domingo, 23 de abril de 2023

O PT não fez sua conversão à economia de mercado - Maílson da Nóbrega (FSP)

 O PT não fez sua conversão à economia de mercado

Maílson da Nóbrega

Ex-ministro da Fazenda (1988-1990, governo Sarney) e sócio da Tendências Consultoria

[RESUMO] O PT, que desde a sua fundação se orienta pela defesa da democracia representativa e do Estado de bem-estar social, não foi capaz de abandonar ideias econômicas ultrapassadas, como o apego a empresas estatais e a rejeição da independência formal do Banco Central, afirma autor. Em sua avaliação, a ênfase nesse programa e a perspectiva de baixo crescimento nos próximos anos tornam provável uma derrota eleitoral, que poderia ser uma oportunidade para o partido modernizar suas orientações no campo da economia, o que traria grandes benefícios ao país.

Folha de S.Paulo, 23/04/2023

O PT (Partido dos Trabalhadores) foi fundado em 1980, quando a grande maioria dos partidos de esquerda da Europa havia abandonado ideias marxistas como a ditadura do proletariado e a propriedade estatal dos meios de produção. A democracia representativa passou a fazer parte de seu ideário, assim como a economia de mercado, associada a um Estado de bem-estar social.

Sob a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva, o PT se firmou como única agremiação de esquerda brasileira capaz de ganhar eleições presidenciais. No campo político, tal qual seus congêneres europeus, adotou a democracia representativa como meio de alcançar o poder, em vez da revolução.

Não deu, contudo, o passo seguinte: a aceitação plena da economia de mercado. O PT continuou aferrado ao intervencionismo na economia, ao protecionismo industrial, ao apego a empresas estatais, ao gasto público como alavanca da prosperidade e à rejeição da ideia de independência formal do Banco Central, consagrada no mundo há pelo menos 50 anos.

No campo social, mais que qualquer outro partido, o PT comprometeu-se com os ideais da redução das desigualdades sociais, do combate à pobreza e da fé na democracia. Apesar da admiração a Fidel Castro, Cuba nunca foi o modelo que inspiraria a ação do partido.Segundo o sociólogo Celso Rocha de Barros, autor do excelente "PT, Uma História" , suas ideias receberam influência da esquerda católica adepta da Teologia da Libertação. Para ele, "tanto o catolicismo de esquerda quanto os sobreviventes da luta armada produziram quadros e ideias para o Partido dos Trabalhadores. Mas, dos dois, só o catolicismo social produziu movimentos" (grifo do original).

Ao contrário de partidos europeus, caso do Partido Socialista Operário Espanhol, o PT nunca inscreveu em seus estatutos o objetivo de controle estatal dos meios de produção nem da abolição da propriedade privada.

José Dirceu, que se tornaria um dos principais quadros do PT, foi um dos fundadores da Articulação, corrente que viria a ser a mais importante fonte de moderação e de caminhada rumo à social-democracia. Segundo Rocha de Barros, a corrente "consolidou a influência de Lula e do setor sindical da legenda". Apesar do apoio a líderes autoritários de Cuba, Venezuela e Nicarágua, Lula e outros dirigentes do PT inscreveram a democracia nos princípios fundamentais do partido.

Em questões econômicas, todavia, as ideias ultrapassadas do PT resistem ao tempo. Não se percebe que empresas estatais são um fenômeno do século 19, justificado pela ausência de capacidade gerencial e financeira do setor privado para operar setores essenciais ao desenvolvimento, como o financeiro e os de infraestrutura de transporte, energia e comunicações.

À medida que o setor privado e os mercados de capitais se fortalecem, como tem sido o caso no Brasil, desaparece a justificativa de manutenção de tais empresas. O Japão privatizou a maioria de suas estatais no fim do século 19, e a Europa, nos anos 1980 e 1990.

O preconceito contra credores externos —outra das características originais do partido— levou o PT a aliar-se à proposta de auditoria da dívida externa apresentada pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que promoveu um "plebiscito" em setembro de 2000 para questionar empréstimos concedidos por países, organizações multilaterais e bancos estrangeiros. Na ocasião, se votaria também sobre o descumprimento do acordo então vigente com o FMI. O pagamento da dívida somente poderia ser admitido depois de uma auditoria.

Na campanha presidencial de 2002, que daria a primeira vitória a Lula, o PT emitiu sinais de reversão dessas ideias. A Carta ao Povo Brasileiro, redigida pelos petistas Antonio Palocci e Luiz Gushiken, dois ex-militantes trotskistas, e pelo jornalista Edmundo Machado de Oliveira, sinalizou o abandono de propostas econômicas radicais, visando influenciar positivamente o mercado financeiro.

Era uma posição sensata e corajosa, pois contradizia o programa do partido, que assustava até no título: Uma Ruptura Necessária. A carta defendia o cumprimento de contratos e a responsabilidade fiscal, incluindo a geração de superávits primários "o quanto bastasse". Prometia, implicitamente, pagar a dívida interna e externa.

Lula surpreendeu ao manter a política econômica de FHC, o chamado tripé macroeconômico (metas de inflação, austeridade fiscal e câmbio flutuante). Convidou um presidente de banco estrangeiro, Henrique Meirelles, para comandar o Banco Central. Aprovou os nomes de três economistas liberais (Murilo Portugal, Joaquim Levy e Marcos Lisboa) para assessorar o ministro da Fazenda, Antonio Palocci. O decorrente equilíbrio macroeconômico permitiu que o país e Lula se beneficiassem dos efeitos do ciclo de commodities resultante da entrada da China no comércio global. A isso, se deve grande parte do êxito do primeiro mandato.

A partir do segundo mandato, iniciou-se o retorno gradativo às ideias antigas do PT, indicando que a moderação nas crenças econômicas não estava consolidada. Anunciou-se a criação da Nova Matriz Econômica, que prometia, mediante expansão fiscal e crescente intervenção na economia, preservar o ritmo de crescimento dos tempos do ciclo de commodities, que se havia encerrado.

No governo Dilma Rousseff, a virada da política econômica se acentuou. Buscou-se estimular a atividade econômica por meio do apoio a "campeões nacionais". O Tesouro Nacional transferiu cerca de 10% do PIB ao BNDES para a concessão de crédito subsidiado a empresas com capacidade de acessar os mercados de capitais do Brasil e do exterior. Estudos mostraram o efeito limitado ou nulo desse programa nos investimentos.

A terceira vitória presidencial de Lula ocorreu sob a expectativa de repetição do pragmatismo responsável do primeiro mandato, mas o presidente tem contrariado tal esperança. Já no discurso de posse, sinalizou o retorno do intervencionismo estatal, do protecionismo (substituir importação de aeronaves, microprocessadores e plataformas submarinas) e dos subsídios do BNDES.

O início do mandato se caracterizou também por ações positivas como a reinstituição do programa Bolsa Família e medidas associadas ao meio ambiente. Antes da posse, Lula compareceu à COP27, no Egito, onde pronunciou discurso muito bem-recebido no país e no exterior, em que defendeu ações ambientais avançadas e uma política de desmatamento zero na Amazônia.

A visita a Buenos Aires, na terceira semana do governo, teve grande efeito simbólico. Jair Bolsonaro (PL) não havia comparecido à posse do presidente argentino, Alberto Fernández, gesto indelicado que dedicou a outros presidentes de esquerda latino-americanos. Com essas e outras iniciativas, Lula começou a reconstruir o prestígio do país no exterior. Lembre-se que o ministro de Relações Exteriores de Bolsonaro, Ernesto Araújo, se jactou da posição de pária que então se atribuía ao Brasil.

O retorno a ideias antiquadas se expressou no questionamento do teto de gastos ("uma ideia estúpida"), no ataque à independência formal do Banco Central ("uma bobagem"), na sugestão de elevar a meta de inflação ("como nos 4,5% do nosso tempo") e na condenação da taxa Selic de 13,75% ("sem qualquer justificativa"). Prometeu avaliar a lei de independência do Banco Central tão logo expirasse o mandato de Roberto Campos Neto em 2024.

A presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, tornou-se crítica ácida e frequente de Campos, considerando-o uma presença bolsonarista que conspira contra o êxito do governo. O líder do PT na Câmara, José Guimarães, disse que "as autoridades monetárias também têm que contribuir com aquilo que saiu das urnas", como se o BC fosse um órgão de governo que devesse atrelar a política monetária aos programas eleitorais dos vencedores.

Na economia, dificilmente Lula cumprirá a promessa de retorno a taxas altas de crescimento, que tem reiterado desde que tomou posse do cargo. Vários estudos mostram que o potencial de crescimento do PIB pode ficar abaixo de 2% durante seu governo. Isso pode afetar sua popularidade e inibir a competitividade do PT nas eleições presidenciais de 2026.

Caso derrotado, o PT deixará de contar, nos pleitos seguintes, com um candidato com o carisma e o poder eleitoral de Lula, sem paralelo na história do país.

Dois cenários para o futuro do PT podem ocorrer caso o partido fique por muito tempo ausente do poder. No primeiro cenário, seus líderes não perceberiam que o fracasso eleitoral teria a ver com os efeitos negativos da adoção de ideias econômicas ultrapassadas.

O PT seguiria o destino do PCF (Partido Comunista da França), que quase ganhou as eleições gerais logo após o fim da Segunda Guerra, mas não se renovou. Continuou leal a Stálin e apoiou a invasão da Hungria e da Tchecoslováquia por tropas soviéticas. O PCF perdeu apoio popular e, hoje, elege apenas 1% a 2% dos membros do Parlamento francês.

A meu ver, essa não seria a hipótese mais provável. O PT goza de solidez sem igual no sistema político. Dispõe de amplo apoio social e de numerosa militância, principalmente dos sindicatos de trabalhadores. Dificilmente minguaria.

No segundo cenário, para mim o mais provável, as derrotas eleitorais exerceriam efeito didático que induziria os líderes do partido a promover corajosa reflexão interna, cujo desfecho seria o abandono de ideias econômicas fora do lugar. O PT repetiria a modernização dos trabalhistas britânicos, influenciados pelos seguidos fracassos eleitorais nas disputas contra os conservadores, que começaram com a vitória acachapante de Margaret Thatcher em 1979.

Sob a liderança de Tony Blair, o ideário econômico do partido foi revisto com o objetivo de conquistar o eleitor cansado de políticas estatizantes. Mudou-se o artigo 4º dos estatutos, visto como compromisso com o controle estatal dos meios de produção. Com votação expressiva, os trabalhistas venceram as eleições gerais de 1997.

Como primeiro-ministro, Blair deu continuidade à política econômica dos conservadores —incluindo a privatização de empresas estatais— e a medidas liberalizantes. Uma de suas primeiras ações foi a concessão de independência formal ao Banco da Inglaterra, o Banco Central do país. O Partido Trabalhista ficou à frente do governo por 13 anos.

Mais recentemente, o Reino Unido assistiu a uma desastrosa escolha de um político de extrema esquerda, Jeremy Corbyn, para liderar o Partido Trabalhista, mas ele acabou sendo destituído. Hoje, o país vive um grande consenso político entre conservadores e trabalhistas, que abarca a imigração, a política externa e o futuro do país.

O atual ministro da Fazenda, Jeremy Hunt, e a parlamentar trabalhista Rachel Reeves, a ministra "sombra" do mesmo cargo, professam visões semelhantes sobre o tamanho do Estado. Para a revista The Economist, em texto de 2013, "os parâmetros do debate político estão firmemente estabelecidos". "O que parecem diferenças em políticas públicas são frequentemente mera questão de ênfase."

Caso o PT passe por semelhante transformação, os benefícios para o partido, para a economia e para a sociedade seriam imensos. Nesse segundo cenário, o partido não conseguiria superar o desafio da ausência de Lula nas eleições, direta ou indiretamente. Depois de longo período fora do poder, o PT modernizaria suas ideias e renovaria sua liderança, provavelmente após uma mudança geracional.

Se assim for, o partido recuperaria a competividade eleitoral e reassumiria o comando do país. Em uma visão otimista, estariam dadas as condições para que o Brasil retomasse a trajetória que poderia levá-lo a fazer parte das nações desenvolvidas.

Viveríamos, desse modo, uma das características básicas dos países bem-sucedidos. Neles, segundo o economista britânico Stefan Dercon, um elemento crucial do processo de desenvolvimento é a continuidade das políticas públicas básicas quando há mudança de governo.

Um bom exemplo atual é o da Alemanha. O atual chanceler, Olaf Scholz, é filiado a uma agremiação de esquerda, o Partido Social-Democrata (SPD, na sigla alemã), mas os pilares básicos, como o equilíbrio macroeconômico, continuam os mesmos do governo anterior liderado pela conservadora Angela Merkel. Poderíamos ter situação parecida no Brasil.

Este artigo se baseou em ensaio publicado pela Tendências Consultoria.

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/04/pt-resiste-a-abracar-economia-de-mercado.shtml

sábado, 22 de abril de 2023

Demétrio Magnoli: Dez perguntas para dois chanceleres (FSP)

 

Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

Dez perguntas para dois chanceleres

Proponho questões para esclarecer a posição oficial do Brasil sobre a invasão russa


Lula tem dois chanceleres: Mauro Vieira, que comanda o Itamaraty, e Celso Amorim, assessor presidencial. O primeiro representa a política institucional, que definiu o voto brasileiro na resolução da ONU exigindo a retirada das forças russas de ocupação da Ucrânia. O segundo representa a política ideológica, lulista e petista, que renegou aquele voto.

Proponho dez perguntas a eles, destinadas a esclarecer a posição oficial do Brasil sobre a invasão russa:

1) A Carta da ONU e a Constituição brasileira consagram os princípios da soberania nacional e do respeito à integridade territorial das nações. É nesses princípios que o Brasil apoia sua pretensão de ajudar a mediar negociações entre Rússia e Ucrânia?

2) O encontro de Amorim com Putin, em Moscou, seguido pelas declarações de Lula na visita à China e pela recepção de Serguei Lavrov em Brasília, paralelamente à ausência de visitas à Ucrânia, indicam que o Brasil escolheu o lado russo. Ou existe explicação diferente para o desequilíbrio diplomático?

3) O Tribunal Penal Internacional (TPI), do qual o Brasil participa, emitiu ordem de prisão contra Vladimir Putin, pelo crime de deportação forçada de crianças ucranianas para a Rússia. O Itamaraty não se pronunciou sobre o tema e Amorim visitou Putin pouco depois do gesto do TPI. O governo brasileiro decidiu ignorar o TPI?

4) Lavrov declarou, em Brasília, que Rússia e Brasil compartilham "posição similar" sobre a "gênese" da guerra na Ucrânia. Lula afirmou, repetidamente, que a raiz da invasão russa é o alargamento da Otan –e, ainda, que os EUA e seus aliados europeus estimulam a continuidade da guerra. Deve-se concluir disso que, de fato, o governo brasileiro concorda com a declaração do chanceler russo?

5) Segundo Lula, a responsabilidade pela guerra cabe, igualmente, a Putin e Zelenski. O governo brasileiro não distingue o país agressor do país agredido, o invasor do invadido?

6) A Casa Branca classificou as afirmações de Lula como um alinhamento com a propaganda de guerra russa. Vieira reagiu, negando a interpretação do governo dos EUA –mas não negou a veracidade da declaração de Lavrov sobre a similaridade entre as visões russa e brasileira. Quem cala consente?

7) Tradicionalmente, Amorim abusa do conceito de soberania, usando-o para evitar qualquer crítica a ditadores amigos que violam os direitos humanos. Contudo, nega solidariedade à nação cuja soberania é destruída por uma guerra de agressão destinada a promover anexações territoriais. Na política externa do governo, soberania é um princípio com validade geral ou mero álibi utilizado para justificar alinhamentos ideológicos?

8) A Crimeia é território ucraniano internacionalmente reconhecido. A própria Rússia reconheceu as fronteiras ucranianas em tratado firmado em 1994 –pelo qual, aliás, a Ucrânia entregou suas armas nucleares à Rússia. Com que direito Lula sugere a cessão da Crimeia à Rússia como condição para futuras e hipotéticas negociações de paz?

9) A Carta da ONU suporta o princípio da "autodefesa coletiva", isto é, o direito de fornecer ajuda bélica a nações que resistem a uma invasão não provocada. Sem auxílio militar ocidental, a Ucrânia já não existiria como Estado independente. A "paz" pela rendição –é isso que deseja o governo ao criticar tal auxílio?

10) No seu pronunciamento sobre o diálogo com Lavrov, Vieira mencionou as "preocupações securitárias" russas e ucranianas mas não se referiu às anexações territoriais russas ou à soberania ucraniana. Lula pretende realmente ser aceito pela Ucrânia como mediador de negociações de paz ou simplesmente invoca a palavra paz para legitimar as narrativas imperiais russas?

O jornalismo adulatório faz, no máximo, as indagações fáceis. Haverá, ainda, jornalistas dispostos a confrontar os dois chanceleres com as perguntas difíceis?


Antecipando sobre a contra-ofensiva ucraniana contra as forças russas invasoras: estimativa sobre as perdas acumuladas (CDS)

 Vou colocar aqui as estimativas das perdas russas acumuladas desde o início da invasão, tal como coletadas pelo CDS (Centre for Defence Strategies), com base em dados válidos até 21/04/2023: 


Russian operational losses from 24.02.22 to 21.04.23


Personnel - almost 185,050 people (+630); 

Tanks - 3,668 (+1);
Armored combat vehicles – 7,126 (+6); 

Artillery systems – 2,827 (+2)

Multiple rocket launchers (MLRS) - 539 (0); 

Anti-aircraft warfare systems - 285 (0); 

Vehicles and fuel tanks – 5,713 (+6); 

Aircraft - 308 (0);

Helicopters – 293 (0);
UAV operational and tactical level – 2,394 (+8);
Intercepted cruise missiles - 911 (0);
Boats/ships – 18 (0).


Fonte: Centre for Defence Strategies (CDS) is a Ukrainian security think tank. We operate since 2020. We publish this brief daily. If you would like to subscribe, please send us an email at cds.dailybrief@gmail.com


Agora, cabe esperar as próximas estatísticas...

Aproveitando a visita: FADO TROPICAL - Chico Buarque e Ruy Guerra (vídeo)

FADO TROPICAL

Chico Buarque e Ruy Guerra

https://www.youtube.com/watch?v=NfjaFMah7sE

 

Oh, musa do meu fado, 

Oh, minha mãe gentil, 

Te deixo consternado 

No primeiro abril, 

 

Mas não sê tão ingrata! 

Não esquece quem te amou 

E em tua densa mata 

Se perdeu e se encontrou. 

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal: 

Ainda vai tornar-se um imenso Portugal! 

 

"Sabe, no fundo eu sou um sentimental. Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo (além da sífilis, é claro). Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar, o meu coração fecha os olhos e sinceramente chora..." 

 

Com avencas na caatinga, 

Alecrins no canavial, 

Licores na moringa: 

Um vinho tropical. 

 

E a linda mulata 

Com rendas do Alentejo 

De quem numa bravata 

Arrebata um beijo... 

 

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal: 

Ainda vai tornar-se um imenso Portugal! 

 

"Meu coração tem um sereno jeito 

E as minhas mãos o golpe duro e presto, 

De tal maneira que, depois de feito, 

Desencontrado, eu mesmo me contesto. 

Se trago as mãos distantes do meu peito 

É que há distância entre intenção e gesto 

E se o meu coração nas mãos estreito, 

Me assombra a súbita impressão de incesto. 

Quando me encontro no calor da luta 

Ostento a aguda empunhadora à proa, 

Mas meu peito se desabotoa. 

E se a sentença se anuncia bruta 

Mais que depressa a mão cega executa, 

Pois que senão o coração perdoa". 

 

Guitarras e sanfonas, 

Jasmins, coqueiros, fontes, 

Sardinhas, mandioca 

Num suave azulejo 

 

E o rio Amazonas 

Que corre Trás-os-Montes 

E numa pororoca 

Deságua no Tejo... 

 

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal: 

Ainda vai tornar-se um império colonial! 

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal: 

Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!


A reunificação da Alemanha e a construção de Brasília - Paulo Roberto de Almeida (Crusoé)

 Brasília acaba de completar 63 anos; é duplamente balzaquiana, portanto; mas tem hábitos de aristocrata.


A reunificação da Alemanha e a construção de Brasília


 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Quanto custou a reunificação da Alemanha, quanto custou a construção de Brasília, e quanto custa Brasília ainda hoje?

revista Crusoé: link: https://crusoe.uol.com.br/diario/a-reunificacao-da-alemanha-e-a-construcao-de-brasilia/  


 

O muro de Berlim veio abaixo em novembro de 1989. Menos de um ano depois, antes mesmo que a República Democrática Alemã – a parte da Alemanha ocupada pelo Exército soviético ao cabo da Segunda Guerra Mundial – cessasse de existir, uma reunificação econômica improvisada começou a ser implementada pela emigração maciça de jovens em idade de trabalhar para a parte ocidental; ela foi seguida, em 1991, de um projeto formal de reunificação completa das duas Alemanhas, conforme acordo entre as potências ocupantes.

Essa primeira reunificação revelou-se extremamente custosa e mesmo caótica, dada a falência quase completa da indústria na parte oriental. A princípio, o chanceler Helmut Kohl esperava poder cobrir os custos do processo por meio de empréstimos internos, sem novos impostos. Tal medida revelou-se irrealista e o Bundesbank teve de elevar os juros para atrair capitais, o que redundou na grande crise monetária europeia de 1992, com várias moedas (entre elas a libra britânica, a lira italiana e a peseta espanhola) tendo de sair do sistema monetário europeu (tendo ao seu centro o Deutsche mark, bem antes que fosse criado o esquema do euro), com desvalorizações maciças e aumento da inflação. Finalmente, o governo da República Federal teve de introduzir um adicional de imposto de renda de solidariedade, para financiar os custos do processo, o que se estendeu por mais de duas décadas. No total, a unificação alemã pode ter tido um custo, durante vários anos, de mais ou menos 1,5% anual do PIB alemão, o maior da comunidade europeia e o quarto do mundo.

1,5% do PIB durante quatro anos (ou mais): esse pode ter sido o valor anual da construção de Brasília, de 1957 a 1960, com as diferenças relevantes, em relação ao processo de reunificação alemã, de que se partia de um PIB bem menor e de que os custos da construção foram feitos sem orçamento, à margem do orçamento e contra o orçamento, durante todos esses anos. Os materiais trazidos de caminhão, por vezes até de avião, os operários e a construção em si eram pagos em notas promissórias do Banco do Brasil, cujo presidente ia reclamar ao presidente, e este ao ministro da Fazenda, os recursos necessários para cobrir tais notas. O imposto adicional pago pela população brasileira não foi exatamente de solidariedade, mas sob a forma de inflação: ela saiu de um patamar anual de 10 a 15%, no início dos anos 1950, para mais de 30 ou 40 % ao final; na década, ela alcançou um índice acumulado de 460%, continuando a elevar-se nos anos seguintes, a despeito dos esforços de estabilização do governo Jânio Quadros. Quando os militares, atendendo aos reclamos da classe média e de políticos ambiciosos, decidiram dar um golpe de Estado contra João Goulart, a inflação já rodava na casa de 90% ao ano, sem que existisse, cabe relembrar, qualquer mecanismo de correção monetária. A poupança da classe média na Caixa Econômica Federal simplesmente se volatilizou, e esse pode ter sido o fator decisivo na montagem do golpe, mais do que qualquer ameaça de comunismo, de resto um fantasma.

Já nos primeiros dois anos da construção de Brasília, os custos se revelaram muito superiores à capacidade do governo JK de honrar seus compromissos com o grandioso Plano de Metas, ademais de várias outras obrigações externas. Conversações com o FMI, de molde a apoiar uma possível postergação de pagamentos aos credores externos, não avançaram, devido às resistências do próprio presidente em atender às demandas de seu ministro da Fazenda, Lucas Lopes, no sentido de implementar os necessários ajustes orçamentários requeridos para permitir a continuidade da construção. JK decidiu romper as negociações com o FMI, o que motivou a demissão de Lucas Lopes e também a do diplomata Roberto Campos, então presidente do BNDE, e um dos principais responsáveis pela formulação do Plano de Metas durante a campanha presidencial de 1955.

Data dessa conjuntura o famoso mote “FMI = Fome e Miséria Internacional”, saudado por toda a esquerda, inclusive pelo grande intelectual que era Otto Maria Carpeaux. A construção prosseguiu, sem orçamento, à margem do orçamento, contra o orçamento, e, na mesma toada, acelerou-se o processo inflacionário. Na sequência dos desastres econômicos acarretados pela construção da “capital da esperança” – como a chamou o intelectual francês André Maurois –, Brasília já foi inaugurada numa situação de pré-crise nacional, sendo que o populista Jânio Quadros, um arrivista sem quaisquer conexões partidárias consistentes, foi eleito com a maior votação proporcional até então registrada na história das eleições presidenciais. Seu símbolo maior, na campanha, era uma vassourinha, expressamente comprometida com sua promessa de varrer a corrupção do Brasil. 

Roberto Campos, nessa época, já dizia que Brasília era a “capital da inflação e da corrupção”. De fato, como visto, na década de 1960, a taxa de inflação passou de 30% em 1960 para mais de 90% em 1964. O primeiro governo do regime militar, dominado, na área econômica por Otávio Gouvêa de Bulhões na Fazenda e Roberto Campos no Planejamento, colocou em vigor políticas graduais de controles de preços, de cortes no orçamento e de redução dos salários, permitindo uma diminuição progressiva dos índices inflacionários para 35-40% em 1965-66, cerca de 25% em 1967-68 e de “apenas” 19% anuais no fim da década. O Brasil estava pronto para ingressar naquilo que foi chamado de “milagre brasileiro”, taxas exponenciais de crescimento, com asiáticos passando a visitar o país para aprender a fórmula mágica do crescimento rápido. Menos de meio século depois, a situação se inverteria completamente e o Brasil jamais  conseguiu exibir os mesmos padrões fiscais e monetários dos países da franja da Ásia-Pacífico, ainda que estes também tenham praticado as políticas nacionalistas e desenvolvimentistas, mas com uma diferença fundamental: a abertura ao comércio internacional e a inserção na economia mundial. 

Desde os anos 1960, Brasília não representou apenas incentivos inflacionistas latentes – dada a voracidade do ogro famélico representado por um Estado onipresente, com seus milhares de mandarins cúpidos –, mas também uma mudança na geografia dos lobbies corruptores, ainda mais ativos em Brasília dado o perfil relativamente rarefeito da sociedade civil e as novas possibilidades oferecidas por uma concentração tecnocrática. O Brasil é uma anomalia no conjunto de países em desenvolvimento no que concerne a carga fiscal, que deveria ser 10 pontos menor, para um patamar equivalente de renda per capita. O peso dos tributos representa mais de um terço do PIB, quase o equivalente à média da OCDE, para uma renda per capita cinco ou seis vezes menor. Brasília ostenta uma renda per capita que é mais do que o dobro da média brasileira, inclusive maior do que a de São Paulo, para uma atividade “econômica” basicamente concentrada na burocracia pública e no inacreditável poder de “sucção” parlamentar, extraordinariamente ampliado na fase recente.

Voltando à comparação inicial com a Alemanha, vejamos qual a dotação típica de um membro do Bundestag alemão, que precisa cobrir suas despesas, tanto quando as de seus assessores parlamentares: cerca de 4.560 euros por mês, ou seja, algo como R$ 25.500. Deixo à curiosidade dos leitores a tarefa de descobrir os vencimentos dos nossos parlamentares, acrescidas de todos os penduricalhos associados (transportes, comunicações, habitação, escritórios e assessores nos estados de origem e uma série de outras mordomias). Brasília precisaria, como a Alemanha oriental, ser “reunificada” ao resto do Brasil, mas à condição de sê-lo dentro de padrões normais de um Estado democrático republicano, não para continuar a gozar de seus hábitos aristocráticos.

Brasília acaba de completar 63 anos de vida, ou seja, é duas vezes balzaquiana (a famosa novela sobre a mulher de 30 anos). Se Honoré de Balzac fosse vivo, no Brasil atual, e conhecesse a “população” variada que circula no Congresso entre as terças e quintas, ele certamente teria material suficiente para escrever duas novas séries da Comédia Humana.

 

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 4358: 21 abril 2023, 3 p.


sexta-feira, 21 de abril de 2023

Formação econômica do Brasil, de Victor Viana, cem anos depois - Mauro Boianovsky; André Calixtre (Ipea)

 Um livro e um autor que fazem parte de minha bibliografia, nesta obra: Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império. 3ra. edição, revista; Brasília: Funag, 2017, 2 volumes; Coleção História Diplomática; ISBN: 978-85-7631-675-6 (obra completa; 964 p.); Volume I, 516 p.; ISBN: 978-85-7631-668-8 (link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=907) e Volume II, 464 p.; ISBN: 978-85-7631-669-5 (link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=908); tenho também o seu livro sobre o Banco do Brasil, de 1926.

 

Economia. Desenvolvimento Econômico

Formação econômica do Brasil, de Victor Viana, cem anos depois

Boianovsky, MauroCalixtre, André

Nosso objetivo com este texto é apresentar uma obra esquecida do pensamento econômico, o livro de Victor Viana, Histórico da Formação Econômica do Brasil, publicado em sua primeira e única edição em 1922. Os autores procuram discutir, à luz da literatura considerada clássica para a formação do pensamento econômico brasileiro, por que esse livro quase não é mencionado nem no passado, nem no presente, mesmo tendo tratado temas relevantes da problemática do desenvolvimento por volta de duas décadas antes da publicação das obras pioneiras do assunto. No livro de Viana, impressiona que assuntos caros ao desenvolvimento em condições periféricas, como o protecionismo, a estratégia de criação do Estado e a cultura necessária ao desenvolvimento, são tratados com a teoria disponível no tempo histórico do autor, ou seja, a tradição liberal de economia inaugurada por Adam Smith. Ao mesmo tempo Viana oferece soluções originais para a perspectiva da colônia em meio ao sistema mercantilista erguido pela metrópole e dominante até nossa independência, em 1822.

TD_2870_Web.pdf: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/11887/1/TD_2870_Web.pdf

TD_2870_Sumex.pdf: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/11887/2/TD_2870_Sumex.pdf


Minha visão do 8/01/2023, o dia da infâmia - Paulo Roberto de Almeida

 Minha visão do 8/01/2023, o dia da infâmia 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Considerações sobre a pretensa tentativa de golpe de Estado, na verdade, simples assalto desorganizado ao poder, sem resultados práticos.

  

Em novembro e dezembro, inclusive no Natal, visitei diversas vezes o famoso acampamento dos bolsonaristas em frente ao Forte Apache de Brasília. Chocou-me a agressividade dos participantes contra o resultado das eleições e a próxima posse de Lula e contra as próprias FFAA.

Surpreendeu-me, em janeiro de 2023, que o acampamento — muito bem-organizado e bem abastecido — não tivesse sido desmobilizado pelos próprios militares (sabia-se da presença de familiares), pois que novos comandantes já estavam designados desde dezembro. Imaginei que o seria rapidamente.

Ainda passei no acampamento no princípio de janeiro, parcialmente esvaziado, mas também vi ônibus de luxo com placas do RS nas imediações. Imaginava que algo se passaria em algum momento, mas a tensão cresceu visivelmente naqueles dias.

A frase do gen. Dias, já demissionário, de que ocorreu um “apagão da inteligência”, é totalmente INACEITÁVEL, pois que sinais precursores de violência já tinham ocorrido em dezembro (caminhão-bomba desativado, ônibus queimados). Houve, sim, conivência de militares e de funcionários da era bolsonarista com os terroristas infiltrados no meio de centenas de beócios e idiotas trogloditas que faziam massa de manobra para as milícias de novos bárbaros. Tudo isso será esclarecido no devido tempo. 

Meu resumo: em 8/01 não ocorreu um golpe de Estado, pois para isso precisaria haver direção politica para se substituir aos poderes constituídos, não o simples assalto a seus fundamentos materiais. Bozo e Heleno, os “chefes” da tentativa, são covardes e ineptos. Eles pagarão…

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4367: 21 abril 2023, 1 p.


 

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