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terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

O lulopetismo diplomático: um experimento exótico no Itamaraty - Paulo Roberto de Almeida

 O lulopetismo diplomático: um experimento exótico no Itamaraty 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

 [Comentários sobre a degradação da diplomacia brasileira pelo lulopetismo.]

 


Meus comentários adicionais à “teoria geral do lulopetismo” (ver neste link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2022/02/teoria-geral-do-lulopetismo-treze-teses.html), desta vez adstritos ao terreno da política externa e da diplomacia. 


1) O lulopetismo diplomático não estava formado ainda, quando o partido totalitário assaltou o Estado central. Ele se limitava a um conjunto fragmentado de proposições parciais, geralmente equivocadas, sobre a política internacional e sobre o papel do Brasil no mundo, baseadas em concepções totalmente anacrônicas, derivadas das obsessões e preconceitos típicos dos partidos esquerdistas da América Latina, mas com a peculiaridade de que os apparatchiks que os exibiam mantinham “relações carnais”, de fidelidade e identidade de propósitos, com seus mestres cubanos.

 

2) O lulopetismo diplomático foi sendo formulado gradualmente, a partir de um comando político exótico à diplomacia profissional, e pode contar com o auxílio e a colaboração prática de “técnicos” voluntários e de profissionais escolados, integralmente devotados à causa e comprometidos com os objetivos gerais do lulopetismo no plano interno, doravante voltados para o grande mundo da política mundial. Foram esses técnicos e profissionais que completaram a formação rudimentar dos líderes petistas em política internacional e lhes forneceram todos os meios para enfim expressar no cenário externo todas as suas más concepções e preconceitos anacrônicos, dando-lhes uma linguagem e um formato adequados à projeção internacional do Brasil, transformada em novo cenário para a expansão do lulopetismo dessa vez em âmbito mundial.

 

3) O lulopetismo diplomático passou a servir, com total subserviência, ao mesmo ego gigantesco da mesma personalidade megalomaníaca já transformada em carisma nacional: todos os profissionais foram gentilmente convidados a “vestir a camisa” do governo lulopetista – isto é, do partido totalitário –, para a maior glória daquele que passou a ser denominado de Nosso Guia. Durante todo o seu reinado, tudo foi feito para contemplar suas obsessões e desejos, até o limite dos meios disponíveis.

 

4) O lulopetismo diplomático passou a ser exercido com relativa proficiência graças ao bom funcionamento do aparelho estatal colocado a seu serviço, máquina operada por profissionais competentes, vários convencidos dos bons propósitos da causa, e até entusiastas por se engajar, enfim, na expressão externa de uma política enfim correspondendo ao Brasil real, já que a antiga diplomacia teria padecido de um indesejado viés elitista e conservador. O lulopetismo diplomático começou então a ser exibido como a nova representação de um Brasil finalmente comprometido com a transformação das relações iníquas e injustas que sempre prevaleceram na sociedade brasileira e, de forma geral, no mundo, o que permitia oferecer um bônus extra de legitimidade política, já que supostamente identificado com as “boas causas”.

 

5) O lulopetismo diplomático foi exercido principalmente pelos profissionais da área, mas estreitamente vigiado, controlado e guiado pelos apparatchiks do partido, mas devidamente orientados, todos eles, pelo Nosso Guia, cuja palavra era lei, para o bem e para o mal, nas grandes definições e iniciativas então tomadas nessa projeção internacional do demiurgo da causa. Todos os padrões tradicionais da instituição se dobraram ao novo gênio da política internacional, que se permitia até zombar dos profissionais, desprezar seus subsídios mais ou menos eruditos e talhados no formato aceitável ao ambiente externo, e que foram devidamente substituídos pelas mesmas arengas de sindicalista empírico, toleradas e até saudadas como sendo à imagem e semelhança do Brasil profundo, popular e popularesco como deveria ser.

 

6) O lulopetismo diplomático alcançou todos os terrenos da diplomacia profissional, com ênfase nas questões regionais e do mundo em desenvolvimento em geral, este eleito como o terreno de ação privilegiada da nova doutrina, pois que supostamente em contradição política com os antigos poderes “hegemônicos”, e consequentemente aliados na grande causa mudancista em escala mundial. Todas as consultas bilaterais passaram a ser guiadas por novas “alianças estratégicas”, invariavelmente escolhidas, até preventivamente, entre parceiros supostamente engajados nas mesmas causas.

 

7) O lulopetismo diplomático definiu quais seriam as novas linhas de atuação, de forma independente das bases econômicas e materiais das relações internacionais do Brasil, doravante concentradas numa suposta identidade de interesses que partia das mesmas concepções políticas equivocadas que guiavam o partido em sua Weltanschauung.

 

8) O lulopetismo diplomático passou então a se exercer em toda a sua plenitude, primeiro para exaltar o Nosso Guia, que tinha especial prazer em reforçar sua diplomacia personalista e megalomaníaca, já visando atingir os pináculos da glória nos palcos internacionais, sobretudo nas esferas regional e africana, nas quais brilhou como nunca, na base de mistificações políticas (“sem tutela do império) e históricas (a tal de “dívida brasileira” derivada do tráfico escravo). Os profissionais da área lhe forneceram os meios e os modos de expulsar o império do âmbito regional, criando e recriando organismos que fossem exclusivamente sul-americanos ou latinos, o que correspondia inteiramente às diretrizes emanadas dos dirigentes castristas em direção de seus serviçais no partido totalitário. A ação externa se exerceu obviamente além desses interesses vinculados, mas nenhuma das iniciativas e atuações contradisse ou deixou de servir aos ditos interesses vinculados aos verdadeiros patrões espirituais do lulopetismo, doméstico e diplomático. 

 

9) O lulopetismo diplomático foi grandioso na sua mediocridade operacional, sabendo falar grosso com os poderosos e fino com os supostos oprimidos, segundo a imagem consagrada. De forma geral, consoante o espírito e a prática do partido totalitário, o lulopetismo diplomático esteve invariavelmente do lado das, e no apoio às, piores tiranias e ditaduras do continente e alhures, desde que tais regimes servissem à causa anti-hegemônica pré-determinada e aos objetivos de “mudança nas relações de força” nos planos regional e mundial, sem esquecer a bizarra edificação de uma “nova geografia do comércio internacional”, unicamente defendida pelos companheiros. 

 

10) O lulopetismo diplomático, justamente, substituiu a definição sensata da política comercial em função dos interesses exclusivos do setor privado – que é quem, finalmente, exporta e importa, e cria empregos e riqueza segundo seus critérios basicamente microeconômicos – para grandiosos planos de redefinição completa dos fluxos de comércio segundo parâmetros ideológicos, começando pelo unilateralismo da diplomacia Sul-Sul para se estender a uma completa estupidez proposta pelo Nosso Guia, consistindo na “substituição de importações” brasileiras em favor desses parceiros do Sul, sobretudo os regionais, mesmo que – e isto está documentado – os produtos ofertados fossem mais caros do que alternativas “hegemônicas”, uma vez que se tratava de “ajudar países mais pobres do que o Brasil”.

 

11) O lulopetismo diplomático consistiu, basicamente, numa política externa exótica, feita de um enorme engajamento em ambiciosas iniciativas, em grande medida fora da agenda diplomática tradicional do Itamaraty, por certo permitindo uma enorme projeção externa do Brasil (sobretudo em benefício do seu propulsionador original), mas que tampouco redundaram em ganhos permanentes para o país. A projeção externa também se deu por meio de uma exagerada expansão da representação oficial no plano bilateral – com custos cumulativos pesando permanentemente sobre um orçamento não muito elástico, além de sujeito às flutuações do câmbio – e de criação de novos organismos e foros politicamente alinhados com as preferências dos companheiros, de duvidosa utilidade do ponto de vista dos interesses nacionais. O Mercosul, por exemplo, deixou de ser um espaço de integração econômica e de liberalização comercial, para se converter num palanque político, com retrocesso real em relação a seus objetivos originais. 

 

12) O lulopetismo diplomático se exerceu, sobretudo, segundo orientações claramente partidárias, quando não sectárias, uma vez que diversas iniciativas adotadas ou todos os apoios concedidos – aos bolivarianos da América Latina, por exemplo – seguiram as preferências ideológicas dos companheiros no poder, não uma análise isenta, de caráter técnico, feita pelos profissionais da área. O fato de haver uma diplomacia paralela, de nítido corte partidário, favorecendo regimes ditos de esquerda na região, foi expressamente reconhecido pelo próprio demiurgo, como sendo um complemento útil às relações de Estado a Estado. Daí decorreram graves infrações a dispositivos constitucionais rigorosamente observados pelo Itamaraty ao longo de toda a história diplomática brasileira – como o da não ingerência do Brasil em assuntos internos de outros países, com a recorrente interferência do Nosso Guia nos processos eleitorais em curso em países vizinhos – bem como outro aspecto sumamente preocupante para a reconstituição dos processos decisórios que envolveram questões delicadas da ação diplomática brasileira, que é a ausência de documentação sobre os temas tratados em diversos entendimentos bilaterais (justamente em tratativas com os aliados políticos preferencias, ou a propósito de negócios obscuros tratados de forma clandestina pelos companheiros envolvidos, inclusive alguns profissionais da cúpula). 

 

13) O lulopetismo diplomático deixou atrás de si uma terra arrasada nas relações internacionais do Brasil, afetando a credibilidade externa do país e também a de sua diplomacia, e isso até mesmo no momento e depois de sua derrota política interna, já que se expressando ainda por um sem número de canais para enfatizar o “golpe” de que tinha sido objeto, e poder assim firmar a sua versão mentirosa da história tanto no plano interno quanto no externo. Como a grande fraude lulopetista conta ainda com número razoável de aliados internos e externos, os inefáveis true believers nos bons propósitos da causa, os ingênuos políticos e os subintelequituais acadêmicos, o lulopetismo diplomático vai sobreviver por certo tempo, uma vez que, mais do que fatos, ideias e concepções podem ser imorredouras quando internalizadas solidamente em mentes enviesadas.

  

Paulo Roberto de Almeida

Porto Alegre, 4 de setembro de 2016


Teoria geral do lulopetismo: treze teses preliminares - Paulo Roberto de Almeida

 Teoria geral do lulopetismo: treze teses preliminares 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

 

Mini-proposições improvisadas, sem desenvolvimento detalhado, por enquanto.

 

1) O lulopetismo não tem teoria, nem geral, nem parcial. Nada!

 

2) O lulopetismo é pura prática, da pior espécie. Repito: da pior...

 

3) O lulopetismo nasce da conjunção de um ego gigantesco, de uma personalidade megalomaníaca – com profundas deformações psicológicas, e uma raiva profunda vis-à-vis os “de acima” –, e do desejo de vingança de guerrilheiros reciclados, vis-à-vis aqueles que os derrotaram nos experimentos armados dos anos 1960-70. Some-se a isso, uma competição oportunista entre esses dois elementos por poder e dinheiro. Sobretudo dinheiro, mas para obtê-lo era preciso assegurar poder político.

 

4) O lulopetismo cresce na exploração das mazelas brasileiras, adubado por uma hábil propaganda mentirosa. O lulopetismo é uma imensa máquina de propaganda, financiada compulsoriamente por toda a sociedade brasileira.

 

5) O lulopetismo sempre procurou explorar o sentimento de inveja do “andar de baixo” contra os “privilegiados”, incitando o despeito, o ressentimento e o rancor das classes populares contra a “burguesia”. 

 

6) O lulopetismo perseguiu, incessantemente, poder e dinheiro, por todos os meios, os permitidos, e pelos não permitidos também. Sobretudo estes últimos...

 

7) O lulopetismo estabeleceu um método, ou vários, combinando declarações grandiosas em prol da justiça social e da ética na política, enquanto se encarregava, de um lado, de construir projetos de ascensão social de seus próprios líderes e apparatchiks, e, de outro lado, de conquistar o apoio dos piores bandidos da política brasileira para colocá-los a serviço dos objetivos exclusivos desses chefes, que não era nem justiça social, nem ética na política. Mas o lulopetismo conseguiu enganar muita gente dessa forma.

 

8) O lulopetismo ascendeu com a mentira e a corrupção, e se manteve durante bastante tempo no crime e na chantagem, dilapidando recursos públicos, desviando ativos das agências estatais, assaltando ou extorquindo empresários, conspirando com capitalistas promíscuos operando com compras governamentais, roubando inclusive a população mais pobre. Ele perseverou na mesma trajetória enquanto conseguiu comprar aliados nos meios políticos e econômicos mais propensos a participar dos seus esquemas fraudulentos e criminosos. O lulopetismo elevou a corrupção em escala e “qualidade”, tirando-a do seu nível “artesanal”, normal, e colocando-a num modo superior, “industrial”, de produção da corrupção, chegando ao estágio superior de uma organização criminosa de tipo mafioso, que é a conquista de todo o Estado.

 

9) O lulopetismo não tem teoria, mas seus “intelequituais (do partido, ou os chamados “gramscianos de academia”) se encarregaram de construir uma doutrina para essa construção única e singular da política brasileira, que é uma mistura de justiça social propagandeada de maneira mistificadora, com mentiras entranhadas, com arroubos de grandeza nacional que são, por sua vez, uma mistura de anacronismos patrioteiros e da falsa bandeira da defesa da soberania nacional. Na verdade, esta última foi constantemente sacrificada no altar da fidelidade canina que os chefes e cardeais do lulopetismo devotaram a seus chefes de fato, os comunistas castristas.

 

10) O lulopetismo não tem um pensamento econômico coerente, apenas prescrições ultrapassadas de políticas econômicas, retiradas de um cozido insosso fabricado a partir do keynesianismo vulgar que alguns dos seus quadros extraíram de orelha de alguns textos universitários produzidos por alguns gurus equivocados dessa seita. Eles aplicaram essa mistura incoerente da maneira mais desastrosa possível, produzindo então, e não apenas nos últimos anos, o grandioso espetáculo da recessão e do desemprego, com inflação e aumento da dívida pública, que pode ser chamado apropriadamente de Grande Destruição.

 

11) O lulopetismo não tem doutrina social, apenas prescrições assistencialistas mal concebidas e mal aplicadas – do tipo Fome Zero, Bolsa Família, etc. – que todas falharam em corrigir as graves distorções do Brasil. Ao contrário, elas mantiveram os grupos assistidos na mesma condição de origem, apenas que com algum subsídio ao consumo, mas o objetivo inicial, permanente, era esse mesmo, não resolver a questão social, mas constituir um curral eleitoral que mantivesse o lulopetismo no poder de forma indefinida.

 

12) O lulopetismo não tem nenhuma doutrina política – fora das mistificações produzidas por alguns servos do partido e por gramscianos de academia – mas pretende ser um caminho fora da política tradicional dos partidos e do congresso. Pela sua forte base sindical – que evoluiu do sindicalismo alternativo para uma convergência no mainstream do sindicalismo oficial, ou seja, empreendimentos de caráter quase mafioso – ele pode ser considerado um peronismo de botequim, ou seja, sem qualquer teorização justicialista, apenas baseado no carisma do grande chefe mafioso.

 

13) O lulopetismo foi a maior fraude política, e ideológica, que se abateu sobre o Brasil, desde muito antes de 2003, quando ele finalmente tomou de assalto o poder federal. Ele foi (parcialmente?) expelido desse poder, mas ainda permanece ocupando vastos espaços de poder parcial em dezenas, centenas, milhares de instâncias públicas, dada a gigantesca invasão de todos os interstícios e escaninhos do Estado, em todos os níveis, pelos apparatchiks, aliados inconscientes ou serviçais objetivos do vasto empreendimento lulopetista. Pior ainda: sua versão do cenário político, suas metas obsessivas, seus objetivos megalomaníacos, que só podem conduzir o Brasil a uma trajetória desastrosa de (não) desenvolvimento, permanecem vigorosamente presentes nos corações e mentes de muitos true believers, partidários do credo, tanto militantes ingênuos da causa social, quanto acadêmicos bem formados e supostamente bem-informados. Essas características asseguram alguma sobrevivência política e ideológica ao lulopetismo, mesmo quando o grande chefe megalomaníaco for condenado a passar algum tempo na prisão.

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Porto Alegre, 3 de setembro de 2016.


segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

IDÉIAS E DIPLOMACIA - Paulo Fernando Pinheiro Machado, livro disponível

 


IDÉIAS E DIPLOMACIA - Paulo Fernando Pinheiro Machado

Autor: Paulo Fernando Pinheiro Machado
ISBN: 978-989-37-2189-6
páginas: 224
idioma: Português

Por que o Brasil independente manteve a sua integridade territorial ao passo que a América espanhola se fragmentou em uma série de repúblicas? Essa é uma pergunta que vem intrigando os historiadores e cientistas políticos há dois séculos. A maioria das análises apontam para uma decisão política consciente das elites imperais, em especial do Partido Conservador, de manter a unidade territorial do Brasil pela construção de um estado centralizado, após a pacificação das Revoltas do Período Regencial (1831-1835). Paulo Fernando Pinheiro Machado procura, nesta obra, analisar a face externa desse processo de construção do estado-nação brasileiro, pelas ideias, crenças e motivações de uma personagem central nesse processo: Paulino José Soares de Souza, o Visconde do Uruguai. Paulino foi quem por primeiro conferiu ao Brasil independente uma política externa coerente e estruturada, legando ao novo país uma tradição diplomática que serviu de régua mestra para os seus sucessores desde então. No ano do bicentenário da Independência, a presente obra convida a uma reavaliação crítica das ideias e dos valores fundamentais do Partido Conservador no plano externo, os quais legaram uma diplomacia de alto nível para o país e acabaram também por desembocar na tragédia da Guerra do Paraguai.

• Prazo para postagem: 15 dias úteis
• Código do produto: 8E612E

 

Direito sem Fronteiras - Disputa pelo mercado brasileiro de remédios contra a Covid-19 - Paulo Roberto de Almeida e Matheus Atalanio (TV Justiça)

Um programa na TV Justiça dedicado ao patenteamento e licenciamento compulsório de medicamentos para o tratamento ou prevenção da Covid-19, gravado ainda em 2021, e que só veio a ser divulgado na data de hoje. O Matheus Atalanio foi meu aluno no programa do Uniceub em mestrado e doutoramento em Direito. 

1434. “Disputa pelo mercado brasileira de remédios contra a Covid-19”, Direito Sem Fronteiras, 14/02/2022; link:https://www.youtube.com/watch?v=kXVg2eRZeSM; entrevista ao programa da TV Justiça, na companhia do advogado e professor de Direito Internacional Matheus Atalanio.  

Direito sem Fronteiras - Disputa pelo mercado brasileiro de remédios contra a Covid-19


O laboratório farmacêutico MSD, um dos maiores do mundo, espera a aprovação da Anvisa para vender um antiviral contra a Covid-19 no Brasil em caráter emergencial. 
O produto já foi aprovado por agências importantes, como as do Japão e do Reino Unido. 
E o programa Direito sem Fronteiras desta semana vai discutir esse mercado de medicamentos, com destaque para a possibilidade de quebra de licenças de forma compulsória. O jornalista Guilherme Menezes vai conversar sobre o assunto com Matheus Atalanio, professor de Direito Internacional da Universidade de Fortaleza, e com Paulo Roberto de Almeida, diplomata e professor de Relações Internacionais.

O nacionalismo de direita à busca de eleitores em diversos países - Ishaan Tharoor (WP)

Deve se espalhar por aqui também...

 Right-wing nationalists are marching into the future by rewriting the past

Ishaan Tharoor
The Washington Post, February 14, 2022

Pete Ryan for the Washington Post

Pete Ryan for the Washington Post

Just weeks before losing his bid for reelection, President Donald Trump went to the National Archives to launch his quixotic 1776 Commission to promote “patriotic” education. There, he styled himself as the defender of “centuries of tradition” that culminated in the U.S. Constitution, which was “the fulfillment of a thousand years of Western civilization.” That tradition was under assault, he said, by an all-pervasive radical left, including corporate boardrooms, statue-smashing “mobs” of protesters on the streets and insidious educators in classrooms who “try to make students ashamed of their own history.”

 

“We are here today to declare that we will never submit to tyranny,” Trump said. “We will reclaim our history and our country.”

The 1776 Commission, widely derided by American historians, was unceremoniously scrapped the moment Trump left the White House. But Trump’s grandstanding over U.S. history is now a central plank in the GOP strategy to reclaim Congress in this year’s midterm elections. It has already helped Republicans to victories, notably in Virginia, where new Gov. Glenn Youngkin has promised to purge schools of “divisive” attempts to examine the legacies of racial injustice and white supremacy in U.S. history.

And well beyond the United States, nationalists of various stripes are seeking ammunition in the past for their battles in the present. The question of history — or, more precisely, how it should be remembered — courses through global politics. The context varies in each country, but increasing numbers of right-wing parties and nationalist leaders are staking their claims to power as defenders of a glorious past under attack from enemies within.

History gnaws at France’s sense of itself in a volatile election year. It occupies the rhetoric of demagogues in Poland and Turkey, and strongmen in Russia and China. It fans the flames of religious bigotry in India, the world’s largest democracy. And it stretches the widening political divides in the world’s oldest one, where GOP politicians have been bashing critical race theory and passing state laws that restrict how teachers may discuss questions of historical interpretation, race and identity. One proposed law in Texas, for example, would suppress discussion of slavery in school history curriculums about the state’s fight for independence from Mexico.

To those on the right in the United States and elsewhere, the recent focus on shameful, uncomfortable legacies is a sign of an imbalance, an excess of doctrinaire leftist scolding that corrodes the national psyche. And it provides fertile terrain to cultivate a politics of grievance, not least as the old tethers of 20th-century politics further loosen in many societies from traditional moorings such as class or economic interest. Instead, tribal passions and myths of belonging are at center stage, and political forces on the right aim to harness them.

 

***

Last September, Pope Francis wrote to Mexican bishops to commemorate the 200th anniversary of the start of the nation’s struggle for independence from Spain. He urged them to “recognize the painful errors” that were committed by the Catholic Church alongside the Spanish conquest and colonization of the New World. Back in Spain, Isabel Díaz Ayuso, leader of the Madrid region and a rising star in the mainstream conservative Popular Party, lashed out, countering that Spanish conquistadors five centuries ago brought only “civilization and freedom.”

What does this posturing accomplish? For Ayuso, it helps tap into resurgent nationalist feeling in a country where the more recent history of fascist dictatorship remains a perennial political flash point. She and her allies hope to claw back power from a fragile coalition government led by the center-left Socialists, but they face a mounting challenge on their right flank, with the ultranationalist Vox party surging in opinion polls.

In 2019, the Socialist-led government rebuffed calls from Mexican President Andrés Manuel López Obrador to formally apologize for the rampages of the conquistadors, though some leftist lawmakers were sympathetic to the idea. Ayuso grumbled to the New York Times last October about politicians both in Madrid and in the Americas who “have to blame the Spanish for a supposed original sin.”

That sentiment finds an echo in all sorts of political environments. See Russia, where the regime of President Vladimir Putin recently forced the shuttering of Memorial, a pioneering human rights group that, among other achievements, built a database of millions of files documenting the injustices of the Soviet Union’s system of gulag prisons.

Memorial’s expansion through dozens of affiliate organizations was a sign of a new openness in post-Soviet Russia. But for Putin, surfacing the depth of Stalinist atrocities from decades past threatens the unvarnished Russian patriotism he’s trying to cultivate around his autocratic rule. At a December hearing, a state prosecutor asked why, “instead of taking pride for our country, victorious in [World War II] and which liberated the whole world,” does Memorial “suggest that we repent for our … pitch-dark past?”

Some of the descendants of the losers of World War II have been asking similar questions. The anti-immigrant, ultranationalist Alternative for Germany party emerged from obscurity in part thanks to growing resentment over the country’s entrenched “memory culture” around the horrors of the Holocaust. In 2017, Alexander Gauland, one of the party’s founders, provoked outrage when he suggested that Germans should be proud of their soldiers who fought in World War II, while arguing that no other country in Europe had done more to atone for the sins of its past. Another party member decried Berlin’s Holocaust memorial as a “monument of shame.”

The AfD has won seats in Germany’s Bundestag in two successive elections and is becoming an entrenched player that now receives taxpayer funding to propagate its ideas. It draws strength particularly in East Germany, where it is backed by a considerable proportion of voters under the age of 30, a generation of disaffected youth post-unification that is less inured to far-right politics than its compatriots to the west. Not surprisingly, the AfD’s rise has been accompanied by a surge in reports of antisemitism.

To Germany’s east, illiberal ruling parties in Poland and Hungary have taken things further still. In 2018, Poland made it a crime to link the country to Nazi atrocities committed on its soil, appealing to a nationalist voter base even as it earned international opprobrium. In Hungary, long-ruling Prime Minister Viktor Orban styles himself as the vanguard of the anti-liberal front, the propagator of an exclusionary Christian nationalism that excites conservative intellectuals in the United States but rankles the liberal technocrats of the European Union, which the country joined in 2004. His government has revamped school curriculums to promote pride and patriotism, eliding certain historical defeats and rehabilitating a host of Nazi-era fascist collaborators.

Éric Zemmour, a French nativist firebrand and proponent of the once-fringe notion of the “Great Replacement,” which casts native-born Whites as an endangered species in their own societies, emerged in recent months as a serious far-right contender in the upcoming presidential election. He leavens his outright hostility to Islam and immigration — which has already earned him three hate-speech convictions from French courts — with a large dollop of historical revisionism. No matter his Algerian Jewish roots, he has indulged in apologia for the Vichy regime, which collaborated with the Third Reich, and rejects any suggestion that France needs to atone for its colonial sins in countries like Algeria, let alone address the racial inequities currently festering in its banlieues, or working-class suburbs. Zemmour has accused President Emmanuel Macron of “rewriting the history of France, always to its detriment.” That’s a reaction to the latter’s years-long effort to open a more public and transparent conversation about France’s bloody actions in its war against Algerian revolutionaries in the 1950s and ’60s. Macron laid a wreath last year near the site of a massacre of Algerian protesters in Paris in 1961, described aspects of French colonial rule as a “crime against humanity” and launched a historical commission that has acknowledged numerous misdeeds carried out by the French state.

The vehement opposition of Zemmour, among others, to that reckoning has had an impact. Last fall, mindful of intensifying nationalist anger to his right, Macron even provoked a diplomatic incident with Algeria after he suggested that the country existed only thanks to French colonial rule. In January, he delivered a speech spotlighting the suffering of the pieds-noirs, the nearly 1 million European colonists who fled across the Mediterranean to France after Algerian independence. Many of their descendants vote for candidates on the right.

In the Trumpian mold, Zemmour proclaimed that his (still unlikely) victory over Macron in April’s election would herald the “reconquest of the greatest country in the world,” cloaking himself in the heroic mantle of legendary French leaders like Napoleon Bonaparte and Charles de Gaulle. His invocation of a reconquest — Reconquête is even the name of his new political party — is intentionally loaded: It summons a grand and bloody medieval history, stretching from Frankish battles against Moorish invaders to Spain’s decisive victory over the Iberian peninsula’s last Muslim kingdoms and the expulsion of Jews and Muslims that followed.

Such gestures are rife in modern politics, especially among right-wing nationalists. Turkish President Recep Tayyip Erdogan has for years rooted his religiously tinged nationalism in an embrace of his nation’s Ottoman imperial past, conjuring the legacy of a fallen caliphate in an implicit repudiation of the rigid secularism that defined the modern Turkish republic for decades. Erdogan is the country’s most consequential leader since the republic’s founder, Mustafa Kemal Ataturk. But while the latter engineered a rupture with the Ottoman legacy in his bid to modernize Turkey, Erdogan taps into it to burnish his own nearly two-decade rule. Critics see in his demagoguery the deliberate affectations of a “new sultan.”

In India, since coming to power in 2014, ruling Hindu nationalists have set about chipping away at the country’s pluralistic foundations, building a more politicized, chauvinistic Hindu identity in a nation defined by vast linguistic, ethnic and religious diversity. They have recast the story of India as fundamentally Hindu and view a millennium of Muslim rule in parts of the country as tantamount to an era of “slavery,” as Prime Minister Narendra Modi put it.

Modi loyalists have been dispatched to bring to heel leading state-run universities, while his party’s supporters hound prominent historians at home and abroad whose scholarship they deem anti-Hindu. A broader climate of hate flourishes: Rights groups now even raise the specter of genocide stalking India’s increasingly marginalized and vilified Muslim minority.

***

This is an excerpt of a longer essay published in The Washington Post’s Outlook section. To read the full article, click here.

Bolivar Lamounier e os sobressaktos da democracia

 Bolívar Lamounier e os sobressaltos da democracia: leiam por inteiro e guardem, que depois vem mais; assim, vcs já terão metade do próximo livro do Bolivar…

Paulo Roberto de Almeida 

Caríssimos e caríssimas: como uma modesta contribuição ao tédio a que somos forçados pela pandemia, de vez em quando vou postar aqui um mini-ensaio de teor mais acadêmico, esperando não causar dano cerebral irreparável a nenhum de vocês. 

I.

A POLÍTICA COMO UMA ATIVIDADE DE FINS LIMITADOS

Bolívar Lamounier – 13.02.2022


Em 1928, numa entrevista ao New York Times, Benito Mussolini afirmou o seguinte : “Democracy is talking itself to death.The people do not know what they want; they do not know what is best for them. There is too much foolishness, too much lost motion. I have stopped the talk and the nonsense. I am a man of action. Democracy is beautiful in theory; in practice it is a fallacy; you in America will see that some day”. (extraido de  Mencken, Dictionnary of Quotations)

Vigoravam, à época, os mitos revolucionários fascista e marxista. No entre-guerras, a esquerda julgava-se capaz de decifrar o devir histórico, graças a um conhecimento supostamente superior, fundado na filosofia, na história e na economia política. Julgava-se portadora de um “que fazer”.  A direita fascista não compartilhava o mito marxista da progressiva realização de um mundo conhecido de antemão – o curso da história, desvendado pelo materialismo  histórico-, mas confiava cegamente em sua capacidade de intuir o momento certo para a tomada do poder, de seize the moment. O momento da ação, do putsch.  O que faria depois da tomada do poder é outra história; tinha em germe alucinações semelhantes às do nacional-socialismo alemão, a mesma crença na violência e na guerra, mas não chegou a cogitar a “solução final”, o holocausto, como os dementes nazistas. 

Assim, tanto para o fascismo como para o marxismo-leninismo, o problema do liberalismo democrático seria a falta desse “que fazer”. Faltar-lhe-ia a mística e principalmente a vontade e os meios de agarrar a iniciativa a fim de deflagrar uma intervenção transformadora na história. A democracia seria um regime letárgico, lento e indeciso, ineficiente na gestão econômica e incapaz de promover o crescimento econômico em benefício da maioria. Eis aí um refrão idiota que ouvimos quase todo dia na América Latina: a democracia seria na melhor das hipóteses “formal”, não “social” ou “substantiva”. 

Os comunistas estavam, naturalmente, se esbaldando com a Revolução Russa e curtindo o que, com muita felicidade, Bernard Yack denominou “o anseio da revolução total” (“The longing for total revolution –philosophical sources of social discontent, from Rousseau to Nietsche; Los Angeles, University of California Press). A Revolução  – segundo a crença comunista -  havia liquidado a Rússia feudal, o Estado não tardaria a “desaparecer” e, com ele, a sociedade de classes. 

No Brasil, desde os anos 30, quando o ensino das ciências sociais teve início, e no após-guerra, quando se generalizaram por quase todo o  país, a história da União Soviética era contada nesse diapasão ético. A Revolução e os planos quinquenais teriam efetivado a maior transformação da  história, dando ensejo à acelerada constituição de uma superpotência. Sobre o regime totalitário, a censura generalizada, a polícia secreta, nem uma palavra. Minha geração universitária não ouviu uma palavra sequer sobre o homodolod -, o “deixar de morrer de fome” imposto por Stálin à Ucrânia no inverno de 1932-33, com o objetivo de exterminar milhões de pessoas e confiscar a produção de trigo. 

Existia também, e existe ainda, a teoria de que a democracia é funcionalmente indecisa, invertebrada, contraditória; que sua lentidão e inapetência decisória atendem à “lógica do capitalismo”. No Ocidente democrático, não era comum, mas acontecia de intelectuais e políticos práticos, querendo ser realistas, passarem recibo de tais patacoadas. Discursando na House of Commons em 1935, Stanley Baldwin afirmou: “One of the weaknesses of a democracy, a system of which I am trying to make the best, is that until it is right up against it, it will never face the truth”. 

No Brasil, o próprio Afonso Arinos, cuja qualidade intelectual e convicções liberais ninguém haverá de pôr em dúvida, esbravejou contra a   “hemorragia de discursos” ao ver dele característica do Congresso. Ainda hoje, com o fascismo e o “socialismo real” convenientemente sepultados, uma logorreia “participatória” de origem rousseauísta difunde-se pelo planeta, em especial no Terceiro Mundo, que mal chegou a constituir verdadeiros Estados e peleja contra todo tipo de ignorância e canalhice no esforço de consolidar as engrenagens da  democracia representativa. 

Sim, a velha Rússia, depois a URSS e agora novamente a Rússia de Vladimir Putin tornou-se uma grande potência, mas não porque os ombros do proletariado a teriam elevado a tal altitude. Ela cresceu, petrificou-se, desmoronou e agora se restabelece graças ao já mencionado regime totalitário, ao stalinismo, a fabricação de armas nucleares e, não nos esqueçamos, ao Gulag, versão soviética dos campos de concentração nazistas.  

O que a legião de ignorantes antiliberais nunca conseguiu entender é que o totalitarismo é o fim da política, e que, sem política, a sobrevivência de uma humanidade civilizada estará por um fio. A política no sentido apropriado do termo sempre foi e sempre será uma atividade com fins limitados. Seu fim último é equacionar os conflitos que soem emergir a todo momento em toda sociedade com o mínimo possível de violência estatal. O totalitarismo se configura e a política desaparece no exato momento em que os boçais que provisoriamente detêm o poder do Estado ignoram e destroem essa fundamental distinção. 

Jamais em tempo algum mentiras, contrafações ou contorções verbais, por requintada que seja sua elaboração intelectual ou simbólica, conseguirão apresentar fornos crematórios como exemplo de uma linha de ação política. Atingido esse ponto, o que existe é pura alucinação e animalidade. 

O que acima se expôs é sabido ou pelo menos intuído pela maioria da  humanidade, salvo, talvez, por aquela camada à qual tudo foi negado, a começar pela mais singela escolarização. Apesar disso, algum tipo de pressa enlouquecida vem à tona quase toda semana, no mundo inteiro. A maior parte delas traz nas entranhas o “anseio da revolução total”. Algumas até são movidas por um generoso, mas equivocado sentimento de que as injustiças que de fato existem, inegavelmente intoleráveis, precisam ser removidas de imediato e a qualquer custo. Outras, infinitamente mais toscas, expressam a crença de que a justiça só pode ser alcançada pela destruição: fiat iustitia, pereat mundus.  Assim, por toda parte, com ou sem impulsos partidários ou governamentais, vemos arruaças,  desordens plebiscitárias, tentativas de destruir o que existir só porque existe, quebra-quebras anômicos. O objetivo implícito é destruir as instituições, uma patética versão do que Rousseau pensou de pior, como se as instituições políticas, indispensáveis à manutenção da paz e da ordem fossem a causa última das injustiças e desordens. Um breve retrospecto é suficiente para mostrar  que tais loucuras não levam a lugar comum, ou, melhor dizendo, que sempre levam a retrocessos,  a mais violência, a rupturas constitucionais que requerem décadas para serem remendadas; dizendo-o de forma concisa, a um estúpido consumo de capital humano e material.   

O leitor poderá talvez objetar que estou tangenciando a questão mais difícil. Conceituar a política como uma atividade limitada num mundo angustiado por mudanças? É certo, nosso planeta vive sob  a dupla angústia da paz e da tranquilidade, por um lado, e de grandes mudanças, por outro.  Para os que apenas lhe deitam uma vista d’olhos, a ideia da política como uma atividade de fins limitados pode sugerir vagareza, indecisão, no mínimo  descoordenação. 

O antídoto para esse monumental equívoco é ressaltar que a harmonização total dos interesses e a consequente liquidação de toda política é uma quimera; não é possível nem desejável, e é por isso que a democracia, com todos os defeitos que possa ter, e sabe Deus quantos são, precisa ser mantida, aprimorada e considerada como um bem inegociável. Sim, o mundo espera muito da política, há muito a realizar, e nosso tempo é escasso. Mesmo no Primeiro Mundo, com sua abundância de bens materiais, problemas urgentes e gravíssimos dão margem a conflitos dantescos - veja-se o caso dos Estados Unidos; no  Terceiro Mundo, o panorama é centenas de vezes pior. Mas onde foi que os referidos problemas foram resolvidos, permitindo-nos sequer entrever de um convívio social mais feliz?


domingo, 13 de fevereiro de 2022

Pesquisa e pós-graduação para os novos tempos - Simon Schwartsman (OESP)

Pesquisa e pós-graduação para os novos tempos

By Simon Schwartzman,  on Feb 11, 2022 11:50 am

(publicado em O Estado de São Paulo, 11 de fevereiro de 2022)

A partir de 2023, se tivermos um governo minimamente razoável, vai ser necessário recuperar e recompor o sistema federal de pós-graduação e pesquisa, hoje tão dilapidado. O primeiro passo é reconhecer que, desde que foi criado nas décadas de 1960 e 1970, ao lado de suas virtudes, este sistema vem acumulando uma série de deformações que precisam ser enfrentadas. O segundo é colocar à frente das principais agências – Ministério de Ciência e Tecnologia, CAPES, CNPq, FINEP – lideranças que entendam o que deve ser feito e tenham a necessária reputação e legitimidade entre seus pares para convocá-los para este trabalho. O terceiro é recompor os orçamentos destas instituições, pelo menos nos níveis de dez anos atrás.

Que deformações são essas? Meio século atrás, o número de instituições de pesquisa no país podia ser contado nos dedos, e o número de pesquisadores, em algumas centenas. Poucas pessoas chegavam à educação superior, e não existiam cursos de pós-graduação. A reforma universitária de 1968 procurou trazer a pesquisa para as universidades federais, criando cursos de pós-graduação e exigindo que os professores tivessem títulos de doutor e contratos de tempo integral. Nos anos 70 a FINEP, com recursos dos Planos Nacionais de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, começou a criar centros de pesquisa e, junto com a CAPES e o CNPq, a dar bolsas para quem quisesse e tivesse condições de fazer cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior.  Fazia sentido.

Hoje, dependendo de como se conta, temos cerca de 200 mil pesquisadores e mais de 6 mil cursos de pós-graduação regulados pela CAPES, com 140 mil estudantes de doutorado e 200 mil de mestrado.  Além disto, existem cerca de um milhão de estudantes em cursos de pós-graduação “lato sensu”, pouco ou nada regulados, como os MBAs e cursos de especialização. O IBGE registra a existência de 477 mil doutores no país, um quarto dos quais vinculados  aos programas de pós-graduação das universidades. 

Fazer pós-graduação pode significar coisas muito diferentes para diferentes pessoas. Para muitos, é uma maneira de garantir um bom lugar no mercado de trabalho, como profissional especializado. Para outros, é uma maneira de obter um título para subir na carreira universitária, sobretudo em universidades públicas. E para outros, uma minoria, é uma porta de entrada para uma carreira de pesquisador, seja em universidades ou em institutos públicos e privados.  Não são coisas excludentes, é possível ter os três objetivos ao mesmo tempo, mas na prática nem todos que se especializam ensinam, e nem todos que se especializam e ensinam fazem pesquisa. 

Se ser estudante de nível superior no Brasil é um privilégio, ser estudante de pós-graduação é um privilégio maior ainda. A renda familiar per-capita dos estudantes nível médio em 2021 era de 960 reais; dos estudantes de nível superior, 1.800 reais; e dos estudantes de pós-graduação, mais de 4 mil reais. Entre os que só ficam no nível superior depois de formados, a renda média chega a 2.900; para quem tem especialização, a 4.700; e para quem tem mestrado e doutorado, entre 6.500 e 8 mil reais por mês. Considerando estes números, o tamanho que o sistema de pós-graduação e pesquisa atingiu, e os diferentes objetivos das pessoas que entram neste sistema, será que a ideia de que todos precisam ser igualmente subsidiados ainda se justifica?

Claramente não. Com tanta gente, mesmo na melhor das condições, não haverá recursos para financiar bem a pesquisa e a pós-graduação de excelência. Uma bolsa de doutorado da CAPES ou CNPq hoje é de cerca de 2 mil reais, um terço da renda per capita familiar média dos estudantes, insuficiente para que alguém se sustente em uma grande cidade. A pesquisa científica de excelência no Brasil é concentrada em poucas universidades e departamentos, mas todos os professores do sistema federal, pesquisem ou não, ganham a mesma coisa, o que significa que ganham relativamente mal. Faria mais sentido que os profissionais bem-sucedidos que fazem mestrados e doutorados para subir no mercado de trabalho pagassem seus cursos, como já fazem com as especializações. As universidades deveriam ter carreiras separadas para professores pesquisadores de tempo integral e professores que se dedicam ao ensino, com contratos de tempo parcial e sem que sejam obrigados a passar por doutorados de pesquisa que não são de seu interesse; e alunos de doutorado poderiam trabalhar como auxiliares de ensino ou pesquisa enquanto estudam. Com isto haveria recursos para que os investimentos em pesquisa sejam substancialmente aumentados e concentrados nas pessoas e programas mais promissores, de melhor qualidade e que realmente necessitem.

São mudanças profundas que afetam a regulação e o financiamento do setor, e não esgotam a agenda, que precisa ainda incluir os temas da relevância, da eficiência, da internacionalização e da superação das barreiras que ainda separam a pesquisa da pesquisa pública e empresarial.  Mas seria um bom recomeço.

Visconde do Uruguai: o "pai fundador" da diplomacia brasileira livro de Paulo Fernando Pinheiro Machado, prefácio de Paulo Roberto de Almeida

Convido os interessados em história diplomática a conhecer o livro recém publicado sobre o Paulino José Soares de Souza, pois ali se situa, verdadeiramente, o nascimento da diplomacia brasileira. Como estimulante, ofereço meu prefácio ao livro.

Paulo Roberto de Almeida


A construção da diplomacia brasileira por um de seus pais fundadores

  

Paulino José Soares de Souza não figura entre os founding fathers da nação, inclusive porque, nascido em Paris, em 1807, só tinha 15 anos quando da declaração da autonomia, em 1822. Mas, ele foi, indiscutivelmente, um dos pais construtores do Estado brasileiro e um dos fundadores de sua diplomacia, tal como ela conseguiu se libertar de duas pesadas amarras da herança internacional portuguesa e passou a cuidar, verdadeiramente, dos interesses nacionais. Este livro, do eminente colega diplomata e distinto intelectual Paulo Fernando Pinheiro Machado, consolida toda a informação disponível sobre a atuação de Paulino como chanceler (duas vezes), tanto no plano conceitual, quanto no terreno da prática, tendo ele “encerrado” dois episódios que tinham ficado em aberto desde a independência, e dando a partida a uma política externa que será continuada por seus sucessores, com destaque para os dois Rio Branco, o visconde e o barão, cuja tradição de qualidade tornou-se um patrimônio da diplomacia republicana, prolongada até praticamente o período recente.

O Brasil nascente iniciou-se na vida internacional tendo de resolver três problemas herdados da política externa de Portugal, dos quais o primeiro foi contornado logo após a Restauração dos Bourbons na França pós-napoleônica e dois outros prolongados justamente até a atuação de Paulino, no começo dos anos 1850. Caiena, a futura Guiana francesa, que tinha sido ocupada por forças enviadas pelo príncipe regente D. João logo após a chegada da Corte portuguesa no Rio de Janeiro – uma forma de vingança contra Napoleão, que tinha mandado invadir Portugal em 1807 –, foi devolvida à França pelo tratado de Utrecht de 1817. Mas o problema do tráfico escravo, nas relações com a principal potência da época, a Grã-Bretanha, e a questão da Cisplatina – o futuro Uruguai, também invadido por forças portuguesas durante a presença da Corte no Brasil –, incorporada ao território do Império, e foco do nosso primeiro conflito com as Províncias “Desunidas” do Prata, permaneceram como dois focos imediatos de tensão nas relações exteriores da nova nação independente, ao lado e além do próprio reconhecimento diplomático do novo Estado pelas demais potências e vizinhos regionais, finalmente resolvido a partir de 1825. Essas duas questões só foram resolvidas, pelo menos nos seus aspectos mais cruciais, graças à atuação de Paulino na sua segunda encarnação como ministro dos Negócios Estrangeiros, antes mesmo que ele recebesse o título de Visconde do Uruguai, que só chegou em 1854, depois que ambos já tinha encontrado soluções satisfatórias, graças ao segundo melhor chanceler do novo Império do Brasil, depois do primeiro, José Bonifácio, um dos pais fundadores, também conhecido como o “patriarca da Independência”.

Este livro tem um título apropriado, “Ideias e diplomacia”, pois estes são os dois grandes conceitos em torno dos quais Paulo Fernando Pinheiro Machado organiza os seus argumentos substantivos, mas também traz, em seu subtítulo, uma afirmação mais do que apropriada: o “nascimento da política externa brasileira”. Com efeito, até o começo das Regências, a política externa do Brasil tinha sido quase “portuguesa”, e não só pelos problemas do Prata e do tráfico, mas também em função das tribulações de D. Pedro I com os assuntos da antiga metrópole: entre estas se incluem as desventuras de D. João VI de volta ao trono de Portugal, a ambição de D. Miguel, irmão de D. Pedro, este o herdeiro legítimo da coroa na morte (altamente suspeita) do pai em 1826, sua luta deste para fazer de sua filha, Maria da Glória, a legítima sucessora como futura D. Maria II, em benefício de quem abdicou da coroa portuguesa, o que só se efetivourealmente depois da verdadeira guerra civil que teve de travar contra o absolutista D. Miguel, já após sua própria abdicação como imperador do Brasil e volta definitiva a Portugal, em 1831. 

A política externa do primeiro Reinado foi, assim, “portuguesa”, pelo menos em certa medida, por causa dessas desventuras sucessórias, mas também tolhida pelos dois outros problemas que atazanaram a pequena Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros por mais de duas décadas numa delas. O problema da Cisplatina vinha da longeva tentativa lusitana de controlar pelo menos a margem superior do Rio da Prata – aliás, “descoberto” por um navegador português antes mesmo da passagem de Fernão de Magalhães, a quem se deve o nome da futura capital, Montevidéu, “monte vídeo” –, prolongada pela fundação e diversas ocupações da Colônia do Sacramento (onde nasceu Hipólito da Costa, que também pode ser considerado um dos “pais fundadores” da nação), até esta ser “devolvida” à Espanha pelo tratado de Madri de 1750, em troca das missões jesuíticas no Rio Grande do Sul. Foi um erro da administração do império português no Brasil ter ocupado um território visivelmente castelhano, antigamente pertencente ao Vice-Reinado do Rio da Prata (como também era o caso do Paraguai e do sul da futura Bolívia) e foi um erro ainda maior da constituição do nascente Império ter incorporado à jurisdição do novo Estado uma Província Cisplatina, à qual eram reconhecidos um sistema tributário diferente do resto do Império, ademais da própria língua espanhola. Depois da guerrilha contra os seguidores de Artigas, vencidos pelos “brasileiros” – o próprio D. Pedro chegou a se deslocar ao Uruguai –, a guerra aberta travada pelos “orientales” de Lavalleja, com o apoio aberto de Buenos Aires, constituiu o primeiro percalço infeliz da política externa “brasileira”, que teve ainda de enfrentar a hostilidade da França e da própria Grã-Bretanha, a quem coube impor um armistício, já em 1828, base da independência da futura República Oriental. Mas os “estancieros” gaúchos e o próprio Brasil continuaram a se imiscuir nos assuntos internos uruguaios, o que ainda provocaria os demais conflitos no Prata, que se prolongaram até o segundo Reinado.

No outro dossiê herdado de Portugal, mas assumido plenamente pelos novos “donos” do Império, a tensão bilateral com a Grã-Bretanha por causa do tráfico escravo, os irritantes já vinham desde os tratados desiguais de 1810, que Portugal teve de contrair, continuaram no Congresso de Viena (1815), foram objeto de vários acordos bilaterais “para inglês ver”, antes e depois da independência, e continuaram envenenando as relações bilaterais durante todo o período regencial e ao início do segundo Reinado, quando o Bill Aberdeen passa a ameaçar a própria soberania do Império. Todos esses problemas são detalhadamente tratados no livro agora publicado – derivado de uma tese no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco em 2010 –, mas não apenas em suas démarches propriamente diplomáticas, mas sobretudo no terreno da formulação política dos princípios e valores e dos fundamentos conceituais da diplomacia brasileira. 

Não cabe neste prefácio tratar de todas as questões práticas de diplomacia de que se ocupa Paulo Fernando Pinheiro Machado, com a minúcia de quem leu todos os relatórios, as obras do próprio Paulino e a literatura secundária, com foco centrado nesse “nascimento da política externa brasileira”, como evidenciado no subtítulo da obra. Mas, o seu texto é ainda mais precioso do ponto de vista intelectual, uma vez que ele se lança numa história das ideias, tanto as mais gerais – como as doutrinas políticas em voga em meados do século XIX –, como, principalmente, as do próprio Paulino, a quem ele trata pelo seu título nobiliárquico antes mesmo que ele adquirisse a distinção (Visconde “com grandeza”, como lhe atribuiu o imperador). Paulino não deixou memórias sequer um relato de sua imensa atividade à frente das diversas atribuições, diplomáticas ou outras, que recebeu desde a “correção” do Regresso, ainda no final das Regências, e durante o “tempo saquarema”, ao início do segundo Reinado. Mas ele deixou duas obras de “direito administrativo”, que são verdadeiros manuais de organização do Estado imperial, num momento em que este carecia de códigos, regulamentos e normas que pudessem guiar os dirigentes encarregados da gestão dos negócios internos e externos; Paulino foi um dos poucos a fazê-lo, com base numa leitura atenta da boa doutrina e dos estatutos em vigor nos principais países que moldavam o sistema internacional em sua época, tanto da tradição continental, quanto no âmbito anglo-saxão. 

Mais importante ainda, do ponto de vista da organização do corpo diplomático brasileiro e do próprio funcionamento da diplomacia do Império, que, naquela época, estava compartimentado em pelo menos três “carreiras” (o termo não se aplica inteiramente) distintas e separadas: os diplomatas propriamente ditos, que passavam a vida circulando entre os postos no exterior, as legações do Império na Europa, nas Américas e algumas na Ásia, os poucos funcionários da Secretaria de Estado no Rio de Janeiro, e os encarregados dos serviços consulares, geralmente dotados de menor consideração hierárquica e política, pois que se ocupando daqueles assuntos que eram desdenhosamente chamados de “secos e molhados”, ou seja, estampilhas cartoriais, vistos e rudimentos da promoção comercial. Foi Paulino que reformou o primeiro Regulamento da Secretaria de Estado – dado por Aureliano de Souza, em 1842 – e que produziu, de sua própria mão, uma sucessão de documentos que fundamentaram, organicamente, o funcionamento do antigo Ministério dos Negócios Estrangeiros, de uma forma que nunca tinha sido feita até então. A importância dessa obra administrativa, mais do que relevante, efetuada em sua segunda gestão como chanceler, merece que esses documentos de organização sejam mencionados por inteiro (e aqui eu recorro à excelente pesquisa feita pelo nosso colega Flávio Mendes de Oliveira Castro, na sua obra Itamaraty: dois séculos de história): 

1) a primeira organização do corpo diplomático brasileiro (Lei n. 614, de 22/08/1851);

2) o segundo regimento do corpo diplomático (Decreto n. 940, de 20/03/1852);

3) o decreto que fixou o número e as categorias das missões diplomáticas (1852);

4) o decreto que determinou uma inédita tabela de remuneração no exterior (1852).

 

Como explicitou Flávio Castro, esses quatro diplomas legais “vieram consolidar, em textos próprios, uma série de medidas administrativas, de disposições orgânicas e funcionais do Serviço Diplomático já capituladas, esparsamente, em administrações anteriores” (op. cit., Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, vol. I, p. 93). Mas Paulino fez ainda muito mais: ele se preocupou com a qualidade do capital humano com o qual deveria passar a trabalhar, doravante, a diplomacia brasileira. Como ainda relata Flávio Castro: 

Anexas ao Regulamento Paulino de Souza vieram à luz as

Instruções para o exame dos candidatos ao lugar de Adido de Legação, às quais se refere o Regulamento n. 940, de 20 de março de 1852

que acreditamos ser o primeiro programa oficial exigido para o ingresso na carreira diplomática. A Comissão Examinadora seria composta de três membros, presidida pelo Ministro de Estado. O exame deveria ser prestado publicamente, em sala da Secretaria de Estado, com a duração de duas horas, sendo 20 minutos dedicados a cada uma das seguintes matérias: 

1º. – Conhecimento das línguas modernas, especialmente da inglesa e francesa, devendo o candidato traduzir, escrever e falar esta última.

2º. – História Geral e Geografia Política, História Nacional, e notícia dos Tratados feitos entre o Brasil e as Potências estrangeiras.

3º. – Princípios gerais do Direito das Gentes, e do Direito Público nacional e das principais nações estrangeiras. 

4º. – Princípios gerais de economia política, e do sistema comercial dos principais Estados, e da produção, indústria, importação e exportação do Brasil.

5º. – A parte do Direito Civil relativa às pessoas e princípios fundamentais em matéria de sucessão.

6º. – Estilo diplomático, redação de despachos, notas, relatórios, etc.

O escalonamento da carreira foi assegurado pelo artigo 4º do Regulamento Paulino de Souza, que determinava o processo de ascensão ao cume da hierarquia. O funcionário progrediria ao cargo imediatamente superior, não dando mais margem às interpolações de adventícios. (...)

Os adventícios no Serviço Diplomático de então eram os Embaixadores de fora da carreira..., Chefes e Empregados de Missões Especiais, que poderiam ser também estranhos à carreira. Tais funcionários, se continuassem servindo ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, não teriam os benefícios e vantagens da estabilidade remunerada ou da aposentadoria...

No Regulamento Paulino de Souza não foram estabelecidas normas precisas sobre critérios a seguir para promoções. Há, porém, a referência de que o serviço em Legações de países americanos ou o exercício das funções de Secretário ou de Adido na Legação de Londres, além de outros, seriam motivos de preferências nas promoções... Segundo instruções especiais..., haveria uma revisão da lista de Adidos de 1ª. e 2ª. Classes, ‘a fim de serem eliminados aqueles que houverem dado provas de pouca capacidade, ou tiverem procedimento menos regular’. (Castro, 2009, p. 98-100; ênfases no original)

 

As reformas introduzidas por Paulino constituíram, sem dúvida alguma, a mais importante reforma estrutural jamais efetuada na carreira e no serviço diplomático até então, sendo que um novo Regulamento de organização só seria introduzido em 1859 pelo ministro José Maria da Silva Paranhos. Mas o Visconde do Rio Branco o fez sem tocar, por exemplo, nos requerimentos de seleção de adidos de 1ª. classe, porta obrigatória de ingresso na carreira, o que confirma que Paulino estabeleceu um padrão de qualidade no recrutamento dos servidores do quadro diplomático que seria invariavelmente seguindo, com as pequenas adaptações pertinentes, até os nossos dias. De fato, a aura de excelência do Itamaraty atual deita raízes nas reformas e nos estatutos concebidos, escritos e implementados por Paulino, antes até que ele recebesse a honra de ser elevado ao título de Visconde do Uruguai. 

Se examinarmos, por exemplo, a lista acima das matérias exigidas para a admissão de novos servidores constata-se que esse imenso conhecimento das mais diversas disciplinas continuou a ser exigido dos candidatos à carreira nos 170 anos seguintes, depois que Paulino traçou, pela primeira vez, essa amplitude de domínio de matérias afetas ao trabalho diplomático (e consular também, com variações apropriadas) que o aspirante precisaria ter antes de passar a integrar o reduzido, mas capacitado corpo diplomático brasileiro, uma obra magnífica de Paulino. Com efeito, no seu decreto 941, de 1852, ele também fixou o número e a categoria dos funcionários que caberia manter nas 21 missões diplomáticas que o Império passou a manter no exterior, integradas por 15 a 19 adidos, 7 secretários, 12 encarregados de negócios – no Paraguai, no Chile, conjuntamente na Venezuela, Nova Granada (Colômbia) e Equador, e em nove monarquias europeias –, 2 ministros residentes – na Bolívia e na Prússia e cidades hanseáticas – e 7 Enviados Extraordinários e Ministros Plenipotenciários (que são chamados atualmente de embaixadores), estes nas Américas (Estados Unidos, Confederação Argentina, Uruguai e Peru) e na Europa (Grã-Bretanha, França e Portugal). 

Em outros termos, Paulino conduziu, com maestria, não só a política externa do Império, como demonstra com total domínio de cada um dos assuntos substantivos Paulo Fernando Pinheiro Machado, como o estadista do Regresso também soube organizar, nos mínimos detalhes, toda a organização, o funcionamento e a seleção do pessoal diplomático. Ele estabeleceu um padrão de qualidade que, se foi modificado ao sabor da evolução natural da política regional e internacional do Brasil, jamais deixou de se pautar pelo espírito das normas e requerimentos exigentes que Paulino traçou em matéria de desempenho funcional e de rigor intelectual dos diplomatas recrutados para serviço exterior do país. 

Ao lado de outros grandes nomes vindos da Regência, liberais ou conservadores, como Bernardo de Vasconcelos, Honório Hermeto, Eusébio de Queirós Mattoso, Alves Branco e Paranhos, o Visconde do Uruguai foi um dos grandes estadistas e agentes políticos do Império, atuando tanto na esfera política, constitucional, administrativa, quando, principalmente, no nascimento e na consolidação de uma política externa propriamente brasileira, e não mais “portuguesa”, como ele ainda encontrou ao assumir pela primeira vez a chancelaria (em 1843). De 1849 a 1853, ele foi o mestre absoluto do todos os atos na frente externa, mesmo numa agenda tão pouco favorável à imagem do Brasil no exterior, como era a infeliz defesa do tráfico. Paranhos, que o seguiu mais adiante, também teve de se ocupar do dossiê da escravidão, o que ele fez pela Lei do Ventre Livre, em 1871. 

Esta obra primorosa – inclusive e principalmente pelo seu lado de “história das ideias” – rende homenagem à figura humana, ao homem político, ao pensador insigne e ao estadista excepcional que foi o Visconde do Uruguai, um formulador consistente das bases institucionais de funcionamento do Estado imperial, um leitor de Burke, de Guizot, de Tocqueville, mas que sabia adaptar doutrinas e regulamentos estrangeiros às condições materiais e sociais de uma nação ainda em formação como era o Brasil em meados do século XIX. Ele debateu com outros tribunos do Império, como Tavares Bastos ou Zacarias de Góis e Vasconcelos, sobre os temas mais candentes de nossa organização política, defendendo o modelo de Estado que ele julgava ser o mais conforme às possibilidades concretas de um país ainda atrasado em quase todos os quesitos civilizatórios, mas que ele pretendia ter uma estrutura administrativa e um corpo de funcionários similares, se não semelhantes, aos dos Estados mais avançados da Europa. 

Como escreveu sobre ele uma das principais estudiosas de sua obra e pensamento: 

No Brasil o mundo da política era, segundo Uruguai, desvirtuado e perigoso, sujeito às paixões e aos interesses mesquinhos nascidos nas localidades – onde faltavam homens talhados para agir visando ao interesse público. O maior dique contra esse mundo era a administração. Em toda a obra do visconde transparece a valorização da administração, terreno da neutralidade e da eficácia, em contraposição à esfera da política, presa fácil das facções. (Gabriela Nunes Ferreira, “Visconde do Uruguai: teoria e prática do Estado brasileiro”, in: André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz (orgs.), Um enigma chamado Brasil: 20 intérpretes e um país. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 18-31, cf. p. 26)

 

Senador do Império, ministro de Estado por duas vezes na Justiça e por três vezes na pasta dos Negócios Estrangeiros, embaixador em missão especial na França, para tratar do caso da Guiana – que só seria resolvido na República, pelo barão do Rio Branco –, Paulino José Soares de Souza não deixou um registro circunstanciado de seu imenso trabalho de gestor, de político, de chefe fundador de uma diplomacia verdadeiramente brasileira, mas ofereceu sua contribuição de estadista como autor de duas obras de direito administrativo. Seu neto, José Antonio Soares de Souza, deixou sobre ele um relato encomiástico, mas honesto, na obra A vida do visconde do Uruguai (1944), com ampla informação sobre cada uma de suas múltiplas atividades nos diversos cargos em que se desempenhou sempre de forma brilhante. Outros estudiosos importantes, como José Murilo de Carvalho, que organizou a reedição de suas principais obras (2002), ou Ilmar Mattos (1999), examinaram o seu trabalho como construtor do Estado imperial. Esta obra, de meu colega Paulo Fernando Pinheiro Machado, completa agora, pelo estudo de suas ideias e pelo acompanhamento de sua ação na diplomacia, o panorama virtualmente completo desse grande formador do Brasil na primeira fase de sua existência como nação independente.  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata e professor

Brasília, dezembro de 2021