Sobre a responsabilidade das FFAA e de MILITARES na atual crise de governança no Brasil
Paulo Roberto de Almeida
1. Questões gerais do contexto político atual
Não pretendo, neste breve comentário, dar lições de história do Brasil em geral, sequer de história militar, e muito menos lições de moral, às FFAA enquanto corporação, ou aos militares, individualmente. Minha intenção é apenas de aprofundar, desta vez de forma conjuntural, e de maneira absolutamente impressionista, reflexões que já fiz sobre o papel da FFAA e dos militares na história política do Brasil. Agora eu o faço em relação à situação política atual, que não hesito em classificar como sendo uma crise de governança, uma das mais graves de nossa história, e isso em função exclusivamente do inepto e despreparado, e até desequilibrado chefe de Estado e de governo (para nossa infelicidade).
Acho que já deixei bastante clara, ao final do parágrafo precedente, minha opinião sobre a figura inacreditável que aflige o país e entristece a nação, pela sua total incapacidade de atuar como chefe de governo, e muito menos como chefe de Estado, e como comandante das FFAA, uma vez que não possui as qualidades mínimas para exercer tais papeis. Pode-se, eventualmente, comparar a situação atual com a crise de governança que antecedeu e sucedeu a crise anterior, aquela que se desenvolveu entre 2013 e 2016, e que até contaminou a fase seguinte de transição política, isto é, o período eleitoral e de campanha, entre 2017 e 2018.
No terceiro governo do lulopetismo, o Brasil descobriu que também tinha uma inepta na presidência da República, mas este não foi o motivo das manifestações de 2013, que começaram estimuladas pela esquerda radical, em torno da mensagem demagógica (e mentirosa) da recusa do aumento dos transportes em R$ 0,20 (os famosos vinte centavos). Os protestos logo se desdobraram em manifestações da classe média contra a corrupção no governo, que em seguida se retraiu em face das intervenções violentas de grupos organizados, ao lado de um processo eleitoral, o de 2014, altamente marcado por falcatruas, mentiras, patifarias e grande corrupção, tendo por origem o próprio partido no poder. O quarto governo estava assim comprometido desde o início, sendo inútil discutir agora se o impeachment foi, ou não, um “golpe” contra uma governante legitimamente eleita. Pode ter sido uma espécie de “golpe parlamentar” contra um dirigente inepto, e incapaz de se relacionar normalmente com o Legislativo, como foram todos os demais processos de impeachment na nossa história.
O fato é que o impeachment – sustentado em provas cabais de crimes políticos, de responsabilidade e de outras naturezas – se desenrolou no contexto da mais grave crise econômica de toda a nossa história econômica, ainda mais grave do que a recessão que se seguiu à crise de 1929, que atingiu fortemente o Brasil em 1930-31 (mas logo superada por políticas “keynesianas”, avant la lettre, do governo provisório). O que se tem hoje, depois da Grande Destruição lulopetista da economia – inteiramente determinada pela inépcia e corrupção dos incompetentes dirigentes, e não por qualquer crise internacional –, é um nova Grande Destruição, em parte determinada pelas consequências daquele legado desastroso, mas basicamente potencializada pela pandemia, com efeitos talvez ainda mais devastadores do que a anterior Grande Depressão dos anos 1930.
2. Sobre o papel das FFAA e dos militares nas crises políticas brasileiras
Não pretendo retornar ao que já escrevi em dois textos anteriores, nos quais tentei explicar-me sobre uma distinção que costumo fazer em minha visão do papel político dos militares em nossa história, uma abordagem talvez diferente do que se encontra usualmente nas análises políticas ou nos trabalhos de historiografia brasileira. Estes são os trabalhos:
3442. “Sobre as intervenções de militares na política brasileira”, Brasília, 31 março 2019, 5+6 p. Introdução histórica e política e comentários de Mario Sabino (Crusoé, n. 48, 31/03/2019) ao texto da Ordem do Dia das FFAA a propósito do dia 31 de março. Publicado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2019/03/para-ler-os-militares-em-1964-e-em-2019.html). Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/s/f60c55b452/sobre-as-intervencoes-de-militares-na-politica-brasileira).
3607. “Sobre intervenções DE militares e DAS Forças Armadas na política”, Brasília, 26 março 2020, 6 p. Retomada do trabalho 3442, para atualizar em função das circunstâncias. Divulgado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/03/sobre-intervencoes-de-militares-e-das.html).
Resumidamente posso repetir que só reconheço três, e apenas três, intervenções das FFAA na política brasileira: em 1930, em 1945 e em 1969, sendo todas as demais intervenções – 1889, revoltas militares dos anos 1920, golpe do Estado Novo de 1937, 1954-55, novas revoltas militares da era JK, e mesmo 1961 e 1964, e mais enfaticamente 1968 – foram intervenções no quadro de crises político-militares, nas quais as FFAA e militares se envolveram ou foram envolvidos, em função de dados específicos a cada conjuntura. Esta visão pode ser disputada, em bases historiográficas e de ciência política, mas eu a defendo, com base em meus critérios analíticos e minha percepção sobre a história do Brasil e sobre o papel de militares, individualmente, e das FFAA, consensualmente ou coletivamente, nessas crises que precipitaram desenlaces e rupturas constitucionais. O Brasil é mais um dos países da América Latina que apresenta notável estabilidade na instabilidade, mas sempre com uma tradição bastante diferente do caudilhismo hispano-americano, dado o legalismo dos nossos militares, que sempre procuraram cercar-se de bacharéis do Direito para legitimar suas intervenções, com raras exceções. O AI-5 é um desses exemplos de “legalismo truculento”, sendo que o “golpe” de 1969 é pura truculência, com um simulacro de legalismo (Emenda Constitucional n. 1, à Constituição de 1967).
Depois da redemocratização de 1985, os militares e as FFAA tiveram uma postura profissional e comportamentos individuais relativamente corretos, com algumas exceções, ao início e em determinados episódios, que transpareceram alguma forma disfarçada de tutela, nos primeiros anos, e depois uma atitude absolutamente profissional, mesmo em face de mudanças que podem tê-los desgostado eventualmente, como a criação do ministério da Defesa, por exemplo, ou determinadas tentativas de se examinar, e documentar, atos de militares e das FFAA na repressão da guerrilha e da oposição em geral durante o regime militar. Eles não gostaram, em outra ocasião, da aceitação do Tratado de Não Proliferação Nuclear (1968; recusado por militares e diplomatas durante 30 anos), e não sei se estavam entusiasmados, ao início, com a missão de paz no Haiti, mas a ela aderiram até com certo entusiasmo, por razões que não cabe aprofundar neste momento. Eles certamente não apreciaram o fato de terem sido deixados “à míngua” durante os dois mandatos de FHC, sem aumento de soldos ou orçamentos generosos (como aliás já tinha ocorrido durante o próprio regime militar), razão pela qual devem ter descarregado muitos votos no candidato petista em mais de uma ocasião, rejeitando os “tucanos traidores”.
Nas crises sucessivas, de distintas naturezas, entre 2013 e 2018, tiveram, como instituição e sob responsabilidade individual, um comportamento quase inatacável, ao se dobrarem ao estrito cumprimento da lei e da Constituição, com um ou outro extravasamento do comandante do Exército naqueles episódios que poderiam configurar um agravamento da crise política (aqui sob ataque de juristas, de militantes de certos partidos, de observadores do cenário político, por interferência indevida em questão não adstritas às FFAA). Considero, pessoalmente, que esses “deslizes” políticos foram feitos em total boa-fé, e justamente na intenção de preservar a institucionalidade em horas de grande alarido político (como, por exemplo, na demanda por “lei e ordem”, quando de manifestações a favor ou contra a chefe do governo, e no decorrer do processo de impeachment) ou de graves decisões a serem tomadas pela Suprema Corte em relação ao relaxamento de um delinquente político.
Mesmo sem exibir grandes “ideólogos” – e tomo este conceito num sentido eminentemente positivo, como convém em certos contextos –, como as FFAA já tiverem em etapas anteriores (por exemplo, Castelo Branco, Golbery ou o próprio Geisel), as FFAA da atualidade apresentam uma excepcional qualidade intelectual, mercê da dedicação do próprio corpo, assim como de militares individualmente, aos estudos profissionais ou acadêmicos, o que aperfeiçoou enormemente a capacidade de reflexão e de planejamento dos documentos fundamentais da corporação: a END e seus “filhotes” demonstram essa grande qualidade intelectual (com alguns senões que já tive oportunidade de observar em textos dispersos). Não estranha, assim, que as FFAA e os militares tenham sido contemplados com altos graus de reconhecimento por parte da opinião pública, sendo legitimamente reconhecidos como uma das instituição de mais alta credibilidade no precário ranking de avaliação crítica de todas elas pela sociedade em geral. Pessoalmente, eu reconheço as FFAA e a maior parte dos militares como uma das forças mais democráticas e responsáveis dentre as instituições do Estado e dentre as burocracias públicas do país.
3. As FFAA no quadro da atual crise de governança: especulações pessoais
Se estivéssemos em 1903, Lênin perguntaria: “O que fazer?”; mas, certamente não é o caso. Não se trata de um partido dotado de um programa político claro de conquista do poder, e sim de uma força absolutamente comprometida com a manutenção da legalidade constitucional e com a manutenção de sua missão institucional. Em alguns momentos, alertas e advertências já foram veiculadas – como o comandante do Exército, por exemplo –, mas num ambiente negativamente toldado por uma atroz crise de governança, que é inteiramente determinada pela incapacidade – ou intenção deliberada e malévola – do próprio chefe de governo, sobre cujo papel e sobre cuja personalidade já me pronunciei desde a abertura deste texto. Esta é a realidade inescapável: TODAS as crises políticas criadas desde o início do presente governo – mais parecido com um desgoverno – o foram por iniciativa desse personagem totalmente inadequado para assumir com responsabilidade as prerrogativas do cargo para o qual foi eleito, mas em função de circunstâncias e de condições absolutamente excepcionais (que já não existem mais, e não mais vão se reproduzir futuramente).
Não as FFAA, institucionalmente, mas militares certamente, possuem alguma dose de responsabilidade pela ascensão do nefando personagem, uma vez que, direta ou indiretamente, deixaram transparecer, de forma explícita ou discreta, algum apoio ao candidato. Reputo que as razões – assim como no caso de largas frações da classe média – se devem bem mais ao repúdio da era petista anterior e à ameaça de um retorno da organização criminosa que dominou boa parte do cenário político brasileiro nos primeiros três lustros do século, do que propriamente a uma crença lúcida de que se tratava do personagem ideal para corrigir os desmazelos do cenário até então existente. Seja por erro de cálculo, ou por ilusão compartilhada com largos números de apoiadores circunstanciais na campanha eleitoral de 2018, as FFAA e os militares aparentaram algum patrocínio institucional ao candidato, o que, junto com os “lavajatistas” e outras correntes e movimentos em ação desde 2013, foram decisivos em sua vitória eleitoral em outubro daquele ano.
Mesmo que argumentem contra essa visão que os vincula ao candidato e, agora, ao já presidente em exercício, proclamando a continuidade de sua missão institucional, as FFAA e os militares não podem evitar uma espécie de “colusão” com o responsável principal pelo atual desgoverno e pela crise de governança que já é visível sob diferentes critérios. Isso se dá pelo número anormalmente elevado de militares da ativa e reformados em funções de governo, ainda que se alegue a assunção de tarefas públicas sob a escusa da governabilidade. Um governo tecnocrático confiaria aos militares tarefas precípuas às suas especializações profissionais, o que não é necessariamente o caso atual, em diversos exemplos verificáveis.
Uma constatação superficial, aberta ao escrutínio de qualquer observador isento da atual realidade política brasileira, não hesitaria em classificar a situação atual como de um desgoverno, uma vez que não se tem, desde o início da presente administração, um programa de governo claramente explicitado, explicado, defendido e implementado. O que se tem, em seu lugar, são os instintos primitivos do chefe de governo, dos conselheiros despreparados e dos seus familiares igualmente desprovidos de requerimentos mínimos de governança. Tal situação compromete gravemente a imagem e a credibilidade das FFAA e dos militares em razão desse aparente apoio, que é a communis opinio da sociedade, nestas circunstâncias.
Não vou expressar minha opinião sobre o quê as FFAA e os militares deveriam fazer ante o quadro de desgovernança cabal, que não parece poder ser revertido, uma vez que a minha opinião não tem importância alguma no cenário político mais amplo, e no quadro das forças políticas em movimentação na atualidade. Eu só me permitiria recomendar aos chefes das FFAA e aos militares em geral que fizessem algum esforço de reflexão sobre o quadro futuro de sua credibilidade junto à população, ao aparentarem patrocínio a um governo que, manifestamente, não tem condições de conduzir o país à superação das atuais dificuldades.
Mais adiante poderei me expressar a esse respeito. Vale!
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3661: 2 de maio de 2020
Um comentário:
Bem, na sua opiniao entao o atual chefe do Executivo eh um idiota despreparado que nao age com a cabeca. Hum... de certa maneira vejo isso em suas entrevistas a porta do Palacio, mas nao nas restantes acoes. O que vejo mesmo eh um governante honesto sendo covardemente massacrado e sabotado pelos demais poderes que nao estao podendo mais destruir e corromper como sempre fizeram nos ultimos 20 anos. Tudo o que eu espero das FFAA eh a preservacao da Democracia, com D maiusculo, e para isso chego a apoiar, como milhoes de outroas brasileiros, uma intervencao nos poderes insubmissos a vontade do Povo, segundo assegura a Constituicao. O que o STF e o Congresso estao fazendo eh uma afronta ao povo. Porque voce que tem um vasto saber diplomatico nao mostra isso tambem em seus escritos ? Agradeceriamos imensamente. Vou continuar a seguir seu Blog, mesmo nao concordando com suas opinioes, pois gosto de ver o contraditorio. Desculpe o portugues sem acentos por conta do meu teclado US. Obrigado.
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