX, pelo menos até os anos 1980, mas que depois disso estagnou, e vem apresentando traços de uma estagnação quase permanente, incapaz de crescer a um ritmo sustentado (e sustentável), para oferecer um crescimento razoável da renda per capita no espaço de uma ou duas gerações.
(...)

Texto disponível na íntegra neste link: 


Por que o Brasil ainda não é um país desenvolvido? (2018) - Paulo Roberto de Almeida

Um trabalho do final de 2018, mas ainda válido em seus argumentos principais. O livro anunciado de Deirdre McCloskey já foi publicado e eu o tenho no meu Kindle.

Por que o Brasil ainda não é um país desenvolvido?

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: Exposição e síntese de argumentos sobre a condição social, econômica, política e educacional do Brasil atual, com o oferecimento de razões gerais e algumas particulares, que explicam, embora não justifiquem, nosso atraso relativo em relação a vários outros países de trajetória mais bem sucedida no último meio século; finalidade: Auto-esclarecimento; exposição pública; debate especializado]


1. Progressos econômicos e sociais: o lento caminhar da humanidade
Perguntas complexas – como a clássica, de como e porque alguns países são desenvolvidos e outros não o são – não podem receber respostas simples, ou simplistas. Por isso, começo por simples constatações de fato, gerais, que podem ser facilmente observadas empiricamente, ou que podem ser comprovadas documentalmente pelos registros históricos. A partir dessas constatações de fato, vou então passar a discutir o caso particular do Brasil, tentando justamente não ser simples ou simplista.
Nove décimos da história da humanidade são uma sucessão de tragédias e de triunfos, mas em meio a grandes sofrimentos para a maior parte. Desnutrição, inanição e morte precoce, pela extrema fragilidade dos recursos alimentares, da intervenção de fatores naturais ou mesmo daqueles criados inteiramente pela mão do homem: invasões, guerras, dominação, escravidão, servidão, exploração, quando não matança pura e simples dos potenciais inimigos e apropriação de suas riquezas, de suas mulheres e crianças. Durante nove décimos da história humana, a escravidão foi um fato corriqueiro na trajetória de muitos povos, seja como dominadores, ou seja, escravocratas, seja como objetos da servidão forçada, pela dominação, pelas dívidas, pela submissão sob qualquer outro pretexto. A fonte de energia natural, original, primordial sempre foi, antes de mais nada e acima de tudo, a humana, seguida pela dos animais reduzidos à servidão pela domesticação humana: bovinos, equinos, muares e outras espécies. A força do fogo, dos ventos, das águas, foi domesticada pouco a pouco, e a história humana se tornou um pouco menos miserável.
Vieram em seguida as melhorias na agricultura, na verdade uma verdadeira revolução tecnológica, talvez a mais importante da trajetória das sociedades humanas, antes da segunda, milhares de anos depois, a revolução industrial, no século 18. Dez mil anos atrás, a revolução agrícola, ou a domesticação deliberada de espécies vegetais e animais pelo homem pré-histórico, bem como a disseminação geográfica dessas técnicas, obtidas por experimentação natural, representou a superação da insegurança alimentar e da ameaça da morte por fome, que sempre pairaram sobre as sociedades coletoras e simplesmente extrativistas. O naturalista Jared Diamond retraçou, em seu famoso livro Armas, Germes e Aço, o destino das primeiras sociedades humanas e a trajetória das técnicas e novas variedades vegetais e animais ao longo do imenso espaço euroasiático e do hemisfério setentrional, identificando então as enormes barreiras que se interporiam a essa mesma disseminação no sentido Norte-Sul, ou seja, ultrapassando a faixa tropical. Tais barreiras, e outras características ambientais e ecológicas, podem estar na origem da grande divergência de desenvolvimento entre o norte temperado e as latitudes tropicais, uma das possíveis razões do lento desenvolvimento, ou da preservação do atraso, nas sociedades do hemisfério meridional (com a grande exceção da Austrália e Nova Zelândia, mas que se situam na zona temperada, e se beneficiaram da colonização britânica).
A revolução industrial, por sua vez, foi a primeira de um ciclo cada vez mais curto e rápido, pois já estamos na quarta revolução industrial; essa história está bem reconstituída no livro de David Landes, A Riqueza e a Pobreza das Nações: porque algumas são tão ricas e outras tão pobres. Dez mil de anos se passaram entre a primeira, a agrícola, e a segunda revolução econômica da espécie humana, a industrial. No intervalo, a humanidade conheceu progressos econômicos muito lentos, com avanços tecnológicos sendo neutralizados pela armadilha malthusiana, a geométrica expansão das populações exercendo uma pressão constante sobre o aumento aritmético da oferta alimentar; essa questão foi discutida no ensaio inovador de história econômica de Gregory Clark: Farewell to Alms. Não obstante, descobertas científicas – escrita, cálculo, observação da natureza, nascimento da própria história – e alguns avanços éticos – religiões não-sacrificiais, filosofia moral, noção de bem público, consciência da unidade fundamental da raça humana – fizeram com que algumas sociedades conhecessem progressos materiais, culturais e artísticos que ainda hoje se colocam como realizações admiráveis do espírito humano, ao lado de aspectos menos edificantes, como matanças em massa, destruição total de civilizações inteiras e extermínio dos mais frágeis. 
Até o século 18 aproximadamente, todas as culturas e civilizações possuíam uma base agrícola endemicamente pouco sustentada, ou minimamente sustentável, com desequilíbrios epidêmicos ocasionais que provocavam surtos de fome e, portanto, eliminação de “excedentes populacionais”, de acordo com concepções malthusianas que, felizmente, deixaram de se justificar no momento mesmo de sua formulação. A partir de um lento acúmulo de inovações progressivas, ao longo de vários séculos, mas também de uma transformação no plano das ideias, a Europa ocidental escapou da armadilha malthusiana – se ela jamais existiu – para enveredar por um caminho de crescimento sustentado, a taxas mais elevadas do que aquelas conhecidas durante séculos, o que levou, pela primeira vez na história da humanidade, a progressos sustentáveis no campo da prosperidade econômica e do bem-estar social. Esse desenvolvimento qualitativo na trajetória secular das nações europeias, da Grã-Bretanha em primeiro lugar, está muito bem descrito nos livros da economista Deirdre McCloskey, segundo uma interpretação conceitual que se afasta no essencial das tradicionais explicações econômicas, ou filosóficas – de natureza marxista, por exemplo –, que afirma o predomínio das ideias, sobre as forças materiais, na grande transformação que inaugurou uma era de enriquecimento jamais vista anteriormente.
Permito-me aqui fazer referência a três obras dessa economista que me fizeram revisar profundamente minha própria concepção sobre a natureza dessa transformação: Bourgeois Equality: how ideas, not capital or institutions, enriched the world (2016), Bourgeois Dignity: Why Economics Can't Explain the Modern World (2010) e The Bourgeois Virtues: ethics for an age of commerce (2006). Seu mais recente livro, ainda está sob impressão, devendo ser publicado no início de 2019: How to be a Humane Libertarian: Essays for a New Liberalism (New Haven: Yale University Press, 2019).
No plano filosófico, ou no da história econômica, essa economista recusa o conceito de capitalismo, ou a designação de capitalista, para falar da economia de mercado, julgando que tais conceitos são de extração marxista e, portanto, inadequados, ademais de serem “erros científicos” (ver seu artigo “Against capitalism”, Reason, jan. 2018; link: http://reason.com/archives/2017/12/21/against-capitalism). Na verdade, como ela mesmo diz, Marx nunca usou ou termo capitalismo – ele falava de “modo burguês de produção – mas ele ligava o conceito ao capital, o que para McCloskey não define a natureza essencial do modo de organização social da produção que passou a existir no Ocidente desde a era moderna. 
O exemplo da China vem à mente, para mim e para ela, como um significativo testemunho de sua tese sobre o desenvolvimento das economias de mercado, não exatamente baseadas em capital ou investimento, mas sim no ambiente ideal de negócios para a potencialização das oportunidades de criação de riqueza e prosperidade. A China sempre foi muito rica, muito mais do que qualquer outro império ou economia nacional; e, no entanto, ela não conseguiu dar o salto produtivo que a colocasse na vanguarda da moderna sociedade industrial e de serviços, como ocorreu a partir do século 18 com o Ocidente. Como argumenta McCloskey, no citado artigo: 
Consider China in 1492, which had long peace, excellent property rights, enforcement of law, absence of crushing intrastate tariffs (a contrast to Europe), and plenty of capital. China built the Great Wall and the Grand Canal with ease, putting even Roman capital projects into the shade. Yet it did not see the explosion of ingenuity that would ultimately enrich northwestern Europe, which was little more than an appalling, quarrelsome backwater in 1492.
What China lacked was not capital or institutions or science or coal, but Adam Smith's ‘liberal plan of equality, liberty, and justice.’ Liberating ordinary people inspired them to extraordinary ideas, which in turn redirected the capital, the labor, the liquid water, and all the other necessaries.

O caso da China, mas não só ele, reforça a visão da economista McCloskey sobre os elementos realmente relevantes nos processos de transição para uma economia de mercado autossustentada, que não são exatamente a disponibilidade de capital ou de tecnologia: “financing is merely a necessary condition, not a sufficient one. The explosion of human ingenuity after the turn of the 19th century, by contrast, was sufficient. The ideas were so good that financing was seldom a problem.” Sua visão é sintetizada por uma frase exemplar, no mesmo artigo: “What made us rich were new ideas for investing it, not the investments themselves, necessary though they were.”
A referência ao caso da China e sua relação, ou, no caso, falta de, com Adam Smith, remete inevitavelmente ao livro de Giovanni Arrighi: Adam Smith in Beijing. Lineages of the 21st Century. O livro constitui um rico desenvolvimento, na linha do seu anterior sobre o “longo século 20”, sobre a reinserção da China na economia global, depois de dois ou três séculos de relativo isolamento com respeito aos progressos da civilização industrial desenvolvida nos espaços norte-atlânticos. Apenas observo que o título está completamente invertido, pois não foi Adam Smith que foi a Beijing, e sim a China que decidiu aderir às ideias do filósofo e economista escocês, depois de anos, de décadas de experimentos surrealistas em economia. Ou seja, a China abandonou as ideias do filósofo social alemão refugiado em Londres – seguindo nisso as propostas de organização econômica e social que Lênin formulou para a Rússia bolchevique a partir da “economia política” de Marx, devidamente criticadas no ato por Ludwig von Mises – e adotou para si os princípios da economia de mercado e de interdependência global. 
Pois bem, com base nessa nova concepção, formulada por Deirdre McCloskey, sobre as origens do desenvolvimento de algumas sociedades contemporâneas – que eu consideraria revolucionária, verdadeiramente inovadora, no quadro da história das ideias sobre o desenvolvimento das sociedades humanas – pode-se, talvez, tentar responder à questão título deste ensaio: Por que o Brasil ainda não é um país desenvolvido? Ou dito de outra forma: Por que o Brasil ainda é um país atrasado?

2. Brasil: as raízes histórico-estruturais, e institucionais, do atraso
Qualquer que sejam as interpretações que se possam fazer sobre as trajetórias diversas de sociedades avançadas e nações atrasadas – e as linhas da grande divergência estão bem marcadas desde o início da primeira revolução industrial, dando finalmente lugar, a partir da terceira onda da globalização contemporânea, a um lento movimento de convergência, mas que ainda não englobou a maior parte das regiões “atrasadas” –, uma coisa fica clara no desenvolvimento histórico das sociedades das Américas, o Novo Mundo, incorporado à economia europeia, e mundial (pois conjugada a uma nova fase do escravismo africano), levando em conta a mesma grande divergência entre sua parte setentrional, basicamente anglo-saxã, e sua vertente latina, ou ibero-americana. É inegável que, partindo de processos colonizadores relativamente contemporâneos, a partir do século 16, o continente norte-americano deslanchou para uma trajetória histórica de precoce progresso material, e institucional, comparado ao mais lento desenvolvimento das nações latinas.
Historiadores econômicos, baseados em dados incompletos sobre produção e exportação de riquezas materiais – commodities agrícolas, recursos minerais, etc. –, formulam a hipótese de que os novos espaços de ocupação ibérica nas Américas eram mesmo mais ricos do que as pequenas colônias agrícolas da América do Norte, criadas ou organizadas por uma vaga de imigrantes pobres, refugiados religiosos ou emigrados econômicos das frias paragens da Europa setentrional, especialmente Inglaterra e Escócia (ainda não unificadas no Reino Unido). Chega-se mesmo a enfatizar a imensa “renda per capita” do Haiti, o maior exportador de açúcar do mundo numa certa fase de sua colonização francesa, como se a renda “monetária” derivada dessas exportações constituísse evidência de progresso material ou de prosperidade na parte ocidental da ilha conhecida como Hispaniola (tendo a futura República Dominicana na sua parte oriental). O próprio Nordeste brasileiro, no auge da produção açucareira, podia de fato exibir um alto “nível” de “renda per capita”, mas assim como o Haiti essa riqueza circulava nos pontos focais dos proprietários e comerciantes, e se organizava sobre a base de uma economia escravista de extrema rotatividade quanto ao material humano.
Mais importante do que a simples disponibilidade de recursos naturais, ou a mobilização de fatores produtivos para a “extração” de valor de colônias de ocupação – em territórios virgens ou já ocupados sobre populações autóctones vivendo nos estágios do paleolítico ou do neolítico superior –, é a conformação geral das instituições sociais  e a capacidade de que podem dispor os agentes primários de criação de riqueza de se proteger contra a extração ou desapropriação dessa mesma riqueza pelos atores políticos atuando a partir de um Estado organizado. Portugal, por exemplo, foi um dos mais antigos “Estados modernos” – ou seja, caracterizados por uma monarquia centralizada – a surgir na Europa ocidental, seguido, dois séculos depois pela Espanha da Reconquista. Ambos países, no entanto, em lugar de contarem com estruturas políticas relativamente descentralizadas, como pode ter sido o caso da Europa setentrional, ou seja, as formações anglo-saxãs, passaram a dispor de monarquias ultracentralizadas, atuando com base nas noções de honra e prestígio típicas de sociedades feudais, estamentais ou aristocráticas, dispondo suas monarquias de amplo poder para dispensar favores, atribuir concessões exclusivas, permitir monopólios, ou simplesmente impedir o estabelecimento de atividades produtivas que funcionassem de modo independente do poder político. 
Se pudéssemos resumir em duas frases simples as características fundamentais das sociedades ibéricas e das sociedades anglo-saxãs – ambas projetadas, não de modo simultâneo, mas estruturalmente similar, no Novo Mundo – seriam estas: tudo o que não for expressamente concedido, permitido, alocado, atribuído pelo poder soberano – sob a forma de alvará régio, de mandato especial, de concessão especial – está ipso facto proibido à iniciativa privada, devendo portanto aguardar que a atribuição regaliana ou burocrática se faça pelo Estado centralizado e centralizador; por outro lado, tudo o que não estiver expressamente proibido por alguma legislação emitida em caráter legal poderá ser objeto de iniciativa individual ou coletiva por parte de particulares, sem a necessidade de um ato concessivo por parte do soberano. As primeiras, obviamente, são as nações da tradição ibérica, as segundas as anglo-saxãs. 
A outra diferença básica, obviamente, é que as colônias de povoamento estruturado em bases familiares na América do Norte, com famílias camponesas transplantando avanços tecnológicos já adquiridos em suas comunidades de origem, não encontram praticamente nenhuma correspondência nas colônias de exploração, ou de extração dos recursos locais, em bases senhoriais, e solidamente apoiadas na servidão das populações originais ou em ampla escravatura recrutada no continente africano, com outros reflexos nos modos de organização política e social em cada lado: a colonização anglo-saxã se faz a partir de instituições relativamente similares às que existiam nas comunidades de origem, com uma democracia de base simbolizada na eleição local dos xerifes de aldeia e de juízes de condado, ao passo que no mundo ibero-americano a representação política sempre obedeceu os ritos do mandonismo dos senhores de terras, secundados por oficiais da metrópole encarregados de um sistema amplamente disseminado de extração de recursos em favor da metrópole colonial.
Um jurista, de formação sociológica, Raymundo Faoro, em sua tese de 1958 sobre os Donos do Poder, analisou o lento desenvolvimento do patrimonialismo ibérico e sua expressão no mandonismo político desde suas origens nas ordenações alfonsinas, seguidas das ordenações manuelinas, substituídas durante a união dos reinos ibéricos (1580-1640) pelas ordenações filipinas, até as formas modernas de corporativismo dos “estamentos burocráticos” que dominam o Estado e as relações contratuais nesses países. O patrimonialismo veio sendo transformado ao longo das novas formas de organização política nos países latino-americanos, sem jamais ter sido extirpado ou reduzido nas modernas repúblicas formalmente democráticas. Ele até assumiu feições extremamente preocupantes no Brasil contemporâneo, quando mesclado a tradições praticamente mafiosas associadas a um sindicalismo tutelado pelo Estado – como existente na vertente peronista da República Sindical argentina – se transformou num patrimonialismo de cunho gangsterista, sob o governo do Partido dos Trabalhadores.
Acresce a essas características do centralismo ibérico, o fato histórico relevante da contrarreforma, um movimento regressista, obscurantista, cientificamente obstrutor do progresso científico, ou seja, reacionário no plano da liberdade de ideias e no de sua transmissão (o Index Librorum Prohibitorum e a Inquisição funcionaram plenamente nas duas monarquias ibéricas até praticamente meados do século 19). A ausência completa de uma revolução científica – tal como ocorrida na tradição baconiana da experimentação – e, mais importante ainda, a completa omissão dessas sociedades na questão da alfabetização de massa impactou profundamente a trajetória posterior dessas sociedades, comparativamente às nações da tradição protestante, nas quais a leitura individual da Bíblia e a escolarização generalizada conduziram a patamares mais elevados de educação formal, e portanto as bases da produtividade do capital humano.
De acordo com dados coletados pelo economista Richard Easterlin, em seu famoso artigo de 1981, “Why isn’t the whole world developed?”, em 1900, no momento em que o Brasil consolidava seu regime republicano, a taxa de matrículas na escola primária era de apenas 258 estudantes para cada 10 mil habitantes, vis-à-vis as taxas de 1.969 estudantes para os Estados Unidos e de 1.576 para a Alemanha. Para ser mais preciso, o Brasil não conseguiu alcançar um nível de cobertura quantitativa em matéria de ensino primário comparável ao dos Estados Unidos no começo do século 19 (em 1820, aproximadamente) antes dos anos 1970, ou seja, cerca de 150 anos depois. Essa realidade, sobre enorme diferença entre as taxas de matrículas respectivas, revela o tamanho da distância, puramente quantitativa vale lembrar, que separa o Brasil das nações educacionalmente mais avançadas; no plano qualitativo, os resultados deploráveis obtidos por estudantes brasileiros no âmbito de exames internacionais quanto a desempenho no ensino médio – por exemplo, o PISA da OCDE – confirmam as enormes carências relativas à formação de capital humano no Brasil. Trata-se de uma insuficiência estrutural construída em séculos de descaso e desprezo com a educação. 
Dispensável dizer que, com base na especialização em um número restrito de produtos primários e no sistema de trabalho escravo, com um mínimo de cultura letrada, inexistência de universidades ou de simples escolas de formação básica, e um sólido monopólio da Coroa sobre todas as formas de expressão política e intelectual, ademais da preservação do regime mercantilista jamais eliminado completamente, o Brasil não poderia sequer sonhar em acompanhar os primeiros rudimentos de revolução industrial que tiveram lugar na Nova Inglaterra, por exemplo, ou em abrir espaço a companhias privadas dedicadas a pequenas indústrias, estaleiros, estabelecimentos comerciais e bancários capazes de impulsionar uma economia de mercado que sempre permaneceu funcionando em bases extremamente precárias. 

3. Brasil: o que fizemos, e o que não fizemos, até aqui?
Os progressos materiais foram, durante todo o século 19, desesperadamente lentos, como argumentou Nathaniel Leff em suas pesquisas sobre o desenvolvimento econômico no Brasil no período monárquico. O início do período republicano trouxe algum alento nas políticas de proteção à indústria nacional, mas em caráter bastante volátil, pois que também dependente da capacidade de importação, que sempre foi dada, até meados do século 20, pela produção rudimentar de algumas poucas commodities de exportação. A partir da depressão dos anos 1930, o Brasil envereda por um esforço de industrialização relativamente bem sucedido, com taxas sustentadas de crescimento que se manterão acima da média mundial, com picos de alto crescimento até as crises do petróleo dos anos 1970, quando a dependência do combustível fóssil se situava acima de 80% do consumo. Nacionalismo, protecionismo, mercantilismo, dirigismo estatal foram os traços básicos do processo de industrialização, quase um stalinismo industrial. 
O alto endividamento provocado pela abundância de petrodólares dessa fase, ademais dos ambiciosos planos militares de fazer do Brasil uma grande potência, a qualquer custo, levaram a que a segunda fase do regime militar fosse caracterizada pelo declínio relativo dos indicadores de crescimento, ao lado da aceleração inflacionária e do desequilíbrio das contas públicas, em nítido contraste com a sua primeira fase, de estabilização macroeconômica, de profundas reformas estruturais e de alto crescimento em praticamente todas as áreas. A despeito de altos investimentos realizados nos ciclos superestruturais da educação, da formação de quadros pós-graduados e de “substituição de importações” na área acadêmica – com uma expansão notável das instituições federais de ensino superior e de pesquisa, o Brasil não adquiriu autonomia na inovação e nos programas de capacitação tecnológica própria. Como em outras esferas do sistema político e nos modos de organização econômica e social, fluxos e estoques de recursos carreados de toda a sociedade se concentraram nos altos estratos da sociedade, fazendo do Brasil um país de alta concentração de renda, em proporções raramente vistas em outras sociedades de nível comparável de renda per capita. 
A educação de massa permaneceu em níveis alarmantemente deploráveis, ou até conheceu retrocessos simultaneamente às grandes ondas migratórias, de urbanização e de democratização social registradas a partir dos anos 1960, com respeito à razoável escola pública construída nas décadas de 1930 a 1950. A falência progressiva da educação pública de massa traduz uma inépcia fundamental das elites brasileiras, todas elas, com destaque para o empresariado industrial, cuja pujança nacional foi alcançada em notável promiscuidade com o Estado e a tecnocracia pública. As mesmas elites, inclusive as oriundas do setor sindical operário, que ascenderam ao poder já no século 21, preservaram as mesmas deformações criadas e alimentadas durante todo o esforço de industrialização ao longo do século 20, quais sejam: o protecionismo, o dirigismo, o mercantilismo, o nacionalismo, o isolamento das cadeias mundiais de valor, em uma palavra, o stalinismo industrial, que já tinha sido a característica do regime militar. 
Ao lado dessas características estruturais e institucionais, cabe referir também a extrema volatilidade das políticas macroeconômicas e setoriais em determinadas fases. O Brasil é, provavelmente, o único país do mundo a ter conhecido oito sucessivas moedas no curso de três gerações, sendo seis diferentes moedas num período inferior a dez anos (os anos de hiperinflação de meados dos anos 1980 à primeira metade da década seguinte). A instabilidade macroeconômica se caracterizou igualmente por crises fiscais, volatilidade cambial, manipulação dos juros de referência e intenso uso dos bancos públicos, ao lado de atrasos indesculpáveis em importantes reformas de estrutura: regimes previdenciário, estrutura laboral, sistema tributário, sistema político-partidário, funcionamento do judiciário, regulação e normalização e várias outras áreas. No plano da competição, cabe registrar a existência de monopólios estatais e de carteis do setor privado, ou seja, alta concentração em alguns setores e ganhos monopólicos em detrimento da renda da população. 
No plano da governança, o Estado brasileiro transformou-se num ogro famélico que suga, captura, extrai recursos, renda e riqueza produzidos no setor privado em favor dos mandarins corporativos exibindo por vezes comportamentos aristocráticos típicos do Ancien Regime, como é o caso do Judiciário. As disparidades de rendimentos do trabalho entre o setor público e o setor privado são inaceitáveis do ponto de vista de um sistema democrático baseado na transparência e na meritocracia. A baixa qualidade do capital humano compromete gravemente um processo de ganhos de produtividade que possam ser refletidos numa maior competitividade externa da economia brasileira, pois o grau de inovação é pífio para os padrões existentes em países de capacitação industrial similar ou comparável. Finalmente, o Brasil é o mais fechado país do G20, com base num coeficiente de abertura externa inferior à metade da média mundial, o que denota baixo grau de abertura econômica e de liberalização comercial. 
Muito resta, portanto, a ser feito, sendo que a maior parte da, senão todas as deficiências estruturais e das insuficiências setoriais encontram-se perfeitamente identificadas, mapeadas e diagnosticadas. Com base em apenas três relatórios anuais elaborados por instituições internacionais é possível ter uma visão comparativa clara sobre o conjunto de reformas e de ajustes a serem implementados para levar o Brasil a um patamar mais aceitável nos principais indicadores de desempenho em escala mundial. O mais importante deles, para a melhoria do ambiente de negócios no plano microeconômico, é o relatório Doing Business do Banco Mundial, que lista de forma sistemática todos os elementos do ambiente regulatório que constrangem e dificultam a atividade empresarial no país. O segundo, também detalhista e meticuloso, é o relatório do World Economic Forum, sobre competitividade global, terreno no qual a trajetória do Brasil tem sido igualmente negativa no período recente. 
O mais importante, porém, inclusive porque se situa num terreno qualitativo e de governança geral da nação, é o relatório do Fraser Institute, Economic Freedom of the World, área na qual o Brasil passou pelo constrangimento, na edição de 2018, de se ver recuado para o último quartil, relativo a países não livres, depois de ter estacionado durante muitos anos no terceiro quartil, o dos parcialmente não livres. De fato, o grau extremo de intervencionismo estatal, o regulacionismo excessivo, um setor público exacerbado pela ação extratora de corporações autistas, centradas unicamente na captura de nacos do orçamento público, ademais de uma classe de capitalistas promíscuos, drogados desde décadas na dependência da ação estatal, coloca o Brasil em patamares inaceitáveis comparativamente aos indicadores de liberdades econômicas vigentes em países de características relativamente similares no mundo. Mesmo a autocrática China apresenta indicadores de liberdade econômica superiores aos do Brasil. 
Por que o Brasil ainda não é um país desenvolvido? Uma resposta simples seria representada pela inépcia das elites, todas as elites, as tradicionais, as “modernas”, as supostamente representativas dos trabalhadores e dos setores populares, os empresários, os banqueiros, os acadêmicos, os políticos, os altos funcionários públicos. Uma resposta mais sofisticada seria sem dúvida alguma encontrada numa análise similar à realizada pela economista Deirdre McCloskey em seus ensaios de história econômica. Ideias erradas, não ausência de capital, explicam o atraso do Brasil na atualidade.

4. Bibliografia, referências: 
Clark, Gregory. A Farewell to Alms: A Brief Economic History of the World. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2007.
Diamond, Jared. Guns, Germs, and Steel: the fates of human societies. New York: Norton, 1997.
Easterlin, Richard A. “Why isn’t the whole world developed?”, Journal of Economic History, 41(1)1:1-19, 1981.
Landes, David S. The Wealth and Poverty of Nations: why some are so rich and some so poor. New York: Norton, 1998 (tradução brasileira: A Riqueza e a Pobreza das Nações: por que algumas são tão ricas e outras tão pobres; Rio de Janeiro: Campus, 1998).
Leff, Nathaniel H. Subdesenvolvimento e Desenvolvimento no Brasil. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1991.
McCloskey, Deirdre Nansen. “Against capitalism”, Reason, january 2018 (disponível: http://reason.com/archives/2017/12/21/against-capitalism; acesso em 7/09/2018).
––––––––. Bourgeois Equality: how ideas, not capital or institutions, enriched the world. Chicago: The University of Chicago Press, 2016; vol. 3, “The Bourgeois Era”. 
––––––––. Bourgeois Dignity: Why Economics Can't Explain the Modern WorldChicago: The University of Chicago Press, 2010; vol. 2, “The Bourgeois Era”.
––––––––. The Bourgeois Virtues: ethics for an age of commerce. Chicago: The University of Chicago Press, 2006; vol. 1, “The Bourgeois Era”.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 8 de novembro de 2018

sábado, 2 de maio de 2020

Sobre a responsabilidade das FFAA e de MILITARES na atual crise de governança no Brasil - Paulo Roberto de Almeida

Sobre a responsabilidade das FFAA e de MILITARES na atual crise de governança no Brasil

Paulo Roberto de Almeida

1. Questões gerais do contexto político atual
Não pretendo, neste breve comentário, dar lições de história do Brasil em geral, sequer de história militar, e muito menos lições de moral, às FFAA enquanto corporação, ou aos militares, individualmente. Minha intenção é apenas de aprofundar, desta vez de forma conjuntural, e de maneira absolutamente impressionista, reflexões que já fiz sobre o papel da FFAA e dos militares na história política do Brasil. Agora eu o faço em relação à situação política atual, que não hesito em classificar como sendo uma crise de governança, uma das mais graves de nossa história, e isso em função exclusivamente do inepto e despreparado, e até desequilibrado chefe de Estado e de governo (para nossa infelicidade).
Acho que já deixei bastante clara, ao final do parágrafo precedente, minha opinião sobre a figura inacreditável que aflige o país e entristece a nação, pela sua total incapacidade de atuar como chefe de governo, e muito menos como chefe de Estado, e como comandante das FFAA, uma vez que não possui as qualidades mínimas para exercer tais papeis. Pode-se, eventualmente, comparar a situação atual com a crise de governança que antecedeu e sucedeu a crise anterior, aquela que se desenvolveu entre 2013 e 2016, e que até contaminou a fase seguinte de transição política, isto é, o período eleitoral e de campanha, entre 2017 e 2018.
No terceiro governo do lulopetismo, o Brasil descobriu que também tinha uma inepta na presidência da República, mas este não foi o motivo das manifestações de 2013, que começaram estimuladas pela esquerda radical, em torno da mensagem demagógica (e mentirosa) da recusa do aumento dos transportes em R$ 0,20 (os famosos vinte centavos). Os protestos logo se desdobraram em manifestações da classe média contra a corrupção no governo, que em seguida se retraiu em face das intervenções violentas de grupos organizados, ao lado de um processo eleitoral, o de 2014, altamente marcado por falcatruas, mentiras, patifarias e grande corrupção, tendo por origem o próprio partido no poder. O quarto governo estava assim comprometido desde o início, sendo inútil discutir agora se o impeachment foi, ou não, um “golpe” contra uma governante legitimamente eleita. Pode ter sido uma espécie de “golpe parlamentar” contra um dirigente inepto, e incapaz de se relacionar normalmente com o Legislativo, como foram todos os demais processos de impeachment na nossa história.
O fato é que o impeachment – sustentado em provas cabais de crimes políticos, de responsabilidade e de outras naturezas – se desenrolou no contexto da mais grave crise econômica de toda a nossa história econômica, ainda mais grave do que a recessão que se seguiu à crise de 1929, que atingiu fortemente o Brasil em 1930-31 (mas logo superada por políticas “keynesianas”, avant la lettre, do governo provisório). O que se tem hoje, depois da Grande Destruição lulopetista da economia – inteiramente determinada pela inépcia e corrupção dos incompetentes dirigentes, e não por qualquer crise internacional –, é um nova Grande Destruição, em parte determinada pelas consequências daquele legado desastroso, mas basicamente potencializada pela pandemia, com efeitos talvez ainda mais devastadores do que a anterior Grande Depressão dos anos 1930.

2. Sobre o papel das FFAA e dos militares nas crises políticas brasileiras
Não pretendo retornar ao que já escrevi em dois textos anteriores, nos quais tentei explicar-me sobre uma distinção que costumo fazer em minha visão do papel político dos militares em nossa história, uma abordagem talvez diferente do que se encontra usualmente nas análises políticas ou nos trabalhos de historiografia brasileira. Estes são os trabalhos: 
3442. “Sobre as intervenções de militares na política brasileira”, Brasília, 31 março 2019, 5+6 p. Introdução histórica e política e comentários de Mario Sabino (Crusoé, n. 48, 31/03/2019) ao texto da Ordem do Dia das FFAA a propósito do dia 31 de março. Publicado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2019/03/para-ler-os-militares-em-1964-e-em-2019.html). Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/s/f60c55b452/sobre-as-intervencoes-de-militares-na-politica-brasileira).
3607. “Sobre intervenções DE militares e DAS Forças Armadas na política”, Brasília, 26 março 2020, 6 p. Retomada do trabalho 3442, para atualizar em função das circunstâncias. Divulgado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/03/sobre-intervencoes-de-militares-e-das.html).

Resumidamente posso repetir que só reconheço três, e apenas três, intervenções das FFAA na política brasileira: em 1930, em 1945 e em 1969, sendo todas as demais intervenções – 1889, revoltas militares dos anos 1920, golpe do Estado Novo de 1937, 1954-55, novas revoltas militares da era JK, e mesmo 1961 e 1964, e mais enfaticamente 1968 – foram intervenções no quadro de crises político-militares, nas quais as FFAA e militares se envolveram ou foram envolvidos, em função de dados específicos a cada conjuntura. Esta visão pode ser disputada, em bases historiográficas e de ciência política, mas eu a defendo, com base em meus critérios analíticos e minha percepção sobre a história do Brasil e sobre o papel de militares, individualmente, e das FFAA, consensualmente ou coletivamente, nessas crises que precipitaram desenlaces e rupturas constitucionais. O Brasil é mais um dos países da América Latina que apresenta notável estabilidade na instabilidade, mas sempre com uma tradição bastante diferente do caudilhismo hispano-americano, dado o legalismo dos nossos militares, que sempre procuraram cercar-se de bacharéis do Direito para legitimar suas intervenções, com raras exceções. O AI-5 é um desses exemplos de “legalismo truculento”, sendo que o “golpe” de 1969 é pura truculência, com um simulacro de legalismo (Emenda Constitucional n. 1, à Constituição de 1967).
Depois da redemocratização de 1985, os militares e as FFAA tiveram uma postura profissional e comportamentos individuais relativamente corretos, com algumas exceções, ao início e em determinados episódios, que transpareceram alguma forma disfarçada de tutela, nos primeiros anos, e depois uma atitude absolutamente profissional, mesmo em face de mudanças que podem tê-los desgostado eventualmente, como a criação do ministério da Defesa, por exemplo, ou determinadas tentativas de se examinar, e documentar, atos de militares e das FFAA na repressão da guerrilha e da oposição em geral durante o regime militar. Eles não gostaram, em outra ocasião, da aceitação do Tratado de Não Proliferação Nuclear (1968; recusado por militares e diplomatas durante 30 anos), e não sei se estavam entusiasmados, ao início, com a missão de paz no Haiti, mas a ela aderiram até com certo entusiasmo, por razões que não cabe aprofundar neste momento. Eles certamente não apreciaram o fato de terem sido deixados “à míngua” durante os dois mandatos de FHC, sem aumento de soldos ou orçamentos generosos (como aliás já tinha ocorrido durante o próprio regime militar), razão pela qual devem ter descarregado muitos votos no candidato petista em mais de uma ocasião, rejeitando os “tucanos traidores”. 
Nas crises sucessivas, de distintas naturezas, entre 2013 e 2018, tiveram, como instituição e sob responsabilidade individual, um comportamento quase inatacável, ao se dobrarem ao estrito cumprimento da lei e da Constituição, com um ou outro extravasamento do comandante do Exército naqueles episódios que poderiam configurar um agravamento da crise política (aqui sob ataque de juristas, de militantes de certos partidos, de observadores do cenário político, por interferência indevida em questão não adstritas às FFAA). Considero, pessoalmente, que esses “deslizes” políticos foram feitos em total boa-fé, e justamente na intenção de preservar a institucionalidade em horas de grande alarido político (como, por exemplo, na demanda por “lei e ordem”, quando de manifestações a favor ou contra a chefe do governo, e no decorrer do processo de impeachment) ou de graves decisões a serem tomadas pela Suprema Corte em relação ao relaxamento de um delinquente político.
Mesmo sem exibir grandes “ideólogos” – e tomo este conceito num sentido eminentemente positivo, como convém em certos contextos –, como as FFAA já tiverem em etapas anteriores (por exemplo, Castelo Branco, Golbery ou o próprio Geisel), as FFAA da atualidade apresentam uma excepcional qualidade intelectual, mercê da dedicação do próprio corpo, assim como de militares individualmente, aos estudos profissionais ou acadêmicos, o que aperfeiçoou enormemente a capacidade de reflexão e de planejamento dos documentos fundamentais da corporação: a END e seus “filhotes” demonstram essa grande qualidade intelectual (com alguns senões que já tive oportunidade de observar em textos dispersos). Não estranha, assim, que as FFAA e os militares tenham sido contemplados com altos graus de reconhecimento por parte da opinião pública, sendo legitimamente reconhecidos como uma das instituição de mais alta credibilidade no precário ranking de avaliação crítica de todas elas pela sociedade em geral. Pessoalmente, eu reconheço as FFAA e a maior parte dos militares como uma das forças mais democráticas e responsáveis dentre as instituições do Estado e dentre as burocracias públicas do país.

3. As FFAA no quadro da atual crise de governança: especulações pessoais
Se estivéssemos em 1903, Lênin perguntaria: “O que fazer?”; mas, certamente não é o caso. Não se trata de um partido dotado de um programa político claro de conquista do poder, e sim de uma força absolutamente comprometida com a manutenção da legalidade constitucional e com a manutenção de sua missão institucional. Em alguns momentos, alertas e advertências já foram veiculadas – como o comandante do Exército, por exemplo –, mas num ambiente negativamente toldado por uma atroz crise de governança, que é inteiramente determinada pela incapacidade – ou intenção deliberada e malévola – do próprio chefe de governo, sobre cujo papel e sobre cuja personalidade já me pronunciei desde a abertura deste texto. Esta é a realidade inescapável: TODAS as crises políticas criadas desde o início do presente governo – mais parecido com um desgoverno – o foram por iniciativa desse personagem totalmente inadequado para assumir com responsabilidade as prerrogativas do cargo para o qual foi eleito, mas em função de circunstâncias e de condições absolutamente excepcionais (que já não existem mais, e não mais vão se reproduzir futuramente).
Não as FFAA, institucionalmente, mas militares certamente, possuem alguma dose de responsabilidade pela ascensão do nefando personagem, uma vez que, direta ou indiretamente, deixaram transparecer, de forma explícita ou discreta, algum apoio ao candidato. Reputo que as razões – assim como no caso de largas frações da classe média – se devem bem mais ao repúdio da era petista anterior e à ameaça de um retorno da organização criminosa que dominou boa parte do cenário político brasileiro nos primeiros três lustros do século, do que propriamente a uma crença lúcida de que se tratava do personagem ideal para corrigir os desmazelos do cenário até então existente. Seja por erro de cálculo, ou por ilusão compartilhada com largos números de apoiadores circunstanciais na campanha eleitoral de 2018, as FFAA e os militares aparentaram algum patrocínio institucional ao candidato, o que, junto com os “lavajatistas” e outras correntes e movimentos em ação desde 2013, foram decisivos em sua vitória eleitoral em outubro daquele ano.
Mesmo que argumentem contra essa visão que os vincula ao candidato e, agora, ao já presidente em exercício, proclamando a continuidade de sua missão institucional, as FFAA e os militares não podem evitar uma espécie de “colusão” com o responsável principal pelo atual desgoverno e pela crise de governança que já é visível sob diferentes critérios. Isso se dá pelo número anormalmente elevado de militares da ativa e reformados em funções de governo, ainda que se alegue a assunção de tarefas públicas sob a escusa da governabilidade. Um governo tecnocrático confiaria aos militares tarefas precípuas às suas especializações profissionais, o que não é necessariamente o caso atual, em diversos exemplos verificáveis. 
Uma constatação superficial, aberta ao escrutínio de qualquer observador isento da atual realidade política brasileira, não hesitaria em classificar a situação atual como de um desgoverno, uma vez que não se tem, desde o início da presente administração, um programa de governo claramente explicitado, explicado, defendido e implementado. O que se tem, em seu lugar, são os instintos primitivos do chefe de governo, dos conselheiros despreparados e dos seus familiares igualmente desprovidos de requerimentos mínimos de governança. Tal situação compromete gravemente a imagem e a credibilidade das FFAA e dos militares em razão desse aparente apoio, que é a communis opinio da sociedade, nestas circunstâncias.
Não vou expressar minha opinião sobre o quê as FFAA e os militares deveriam fazer ante o quadro de desgovernança cabal, que não parece poder ser revertido, uma vez que a minha opinião não tem importância alguma no cenário político mais amplo, e no quadro das forças políticas em movimentação na atualidade. Eu só me permitiria recomendar aos chefes das FFAA e aos militares em geral que fizessem algum esforço de reflexão sobre o quadro futuro de sua credibilidade junto à população, ao aparentarem patrocínio a um governo que, manifestamente, não tem condições de conduzir o país à superação das atuais dificuldades.
Mais adiante poderei me expressar a esse respeito. Vale!

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3661: 2 de maio de 2020

Objetivos estratégicos e prioridades táticas do Brasil (2019) - Paulo Roberto de Almeida

Objetivos estratégicos e prioridades táticas do Brasil

Paulo Roberto de Almeida
[Objetivo: novo diagnóstico sobre metas e meios; finalidade: propostas de trabalho]
Nova elaboração, em outubro de 2019, a partir de texto original de fevereiro de 2019.


Prólogo em outubro de 2019
No início de 2019, sem fazer ainda uma avaliação preliminar global da situação do Brasil – inclusive porque se estava numa fase muito incipiente das atividades do novo governo –, eu elaborei um documento genérico, estabelecendo um diagnóstico geral da situação do Brasil, mais pelo lado estrutural do que pelo lado conjuntural, cujo teor está reproduzido abaixo, com algumas adaptações tópicas ou pontuais. O objetivo era menos o de oferecer um guia sobre o conjunto de desafios a serem enfrentados pelo novo governo e mais uma espécie de “balanço geral” da situação do Brasil no plano sistêmico, ou seja, questões gerais, aplicadas a quaisquer cenários políticos, que deveriam estar nos documentos de planejamento sobre como superar os problemas estruturais e conjunturais do país, supondo-se que o governo – qualquer governo – deve ter uma visão minimamente estruturada sobre seus planos de governo justamente.
Ora, cabe reconhecer de imediato que, passados dez meses completos da nova administração, NENHUM plano de governo foi jamais exposto pelo governo, além e acima de vagos objetivos gerais, sem qualquer elaboração detalhada sobre meios e métodos para o enfrentamento de problemas que, reconheça-se, numa foram expostos com a claridade necessária, salvo impulsos vagos dados por poucas áreas do governo. O que se teve foi, em primeiro lugar, uma grande confusão quanto aos objetivos e metas prioritários do governo, uma indefinição sobre seus métodos de trabalho, e diversos problemas de governança e de falta de diálogo com os demais poderes da República, na verdade minicrises criadas pelo próprio governo, a começar pelo presidente e família, e determinados assessores, em especial aqueles influenciados pelo guru presidencial, um tosco sofista expatriado que parece desempenhar um papel similar ao de Rasputin, essencialmente nefasto sob todos os pontos de vista.
Ao dar início a uma revisão de um texto geral, feito sem qualquer conexão direta com o atual governo, sobre a situação global do Brasil, suas prioridades, com o objetivo precípuo de estabelecer uma contribuição a um debate sobre estratégias e táticas para o país, mais do que para um governo, é preciso deixar claro um diagnóstico inicial sobre a atual situação da governança no Brasil, e ele não é bonito. É preciso partir da premissa, clara, para quem já observou o não funcionamento do governo durante os últimos dez meses de indefinições e crises autofabricadas, que o titular do cargo é singularmente inepto para a alta função que ocupa, que o presidente não tem a menor noção do que significam políticas públicas, que ele vive numa redoma dominada por uma família focada exclusivamente em negócios pessoais, que se colocou voluntariamente sob a influência de um guru absolutamente nefasto do ponto de vista da política interna e da política internacional do Brasil, e que, em última instância, não tem a menor condição de elaborar um diagnóstico claro sobre a situação do país – nos terrenos da economia, da política, da educação, da cultura, ou em quaisquer outros – e tampouco de propor um programa de governo coerente e factível. Resumindo, de maneira a mais explícita possível: o presidente é um incompetente, além de vulgar, grosseiro, ignorante em várias áreas de interesse público, e não tem capacidade para dirigir e coordenar uma equipe de assessores comprometidos com o interesse público. O pequeno círculo de assessores que volteja em torno do presidente é da pior qualidade possível e não existe hipótese de que as más qualidades do governo possam ser corrigidas em tempo hábil.
O restante deste documento será composto pelo diagnóstico e propostas de políticas elaboradas em fevereiro, complementadas por adições tópicas ou revisões de linguagem e de argumentos onde pertinente, com essas inserções aparecendo em tipo itálico, para bem diferenciar do texto original. 
(...)

Ler a íntegra deste paper no seguinte link: