Desde muitos anos sou o responsável, incógnito, pela seção "Prata da Casa", do
Boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros, a ADB. Minha tarefa, colocada simplesmente, é a de coletar, resenhar e apresentar, aos colegas da Casa, as obras publicadas, individualmente ou em volumes coletivos, pelos membros da nossa tribo (que alguns consideram ser um estamento).
Infelizmente, o formato reduzido do boletim impede a elaboração de verdadeiras resenhas, e menos ainda de "review-articles",
à la New York Review of Books, como gosto de fazer. Ainda assim, as notas procuram apresentar resumidamente o conteúdo de cada obra e tecer algumas considerações sobre o seu valor. Faço praticamente quatro notas a cada trimestre, o que faz aproximadamente dezesseis livros por ano, uma média aceitável para um leitor compulsivo como este que aqui escreve.
Também é uma estratégia para receber livros interessantes, se é que me entendem, o que por outro lado contribui para o aumento da densidade bibliográfica de minha já vasta biblioteca (não me perguntem de quantos volumes, pois parei de contar há muito tempo e nunca mais consegui colocá-la em ordem, inclusive porque regularmente faço doações de livros para bibliotecas).
Enfim, isso para dizer que, como o boletim tem uma circulação muito restrita -- embora possa ser consultado, número a número,
neste link -- permito-me transcrever aqui, suponho que bem acolhidas pelos interessados, as notas que elaborei ao longo de 2010, apenas. Suprimo a reprodução das imagens das capas (que podem ser encontradas nos boletins, em pdf), pois este post ficaria muito pesado.
Existem muitas outras notas de livros, de anos anteriores, que vou procurar transcrever paulatinamente.
Prata da Casa – Boletins da ADB do ano de 2010
Paulo Roberto de Almeida
Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos: O Dia em que Adiaram o Carnaval: Política Externa e a Construção do Brasil (São Paulo: Unesp, 2010, 278 p.; ISBN: 978-85-393-0060-0)
O Barão (não precisa completar, pois só tem um) morreu às vésperas do Carnaval de 1912. O governo ainda tentou postergar a festa, deslocando-a para Abril, mas o povo festejou nas duas oportunidades. O culto do Barão, o santo padroeiro da diplomacia brasileira, é o ponto de partida desta reflexão original sobre a construção da nacionalidade brasileira a partir dos grandes temas de nossa política externa no século 20. A obra segue as relações entre Estado, território e poder político no Brasil, revelando os dotes de historiador de Villafañe, mas também os de pensador da nacionalidade. Como ele escreve: “O fato de Juca Paranhos estar indubitavelmente no panteão dos santos do nosso nacionalismo certamente revelará algo do processo de construção da identidade brasileira”. Assim seja...
Paulo Roberto de Almeida: Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização (Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2010, xx+272 p.; ISBN: 978-85-375-0875-6).
Os antiglobalizadores são os seres mais estranhos e ingratos que existem: tudo o que eles são, tudo o que eles fazem, eles o devem à globalização e, ainda assim, encontram motivos (errados, claro) para protestar contra ela, como se esse processo tivesse dono e direção pré-determinada. Este livro apresenta, primeiro, as diversas facetas desse complexo fenômeno, dedicando-se, em seguida, a desmantelar cada um dos argumentos equivocados ou simplesmente patéticos dos antiglobalizadores. Com isso o autor não espera receber qualquer convite para comparecer a esses animados convescotes que eles promovem, mas pretende, pelo menos, contribuir para o esclarecimento de jovens que, hoje, se deixam levar pelas mentiras ingênuas ou os argumentos de má-fé de antiglobalizadores profissionais. Ridendo castigat mores...
Helio Franchini Neto: Distopia (Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2010, 182 p.; ISBN: 978-85-7480-506-1)
Um romance na tradição orwelliana que nos remete a um futuro distante, paradoxalmente parecido com nossa era de lutas entre ideologias opostas. Não se trata mais de guerra fria, e sim de guerra quente, entre três mundos, de ideologias políticas estranhamente familiares: os democratas, arautos do livre-arbítrio; os libertaristas, de tradição marxista, autoritários e estatizantes; e os teologistas, fanáticos religiosos, obscurantistas e cruéis. Qualquer semelhança com nossos tempos não é mera coincidência, apesar do enredo desfilar séculos à frente. Um burocrata do Ministério da Guerra dos democratas tenta achar um “suposto caminho para a verdadeira liberdade” (p. 67), lutando contra adversários totalitários, em prol da democracia; ele conclui, ao final, que “as palavras possuem sentidos e consequências”. De fato...
Kenneth David Jackson (org.): Joaquim Nabuco em Yale: centenário das conferências na Universidade; Severino J. Albuquerque (org.): Joaquim Nabuco e Wisconsin: centenário da conferência na universidade (Rio de Janeiro: Editora Bem-te-vi, 2010, 2 volumes, 708 p.; ISBN: 85-8874-732-4)
Dois diplomatas brasileiros comparecem nestas duas coletâneas de estudos sobre nosso primeiro embaixador em Washington, que faleceu no posto exatamente um século atrás. João Almino, participa do primeiro volume, com um texto sobre “a utopia de Nabuco para as duas Américas”, e Paulo Roberto de Almeida, do segundo, com um ensaio comparando o desenvolvimento do Brasil e dos Estados Unidos, antes e depois de Nabuco. Em meio à profusão de obras e exposições comemorativas sobre o pensamento e a ação política de Nabuco, bem como sobre sua contribuição literária, estes dois volumes se distinguem por perspectivas originais. O diplomata americano Alfred M. Boll discorre inclusive sobre como a atuação de Nabuco em Washington contribuiu para o desenvolvimento do serviço diplomático dos Estados Unidos.
Ciro Leal M. da Cunha: Terrorismo Internacional e Política Externa Brasileira Após o 11 de Setembro (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, 216 p.; ISBN: 978-85-7631-190-4)
Originário de um trabalho de conclusão do Mestrado em Diplomacia pelo IRBr, este livro expõe e analisa as diretrizes e ações do governo brasileiro com respeito à temática do terrorismo, depois que este se converteu (legitimamente) na preocupação número um dos Estados Unidos (e de vários outros países, também). O Brasil, por falta de ameaças visíveis nessa área, atribui importância menor ao tema, e opõe-se, em princípio a medidas coercitivas, preferindo atuar nas causas subjacentes – supostamente um problema de injustiça em determinadas áreas e regiões – e basicamente por meio da cooperação. Em outros termos, o Brasil é contrário ao uso da força em qualquer circunstância, mesmo no caso do terrorismo, insistindo na tese genérica da manutenção do multilateralismo, o que pode ser problemático, como evidenciado nos casos da Colômbia e do Oriente Médio, onde a via do diálogo tem se mostrado basicamente insuficiente, por vezes ineficiente.
Rômulo Figueira Neves: Cultura Política e Elementos de Análise da Política Venezuelana (Brasília: Funag, 2010, 152 p.; ISBN: 978-85-7631-192-8)
Outro trabalho de conclusão do Mestrado em Diplomacia pelo IRBr, o livro repassa a longa trajetória de peripécias políticas de nosso vizinho andino, para retomar, num importante capítulo, os episódios da história recente de construção de um regime sui generis liderado pelo caudilho bolivariano. O sistema atual – que como os anteriores se baseia no rentismo petrolífero, uma verdadeira maldição tanto para a Venezuela como para outros países, acomodados numa riqueza mineral – se caracteriza pela baixa produtividade, pela presença dos militares (que aliás é tradicional na vida do país, retirando-se o período 1958-1999, ainda assim incluindo uma tentativa de golpe, pelo mesmo Chávez, em 1992), pelo bolivarismo mítico (talvez até doentio) e pela radicalização dos discursos políticos (o que é evidente, com a divisão completa da sociedade venezuelana). O futuro, provavelmente, reserva novas doses de violência política num país que promete revolucionar não apenas o cenário doméstico mas o próprio Mercosul. Quosque tandem?
Marcelo Cid: Os Unicórnios (Rio de Janeiro : Sete Letras, 2010, 168 p.; ISBN: 978-85-7577-637-7)
A solução encontrada pelo “herói” deste livro para remediar ao desaparecimento de sua biblioteca num incêndio exemplar não deve ser recomendada aos verdadeiros amantes desses pouco obscuros objetos de cobiça: constituir uma nova biblioteca inteiramente a partir de livros roubados, mas seletivamente (o que talvez introduza um pouco de razão na loucura do larápio bibliófilo e bibliomaníaco). Por acaso esse professor universitário se torna o principal assessor intelectual de uma pequena editora, e sai em busca do manuscrito “clássico inédito” (sic), vislumbrado em possíveis poemas desconhecidos do poeta simbolista francês Arthur Rimbaud. Os unicórnios são como Pilatos no credo, simples sobreviventes do incêndio, testemunhas mudas da trajetória singular do ladrão de livros (sempre por amor, claro).
Fernando Cacciatore de Garcia: Fronteira Iluminada: História do Povoamento, Conquista e Limites do Rio Grande do Sul, a partir do Tratado de Tordesilhas (1420-1920) (Porto Alegre: Sulina, 2010, 330+16 p.; ISBN: 978-85-205-0555-7)
Uma obra destinada a superar os clássicos de história das fronteiras, pelo menos no que se refere à fixação dos limites meridionais do Brasil, ainda antes que a nação tivesse sua atual conformação geográfica. Uma pesquisa minuciosa, uma escrita saborosa, ilustrações e mapas originais, uma edição cuidadosa, que honra as melhores tradições de historiadores e escritores diplomáticos. Na verdade, trata-se bem mais que uma simples história dos conflitos lindeiros entre espanhóis e portugueses, ou entre brasileiros e uruguaios; é uma história política do extremo sul, onde o povo optou por ser brasileiro, quando poderia ter sido autônomo (e certamente teria motivos para afirmar sua independência, pelo menos intelectual). Uma bibliografia exaustiva confirma o imenso volume de documentos e relatos historiográficos consultados pelo autor, nesta construção primorosa, ela mesma iluminada.
Flavio Mendes de Oliveira Castro e Francisco Mendes de Oliveira Castro: Dois séculos de história da organização do Itamaraty; 1: 1808-1979; 2: 1979-2008 (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, 640 e 332 p.; ISBN: 978-85-7631-136-2 e 978-85-7631-158-4)
O que já era, na edição original – há muito esgotada – da UnB, uma história minuciosa da estrutura evolutiva do Ministério dos Negócios Estrangeiros, depois Relações Exteriores, tornou-se agora um relato completo sobre a Casa que passou a chamar-se Itamaraty já na República. A despeito do tom burocrático, trata-se de obra absolutamente indispensável a todo pesquisador que queira desvendar os segredos da alegada excelência da Casa na defesa dos interesses nacionais. Os Castros, reunidos para o segundo volume e o enriquecimento do primeiro merecem cumprimentos pelo trabalho excepcional de compilação – e apresentação, em tom ameno – dos mais importantes documentos que balizam a construção de uma das melhores instituições diplomáticas do hemisfério sul (e talvez, também, de várias partes do norte).
Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão: A Revolução de 1817 e a História do Brasil: um estudo de história diplomática (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, 352 p.; ISBN: 978-85-7631-171-3)
Segunda edição de uma obra relevante na historiografia da revolução em Pernambuco, cujos vínculos internacionais foram pesquisados com uma competência raramente vista nos anais da diplomacia brasileira. Em duas partes, a obra analisa a correspondência diplomática portuguesa e estrangeira a partir de capitais européias, de Washington e do Prata, para reconstituir as ligações internacionais dos revoltosos do Recife; na segunda parte, a obra discute a opção pela monarquia no Brasil, a partir do impacto dessa revolução talvez mais federalista do que republicana, bem como a repercussão do precedente haitiano no Brasil do começo do século 19: a imagem de escravos eliminando seus senhores brancos deve ter assustado as elites do Império. Poderia o Brasil ter sido um grande Haiti? Questão para uma história virtual...
Ovídio de Andrade Mello: Recordações de um Removedor de mofo no Itamaraty: relatos de política externa de 1948 à atualidade (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, 192 p.; ISBN: 978-85-7631-175-5)
Em três partes, o depoimento trata da política nuclear e da recusa ao TNP, do reconhecimento de Angola (com telegramas secretos revelados) e dos périplos afro-asiáticos do embaixador aposentado; na quarta parte, Ovídio diz que fez a sua parte ao tentar remover do Itamaraty ideias antiquadas e desajustadas, entre elas a decisão de se assinar o TNP. Um dos fantasmas do passado é o imperialismo dos EUA na América Latina, um mofo muito pegajoso, a crer no embaixador. Cabem elogios ao “simpático casal Kirchner”, referências a “explosões nucleares pacíficas” e certa nostalgia pelas posições que o Brasil exibia no passado. O livro é importante pelo depoimento em si, menos talvez pela mensagem que pretende transmitir aos atuais removedores de mofo, pois caberia distinguir qual camada, exatamente, remover...
Jorge Sá Earp: O novelo (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008, 204 p.; ISBN: 978-85-7577-536-3)
Autor de uma já impressionante obra de poeta, contista e romancista, Earp termina com esta novela, cujo formato é realmente o de um novelo (com perdão pelo jeux de mots), a trilogia começada com O Olmo e a Palmeira (2006) e O Legado (2007): todo o romance se faz sob a forma de relatos dos personagens, cada um encadeando e misturando suas impressões e trajetórias pessoais com as dos demais. O itinerário total, de duas famílias entrelaçadas, vai, assim, do começo do século 19 ao AI-5, em 1969. Aqui, personagens históricos e imaginários se misturam numa trama que só pode ser seguida pelos relatos subjetivos destes últimos, et encore: ao final, o autor confessa que servia de “ponto” para os atores de uma longa peça de teatro, cujo enredo é a própria história do Brasil: um e outra terminam no escuro da noite. Bravo!
Geraldo Holanda Cavalcanti: As desventuras da graça (Rio de Janeiro: Record, 2010, 384 p.; ISBN: 978-85-01-08527-6); 2)
Uma espécie de Bildungs Roman, um livro de formação, sobre os primeiros vinte anos do autor, que também correspondem a uma infância de catolicismo exacerbado e à gradual perda da religiosidade na adolescência, até chegar à falta de fé do jovem formado e pronto para ingressar na carreira diplomática. Entre anjos e mistérios da fé, o autor passeia sua erudição pelo que se poderia chamar de cultura clássica e renascentista: somos contemplados com passeios ricamente comentados às principais cidades e museus da Europa. Seus diários e recordações, com algumas projeções de atualidade, são a fonte primária deste saboroso racconto memorialístico de estilo absolutamente original nos exemplos do gênero. Depois desta saborosa viagem iniciática, o autor fica nos devendo a continuidade da história, desta vez na primeira fase de sua rica vida diplomática.
Paulo Nogueira Batista Jr. (org.): Paulo Nogueira Batista: Pensando o Brasil, Ensaios e Palestras (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, 336 p.; ISBN: 978-85-7631-174-4)
Poucos diplomatas preservam, organizam e disponibilizam sua produção ao longo da carreira, talvez porque ela seja, na maior parte, aborrecidamente burocrática. Este não é certamente o caso do nacionalista PNB, que não apenas entregou arquivos ao Cpdoc, como guardou suas contribuições mais relevantes ao longo de uma carreira que se confunde com a defesa das causas nacionais, desde a era JK até o início dos anos FHC. Infelizmente desaparecido prematuramente, ele comparece agora através desta seleção de textos, elaborados entre 1983 (dois inéditos) até 1994, quando PNB se preocupava com o perfil do Mercosul e seus efeitos sobre a economia brasileira. São textos diplomáticos, mas que guardam a nítida marca de um pensador original.
Antonio de Aguiar Patriota: O Conselho de Segurança após a Guerra do Golfo: a articulação de um novo paradigma de segurança coletiva (2a. ed.; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2010, 232 p.; ISBN: 978-85-7631-197-3)
Reedição não atualizada de obra elaborada em 1997 e publicada em 1998, o trabalho preserva utilidade como análise detalhada da atuação do Conselho em casos importantes de ameaças à paz e à segurança internacionais no contexto do novo ambiente criado em meados dos anos 1990, com o fim da Guerra Fria e o vislumbre de novos princípios para a aplicação dos dispositivos relativos à segurança coletiva. Mesmo sem a adição de novos capítulos para contemplar a situação criada com a segunda guerra do Golfo (invasão não autorizada do Iraque), o livro teria, ainda assim, se beneficiado com uma introdução ou epílogo para discutir, justamente, o que existe de novo no contexto do CSNU, a partir da preeminência quase exclusiva dos EUA, da re-emergência da Rússia e da assertividade da China. Caberia uma edição revista e atualizada, para discutir se existe, realmente, um novo paradigma.
Luis Gurgel do Amaral: O Meu Velho Itamarati (De Amanuense a Secretário de Legação) 1905-1913 (2a. ed. Revista; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2008, 504 p.; ISBN: 978-85-7631-105-8).
Com uma primeira edição em 1947, para relatar memórias de cem anos atrás, a obra tem sabor e conteúdo de amenidades fagueiras e um compreensível vieux style, inclusive na linguagem machadiana. Tempos em que o velho Palácio do Itamaraty acolhia bailes suntuosos – “Felizes eram aqueles que tinham os seus nomes nas listas do Protocolo, os trezentos de Gideão...” – nos quais o autor “rodopiava sem competidores”. Os telegramas expedidos pela Western Union eram caros, e os ofícios ainda redigidos à mão, o que justificava o uso do tempo para afazeres mais amenos, como incursões em lancha e subidas frequentes a Petrópolis (inclusive para escapar da febre amarela, a dengue da Primeira República). Leitura agradável, talvez com pince-nez e algum licor caseiro, mas poucos elementos substantivos para a história real.
[PRA: Termino aqui a postagem das notas elaboradas ao longo de 2010; vou recuperar as dos anos anteriores.]