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domingo, 3 de maio de 2020

Por que o Brasil ainda não é um país desenvolvido? (2018) - Paulo Roberto de Almeida

Um trabalho do final de 2018, mas ainda válido em seus argumentos principais. O livro anunciado de Deirdre McCloskey já foi publicado e eu o tenho no meu Kindle.

Por que o Brasil ainda não é um país desenvolvido?

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: Exposição e síntese de argumentos sobre a condição social, econômica, política e educacional do Brasil atual, com o oferecimento de razões gerais e algumas particulares, que explicam, embora não justifiquem, nosso atraso relativo em relação a vários outros países de trajetória mais bem sucedida no último meio século; finalidade: Auto-esclarecimento; exposição pública; debate especializado]


1. Progressos econômicos e sociais: o lento caminhar da humanidade
Perguntas complexas – como a clássica, de como e porque alguns países são desenvolvidos e outros não o são – não podem receber respostas simples, ou simplistas. Por isso, começo por simples constatações de fato, gerais, que podem ser facilmente observadas empiricamente, ou que podem ser comprovadas documentalmente pelos registros históricos. A partir dessas constatações de fato, vou então passar a discutir o caso particular do Brasil, tentando justamente não ser simples ou simplista.
Nove décimos da história da humanidade são uma sucessão de tragédias e de triunfos, mas em meio a grandes sofrimentos para a maior parte. Desnutrição, inanição e morte precoce, pela extrema fragilidade dos recursos alimentares, da intervenção de fatores naturais ou mesmo daqueles criados inteiramente pela mão do homem: invasões, guerras, dominação, escravidão, servidão, exploração, quando não matança pura e simples dos potenciais inimigos e apropriação de suas riquezas, de suas mulheres e crianças. Durante nove décimos da história humana, a escravidão foi um fato corriqueiro na trajetória de muitos povos, seja como dominadores, ou seja, escravocratas, seja como objetos da servidão forçada, pela dominação, pelas dívidas, pela submissão sob qualquer outro pretexto. A fonte de energia natural, original, primordial sempre foi, antes de mais nada e acima de tudo, a humana, seguida pela dos animais reduzidos à servidão pela domesticação humana: bovinos, equinos, muares e outras espécies. A força do fogo, dos ventos, das águas, foi domesticada pouco a pouco, e a história humana se tornou um pouco menos miserável.
Vieram em seguida as melhorias na agricultura, na verdade uma verdadeira revolução tecnológica, talvez a mais importante da trajetória das sociedades humanas, antes da segunda, milhares de anos depois, a revolução industrial, no século 18. Dez mil anos atrás, a revolução agrícola, ou a domesticação deliberada de espécies vegetais e animais pelo homem pré-histórico, bem como a disseminação geográfica dessas técnicas, obtidas por experimentação natural, representou a superação da insegurança alimentar e da ameaça da morte por fome, que sempre pairaram sobre as sociedades coletoras e simplesmente extrativistas. O naturalista Jared Diamond retraçou, em seu famoso livro Armas, Germes e Aço, o destino das primeiras sociedades humanas e a trajetória das técnicas e novas variedades vegetais e animais ao longo do imenso espaço euroasiático e do hemisfério setentrional, identificando então as enormes barreiras que se interporiam a essa mesma disseminação no sentido Norte-Sul, ou seja, ultrapassando a faixa tropical. Tais barreiras, e outras características ambientais e ecológicas, podem estar na origem da grande divergência de desenvolvimento entre o norte temperado e as latitudes tropicais, uma das possíveis razões do lento desenvolvimento, ou da preservação do atraso, nas sociedades do hemisfério meridional (com a grande exceção da Austrália e Nova Zelândia, mas que se situam na zona temperada, e se beneficiaram da colonização britânica).
A revolução industrial, por sua vez, foi a primeira de um ciclo cada vez mais curto e rápido, pois já estamos na quarta revolução industrial; essa história está bem reconstituída no livro de David Landes, A Riqueza e a Pobreza das Nações: porque algumas são tão ricas e outras tão pobres. Dez mil de anos se passaram entre a primeira, a agrícola, e a segunda revolução econômica da espécie humana, a industrial. No intervalo, a humanidade conheceu progressos econômicos muito lentos, com avanços tecnológicos sendo neutralizados pela armadilha malthusiana, a geométrica expansão das populações exercendo uma pressão constante sobre o aumento aritmético da oferta alimentar; essa questão foi discutida no ensaio inovador de história econômica de Gregory Clark: Farewell to Alms. Não obstante, descobertas científicas – escrita, cálculo, observação da natureza, nascimento da própria história – e alguns avanços éticos – religiões não-sacrificiais, filosofia moral, noção de bem público, consciência da unidade fundamental da raça humana – fizeram com que algumas sociedades conhecessem progressos materiais, culturais e artísticos que ainda hoje se colocam como realizações admiráveis do espírito humano, ao lado de aspectos menos edificantes, como matanças em massa, destruição total de civilizações inteiras e extermínio dos mais frágeis. 
Até o século 18 aproximadamente, todas as culturas e civilizações possuíam uma base agrícola endemicamente pouco sustentada, ou minimamente sustentável, com desequilíbrios epidêmicos ocasionais que provocavam surtos de fome e, portanto, eliminação de “excedentes populacionais”, de acordo com concepções malthusianas que, felizmente, deixaram de se justificar no momento mesmo de sua formulação. A partir de um lento acúmulo de inovações progressivas, ao longo de vários séculos, mas também de uma transformação no plano das ideias, a Europa ocidental escapou da armadilha malthusiana – se ela jamais existiu – para enveredar por um caminho de crescimento sustentado, a taxas mais elevadas do que aquelas conhecidas durante séculos, o que levou, pela primeira vez na história da humanidade, a progressos sustentáveis no campo da prosperidade econômica e do bem-estar social. Esse desenvolvimento qualitativo na trajetória secular das nações europeias, da Grã-Bretanha em primeiro lugar, está muito bem descrito nos livros da economista Deirdre McCloskey, segundo uma interpretação conceitual que se afasta no essencial das tradicionais explicações econômicas, ou filosóficas – de natureza marxista, por exemplo –, que afirma o predomínio das ideias, sobre as forças materiais, na grande transformação que inaugurou uma era de enriquecimento jamais vista anteriormente.
Permito-me aqui fazer referência a três obras dessa economista que me fizeram revisar profundamente minha própria concepção sobre a natureza dessa transformação: Bourgeois Equality: how ideas, not capital or institutions, enriched the world (2016), Bourgeois Dignity: Why Economics Can't Explain the Modern World (2010) e The Bourgeois Virtues: ethics for an age of commerce (2006). Seu mais recente livro, ainda está sob impressão, devendo ser publicado no início de 2019: How to be a Humane Libertarian: Essays for a New Liberalism (New Haven: Yale University Press, 2019).
No plano filosófico, ou no da história econômica, essa economista recusa o conceito de capitalismo, ou a designação de capitalista, para falar da economia de mercado, julgando que tais conceitos são de extração marxista e, portanto, inadequados, ademais de serem “erros científicos” (ver seu artigo “Against capitalism”, Reason, jan. 2018; link: http://reason.com/archives/2017/12/21/against-capitalism). Na verdade, como ela mesmo diz, Marx nunca usou ou termo capitalismo – ele falava de “modo burguês de produção – mas ele ligava o conceito ao capital, o que para McCloskey não define a natureza essencial do modo de organização social da produção que passou a existir no Ocidente desde a era moderna. 
O exemplo da China vem à mente, para mim e para ela, como um significativo testemunho de sua tese sobre o desenvolvimento das economias de mercado, não exatamente baseadas em capital ou investimento, mas sim no ambiente ideal de negócios para a potencialização das oportunidades de criação de riqueza e prosperidade. A China sempre foi muito rica, muito mais do que qualquer outro império ou economia nacional; e, no entanto, ela não conseguiu dar o salto produtivo que a colocasse na vanguarda da moderna sociedade industrial e de serviços, como ocorreu a partir do século 18 com o Ocidente. Como argumenta McCloskey, no citado artigo: 
Consider China in 1492, which had long peace, excellent property rights, enforcement of law, absence of crushing intrastate tariffs (a contrast to Europe), and plenty of capital. China built the Great Wall and the Grand Canal with ease, putting even Roman capital projects into the shade. Yet it did not see the explosion of ingenuity that would ultimately enrich northwestern Europe, which was little more than an appalling, quarrelsome backwater in 1492.
What China lacked was not capital or institutions or science or coal, but Adam Smith's ‘liberal plan of equality, liberty, and justice.’ Liberating ordinary people inspired them to extraordinary ideas, which in turn redirected the capital, the labor, the liquid water, and all the other necessaries.

O caso da China, mas não só ele, reforça a visão da economista McCloskey sobre os elementos realmente relevantes nos processos de transição para uma economia de mercado autossustentada, que não são exatamente a disponibilidade de capital ou de tecnologia: “financing is merely a necessary condition, not a sufficient one. The explosion of human ingenuity after the turn of the 19th century, by contrast, was sufficient. The ideas were so good that financing was seldom a problem.” Sua visão é sintetizada por uma frase exemplar, no mesmo artigo: “What made us rich were new ideas for investing it, not the investments themselves, necessary though they were.”
A referência ao caso da China e sua relação, ou, no caso, falta de, com Adam Smith, remete inevitavelmente ao livro de Giovanni Arrighi: Adam Smith in Beijing. Lineages of the 21st Century. O livro constitui um rico desenvolvimento, na linha do seu anterior sobre o “longo século 20”, sobre a reinserção da China na economia global, depois de dois ou três séculos de relativo isolamento com respeito aos progressos da civilização industrial desenvolvida nos espaços norte-atlânticos. Apenas observo que o título está completamente invertido, pois não foi Adam Smith que foi a Beijing, e sim a China que decidiu aderir às ideias do filósofo e economista escocês, depois de anos, de décadas de experimentos surrealistas em economia. Ou seja, a China abandonou as ideias do filósofo social alemão refugiado em Londres – seguindo nisso as propostas de organização econômica e social que Lênin formulou para a Rússia bolchevique a partir da “economia política” de Marx, devidamente criticadas no ato por Ludwig von Mises – e adotou para si os princípios da economia de mercado e de interdependência global. 
Pois bem, com base nessa nova concepção, formulada por Deirdre McCloskey, sobre as origens do desenvolvimento de algumas sociedades contemporâneas – que eu consideraria revolucionária, verdadeiramente inovadora, no quadro da história das ideias sobre o desenvolvimento das sociedades humanas – pode-se, talvez, tentar responder à questão título deste ensaio: Por que o Brasil ainda não é um país desenvolvido? Ou dito de outra forma: Por que o Brasil ainda é um país atrasado?

2. Brasil: as raízes histórico-estruturais, e institucionais, do atraso
Qualquer que sejam as interpretações que se possam fazer sobre as trajetórias diversas de sociedades avançadas e nações atrasadas – e as linhas da grande divergência estão bem marcadas desde o início da primeira revolução industrial, dando finalmente lugar, a partir da terceira onda da globalização contemporânea, a um lento movimento de convergência, mas que ainda não englobou a maior parte das regiões “atrasadas” –, uma coisa fica clara no desenvolvimento histórico das sociedades das Américas, o Novo Mundo, incorporado à economia europeia, e mundial (pois conjugada a uma nova fase do escravismo africano), levando em conta a mesma grande divergência entre sua parte setentrional, basicamente anglo-saxã, e sua vertente latina, ou ibero-americana. É inegável que, partindo de processos colonizadores relativamente contemporâneos, a partir do século 16, o continente norte-americano deslanchou para uma trajetória histórica de precoce progresso material, e institucional, comparado ao mais lento desenvolvimento das nações latinas.
Historiadores econômicos, baseados em dados incompletos sobre produção e exportação de riquezas materiais – commodities agrícolas, recursos minerais, etc. –, formulam a hipótese de que os novos espaços de ocupação ibérica nas Américas eram mesmo mais ricos do que as pequenas colônias agrícolas da América do Norte, criadas ou organizadas por uma vaga de imigrantes pobres, refugiados religiosos ou emigrados econômicos das frias paragens da Europa setentrional, especialmente Inglaterra e Escócia (ainda não unificadas no Reino Unido). Chega-se mesmo a enfatizar a imensa “renda per capita” do Haiti, o maior exportador de açúcar do mundo numa certa fase de sua colonização francesa, como se a renda “monetária” derivada dessas exportações constituísse evidência de progresso material ou de prosperidade na parte ocidental da ilha conhecida como Hispaniola (tendo a futura República Dominicana na sua parte oriental). O próprio Nordeste brasileiro, no auge da produção açucareira, podia de fato exibir um alto “nível” de “renda per capita”, mas assim como o Haiti essa riqueza circulava nos pontos focais dos proprietários e comerciantes, e se organizava sobre a base de uma economia escravista de extrema rotatividade quanto ao material humano.
Mais importante do que a simples disponibilidade de recursos naturais, ou a mobilização de fatores produtivos para a “extração” de valor de colônias de ocupação – em territórios virgens ou já ocupados sobre populações autóctones vivendo nos estágios do paleolítico ou do neolítico superior –, é a conformação geral das instituições sociais  e a capacidade de que podem dispor os agentes primários de criação de riqueza de se proteger contra a extração ou desapropriação dessa mesma riqueza pelos atores políticos atuando a partir de um Estado organizado. Portugal, por exemplo, foi um dos mais antigos “Estados modernos” – ou seja, caracterizados por uma monarquia centralizada – a surgir na Europa ocidental, seguido, dois séculos depois pela Espanha da Reconquista. Ambos países, no entanto, em lugar de contarem com estruturas políticas relativamente descentralizadas, como pode ter sido o caso da Europa setentrional, ou seja, as formações anglo-saxãs, passaram a dispor de monarquias ultracentralizadas, atuando com base nas noções de honra e prestígio típicas de sociedades feudais, estamentais ou aristocráticas, dispondo suas monarquias de amplo poder para dispensar favores, atribuir concessões exclusivas, permitir monopólios, ou simplesmente impedir o estabelecimento de atividades produtivas que funcionassem de modo independente do poder político. 
Se pudéssemos resumir em duas frases simples as características fundamentais das sociedades ibéricas e das sociedades anglo-saxãs – ambas projetadas, não de modo simultâneo, mas estruturalmente similar, no Novo Mundo – seriam estas: tudo o que não for expressamente concedido, permitido, alocado, atribuído pelo poder soberano – sob a forma de alvará régio, de mandato especial, de concessão especial – está ipso facto proibido à iniciativa privada, devendo portanto aguardar que a atribuição regaliana ou burocrática se faça pelo Estado centralizado e centralizador; por outro lado, tudo o que não estiver expressamente proibido por alguma legislação emitida em caráter legal poderá ser objeto de iniciativa individual ou coletiva por parte de particulares, sem a necessidade de um ato concessivo por parte do soberano. As primeiras, obviamente, são as nações da tradição ibérica, as segundas as anglo-saxãs. 
A outra diferença básica, obviamente, é que as colônias de povoamento estruturado em bases familiares na América do Norte, com famílias camponesas transplantando avanços tecnológicos já adquiridos em suas comunidades de origem, não encontram praticamente nenhuma correspondência nas colônias de exploração, ou de extração dos recursos locais, em bases senhoriais, e solidamente apoiadas na servidão das populações originais ou em ampla escravatura recrutada no continente africano, com outros reflexos nos modos de organização política e social em cada lado: a colonização anglo-saxã se faz a partir de instituições relativamente similares às que existiam nas comunidades de origem, com uma democracia de base simbolizada na eleição local dos xerifes de aldeia e de juízes de condado, ao passo que no mundo ibero-americano a representação política sempre obedeceu os ritos do mandonismo dos senhores de terras, secundados por oficiais da metrópole encarregados de um sistema amplamente disseminado de extração de recursos em favor da metrópole colonial.
Um jurista, de formação sociológica, Raymundo Faoro, em sua tese de 1958 sobre os Donos do Poder, analisou o lento desenvolvimento do patrimonialismo ibérico e sua expressão no mandonismo político desde suas origens nas ordenações alfonsinas, seguidas das ordenações manuelinas, substituídas durante a união dos reinos ibéricos (1580-1640) pelas ordenações filipinas, até as formas modernas de corporativismo dos “estamentos burocráticos” que dominam o Estado e as relações contratuais nesses países. O patrimonialismo veio sendo transformado ao longo das novas formas de organização política nos países latino-americanos, sem jamais ter sido extirpado ou reduzido nas modernas repúblicas formalmente democráticas. Ele até assumiu feições extremamente preocupantes no Brasil contemporâneo, quando mesclado a tradições praticamente mafiosas associadas a um sindicalismo tutelado pelo Estado – como existente na vertente peronista da República Sindical argentina – se transformou num patrimonialismo de cunho gangsterista, sob o governo do Partido dos Trabalhadores.
Acresce a essas características do centralismo ibérico, o fato histórico relevante da contrarreforma, um movimento regressista, obscurantista, cientificamente obstrutor do progresso científico, ou seja, reacionário no plano da liberdade de ideias e no de sua transmissão (o Index Librorum Prohibitorum e a Inquisição funcionaram plenamente nas duas monarquias ibéricas até praticamente meados do século 19). A ausência completa de uma revolução científica – tal como ocorrida na tradição baconiana da experimentação – e, mais importante ainda, a completa omissão dessas sociedades na questão da alfabetização de massa impactou profundamente a trajetória posterior dessas sociedades, comparativamente às nações da tradição protestante, nas quais a leitura individual da Bíblia e a escolarização generalizada conduziram a patamares mais elevados de educação formal, e portanto as bases da produtividade do capital humano.
De acordo com dados coletados pelo economista Richard Easterlin, em seu famoso artigo de 1981, “Why isn’t the whole world developed?”, em 1900, no momento em que o Brasil consolidava seu regime republicano, a taxa de matrículas na escola primária era de apenas 258 estudantes para cada 10 mil habitantes, vis-à-vis as taxas de 1.969 estudantes para os Estados Unidos e de 1.576 para a Alemanha. Para ser mais preciso, o Brasil não conseguiu alcançar um nível de cobertura quantitativa em matéria de ensino primário comparável ao dos Estados Unidos no começo do século 19 (em 1820, aproximadamente) antes dos anos 1970, ou seja, cerca de 150 anos depois. Essa realidade, sobre enorme diferença entre as taxas de matrículas respectivas, revela o tamanho da distância, puramente quantitativa vale lembrar, que separa o Brasil das nações educacionalmente mais avançadas; no plano qualitativo, os resultados deploráveis obtidos por estudantes brasileiros no âmbito de exames internacionais quanto a desempenho no ensino médio – por exemplo, o PISA da OCDE – confirmam as enormes carências relativas à formação de capital humano no Brasil. Trata-se de uma insuficiência estrutural construída em séculos de descaso e desprezo com a educação. 
Dispensável dizer que, com base na especialização em um número restrito de produtos primários e no sistema de trabalho escravo, com um mínimo de cultura letrada, inexistência de universidades ou de simples escolas de formação básica, e um sólido monopólio da Coroa sobre todas as formas de expressão política e intelectual, ademais da preservação do regime mercantilista jamais eliminado completamente, o Brasil não poderia sequer sonhar em acompanhar os primeiros rudimentos de revolução industrial que tiveram lugar na Nova Inglaterra, por exemplo, ou em abrir espaço a companhias privadas dedicadas a pequenas indústrias, estaleiros, estabelecimentos comerciais e bancários capazes de impulsionar uma economia de mercado que sempre permaneceu funcionando em bases extremamente precárias. 

3. Brasil: o que fizemos, e o que não fizemos, até aqui?
Os progressos materiais foram, durante todo o século 19, desesperadamente lentos, como argumentou Nathaniel Leff em suas pesquisas sobre o desenvolvimento econômico no Brasil no período monárquico. O início do período republicano trouxe algum alento nas políticas de proteção à indústria nacional, mas em caráter bastante volátil, pois que também dependente da capacidade de importação, que sempre foi dada, até meados do século 20, pela produção rudimentar de algumas poucas commodities de exportação. A partir da depressão dos anos 1930, o Brasil envereda por um esforço de industrialização relativamente bem sucedido, com taxas sustentadas de crescimento que se manterão acima da média mundial, com picos de alto crescimento até as crises do petróleo dos anos 1970, quando a dependência do combustível fóssil se situava acima de 80% do consumo. Nacionalismo, protecionismo, mercantilismo, dirigismo estatal foram os traços básicos do processo de industrialização, quase um stalinismo industrial. 
O alto endividamento provocado pela abundância de petrodólares dessa fase, ademais dos ambiciosos planos militares de fazer do Brasil uma grande potência, a qualquer custo, levaram a que a segunda fase do regime militar fosse caracterizada pelo declínio relativo dos indicadores de crescimento, ao lado da aceleração inflacionária e do desequilíbrio das contas públicas, em nítido contraste com a sua primeira fase, de estabilização macroeconômica, de profundas reformas estruturais e de alto crescimento em praticamente todas as áreas. A despeito de altos investimentos realizados nos ciclos superestruturais da educação, da formação de quadros pós-graduados e de “substituição de importações” na área acadêmica – com uma expansão notável das instituições federais de ensino superior e de pesquisa, o Brasil não adquiriu autonomia na inovação e nos programas de capacitação tecnológica própria. Como em outras esferas do sistema político e nos modos de organização econômica e social, fluxos e estoques de recursos carreados de toda a sociedade se concentraram nos altos estratos da sociedade, fazendo do Brasil um país de alta concentração de renda, em proporções raramente vistas em outras sociedades de nível comparável de renda per capita. 
A educação de massa permaneceu em níveis alarmantemente deploráveis, ou até conheceu retrocessos simultaneamente às grandes ondas migratórias, de urbanização e de democratização social registradas a partir dos anos 1960, com respeito à razoável escola pública construída nas décadas de 1930 a 1950. A falência progressiva da educação pública de massa traduz uma inépcia fundamental das elites brasileiras, todas elas, com destaque para o empresariado industrial, cuja pujança nacional foi alcançada em notável promiscuidade com o Estado e a tecnocracia pública. As mesmas elites, inclusive as oriundas do setor sindical operário, que ascenderam ao poder já no século 21, preservaram as mesmas deformações criadas e alimentadas durante todo o esforço de industrialização ao longo do século 20, quais sejam: o protecionismo, o dirigismo, o mercantilismo, o nacionalismo, o isolamento das cadeias mundiais de valor, em uma palavra, o stalinismo industrial, que já tinha sido a característica do regime militar. 
Ao lado dessas características estruturais e institucionais, cabe referir também a extrema volatilidade das políticas macroeconômicas e setoriais em determinadas fases. O Brasil é, provavelmente, o único país do mundo a ter conhecido oito sucessivas moedas no curso de três gerações, sendo seis diferentes moedas num período inferior a dez anos (os anos de hiperinflação de meados dos anos 1980 à primeira metade da década seguinte). A instabilidade macroeconômica se caracterizou igualmente por crises fiscais, volatilidade cambial, manipulação dos juros de referência e intenso uso dos bancos públicos, ao lado de atrasos indesculpáveis em importantes reformas de estrutura: regimes previdenciário, estrutura laboral, sistema tributário, sistema político-partidário, funcionamento do judiciário, regulação e normalização e várias outras áreas. No plano da competição, cabe registrar a existência de monopólios estatais e de carteis do setor privado, ou seja, alta concentração em alguns setores e ganhos monopólicos em detrimento da renda da população. 
No plano da governança, o Estado brasileiro transformou-se num ogro famélico que suga, captura, extrai recursos, renda e riqueza produzidos no setor privado em favor dos mandarins corporativos exibindo por vezes comportamentos aristocráticos típicos do Ancien Regime, como é o caso do Judiciário. As disparidades de rendimentos do trabalho entre o setor público e o setor privado são inaceitáveis do ponto de vista de um sistema democrático baseado na transparência e na meritocracia. A baixa qualidade do capital humano compromete gravemente um processo de ganhos de produtividade que possam ser refletidos numa maior competitividade externa da economia brasileira, pois o grau de inovação é pífio para os padrões existentes em países de capacitação industrial similar ou comparável. Finalmente, o Brasil é o mais fechado país do G20, com base num coeficiente de abertura externa inferior à metade da média mundial, o que denota baixo grau de abertura econômica e de liberalização comercial. 
Muito resta, portanto, a ser feito, sendo que a maior parte da, senão todas as deficiências estruturais e das insuficiências setoriais encontram-se perfeitamente identificadas, mapeadas e diagnosticadas. Com base em apenas três relatórios anuais elaborados por instituições internacionais é possível ter uma visão comparativa clara sobre o conjunto de reformas e de ajustes a serem implementados para levar o Brasil a um patamar mais aceitável nos principais indicadores de desempenho em escala mundial. O mais importante deles, para a melhoria do ambiente de negócios no plano microeconômico, é o relatório Doing Business do Banco Mundial, que lista de forma sistemática todos os elementos do ambiente regulatório que constrangem e dificultam a atividade empresarial no país. O segundo, também detalhista e meticuloso, é o relatório do World Economic Forum, sobre competitividade global, terreno no qual a trajetória do Brasil tem sido igualmente negativa no período recente. 
O mais importante, porém, inclusive porque se situa num terreno qualitativo e de governança geral da nação, é o relatório do Fraser Institute, Economic Freedom of the World, área na qual o Brasil passou pelo constrangimento, na edição de 2018, de se ver recuado para o último quartil, relativo a países não livres, depois de ter estacionado durante muitos anos no terceiro quartil, o dos parcialmente não livres. De fato, o grau extremo de intervencionismo estatal, o regulacionismo excessivo, um setor público exacerbado pela ação extratora de corporações autistas, centradas unicamente na captura de nacos do orçamento público, ademais de uma classe de capitalistas promíscuos, drogados desde décadas na dependência da ação estatal, coloca o Brasil em patamares inaceitáveis comparativamente aos indicadores de liberdades econômicas vigentes em países de características relativamente similares no mundo. Mesmo a autocrática China apresenta indicadores de liberdade econômica superiores aos do Brasil. 
Por que o Brasil ainda não é um país desenvolvido? Uma resposta simples seria representada pela inépcia das elites, todas as elites, as tradicionais, as “modernas”, as supostamente representativas dos trabalhadores e dos setores populares, os empresários, os banqueiros, os acadêmicos, os políticos, os altos funcionários públicos. Uma resposta mais sofisticada seria sem dúvida alguma encontrada numa análise similar à realizada pela economista Deirdre McCloskey em seus ensaios de história econômica. Ideias erradas, não ausência de capital, explicam o atraso do Brasil na atualidade.

4. Bibliografia, referências: 
Clark, Gregory. A Farewell to Alms: A Brief Economic History of the World. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2007.
Diamond, Jared. Guns, Germs, and Steel: the fates of human societies. New York: Norton, 1997.
Easterlin, Richard A. “Why isn’t the whole world developed?”, Journal of Economic History, 41(1)1:1-19, 1981.
Landes, David S. The Wealth and Poverty of Nations: why some are so rich and some so poor. New York: Norton, 1998 (tradução brasileira: A Riqueza e a Pobreza das Nações: por que algumas são tão ricas e outras tão pobres; Rio de Janeiro: Campus, 1998).
Leff, Nathaniel H. Subdesenvolvimento e Desenvolvimento no Brasil. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1991.
McCloskey, Deirdre Nansen. “Against capitalism”, Reason, january 2018 (disponível: http://reason.com/archives/2017/12/21/against-capitalism; acesso em 7/09/2018).
––––––––. Bourgeois Equality: how ideas, not capital or institutions, enriched the world. Chicago: The University of Chicago Press, 2016; vol. 3, “The Bourgeois Era”. 
––––––––. Bourgeois Dignity: Why Economics Can't Explain the Modern WorldChicago: The University of Chicago Press, 2010; vol. 2, “The Bourgeois Era”.
––––––––. The Bourgeois Virtues: ethics for an age of commerce. Chicago: The University of Chicago Press, 2006; vol. 1, “The Bourgeois Era”.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 8 de novembro de 2018

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