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segunda-feira, 15 de junho de 2020

Mais um manifesto da "linha dura" contra o ministro Celso de Mello - Joaquim Carvalho (DCM)

Embaixador que assina manifesto contra Celso de Mello foi dedo-duro do regime dos generais. Por Joaquim de Carvalho

 
Marcos Henrique Camillo Cortes
Os 78 signatários do manifesto contra Celso de Mello não valem um ovo para quem ama a justiça e a democracia.
Não são apenas militares de pijama que assim o texto patético. Entre outras frases miseráveis, dizem:
“Nenhum Militar galga todos os postos da carreira, porque fez uso de um palavreado enfadonho, supérfluo, verboso, ardiloso, como um bolodório de doutor de faculdade.”
Vivandeiras e lambedores de botas de militares também endossaram o manifesto.
Um desses é o embaixador Marcos Henrique Camillo Cortes, que foi chefe do Centro de Informações do Exterior do Ministério das Relações Exteriores (Ciex), um órgão que espionava brasileiros no exterior, segundo apurou a Comissão da Verdade.
Segue o trecho do texto publicado pelo Senado à época:
Embaixadores monitoravam brasileiros considerados subversivos pelo regime. Comissão Nacional da Verdade revelou casos em relatório apresentado ao governo.
Um embaixador escondido atrás das pilastras do Hotel Bristol, em Paris, para observar os encontros da esposa do ex-presidente Juscelino Kubitschek, Sarah Kubitschek. Os estreitos laços entre a polícia política uruguaia e a embaixada brasileira em Montevidéu, que vigiavam os movimentos do então ex-deputado Leonel Brizola, exilado no país. O cônsul-geral de Santiago, no Chile, atento aos passos dos brasileiros que recebiam aulas de caratê em um clube da capital chilena. Essas são algumas das ações da rede de espionagem montada pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) durante a ditadura militar (1964-1985) e que estão descritas no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
A atuação do Itamaraty e a participação dos embaixadores é detalhada pelos pesquisadores da CNV, que tiveram acesso a documentos do MRE e do Arquivo Nacional. Com o levantamento, eles concluíram que “o Itamaraty desvirtuou suas funções a ponto de envolver-se diretamente com a violência ilegal e com a exceção”. Os postos do Itamaraty no exterior e os diplomatas nas embaixadas e nos consulados, segundo documentos obtidos pela CNV, foram instrumentos da política repressiva.
“Muitos diplomatas e funcionários de outras categorias do serviço exterior desempenharam funções de espionagem de brasileiros que se opunham ao regime: restringiram-lhes o exercício de direitos fundamentais, criaram embaraços à vida cotidiana deles nos países em que residiam, impediram seu retorno ao Brasil, mantiveram os órgãos repressivos informados de seus passos e atividades no exterior e chegaram a interagir com autoridades de outros países para que a repressão brasileira pudesse atuar além das fronteiras. Inegavelmente, o MRE funcionou, naqueles anos, como uma das engrenagens do aparato repressivo da ditadura”, aponta o relatório da CNV.
No organograma elaborado pela comissão sobre os órgãos de repressão, a pasta das Relações Exteriores estava no mesmo patamar dos ministérios do Exército, da Aeronáutica, da Marinha e da Justiça. O principal braço do Itamaraty era o Centro de Informações do Exterior do Ministério das Relações Exteriores (Ciex) . O relatório aponta, porém, que a atuação não se limitou apenas ao Ciex. Havia ainda, como nos outros ministérios civis, uma Divisão de Segurança Interna (DSI).
De acordo com o relatório da CNV, como a produção de informações ocorria, em muitos casos, clandestinamente, estava fora do campo de atuação tradicional do serviço diplomático. Vale destacar que, nas décadas de 1960 e de 1970, o Brasil não estava ligado ao mundo exterior por sistemas de comunicação como a internet e era essencial a utilização dos canais do serviço exterior brasileiro para a troca de informações.
“Dissimulação”
A CNV reuniu documentos e testemunhas de que o Ciex teve bases em Assunção, Buenos Aires, Montevidéu, Santiago, Paris, Lisboa, Genebra, Praga, Moscou, Varsóvia e na extinta Berlim Oriental. Há ainda indícios do funcionamento de bases do Ciex em La Paz, Lima, Caracas e Londres. O relatório da CNV traz, inclusive, provas documentais de que o Ciex fazia pagamentos em cheques de uma conta no Citibank, em Nova York, para informantes e conseguiu identificar alguns dos pseudônimos dos informantes.
O embaixador Marcos Henrique Camillo Cortes, o primeiro chefe do Ciex, sustentou, em depoimento à CNV, que o órgão jamais existiu. Porém, a comissão considerou a declaração “falaciosa”. Os pesquisadores consultaram 11.327 páginas dos documentos produzidos pelo Ciex, que tinha carimbos com a sigla da entidade e rubricas dos chefes, como Cortes. “Convém não esquecer que a dissimulação é uma das facetas mais características das atividades ligadas ao mundo da espionagem. No organograma do MRE, o Ciex abrigou-se sob denominações administrativas diversas, todas subordinadas diretamente à Secretaria-Geral ou ao gabinete do ministro de Estado”, assinala o texto do relatório da CNV.
Os pesquisadores recolheram provas contundentes da espionagem do Itamaraty, como no caso em que o embaixador brasileiro em Lisboa, Azeredo da Silveira, que, em 1974, remeteu um despacho telegráfico considerado “secreto” para a embaixada de Paris informando que havia decidido abrir uma base do Ciex diretamente subordinada a ele e pedindo que fosse mantido o “máximo de sigilo e segurança operativa no desempenho das tarefas de caráter especial”. Além dessa, o relatório da CNV traz a descrição de várias comunicações entre embaixadores e o MRE que evidenciam a espionagem feita a serviço da ditadura militar.
“Ações subversivas”
O Ciex foi criado em 1967, no auge da repressão do período da ditadura. Segundo um documento recolhido pela CNV, a motivação foi a necessidade de criar um órgão de informações, no âmbito do MRE, para monitorar as “ações subversivas” de brasileiros no exterior.
.x.x.x.
Abaixo, o texto que esse lambe-botas de milico assinou:
Ao Sr. José Celso de Mello Filho.
Ninguém ingressa nas Forças Armadas por apadrinhamento.
Nenhum Militar galga todos os postos da carreira, porque fez uso de um palavreado enfadonho, supérfluo, verboso, ardiloso, como um bolodório de doutor de faculdade.
Nenhum Militar recorre à subjetividade, ao enunciar ao subordinado a missão que lhe cabe executar, se necessário for, com o sacrifício da própria vida.
Nenhum Militar deixa de fazer do seu corpo uma trincheira em defesa da Pátria e da Bandeira.
Nenhum Militar é comissionado para cumprir missão importante, se não estiver preparado para levá-la a bom termo.
Nenhum Militar tergiversa, nem se omite, nem atinge o generalato e, nele, o posto mais elevado, se não merecer o reconhecimento dos seus chefes, o respeito dos seus pares e a admiração dos seus subordinados.
E, principalmente, nenhum Militar, quando lhe é exigido decidir matéria relevante, o faz de tal modo que mereça ser chamado, por quem o indicou, de general de merda.
Assinam o manifesto.
Lúcio Wandeck de Brito Gomes, Coronel da Aeronáutica;
Luís Mauro Ferreira Gomes, Coronel da Aeronáutica;
Luiz Sérgio de Azevedo Ferreira, Coronel da Aeronáutica;
Antoniolavo Brion, Professor;
Rodolfo Tavares, Presidente da FAERJ;
Alfredo Severo Luzardo, Coronel da Aeronáutica;
Napoleão Antonio Muños de Freitas, Coronel da Aeronáutica;
Airton Francisco Campos Tirado, Coronel do Exército;
Paulo Marcos Lustoza, Capitão de Mar e Guerra;
Marcos Coimbra, Economista;
Luiz Felipe Schittini, Tenente-Coronel PMERJ;
Mauro Roberto Granha de Oliveira, Engenheiro Civil;
Samuel Schneider Netto, Coronel da Aeronáutica;
Manoel Carlos Pereira, Major-Brigadeiro;
Paulo Frederico Soriano Dobbin, Vice-Almirante;
José Mauro Rosa Lima, Coronel da Aeronáutica;
Sílvio Potengy, Coronel da Aeronáutica;
Oswaldo Fagundes do Nascimento Filho, Capitão de Mar e Guerra;
Marcos Henrique Camillo Côrtes, Embaixador;
Aileda de Mattos Oliveira, Professora Doutora em Língua Portuguesa;
Hartman Rudi Gohn, Coronel da Aeronáutica;
Carlos José Pöllhuber, Coronel da Aeronáutica;
Reinaldo Peixe Lima, Coronel da Aeronáutica;
Walmir Campello, Capitão de Mar e Guerra;
Sérgio Tasso Vasquez de Aquino, Vice-Almirante;
Wilson Luíz Ribeiro, Coronel da Aeronáutica;
Justino Souza Júnior, Coronel da Aeronáutica;
Luiz Carlos de Almeida Ribeiro, Capitão de Mar e Guerra;
Sonia Maria Soares Almeida, Professora Ensino Superior;
Bertucio Gomes dos Santos, Coronel da Aeronáutica;
Marco Aurélio Erthal, Coronel da Aeronáutica;
Carlos Aureliano Motta de Souza, Coronel da Aeronáutica;
Fernando Almeida, Capitão de Mar e Guerra Reformado;
Herman Glanz, Engenheiro;
Celso Tavares, Coronel da Aeronáutica;
Henrique Rodrigues Vieira Filho, Coronel da Aeronáutica;
Hamilton Leda, Funcionário do Ministério de Ciência e Tecnologia;
Augusto Borborema, Médico;
Ney Martins de Lima, Engenheiro Civil;
Luiz Thomaz Carrilho Teixeira Gomes, Brigadeiro;
Aldo Langbeck Canavarro, Capitão de Mar e Guerra;
Acácio Moraes Garcia, Procurador Federal e Professor;
Antonio Luiz de Souza e Mello, Engenheiro Civil – Petrobrás;
Rui Murat dos Reis, Tenente-Coronel da Aeronáutica;
Sérgio Pedro Bambini, Tenente-Brigadeiro;
Jorge Ruiz Gomes, Tenente-Coronel da Aeronáutica;
Carlos Casado Lima, Coronel da Aeronáutica;
Sergio Chouin Varejão, Engenheiro Mecânico e de Segurança do Trabalho;
José Siqueira Silva, General de Brigada;
José Carlos Lusitano, Contra-Almirante;
Loretta de Queiroz Baltar, Fisioterapeuta;
Henrique Aronovich, Coronel da Aeronáutica;
Renato Tristão de Menezes, Coronel da Aeronáutica;
Sérgio Pedro D’Angelo, Tenente-Coronel da Aeronáutica;
Carlos Arthur Doherty Lassance, Contra-Almirante;
Paulo Sobreira da Silva, Brigadeiro;
Berilo de Lucena Cavalcante, Coronel da Aeronáutica;
Helio Gonçalves, Brigadeiro;
João Carlos Gonçalves de Sousa, Coronel da Aeronáutica;
Alberto Siaudzionis, Coronel da Aeronáutica;
Luiz Carlos Baginski Filho, Brigadeiro;
Frederico de Queiroz Veiga, Major-Brigadeiro;
Italo Regis Pinto, Brigadeiro;
Guilherme Sarmento Sperry, Brigadeiro;
Lúcio Valle Barroso, Coronel da Aeronáutica;
Nélson Zagaglia, Coronel da Aeronáutica;
Ivan Américo Gonçalves, Capitão do Exército;
José Lindenberg Câmara, Capitão de Mar e Guerra;
Mari de Souza Gomes, Funcionária do Itamaraty;
Paulo José Pinto, Coronel da Aeronáutica;
Mauro da Silva Amorim, Coronel da Aeronáutica;
Helius Ferreira Araújo, Major da Aeronáutica;
Carlos Claudio Miguez Suarez, Coronel do Exército;
Paulo Filgueiras Tavares, Coronel do Exército;
Jonas Alves Corrêa, Coronel da Aeronáutica;
João Carlos Fernandes Cardoso, Brigadeiro;
Carlos Rogerio Couro Baptista, Advogado;
Kleber Luciano de Assis, Almirante de Esquadra;
Aparecida Cléia Gerin, Professora;
A referência à “general de merda” se deve a um trecho do livro de memórias de Saulo Ramos, ex-ministro da Justiça e responsável pela indicação de Celso de Mello ao STF, no final do governo Sarney.
Saulo ficou insatisfeito com o voto de Celso de Mello contra uma causa de interesse do já ex-presidente, em 1990. Sarney se candidatou a senador pelo Amapá, Estado em que ele não morava.
Celso de Mello foi contra o registro da candidatura e depois, em um telefonema relatado por Saulo Ramos, foi chamado de “juiz de merda”.
O embaixador lambe-botas de milico e os milicos de pijama, bem como os demais signatários, odeiam magistrados independentes.

Os embaixadores ideológicos - Mathias Alencastro (FSP)

Os embaixadores ideológicos
O bolsonarismo está corroendo o Itamaraty
Mathias Alencastro
Folha de S. Paulo, 15/06/2020
Nesta altura do ano, paira sobre Luanda uma neblina úmida e ofuscante, conhecida localmente como cacimbo.
A capital angolana fica ainda mais desconfortável para os expatriados. Talvez uma malaise existencial esteja na origem do gesto desesperado do embaixador do Brasil no país, Paulino Franco de Carvalho Neto.
Numa missiva dirigida a um ex-ministro e atual colunista do Jornal de Angola, o diplomata adotou um tom incompatível com o cargo, acusando o angolano de proferir “barbaridades” sobre o Brasil e afirmando que Jair Bolsonaro tem um “compromisso inquebrantável com a democracia”, apesar de ser mundialmente conhecido por frequentar protestos golpistas.
Segundo a maioria dos especialistas, a decadência do Itamaraty tem nome e sobrenome: Ernesto Araújo. O advento dos embaixadores ideológicos revela que a instituição no seu todo está sendo corroída pelo bolsonarismo.
Entre muitas outras pérolas, merece destaque o ataque do embaixador na Espanha, Pompeu Andreucci Neto, ao El País. Com o vocabulário típico de um guerrilheiro guevarista, ele denunciou a “vocação neocolonialista” do jornal.
Na sua reação a um artigo crítico do Le Monde, o embaixador na França, Luís Fernando Serra, explicou que os governadores de oposição viram no “confinamento estrito” uma oportunidade para derrubar os “excelentes indicadores econômicos” da “administração Bolsonaro”.
Vale tudo para salvar o presidente, inclusive rebaixar a inteligência de outros políticos eleitos democraticamente.
O texto do embaixador em Luanda tem especial peso simbólico. Ele foi publicado dias depois de o Brasil anunciar o encerramento das embaixadas na Libéria e em Serra Leoa.
Angola é o lugar onde os grandes diplomatas Ítalo Zappa e Ovídio de Mello reinventaram a política africana-brasileira em plena ditadura. Um monumento à independência intelectual e moral do Itamaraty.
Cabe lembrar que o embaixador ideológico é uma raridade nas democracias. Na sua busca por um rottweiler para a embaixada da Alemanha, Donald Trump precisou contratar o relações-públicas Richard Grenell. Funcionários de carreira preferiram desertar do Departamento de Estado a manchar a sua biografia.
Mas Brasília não tem o equivalente de uma K Street, a rua de Washington repleta de ONGs e think tanks que contratam servidores desiludidos com os rumos da vida profissional.
No Itamaraty, segunda vida rima com aposentadoria. No entanto, o embaixador no Reino Unido, Fred Arruda, autor de uma sóbria resposta ao Financial Times, mostrou que é possível defender o governo sem vestir a camisa de bolsominion.
Quando a roda girar, os embaixadores mais assanhados regressarão ao escritório com o sorriso maroto de quem passou do ponto, e tudo será timidamente esquecido. Poderia ser diferente.
O Quai d’Orsay tratou de cortar as asinhas dos diplomatas franceses que embarcaram na tentativa de instrumentalização do ministério por Nicolas Sarkozy.
Caberá à sociedade civil cobrar ao Itamaraty uma reação a esses desvarios, num momento em que precisávamos, talvez mais do que nunca, de diplomatas bombeiros, em vez de incendiários.
Mathias Alencastro
Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).

Max Weber, por Carlos Eduardo Sell

O Legado Max Weber 100 Anos Depois – Entrevista com o Professor Dr. Carlos Eduardo Sell (UFSC)
Blog do Sociófilo, UFSC, 15/06/2020

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Por Bruna dos Santos Bolda e Marieli Machiavelli

O ano de 1920 anunciou o precoce falecimento de Max Weber (1864-1920), vítima de pneumonia. Durante seus 56 anos de vida, Weber produziu uma vasta obra na qual discutiu os mais diversos temas: economia, dominação e política, direito, religião, classes e estamentos, arte, cultura, erotismo e ciência (para citar alguns). In memorian, essa entrevista discutirá o legado de Max Weber no Brasil e no mundo, atentando especialmente para a atualidade de suas ideias no contexto de republicação crítica de sua obra completa (a Max Weber-Gesamtausgabe).
Carlos Eduardo Sell,  professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), é um profundo conhecedor da obra de Max Weber, sendo destacado pelo livro Max Weber e a racionalização da vida – obra que recebeu o prêmio por melhor obra científica em Ciências Sociais em 2013 pela ANPOCS. Além da racionalização, ao longo de sua carreira Sell discutiu temas como: a interpretação do pensamento weberiano no Brasil, a atualidade da sociologia weberiana, a Sociologia da Religião e a Sociologia Política de Max Weber, entre outros.
Max Weber no Brasil e no mundo
  1. Max Weber-Gesamtausgabe é um grande empreendimento de publicação da obra completa de Max Weber, pensado por especialistas (como Horst Baier, Gangolf Hübinger, M. Rainer Lepsius, Wolfgang J. Mommsen, Wolfgang Schluchter, Johannes Winckelmann) e publicado pela Editora Mohr Siebeck (que sempre teve uma relação próxima com Weber). São mais de 40 anos de esforços para trazer ao público um trabalho minucioso. Por conceder um panorama geral da obra de Weber, o professor concorda com o prognóstico de que a MWG pode alterar a forma de ler e interpretar seus escritos?
Junto com o projeto MEGA (obras completas de Karl Marx), a MWG  (Max Weber-Gesamtausgabe) é um dos maiores projetos editorias da sociologia alemã e mostra a força e influência destes dois clássicos da sociologia. Dado o seu aparato técnico que, além dos textos originais, inclui índices analíticos e onomásticos, notas explicativas e uma série de outros suportes, como introduções de alto nível, trata-se de um trabalho de envergadura científica notável. As obras completas de Georg Simmel, por exemplo, por se limitar apenas aos textos em si mesmos, ficou bem aquém dos resultados da MWG. Trata-se de uma grande iniciativa que, através de 50 volumes (divididos em três partes: (i) Obras, (ii) Cartas e (iii) Anotações e notas de aula), chegou ao seu fim exatamente no Jubileu de falecimento de Max Weber.
Do ponto de vista sócio-político, Edith Hanke (membra do Arquivo Max Weber, de Munique) foi uma das poucas estudiosas que, até agora, dedicou-se a analisar o histórico e a rede de pesquisadores que estão por trás desta iniciativa. Além da competição com o marxismo (que a motivou), a MWGconsagra uma série de estudiosos e peritos de Weber e deixa de lado outros nomes, em particular aqueles autores que buscam vinculá-lo geneticamente a Nietzsche (como Wilhelm Hennis e Dirk Käsler, que ficaram de fora do projeto). Também deveríamos considerar as tensões internas do grupo, que não são poucas. De toda forma, seria um erro ver a MWG como a imposição unilateral de certa interpretação de Weber, pois mesmo uma leitura estritamente nietzscheana deste pensador – independente do peso e do lugar de Nietzsche em sua obra -, já está descartada pelo melhor da exegese contemporânea. Existe muita pluralidade interpretativa que atravessa os diferentes volumes da MWG, tema que futuramente, assim acredito, ainda será aprofundado. Não obstante, ainda nos falta distanciamento para uma análise da MWG sob a ótica de uma sociologia dos intelectuais.
Do ponto de vista epistemológico, contudo, os reflexos da MWG me parecem decisivos para questionar certa doxa que se cristalizou em torno do pensamento de Max Weber. Não é nada fácil livrar-se das pré-noções, como já mostrava Husserl. No fundo a MWG nos oferece a chance para uma epoché, ou seja, para voltar a visitar Weber sem ideia pré-concebidas à respeito dele. Não nego, é claro, o círculo hermenêutico (que valoriza nossas pré-noções), mas creio que com a MWG é possível voltar a Weber mesmo e deixar que ele se nos revele a partir de suas fontes, quer dizer, de seus textos.
Na perspectiva histórica, por exemplo, os 13 volumes de cartas, com as milhares de missivas de Weber, são um tesouro para exaurir nossa compreensão não apenas do mundo interior deste autor (como certo viés psico-analítico que muitas das biografias atuais fazem, já que se fixam nos problemas psíquicos e nas relações amorosas de Weber), mas acima de tudo para reconstruir suas redes no mundo econômico, político, acadêmico-científico e cultural. Com estas cartas podemos, na prática, reconstruir toda uma época. E está tudo a espera para ser analisado. O mesmo vale para os 07 volumes de lições e notas de aula de Weber que se concentram nos seus anos de docência em Berlim, Freiburg e Heidelberg. Nestes volumes encontramos o esforço de Weber (que era jurista de formação) em mergulhar no pensamento econômico (que se tornou sua área de ensino), o que é fundamental para entender sua futura sociologia econômica, por exemplo.
No plano teórico-analítico strictu-sensu, a MWG também nos dá uma visão mais clara da evolução de suas posições políticas. A Alemanha ainda não se recuperou totalmente do trabalho de Wolfgang Mommsen que, em 1959, apresentou Weber como um teórico do realismo nacional-imperialista, descuidando de seus fundamentos liberais. Estou plenamente convencido de que uma leitura diacrônica, que não coloque todo peso na Conferência de 1895 (O Estado Nacional e a política econômica), mostraria como Weber está muito mais próximo de um liberalismo social do que de um nacional-liberalismo, como a interpretação consagrada, inclusive no Brasil, ainda insiste em reproduzir. Do mesmo modo há muito ainda que entender no engajamento de Weber na construção da República de Weimar e no que representava, concretamente, sua defesa da democracia plebiscitaria do líder.
No entanto, não resta dúvida de que a maior contribuição da MWG está na desmontagem de duas ficções históricas que, mesmo que exegeticamente superadas, tiveram e ainda têm um papel muito positivo na difusão e recepção de Weber.
A primeira delas é o fim dos Ensaios de teoria da ciência – a célebre Wissenschaftslehre – que no Brasil é conhecida como Metodologia das ciências sociais que, por sinal, necessita urgentemente de uma nova tradução que supere os inúmeros problemas existentes nesta versão em português. Ao separar e re-ordenar os escritos epistemológicos de Weber em dois volumes separados, a MWG colocou em evidência o fato de que a filosofia das ciências sociais de Weber move-se em duas fases.  Enquanto a primeira, mais genérica, trata das ciências da cultura em conjunto, a fase posterior tem uma ênfase mais disciplinar (sociológica). Até hoje os estudiosos debatem em que medida a ênfase individualizante do Weber da primeira fase não transitou para uma ênfase mais generalizante no Weber maduro, já que ele dizia que “A sociologia constrói (…) conceitos de tipos e procura as regras gerais dos acontecimentos”.
A segunda delas envolveu um esforço de desmonte de Economia e Sociedadeque Marianne Weber separou em dois volumes, julgando tratar-se o primeiro da parte teórica o segundo da parte aplicada. A MWG realizou um esforço gigantesco para apresentar os textos de Weber em ordem cronológica, mas nem todas as dúvidas puderam ser sanadas. Assim, os escritos mais antigos de Weber, redigidos ainda antes da primeira guerra mundial (desde 1909 até 1914), foram publicados em 05 volumes sequenciais que tratam das 1) Comunidades, 2) Comunidades Religiosas, 3) Direito, 4) Dominação e 5) Cidades. A versão final de Economia e Sociedade só começou a ser produzida por volta de 1910, mas Weber só conseguiu redigir ou modificar versões antigas de quatro capítulos: 1) Conceitos sociológicos fundamentais, 2) Categorias fundamentais da ação econômica, 3) Os tipos de dominação e 4) Estamentos e classes (que restou inacabado).
Existem muitas polêmicas envolvem esta sequencialização, pois ela levanta a dúvida se não existe uma evolução ou mesmo rupturas no modo como Weber entendia a sociologia ao longo do tempo. Há, por exemplo, estudiosos, como Orishori Ohara que sustentou enfaticamente que Economia e Sociedade deveria ter sido publicado junto ao escritor Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva, tornando transparente sua ligação interna. Na visão deste crítico, os textos de Wirtschaft und Gesellschaft escritos antes da guerra são suficientemente coerentes a ponto de consistir em um todo integrado, em cuja cabeça deveria constar o artigo das Categorias. Klaus Lichtblau, de outro lado, é da opinião de que é somente na segunda fase das Categorias de 1913 (mas não na primeira) que podemos encontrar, realmente, uma concepção especificamente “individualista” de sociologia, retomada e desenvolvida por Weber em 1920. Estas perguntas são decisivas não apenas em função da história pregressa da teoria sociológica de Weber, mas também de seu presente e futuro. Embora eu não compartilhe destas opiniões, a pergunta não deixa de ser estimulante: afinal, quantas sociologias existem em Weber e qual delas possui validade frente ao cenário contemporâneo?
Existe, portanto, uma vasta agenda de questões que a MWG levanta e que deve estimular tanto o aprofundamento quanto a contínua renovação da sociologia weberiana.  Em que medida deste processo de amadurecimento vai resultar um “novo Weber” ainda não sabemos exatamente.
  1. No período pós Segunda Guerra Mundial, sob marcada influência de Talcott Parsons, Hans Gerth e Wright Mills, o centro das discussões sobre a obra de Max Weber era os Estados Unidos. Na década de 1950, por outro lado, o cenário parece mudar. Os estudos de Dieter Henrich, Johannes Winckelmann e Wolfgang Mommsen e o 15º Congresso de Sociologia de Heidelberg (re)inseriram a Alemanha no centro debate – algo que posteriormente, somado aos esforços de Bendix e Roth, juntamente com Tenbruck, Habermas e Schluchter, culminou na primeira fase da Weber-Renaissance. Atualmente o cenário de discussão é deveras plural. Embora a Alemanha e os Estados Unidos continuem desempenhando papel proeminente na discussão sobre Weber, é possível verificar inúmeros países nos quais o autor vem ganhando ampla notoriedade (especialmente no campo da pesquisa aplicada). Como você avalia a influência da obra de Weber em países fora do eixo Alemanha-Estados Unidos (como os países da América Latina, o Japão, a Polônia e a Bulgária, por exemplo)?
A discussão especializada sobre Max Weber no mundo acompanha a geografia global do conhecimento e está concentrada, no que diz respeito ao seu poder de difusão, basicamente, em dois países: Alemanha e Estados Unidos. Talvez apenas a França, com Raymond Aron e Julien Freund, e, atualmente, com Catherine Colliot-Thélene e Jean Pierre Grossein, entre outros, ou mesmo a Itália (Pietro Rossi), possuem um alcance que vá além de suas fronteiras. O Japão é um caso curioso, pois embora não tenha consigo “exportar” sua exegese, digamos assim, é o país extra-ocidental em que está concentrada a maior parte das traduções dos escritos de Weber. No México Gill Villegas vem fazendo um trabalho extraordinário com uma nova tradução de Economia e Sociedade e um estudo completo de toda polêmica existente em torno da Ética Protestante de Weber até o presente. Lamento que o espanhol seja uma barreira que impede sua difusão em outros contextos internacionais.
A difusão do pensamento de Weber começa em Heidelberg com sua esposa, Marianne Weber, que foi a principal responsável pela edição dos escritos weberianos. Outro autor importante foi Talcott Parsons – o teórico incurável – que dominou a sociologia americana durante décadas. Embora a influente coletânea de Whrigt e Mills (Ensaios de Sociologia, de 1946) e diversos emigrados alemães do pós-guerra, como Reinhard Bendix e Guenter Roth, tenham oferecido uma visão diferente, o “Weber de Parsons” continuou sendo muito influente. 
Na paisagem intelectual alemã, os anos 60-70 foram o auge da chamada Escola de Frankfurt e contra o espírito de sua obra, Weber acabou enquadrado na etiqueta do positivismo, confusão que ainda perdura, em muitos círculos, até hoje. Por outro lado, inspirando-se em Georg Lukács, algumas teses weberianas foram incorporadas na teoria crítica, como ilustra o trabalho de Jürgen Habermas, que identificou na sociologia de Weber o diagnóstico de importantes patologias da modernidade: a perda de sentido e a perda de liberdade. Contrapondo-se ao Weber funcionalista de Parsons, surgia assim o “Weber crítico” da Escola de Frankfurt.
Apesar dessas dificuldades, ao longo da década de 70, um vigoroso debate teórico sobre a interpretação do sentido da obra de Max Weber ressurgiu na Alemanha, envolvendo nomes hoje consagrados como Johannes Winckelmann, Friedrich Tennbruck, M. Rainer Lepsius e Wolfgang Schluchter, entre outros. Esses autores resgataram as teses centrais da sociologia de Weber, como sua tese do desencantamento do mundo e sua caracterização do racionalismo ocidental. Dessa forma, ele voltaram a produzir uma leitura genuinamente weberiana, sem submetê-la ao funcionalismo de Parsons ou ao marxismo da Escola de Frankfurt. Em suma: eles voltaram ao “Weber de Weber” mesmo.
Atualmente, passar da exegese histórico-crítica da obra de Weber para a elaboração de uma teoria sociológica de fundo weberiano que seja capaz de captar e definir a situação do mundo presente é o desafio que os pesquisadores de uma nova geração, como Thomas Schwinn, Gert Albert, Jens Greve, Markus Pohlmann e outros, vêm enfrentando, e é a partir dele que vai se desenhando o que eles denominam de “Paradigma Weber” ou Programa de pesquisa weberiano. Trata-se de uma inovação fundamental que ainda não foi devidamente percebida e acompanhada no Brasil e em outros países. Mais que pensar sobre Weber, o que eles propõe, hoje, é pensar com Weber. Este também deveria ser nosso desafio, pois o Paradigma Weber não tem futuro se não levar em consideração o cenário global e a contribuição de profissionais de outras partes do planeta.
  1. Na década seguinte àquela do falecimento de Weber, exatamente em 1936, Sérgio Buarque de Holanda torna pública a obra Raízes do Brasil: um estudo sobre as causas do “atraso” da sociedade brasileira à luz da teoria weberiana. Esse foi o primeiro grande impulso para os estudos sobre Max Weber em nosso país, publicado em um momento que a universidade ainda se institucionalizava no Brasil (a USP, por exemplo, havia sido fundada em 1934). Você poderia nos falar sobre como a recepção da obra de Weber no Brasil se transformou ao longo desses 84 anos?
Em estudo amplo e sistemático sobre a recepção e interpretação de Weber no Brasil, seja no campo da história das ideias, seja enquanto sociologia da sociologia, ainda está por ser feito. Neste ponto, o historiador Sérgio da Mata possui contribuições fundamentais, pois ele investiga as referências mais antigas feitas a Weber no Brasil. Mas a tarefa é vasta, pois uma pesquisa abrangente precisa contemplar não apenas a produção teórico-interpretativa feita no Brasil sobre Weber como pensador, mas também a reflexão da realidade brasileira feita a partir de Weber. Por um lado temos que considerar “Weber a partir do Brasil” e de outro “o Brasil a partir de Weber”.
De todo modo, está claro que a recepção de Weber no Brasil ganha forte impulso com a institucionalização das ciências sociais no espaço da Universidade e a concomitante formação de um campo de produção cultural de massas (livros, editoras, traduções, etc.) no início dos anos 70. A partir daí a tradução das obras de Weber vai se multiplicando, como mostra o estudo de meu orientando Márcio de Carvalho, que está finalizando sua tese aqui na UFSC. Neste processo, a teoria social de Weber aparece segundo dois registros fundamentais: por um lado, nos ensaios de interpretação de Brasil e, por outro, na reflexão teórico-sistemática sobre a obra e a teoria de Max Weber.
Existem diversos pensadores que buscaram realizar uma interpretação de inspiração weberiana do Brasil, ainda que Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro  (autor de Os donos do poder, de 1958) costumem ser apontados como os dois mais importantes. Existem também diferenças essenciais entre eles pois enquanto Holanda é, de fato, mais eclético em suas referências teóricas, em Faoro a orientação a partir de Weber e sua sociologia da dominação é central e determinante: neste sentido ele é mais genuinamente weberiano que Holanda. No entanto, a exegese sobre a obra de Holanda que, na verdade, escreveu duas versões de Raízes do Brasil, com orientações ideológicas bem distintas, está mais avançada que os estudos especializados sobre Faoro.
No que tange ao conteúdo de suas ideias, chama a atenção o fato de que os grandes intérpretes weberianos do Brasil buscaram pensar a realidade nacional a partir da dimensão política e não tanto a partir do capitalismo. Na medida em que o marxismo hegemoniza a pesquisa sobre o capitalismo dependente, parece que a sociologia brasileira de orientação weberiana se concentrou cada vez mais no tema do Estado e do patrimonialismo. De qualquer forma, repetindo o feito da sociologia clássica europeia, eles produziram uma notável narrativa sócio-histórica da transição do Brasil tradicional para o Brasil moderno. Uma das melhores sociologia históricas de que dispomos.
Como explicar, então, que Jessé Souza, um sociólogo formado em Heidelberg – justamente a Meca dos estudos especializados em Weber – tenha desprezado tão radicalmente aquela que é a mais importante leitura weberiana de que dispomos para pensar o Brasil? Com efeito, na leitura crítica-negativa que Souza faz de nossos clássicos weberianos, no subsolo profundo de nossa herança ibérica estaria nossa verdadeira face anti-moderna: o patrimonialismo. Dados os pressupostos liberais desta visão, Souza simplesmente dispensa tal diagnóstico. No nível histórico-explicativo, reduzir a teoria do Brasil de Faoro e Holanda a tese da inautencidade ou do atraso deixa escapar justamente o que constitui o seu maior valor, a saber, o seu potencial crítico para explicar as graves distorções políticas que, sim, afetam o Estado brasileiro. Temática que, recentemente, apenas Fernando Haddad[1], devo dizer, soube reconhecer com a ênfase que o tema merece.
Remando contra a maré dominante, defendo que a hermenêutica negativa que hoje pesa sobre estes autores – como se eles fossem algum tipo de aplicação simplesmente mecânica e distorcida de Weber ao Brasil – precisa ser superada por uma hermenêutica positiva que demonstre como eles representam um desenvolvimento rico e criativo da sociologia da dominação de Weber e, como tal, diversificam e enriquecem a sociologia política de orientação weberiana em escala global. Eles antecipam e concretizam sociologicamente a tese da “dependência da trajetória” e contém os elementos de uma teoria da variação latino-americana do moderno que o sociólogo chileno Aldo Mascareno denomina de diferenciação concêntrica, posto que centrada no primado do Estado. É preciso, pois, além da perspectiva crítica, explorar também o potencial pós-colonial latente que estes pensadores brasileiros – que mereceriam ser reconhecidos como patrimônios globais da sociologia weberiana –  nos legaram.
No campo teórico-interpretativo cabe dar destaque ao trabalho de Florestan Fernandes que em Fundamentos empíricos da explicação sociológica (de 1959) apresentou Durkheim, Weber e Marx como referências determinantes do aporte sociológico. Mas não sou da opinião de que Fernandes pratica um “ecletismo bem-temperado” – como sustenta Gabriel Cohn – , pois neste livro já fica claro que sua leitura dos clássicos pende para Marx. Refletindo as orientações de sua época, Fernandes acabou reproduzido uma leitura parsoniana, quer dizer, estática e anti-histórica, da sociologia weberiana. Apesar disso, ajudou a fixar Weber como marco indispensável da teoria sociológica.                    
Por este norte, Villas-Bôas mostrou muito bem que o escrito dedicado por Gabriel Cohn à epistemologia weberiana (Crítica e Resignação, que é de 1979), pode ser lido com um diálogo crítico com Fernandes, ainda que Cohn, no fundo, sempre tenha permanecido mais fiel a Adorno do que a Weber. Paradoxalmente, o Brasil ainda se encontra preso, em parte, a leitura comparada entre Weber e Marx, temática que já foi dominante nos anos 70.  Sinal disso é a ampla repercussão que encontrou no Brasil a ideia de um “marxismo weberiano” que deixa em segundo plano o liberalismo e o iluminismo (Aufklärung) de Weber para jogá-lo nos braços de uma suposta crítica romântica ao capitalismo.
Esta tendência sempre anda de braços dados com o exagero dos vínculos que ligam Weber a Nietzsche, como se o fundador da sociologia compreensiva fosse algum tipo de nihilista resignado. O fato é que o “enxerto” (para falar como Norberto Bobbio) de elementos weberianos no marxismo não pode nos levar ao equívoco de ignorar as tensões irreconciliáveis entre os dois pensadores ou mesmo a contrabandear Weber para um horizonte ideológico que não era o seu. Se pode existir um “marxismo weberiano” eu não sei (penso que não), mas o fato é que “weberianismo marxista” é um contra-senso. Weber é da direita liberal. Neste ponto, aliás, José Guilherme Merquior comete um grande equívoco ao interpretar Weber como um “semi-liberal”. Basta ler o trabalho de um marxista perspicaz como Maurício Tragtenberg (Burocracia e ideologia) para evitar tais confusões.
O trabalho de Cohn marcou época e continua sendo referência para um série de teses e dissertações que discutem o vínculo entre Weber e Heinrich Rickert, além de aprofundar a noção de tipo ideal. No entanto, esta direção de pesquisa está bastante rotinizada e deveríamos investir mais na atualização da epistemologia weberiana, como faz Gert Albert, em Heidelberg, quando aproxima Weber da filosofia da ciência contemporânea. Em termos de avanço nessa discussões, apenas Marcos Seneda, recentemente, produziu uma trabalho muito competente ao discutir o problema da evidência e da validade na metododologia de Weber.
No decorrer dos anos 90, a pesquisa brasileira sobre Weber desloca seu eixo no na direção da Alemanha e das discussões sobre a sociologia comparada das religiões que foram impulsionadas por Mario Rainer Lepsius e Wolfgang Schluchter, em Heidleberg. Foi seguindo esta tendência que Antônio Flávio Pierucci produziu seu competente trabalho exegético sobre a categoria do desencantamento do mundo em Weber, na esteira do qual busquei avançar no entendimento da categoria da racionalização (Max Weber e racionalização da vida, de 2013). Até hoje o principal escrito da sociologia das religiões de Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, desperta muito interesse no Brasil, como ilustram os trabalhos recentes de Renan Springer de Freitas e da tese defendida na USP por Carlos Pissardo, por exemplo, com os quais tenho divergências, mas que aprecio pela sua qualidade e rigor. Nesta mesma direção vejo que Weber vem sendo redescoberto pelos historiadores, como evidenciam as pesquisas de Sérgio da Matta, mas também de Ulisses do Vale. Pena que na área do direito, disciplina na qual Weber já teve algum eco, ele esteja quase desaparecido.
Weber também sempre teve uma presença marcante na ciência política, ainda que a etiqueta “eltismo democrático”, que ainda hoje se reproduz mecanicamente na área, represente uma visão redutora de sua perspectiva de democracia. Neste ponto o Brasil ainda é devedor da tradição anglo-saxã e do influente livro de David Held (Modelos de democracia) que interpreta Weber pelas lentes de Joseph Schumpeter. Tal visão toma como ponto de partida uma leitura isolada do escrito Parlamento e governo na Alemanha reordenada (de 1917) e ignora praticamente toda discussão que Weber fez depois disso, quando ocorre a queda da Monarquia e ele se insere na discussão sobre os rumos da República de Weimar, tal com na Conferência Política como profissão(de 1919). Nos últimos anos fiz um esforço para aprofundar a ideia de “democracia plebiscitária” de Weber, destacando a correlação deste conceito com a dominação carismática. Trata-se de um conceito que ajudaria a iluminar muitos aspectos de nosso modelo presidencialista e da crise política que se instalou atualmente no Brasil
Apesar da boa qualidade da discussão técnica existente sobre o pensamento de Weber no Brasil faz-se urgente reconectá-la com as discussões sobre o tema dos rumos da sociedade brasileira. Neste ponto o trabalho de Antônio Flávi Pierucci pode ser uma inspiração, desde que ele seja lido para além das fronteiras da sociologia da religião. Com efeito, a reflexão de Pierucci, ainda que deva algo a certo evolucionismo que herdou de Procópio Camargo, mostrou que a mudança religiosa, quer dizer, o declínio do catolicismo e a ascenção do pentecostalismo, representa uma transformação cultural que modifica as bases do Brasil contemporâneo. No fundo, o que que eles nos apresenta é uma teoria da modernidade no Brasil. Se pudéssemos conectar a reflexão sociológica brasileira que se inspira em Weber com as discussões que existem hoje na Alemanha sobre o Paradigma weberiano, creio que o Brasil poderia ter um impacto decisivo no aprofundamento  e reconstrução da sociologia explicativo-compreensiva.
A atualidade de Max Weber
  1. Max Weber é comumente atribuído o posto de autor clássico da Sociologia. De fato, ele discutiu questões fundamentais tanto para a institucionalização acadêmica da Sociologia quanto para a compreensão das transformações socioeconómicas dos séculos XIX e XX. Embora na situação de “clássico”, como a leitura dos escritos deste autor podem nos ajudar a compreender a sociedade “atual” ?
 A sociologia contemporânea está confrontada com um enorme desafio teórico: ir além de seu contexto sócio-histórico de origem para pensar a realidades social em perspectiva global. Diante dessas preocupações, Max Weber praticamente não tem rivais na sociologia clássica pois ele evitou analisar a modernidade européia apenas a partir de si mesma e de suas raízes internas, seja como sucessão de modos de produção (como fez Marx, para quem toda a realidade extra-européia é nivelada na categoria modo de produção asiático – um ressaibo claro de orientalismo), seja como evolução para formas mais complexas e diferenciadas de vínculo social (como fez Durkheim). Diferente deles, Weber procurou descentrar sua análise determinando a especificidade do racionalismo ocidental de modo comparativo. Racionalizações, diz ele, existiram em todas as culturas civilizações, mas o que ele queria entender é como ela se desenvolveu na modernidade ocidental.
Em seus Ensaios Reunidos de Sociologia da Religião, Max Weber nos faz mergulhar em civilizações que se aproximam e ao mesmo diferem da experiência ocidental-européia em pontos bastante específicos. Nessa gigantesca empreitada teórica, ele comparou a realidade européia com dois complexos culturais diferentes (China e Índia), ao mesmo tempo em que foi buscar as raízes últimas do Ocidente no judaísmo antigo. Essa análise, ainda que centrada na religião, nunca deixou de equilibrar, sem qualquer determinismo, fatores materiais e ideias, não recaindo nem no materialismo economicista (marxismo ortodoxo), nem no idealismo culturalista (como fazem hoje as teorias do discurso).
O elemento mais impressionante da análise weberiana, portanto, é que ele nunca afirmou que o racionalismo ou a racionalidade são exclusividades ocidentais, reservando para os demais modos de ser-no-mundo o título de experiências inferiores ou deficitárias. Mas, isso também não significa que ele deixou de reconhecer o ímpeto universalista e, principalmente, ativo, do modo de agir que está na base da cultura ocidental. É o racionalismo da dominação do mundo e o modo de agir que  lhe é afim – a racionalidade de meios e fins – que está na base do modo próprio de ser do Ocidente moderno, incluindo o capitalismo racional, a burocracia estatal, a contabilidade, a técnica moderna, o direito formal, a música acordeônica, o protestantismo ascético, a moral abstrata do dever, a arte como valor formal e assim por diante. Cada um destes fenômenos acima materializa, socialmente, o racionalismo da dominação do mundo, modo pelo qual nós, como indivíduos ocidentais, nos situamos diante da vida e conferimos sentido à realidade.
  1. Em Max Weber e racionalização da vida o professor defende a tese de que o tema da racionalização perpassa a obra desse autor. Qual é importância desse conceito para compreensão da teoria de Max Weber?
Embora ele não tenha feito uso do termo modernidade – hoje tão central no discurso sociológico -, Max Weber apresentou uma das mais importantes e influentes interpretações de nosso tempo. Essa interpretação tem dois eixos. Por um lado, Weber apresenta uma análise cultural da modernidade ocidental, acentuando sua especificidade diante de outras culturas e civilizações. De outro ângulo, Weber procura rastrear também os fatores internos que moldaram o mundo no qual vivemos hoje e, nessa dimensão, temos uma teoria da racionalidade moderna. A teoria da modernidade de Weber é cultural-comparativa e histórico-genética e se preocupa em captar, de forma articulada, o processo de formação e, ao mesmo, tempo, as peculiaridades da modernidade ocidental moderna. É nesse contexto que Weber desenvolve sua original teoria da racionalidade e da racionalização.
Weber procurou observar se se as representações das religiões universais são mais ativas (racionalidade prática) ou contemplativas (racionalidade mística) e se elas possuem uma orientação mais positiva ou mais negativa no que tange a relação entre o divino e o humano. Emerge, assim, um complexo modelo comparativo, no qual podemos identificar três grandes modelos sócio-culturais, cada um deles marcado por tipos diferentes de racionalidade: o racionalismo da adaptação ao mundo (Confucionismo e Taoísmo), o racionalismo da fuga do mundo (Hinduísmo e Budismo) e o racionalismo da dominação do mundo que modelou a civilização ocidental.        
No que diz respeito à sua compreensão das sociedades euro-atlânticas, existe um escrito de Max Weber que sintetiza sua visão de forma magistral. Trata-se de um texto inserido no meio do primeiro volume dos Ensaios Reunidos de Sociologia da Religião e que recebe o título de Consideração Intermediária. O eixo principal de sua argumentação é a complexa e múltipla relação da religião com o mundo e, em particular, os diversos modos como ela se relaciona com a esfera econômica, política, e científica e com as ordens de vida do erotismo e da arte. Essa disposição já nos mostra que estamos diante de um escrito no qual encontramos os fundamentos de uma teoria da diferenciação social, tal como vemos, contemporaneamente, na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann ou mesmo na teoria dos campos sociais de Pierre Bourdieu.          
  1. Max Weber dedicou uma parte de seus estudos às religiões. Ele apontava para o fato de que a secularização é um fenômeno característico do mundo moderno e tem como marca principal enfraquecimento da influência da esfera religiosa nas tomadas de decisões, o que não significaria necessariamente o desaparecimento da crença religiosa. Atualmente podemos observar novos arranjos religiosos, alguns até apontam uma “dessecularização”. Os escritos de Max Weber podem contribuir com alguma chave de leitura para os recentes fenômenos religiosos?
Embora a categoria secularização, enquanto tal, não seja um conceito de primeiro plano na sociologia de Weber, é claro que não se incorre em equívoco quando se localiza nele algo que podemos chamar, grosso modo, de “teoria da secularização”. Não obstante, em termos mais específicos e precisos, as categorias que organizam a compreensão sócio-histórica de Weber são seus tipos ideais de racionalização e desencantamento do mundo. Racionalizações, dos mais diversos tipos e nas mais diversas direções, como diz Weber, não são nenhuma singularidade ocidental, ainda que determinar qual era sua peculiaridade fosse exatamente o fulcro de sua pesquisa. Nasce daí o conceito síntese da modernidade: o racionalismo prático-ético de condução da vida e de dominação do mundo.
Sou da opinião de que a sociologia da religião, desde meados dos anos 60, optou uma visão algo unilateral da ideia de secularização ao defini-la apenas como declínio do religioso. Na filosofia. ao contrário, como ilustra o debate entre Hans Blumenberg, Karl Löwith e Carl Schmidt, secularização também pode ser entendida como continuidade ou como transferência. A genialidade de Weber me parece estar justamente no fato de ter compreendido que a modernidade nunca foi puramente e simplesmente ruptura com o passado, pois ela implica também um laço de permanência com suas origens. Nessa medida, o ethos do dever profissional do capitalista, ao mesmo tempo em rompe, também conserva, na forma, laços com a ética protestante. O ideal seria examinar a tese weberiana da secularização tendo sempre em mente esta dualidade intrínseca do conceito de secularização.
No plano global, há um enorme debate sobre o potencial explicativo da tese da secularização vista por alguns como uma ideia que diz respeito apenas ao contexto europeu. Certos autores, Jürgen Habermas entre eles, chegam a falar mesmo em “pós-secularização”, ideia que não deve ser confundida com a reversão deste processo, mas como uma forma de conhecer a legitimidade da presença das religiões no espação público das sociedades com consciência secular. De toda forma, mais do que abandonar o conceito, sou da opinião de que ele constitui o melhor instrumento para pensar as relações entre religião e modernidade ou, posto de outra forma, para pensar o lugar do religioso em condições modernas. A proposta de pensar as múltiplas formas de secularidade e secularismo talvez seja a saída mais promissora para evitar uma visão reducionista deste processo, como se todas as sociedades estivessem fadadas a seguir as mesmas trilhas da modernização. É também neste ponto que vejo o valor da formidável obra de Charles Taylor [Uma era secular, nota dos editores] que mostrou que secularização deve ser entendida como a possibilidade de crer e de não crer. Em seu fundamento, as sociedades modernas prescindem do religioso, mas isto não significa, necessariamente, que a maioria dos indivíduos abram mão de suas crenças ou que a religião não tenha um lugar estabelecido nas formas culturais de cada sociedade.
Isso também significa que, concordando com Pierucci, não deveríamos abrir mão da teoria da secularização para pensar o lugar da religião na sociedade brasileira. Neste ponto, lamento certo estreitamente da preocupação dos sociólogos com os neo-pentecostais e suas formas de articulação política, o que tem levado a uma forte politização da pesquisa. Creio que o sociólogo da USP, apesar de certo viés evolucionista explícito na sua obra, acertou ao argumentar que a pluralização da oferta religiosa e a mobilização política dos grupos religiosos não são sintomas de des-secularização. Ao contrário, a escolha religiosa autônoma  e plural é sintoma de um self moderno e reflexivo e o esforço político dos grupos religiosos na esfera pública demonstra que os valores culturais não estão dados de antemão, demandando um esforço para impor-se no cenário das lutas culturais.  Mas, desde então, o debate ficou estagnado. O desafio, hoje, consistem em integrar a o viés político no quadro mais amplo da teoria da secularização. Para essa tarefa Weber continua sendo uma fonte essencial.
Notas:       
[1] O artigo de Haddad foi publicado na Revista Piauí (n.129 de Junho de 2012) com o título de “Vivi na pele o que aprendi nos livros: um encontro com o patrimonialismo brasileiro”.
Para citar este post:
BOLDA, Bruna dos Santos; MACHIAVELLI, Marieli. O Legado de Max Weber 100 anos depois: Entrevista com o Professor Carlos Eduardo Sell (UFSC). Blog do Sociofilo, 2020. [publicado em 15 de junho de 2020]. Disponível em: https://blogdosociofilo.com/2020/06/15/o-legado-max-weber-100-anos-depois-entrevista-com-o-professor-dr-carlos-eduardo-sell-ufsc

Recordações do Escrivão Isaías Caminha", de Lima Barreto, analisado por Arnaldo Godoy

EMBARGOS CULTURAIS

As recordações do escrivão Isaías Caminha e a literatura como registro da história


No caminho para o Rio de Janeiro, saltando do trem, Isaías Caminha, na expectativa de ser servido de café e bolo em um bar da estação, vê um rapaz alourado ser servido antes dele. Isaías foi preterido por sua cor, ainda que tivesse o dinheiro necessário para a compra da merenda. Ferido pelo contraste, curtiu uma raiva muda, que por pouco não virou em pranto. Essa passagem, muito provavelmente autobiográfica, é um dos núcleos do romance "Recordações do Escrivão Isaías Caminha", o primeiro publicado por Lima Barreto.
Há duas partes relativamente distintas nesse belíssimo livro. Na primeira parte, o narrador relata que o jovem Isaías decide tentar a vida no Rio de Janeiro, descreve a viagem, os primeiros dias (cheios de dificuldades), alcançando o momento no qual começa a trabalhar no jornal. O tema do racismo parece ser o ponto mais forte nessa primeira sessão. Na segunda parte, o narrador descreve a vida de Isaías na redação. Cuida-se, nesse passo, de uma fortíssima crítica à imprensa brasileira da época. Pode-se pensar que se tratam de dois livros. Há, no entanto, um ponto em comum que salta aos olhos do leitor atento: Lima Barreto está em todo lugar.
O enredo é simples e bem engendrado. Retornando para o interior, e escrivão no Espírito Santo, Isaías registrou suas memórias. Isaías era escrivão na pomposa Coletoria Federal de Caxambi. Um promotor havia deixado uma revista no cartório. Na revista havia um artigo que explorava o tema da eugenia, da seleção racial, um dos assuntos centrais do século XIX. Vale, nesse ponto, a leitura de "O espetáculo das raças", de autoria de Lilia Moritz Schwartz, a biógrafa de Lima Barreto. Os dois livros se completam, aos quais pode se acrescentar "Retrato em branco e preto", da mesma autora. Essa movimentação recente de destruição de estátuas radica, de algum modo, em reação (tardia) a esse imenso problema que não pode ser negligenciado. Está em jogo algo mais forte do que a titularidade para a narrativa histórica.
O problema era também o Nina Rodrigues, professor na Faculdade de Medicina na Bahia, que em "As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil" defendeu códigos penais distintos, cuja aplicabilidade atenderia, entre outros quesitos, a cor da pele. Um código para brancos, outro para negros. Há um quadro de Modesto Brocos y Gómez, denominado "A Redenção de Cam", de 1895, que revela essa obsessão com um "branqueamento da população". João Batista Lacerda, médico no Rio de Janeiro, também defendeu enfaticamente essa tese, participando, inclusive, de um congresso sobre branqueamento de raças, realizado em Londres, em 1911.
Isaías pretendia rebater esses argumentos. O sonho de Isaías era ser doutor, e por isso deixou o interior. Estudaria na capital. Observou que se fosse doutor resgataria o pecado original de seu nascimento humilde, "amaciaria o suplício premente, cruciante e omnímodo" de sua cor. Queria ser doutor. Acrescentava que o título era mágico, que tinha "poderes e alcances múltiplos, vários, polifórmicos". Esperava receber cumprimentos do tipo "Doutor, como passou?", "Doutor, como está?" Teria prerrogativas, direitos especiais, privilégios. Além do que, "teria direito a prisão especial e não precisava saber nada".
Na parte na qual narra sua vida no jornal, tem-se um roman a clef, isto é, personagens reais são escondidos sob pseudônimos. Lima Barreto bateu forte no jornal O Globo. Foi muito duro com o escritor João do Rio, que no livro é referido como mistura de "suíno e símio". João do Rio é o personagem Raul Gusmão. Ao que consta, em uma carta ao crítico José Veríssimo, Lima Barreto argumentava que o romance era atemporal e que aqueles personagens existiam em todos os jornais, em todos os tempos. Não sei, há muita coisa que pode passar despercebida para o leitor contemporâneo, o que faria desse livro uma obra datada. Porém, inegável, os tipos que revela transcendem no tempo e, por isso, concedo, com razão nosso escritor.
Em "Recordações do escrivão Isaías Caminha", Lima Barreto explorou a desilusão com a Justiça, um tema que lhe era recorrente. Em dado momento registrou que "a polícia do Brasil só serve fazer vingança, mais nada". Combateu o bacharelismo, o preconceito racial e o desencanto com a política. Tratou do patriotismo ingênuo, assunto que retomou com vigor no "Triste fim do Policarpo Quaresma". O positivismo é também objeto de sua violenta crítica. Lima convivia com militares, trabalhava no Ministério da Guerra. O meio militar havia abraçado o positivismo como ideologia. Benjamin Constant Botelho de Magalhães, professor na escola militar, era o campeão da causa. O lema da bandeira era de inspiração e autoria positivistas.
Lima foi implacável com o poder da imprensa. Jornalistas que se perceberam no romance hostilizaram o escritor fluminense. Na pessoa de Lobo, o consultor gramatical do jornal, Lima castigou os puristas da gramática. Nesse ponto, convergia com as opiniões de Monteiro Lobato. A diplomacia e a violência policial, a par do sistema eleitoral então vigente, também foram objeto de duras observações.
A galeria de personagens é muito rica. O narrador é o próprio escrivão Isaías Caminha. O pai era inteligente e ilustrado, que o "estimulava pela obscuridade de suas exortações", o que corresponde, biograficamente, ao pai de Lima Barreto. Isaías ama a mãe, mas dela se afasta e dela se descola. Lembra que o espetáculo do saber de seu pai, realçado pela ignorância de sua mãe e de outros parentes dela, surgia a seus olhos como um deslumbramento. A professora primária é Dona Ester, que pode realmente ter sido uma professora que o ensinou. Na primeira parte do livro há ainda o Felício, formado em Farmácia, o tio Valentim (que era carteiro) e o Coronel Belmiro. O Doutor Castro é o deputado que tudo promete, mas que nada cumpre: o pistolão que lhe faltou. Quando partiu para o Rio, com uma carta de recomendação, tinha certeza de que sua situação estaria garantida, que obteria rapidamente um emprego, que iria às aulas e que em seis anos seria doutor. Enganou-se completamente.
Na segunda parte, tem-se um passeio pelo Rio de Janeiro do início do século XX. Há um jornalista com nome russo (Ivan Gregorovitch Rostóloff). Na delegacia, há um delegado que destratou Isaías. O narrador sentiu-se ferido pela atitude do policial, que o acusou de furto. Julgava que o delegado era um representante do governo, da administração jurídica de seus direitos no Brasil e "como tal, insistia, merecia um tratamento mais respeitoso". Há o dono do jornal, o Doutor Ricardo. Abelardo é o poeta e revolucionário. O Pacheco é o redator-chefe do jornal. Antonio Galo, o charadista. Pilar de Giralda, a contista erótica.
Pelo registro, "Recordações do Escrivão Isaías Caminha" é um livro de história. Como afirmou um grande crítico (Carpeaux), a história não se faz com armas. A história não é o teatro dos generais e dos diplomatas. A verdadeira história passa despercebida, tranquilamente, no centro da alma humana. Contando o que viu, e o que viveu, Lima Barreto torna-se agente desse registro histórico, ainda que não o faça tranquilamente, justamente porque, nesse mundo de poucos originais e de muitas cópias, fazia parte daquele grupo para o qual a história maldosamente negava oportunidades e condições de superação.