Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas. Ver também minha página: www.pralmeida.net (em construção).
O golpe de 1964 aos olhos de um adolescente ingênuo
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Em 1964 eu tinha recém-saído do curso primário e iniciado o que se chamava então de curso secundário e não tinha formação política suficiente para compreender o que estava se passando com o país. Adquiri logo depois, justamente sob o impacto do golpe e a partir de 1965 passei a me considerar um opositor do regime e mais adiante um adversário da ditadura, e até mais do que isso.
Mas no golpe não, eu apenas posso repetir o que se passava com uma família pobre — sim, éramos bastante pobres e eu tinha começado a trabalhar muito cedo para ajudar em casa, pois a “renda” da casa era até insuficiente para o básico—e como ela reagia ao ambiente político e social do Brasil logo depois da surpreendente renúncia de Jânio Quadros da presidência da República.
Minha primeira “consciência” política veio justamente das eleições de 1960, que deram uma vitória inquestionável ao estranho político que prometia acabar com a inflação e com a corrupção. Sem entender direito o que se passava, acompanhei meu pai à “cabine” de votação, e me recordo do símbolo usado por Janio: uma vassoura, para varrer os dois grandes males do Brasil, que atormentavam os pobres e a classe média em geral.
Os três anos seguintes, foram de recrudescimento da inflação e, portanto, de angústia numa casa que vivia com poucos recursos para as coisas mínimas da vida diária. Não me lembro de usar sapatos nessa época, mas sim “Alpargatas”, calçados simples de pano e sola de cordas, que era o que se podia comprar. Tampouco me lembro de presentes valiosos no Natal ou ovos de chocolate nas Páscoas, já que o dinheiro era limitado.
Assim que, quando o golpe ocorreu, creio ter detectado um grande suspiro de alívio em meus pais, exasperados depois de mais de três anos de inflação crescente, grevismo exagerado (nos transportes públicos, por exemplo) e a sensação de descontrole num governo feito mais de agitação inconsequente do que de preocupação com a vida dos mais pobres, como éramos naquela época.
Sim, meus pais receberam muito bem o “golpe”, com a esperança de que tudo aquilo iria terminar e que nossa vida iria enfim melhorar. Pode-se dizer que o pré-adolescente ingênuo que eu era naquele momento era um perfeito “golpista”, ou pelo menos simpático a um regime que se iniciava e que iria fazer aquilo que políticos corruptos não tinham conseguido fazer nos três agitados anos pós-renúncia de Janio: acabar com a inflação destruidora de nossos parcos recursos.
Um ano depois, já politizado precocemente, eu me alinhava com as forças de oposição, mas no momento exato do golpe eu partilhava do sentimento de alívio de meus pais com o fim da “bagunça”. Essa era a minha percepção naquele 1. de abril de 1964, eu, uma criança ingênua, que refletia o sentimento corrente em famílias de muito baixa renda, e amplamente despolitizadas, como era a minha.
Se posso dizer, esse é o testemunho primário que posso oferecer sobre o início do regime que me levou, menos de seis anos depois, à decisão de iniciar um auto exilio europeu, para escapar de uma possível, até provável, prisão, que decorreria de meu precoce engajamento na resistência à ditadura militar. Dali voltei, sete anos depois para continuar na luta política, não mais armada, contra o regime que trouxe de volta inflação e corrupção, os dois maiores males aos olhos do adolescente ingênuo de 1964.
Visitando um pequeno museu em Kuching, cidade à beira do Rio Sarawak, na Malásia, deparei-me com o sobrenome Rastignac. Para o leitor apaixonado por Balzac, foi como ser atingido por um raio. Eu me via confrontado, em plena ilha de Bornéu, com a existência bem real de uma família com o mesmo sobrenome de um dos personagens mais famosos do escritor, Eugène de Rastignac, símbolo do jovem ingênuo transformado em ambicioso calculista. Ler aos quatorze ou quinze anos Le Père Goriot(1835), obra cruel até para os padrões de Balzac, gerou em mim uma impressão permanente.
Despertada minha curiosidade sobre como o nome – tão francês – de Rastignac fora aparecer na parede de um museu em Bornéu, acabei mergulhado em uma história muito inglesa – a de Charles e Margaret Brooke. Passei quase um ano lendo e pesquisando com estupefação biografias, memórias, volumes de história e genealogias em busca de explicação sobre como uma família de classe média do interior da Inglaterra chegara a se transformar em dinastia de rajás à frente de um vasto entreposto do império britânico na Ásia.
Margaret nos conta ela própria a sua vida. Casada com seu parente Charles Brooke, o segundo “Rajá Branco” de Sarawak, perdeu em seis dias os três filhos, mortos de cólera no navio, em viagem de Kuching à Inglaterra via Singapura. Os corpos foram atirados ao Mar Vermelho. Uma quarta criança havia nascido morta, uns meses antes. Era 1873 e ela tinha 24 anos. Estava casada desde 1869 apenas. Décadas depois, Margaret Brooke se tornaria amiga da escritora inglesa Marie Belloc Lowndes. Em suas memórias, The Merry Wives of Westminster (1946), esta conta que apenas uma vez ouviu Margaret referir-se à morte dos filhos, e mesmo assim de forma vaga, "de uma maneira tal que, se eu já não tivesse sabido a respeito, não teria entendido a alusão". Três filhos adicionais viriam a nascer, chegariam à idade adulta, e o mais velho, Vyner, reinaria em Sarawak depois do pai.
Charles Brooke era o administrador colonial de Sarawak, que governava como chefe de Estado hereditário. Sucedeu ao tio, James Brooke, o primeiro Rajá Branco, e legou por sua vez o território ao filho. Metodicamente, em detrimento do sultão de Brunei, foi acrescentando terras ao seu domínio, que acabou ficando tão extenso quanto a própria Inglaterra. Margaret Brooke era a Rani de Sarawak, a mulher do Rajá. O casamento não era feliz. Em seu livro de memórias My Life in Sarawak (1913), e na autobiografia Good Morning and Good Night (1934), Margaret descreve o marido como homem silencioso e metódico, totalmente voltado para a administração do território que comandava em Bornéu, e quite incapable of showing sympathy or feeling about anything that did not touch Sarawak.
Charles Brooke em meados de 1860
Good Morning and Good Night revela-nos a falta de opções à disposição da autora quando solteira, apesar do dinheiro da mãe. Nascera em Paris, crescera até os dez anos no castelo da avó na França, em Épinay, e desde a morte do pai de uma queda de cavalo, que a deixara órfã aos quatorze anos, levava uma vida errante pela Europa, com a mãe, Elizabeth Sarah de Windt, conhecida como Lily, os dois irmãos e umas amigas antigas de Lily, parasitical spinsters, como Margaret as classifica: From Paris to Florence – from Florence to Rome – Switzerland – the Tyrol, on we would move, always living in hotels.
Charles Brooke era primo-irmão de sua mãe. Um dia, aos 42 anos, solteiro, ele aparece na casa de campo da família, na Inglaterra, em busca de uma noiva rica cuja fortuna pudesse saldar as dívidas de Sarawak. Ele próprio não tinha conhecidos na Europa, pois desde os 13 anos estivera na Marinha britânica, e a partir dos 23 vivera em Sarawak, a serviço do tio, de quem herdara o poder em 1868.
Não é impossível que Margaret tenha tido alguma noção romântica da figura de Charles. Antes de conhecê-lo, ela lera já o livro, publicado em 1866, em que ele relata sua vida em Sarawak, onde morara dez anos em fortes à beira de algum rio, na floresta, controlando etnias inimigas entre si e jogando uns contra os outros os caçadores de cabeças. O aparecimento do primo mais velho, soberano em uma terra distante, sobrinho de uma figura mítica como fora James Brooke, deve ter sido acompanhado de uma aura de mistério e aventura.
Não faltam certos trechos de algum valor literário no livro de Charles, como este, inserido no meio da descrição de um ataque que ele organiza e lidera à terra dos Kayans, que estavam depredando bens dos Dayaks e prejudicando o comércio: the only sounds to be heard were those of nature alone, – the murmuring of the jungle insects, the low rumbling of the distant rapids, and the stream pouring over the pebbles close to us. Charles sentia-se inteiramente adaptado à vida em Sarawak e pouco à vontade no país onde nascera. Na floresta, costumava andar descalço como os Dayaks. Tendo de viajar à Inglaterra, após dez anos ininterruptos na Malásia, ele comenta: little did I care for the prospect of European pleasures, so much thought of and sought after as an Elysium by many living so far away. They are invariably found disappointing when England is reached.
Mapa da Malásia
Nas memórias e biografias dos diferentes atores envolvidos, há frequentes referências ao fato de que Charles pode ter primeiro pensado em se casar com a mãe de Margaret, Lily de Windt, então com 43 anos. A escolha acaba recaindo sobre a filha, que, aos 19 anos, lhe permitiria o mesmo nível de acesso aos recursos financeiros da família. A oferta de casamento e sua aceitação não refletiam sentimentos amorosos. No hotel em Innsbruck, aonde acompanhara os primos, Charles atira sobre as teclas do piano, no qual a moça supostamente teria estado tocando um noturno de Chopin, um poema sobre casamento – mas não sobre amor. I do not imagine the poor dear man could ever have been madly in love with me, admite ela; on my side, although I respected him and admired his achievements, I was never in love with him.
Desde o início, o marido foi parcimonioso com dinheiro, inclusive o da mulher. Com o tempo, o casamento torna-se uma ficção. Margaret vive na Europa, sob o pretexto de cuidar da educação dos filhos. A partir de 1880, os períodos que ela passa na Malásia são cada vez mais raros e curtos. Em 1887, esteve em Sarawak por poucos meses. A viagem seguinte a Bornéu aconteceria somente em 1896. Seria a última. Quando My Life in Sarawak foi publicado, fazia dezessete anos que a Rani não via sua terra de adoção. Ela morreria em 1936, sem ter voltado a Bornéu nos últimos quarenta anos de vida. Durante alguns anos, em Londres, morou com os filhos ainda pequenos em Cornwall Gardens. Minha mãe, minha irmã e eu moraríamos na mesma pequena rua cem anos depois. Entre os dois períodos, lá viveu também Joaquim Nabuco.
A história contada em My Life in Sarawak é a de uma jovem vitoriana que descobre aos vinte anos, com fascinação, a realidade tropical de Bornéu. Ela se adapta às suas novas circunstâncias, faz amizades locais. Viaja no iate do marido e em pequenas embarcações fluviais, acompanhando o Rajá Branco em seus roteiros de inspeção. Enfrenta sem o marido, sozinha em um forte longe da capital, querreiros Kayans, que teria conseguido apaziguar. Passa a usar trajes típicos de Sarawak. Aprende a língua malaia. Descobre que o canto do bulbul é mais bonito que o do rouxinol.
A primeira frase resume o espírito de todo o volume: When I remember Sarawak, its remoteness, the dreamy loveliness of its landscape, the childlike confidence its people have in their rulers, I long to take the first ship back to it, never to leave it again. Por um lado, a declaração de amor pela terra que não verá mais chega a ser tocante. Por outro, a referência à "confiança infantil que seu povo deposita nos governantes" irrita e nos faz lembrar estarmos diante de um casal inglês, representante do espírito colonialista britânico, transformado em rei e rainha nos trópicos asiáticos. Desde o início, em 1841, quando James Brooke passara a governar Sarawak, esta fora a ambiguidade da curiosa dinastia: reinavam na Ásia do Sudeste, mas não abandonavam a nacionalidade inglesa. Eram simultaneamente senhores e súditos.
O segundo livro, Good Morning and Good Night, é mais pessoal e revelador – e ainda assim de maneira relativa, como veremos. No texto de 1934, Margaret atribui o insucesso matrimonial aos ciúmes que o marido teria da sua popularidade em Sarawak: he wished to remain alone and supreme in the love and affection of his subjects. Ao mesmo tempo, depreende-se que, em Bornéu, ela estava sempre adoentada, talvez com depressão, talvez com malária. Há uma contradição entre o amor professado por Sarawak e suas constantes doenças. O médico britânico em Kuching entende que ela sofre de histeria, clássico “diagnóstico” do século XIX para deslegitimizar mulheres. Ela própria nos diz: Hysteria! – that blessed refuge of somewhat unskilful doctors who find themselves unable to diagnose a disease!.
Nos dois livros, Kuching, onde viviam 30 mil habitantes quando Margaret lá aportou pela primeira vez, é simultaneamente apresentada como uma espécie de paraíso, mas também com outras cores, como aldeia insalubre infestada de malária, mosquitos e ratos. No rio Sarawak, nadavam crocodilos. Se é verdade que a Rani teria sido acordada uma noite, como relata, por migração de “milhares” de ratos que atravessavam seu quarto, não sei. Mas posso testemunhar que na ilha de Bornéu a questão dos ratos não pode ser minimizada. O maior que vi em minha vida cruzou frente aos meus pés, em fevereiro de 2023, no mercado noturno de Kota Kinabalu, capital de Sabá, o outro estado malásio da ilha. Eu me preparava para acomodar-me em uma cadeira de plástico e jantar um peixe que vira ser preparado. A aparição do rato, grande como um gato e com sinais de doença na pelagem, me fez desistir.
Kuching na época de Margaret Brooke
O Astana, ou palácio de Kuching, como o conheceu Margaret Brooke
Margaret de Windt passou proporcionalmente pouco tempo em Sarawak. Era porém seu título de Rani que lhe conferia prestígio na Europa. Frequentava a corte inglesa, junto à qual conseguiu diversas vantagens cerimoniais para Sarawak e o marido – para desgosto dele, que não apreciava suas interferências. Em 1901, obteve do novo rei, Eduardo VII, uma definição protocolar do status de Charles e, portanto, dela própria. O Rajá nascido na paróquia provinciana de Berrow, no interior de Somerset, ficava formalmente reconhecido como soberano de um Estado independente sob proteção britânica; os dois recebiam o título de altezas e eram inscritos, na ordem de precedência, logo após os príncipes reinantes indianos.
A facilidade com que Margaret, e, antes dela, o marido, construíam para si, por meio de suas memórias, uma imagem de exotismo e heroísmo tampouco atrapalhava sua popularidade. Próxima do príncipe Alberto I de Mônaco e sua mulher, a “soberana” de Sarawak frequentava artistas e escritores na França e na Inglaterra. Good Morning and Good Night narra episódios de sua amizade com Henry James, iniciada na década de 1890 e que durou até a morte do romancista. No primeiro encontro entre os dois, em Londres, na casa de uma conhecida comum, o escritor é descrito como um homem condescendente. A Rani afirma já haver então lido Roderick Hudson, Daisy Miller e The Princess Casamassima e elogia essas obras. Henry James levanta a mão ao ar e afirma: No, my dear lady, no, I can do better – I can do better than that. Margaret retruca: Oh, how can you say so? Surely they are quite perfect? A mão do escritor desce. Henry James olha para Margaret Brooke com sorriso de comiseração e responde: Well, as you will! But why are you here? You come from a land where the bulbul sings.
O livro menciona Pierre Loti – que dedicou um conto a Margaret – Maupassant, Rudyard Kipling, Swinburne, o pintor Edward Burne-Jones, a atriz Sarah Bernhardt. Parece haver consenso de que a Rani de Sarawak chegou a viver um romance, na década de 1890, com o jornalista americano William Morton Fullerton, quinze anos mais jovem, que não é mencionado em seus livros. Fullerton é hoje lembrado sobretudo pelo relacionamento amoroso com a escritora Edith Wharton e a amizade intensa que despertou em Henry James. Foi um desses personagens, como de uma certa forma a própria Margaret Brooke, que existem em toda parte, atraídos por escritores mais talentosos do que eles próprios. Ao fazerem parte da biografia alheia, preservam alguma fama após a morte.
Margaret Brooke em trajes malaios
A rani em trajes de Corte, na Inglaterra
Oscar Wilde, que lhe dedicou o primeiro conto de seu livro A House of Pomegranates(1891) – “To Margaret, Lady Brooke” – tampouco é mencionado, o que pode parecer estranho para nós, leitores do século XXI, cientes da perenidade de algumas de suas obras. Ocorre que quando Margaret escreveu seus livros de memórias, Wilde já morrera em desgraça, após o escândalo do seu processo e prisão. A mulher dele, Constance, precisara adotar outro sobrenome para si e os filhos, tal o constrangimento que passara a ser associado ao nome de Wilde. A Rani não viveu o suficiente para presenciar sua reabilitação.
Elemento constante na vida mutável de Margaret de Windt parece ter sido a busca por respeitabilidade, por afirmação de uma posição social. Não deixou, apesar disso, de prestar apoio a Constance, durante a prisão do escritor. Vyvyan Holland, filho de Wilde, escreve com gratidão a seu respeito, rememorando os dias passados perto de Gênova ao seu lado, e contando como sua mãe reencontrou alguma felicidade in the companionship of the Ranee, who was a comfort and a consolation to her until the time of her death three years later. Marie Belloc Lowndes afirma que o político trabalhista Richard Haldane visitou Oscar Wilde na prisão a pedido de Margaret. Foi graças a essa visita, é sabido, que o prisioneiro pôde receber livros e, mais tarde, caneta e papel, o que lhe permitiu escrever De Profundis, a longa carta da prisão de Reading.
É no afã de procurar demonstrar respeitabilidade que tem início Good Morning and Good Night. O castelo da avó em Épinay, onde Margaret crescera, é apresentado, nas primeiras páginas, como the home of the Rastignacs for generations. O “Reino do Terror” da Revolução Francesa, wreaking its hatred on the aristocrats, teria confiscado a propriedade e guilhotinado o marquês e a marquesa de Rastignac, "junto com tantos de seus amigos". A única prole do casal, Elisabeth, bisavó de Margaret, teria sido “escondida pelos aldeões, que amavam os Rastignac", e enviada à Holanda, para ser criada em segurança por um casal amigo, que a teria adotado. Mais tarde um filho do casal, Peter de Witt, casou-se com Elisabeth. Peter e Elisabeth de Witt teriam recuperado o castelo na França, onde foram viver, e o nome de Witt teria sido deturpado – pelos camponeses, afirma Margaret – em de Windt.
É um inteiro conto de fadas. Existem dois museus em Kuching celebrando o reinado de cem anos – de 1841 a 1946 – da dinastia Brooke. Ambos são administrados, com apoio do governo estadual, por uma entidade inglesa, Brooke Heritage Trust, presidida por Jason Brooke, descendente da família. Um dos museus, sediado no antigo Forte Marguerita, construído por Charles e nomeado em homenagem à mulher, é dedicado aos três Rajás Brancos. O outro, instalado no antigo Tribunal de Justiça, à vida de Margaret. O percurso pelas suas poucas salas começa com a reprodução de um quadro a óleo que representaria "o Marquês e a Marquesa de Rastignac, trisavós de Marguerite, por volta de 1780".
As explicações do museu repetem, de forma acrítica, a versão fantasiosa oferecida por Margaret de suas origens. O tom esnobe da narrativa, com sua ingênua redução da Revolução Francesa ao "Reino do Terror", ao "ódio pelos aristocratas" e à guilhotina é reproduzido pelo museu. Curiosamente, Margaret de Windt lembra nessa hora Lady Bracknell, personagem cômico de The Importance of Being Earnest, porta-voz assertivo, na peça, de valores sociais conservadores.
Forte Marguerita
Museu da Rani
A realidade é diferente do seu conto. Margaret fala da "bisavó Rastignac adotada pela família de Witt" como se a tivesse conhecido: "ela morreu quando eu tinha quatro anos". Cita até, entre aspas, uma frase que a bisavó costumava dizer, falando dos casamentos da filha e da neta com ingleses: Ces Anglais, ces Anglais, toujours ces Anglais. Denomina-a "baronesa de Windt". Essa pessoa, porém, nunca existiu. Ninguém usando o título de marquês ou marquesa de Rastignac jamais morreu guilhotinado. A avó materna de Margaret, Elisabeth, era uma de Windt adotada e transformada em herdeira pela tia, Judith de Windt. Esta, sim, enviuvara em 1817 de Jacques Gabriel Chapt, visconde de Rastignac. Os de Windt estavam instalados desde o início do século XVIII no Caribe – onde terão feito fortuna com lavoura de açúcar à base de trabalho escravo – e escreviam seu nome com essa grafia desde pelo menos o século XVII. A avó de Margaret, Elisabeth de Windt, casou-se com um inglês, que adotou seu sobrenome, e não com um holandês chamado Peter de Witt. Margaret não teve nem avô nem bisavô com esse nome. A sua bisavó de Windt, nascida Sarah Roosevelt, no Caribe — e não Elisabeth de Rastignac, na França —, morreu em Paris, em 1850, um ano após o nascimento da bisneta. Essas informações encontram-se em diferentes estudos genealógicos, todos de acesso público.
A história da família Chapt de Rastignac foi publicada em 1858 por sua última representante, Zénaïde, duquesa de La Rochefoucauld. Os Chapt de Rastignac são consistentemente descritos como de nobreza antiga. Pode-se deduzir a satisfação de Margaret de Windt em conseguir fazer crer, por meio das suas alegações, que descendia da família.
Terá Margaret sabido que na verdade não descendia dos Rastignac? Inventou ela própria essa fábula ou herdou-a da mãe ou da avó? A resposta pode estar em livro autobiográfico de seu irmão caçula, Harry de Windt, célebre em sua época como viajante incansável e também ele autor prolífico de narrativas de viagens. Vyvyan Holland é quem, mais uma vez, nos conta que Harry de Windt was a famous explorer at the end of the last century, his most remarkable feat being to travel from Pekin to Paris overland in 1887. É sobriamente, sem fantasias, que o irmão mais novo explica, em My Restless Life (1909), que o castelo em Épinay "tinha sido herdado de um parente, o visconde de Rastignac".
O museu em Kuching perpetua no entanto as invencionices de Good Morning and Good Night. De um museu, mesmo um museu familiar, espera-se algum apego à realidade. Mais extraordinário ainda é que o mito dos antepassados aristocráticos franceses seja recolhido na obra da historiadora australiana Cassandra Pybus, que estudou as vidas de Charles e Margaret em The White Rajahs of Sarawak (1996) e compra, sem crivo, a versão de que Margaret de Windt descendia de "aristocratas franceses" e era por isso socialmente superior aos Brooke.
Viúva desde 1917, Margaret morreu em 1936, aos 87 anos. Foi poupada de ver o filho Vyner ter de renunciar, em 1946, ao reino de Sarawak, que se tornou formalmente apenas mais uma entre as colônias de um império britânico em declínio.
Em uma família onde cada um parece haver deixado seu próprio livro de memórias, sua nora, Sylvia Brett, mulher do terceiro e último Rajá Branco, também publicou as suas, com um título sensacionalista, Queen of the Headhunters (1970). Sylvia Brooke visitou a sogra poucos dias antes de sua morte e não foi por ela reconhecida. She had been a woman of note, escreve a nora, the friend of Henry James, H. G. Wells and Elgar. Now there was nobody; and she was just a lonely woman, living in a small flat, and already separated from life. There was something regal and tragic in her isolation.
Oscar Wilde não é a única omissão notável em Good Morning and Good Night. Quando Margaret descreve a morte de seus três filhos pequenos a bordo do navio – “aquelas flores belas e encantadoras cortadas em poucas horas, arrancadas de nós e jogadas ao mar” – e lista todos os presentes no seu grupo, "marido, irmão, os três bebês, a babá inglesa, a empregada doméstica", deixa de lado uma pessoa.
Viajando com eles, ia uma outra criança, um menino de seis anos. Ele se chamava Esca Brooke e era filho de Charles Brooke com uma mulher malaia, de origem nobre, Dayang Mastiah. Charles e a mãe da criança podem ter se casado em um rito muçulmano. O garoto passou a ser criado no Astana, como é chamado o palácio em Kuching, e sua existência em Sarawak nunca foi um mistério.
Pode-se imaginar a reação de Margaret ao ver seus três filhos morrerem e serem atirados ao mar, enquanto o outro menino, que também adoeceu, sobrevivia. Cassandra Pybus especula ser possível que Esca, nascido na terra de Sarawak, filho mais velho do Rajá, fruto talvez de um casamento que as populações locais considerariam legítimo, viesse a ser um candidato sólido a suceder ao pai, em detrimento dos filhos da Rani. Cita uma frase de Margaret a um sobrinho, em carta de 1927: "Tive o bom senso de perceber que ele seria um problema se ficasse em Sarawak".
Deixado na Inglaterra, em 1873, para ser criado por um reverendo anglicano, Esca Brooke emigrou com sua família adotiva para o Canadá. Ele nunca mais veria o pai; nunca receberia um bilhete sequer dele, apenas uma pequena pensão; nunca retornaria a Sarawak. Morreu em Toronto em 1953.
Quantas facetas cabem em um único personagem? Ao longo da história de Margaret de Windt, como ela a quis contar, vemos sucessivamente a jovem vitoriana ingênua, isolada embora de família rica; a soberana corajosa de uma terra tropical, distante do seu país de origem; a mulher infeliz no casamento e enlutada pela morte de vários filhos; a alteza detentora de um título espetacularmente insólito, amiga, na Europa, de príncipes e artistas; a personalidade pública ciosa de estabelecer uma posição de brilho para si, o marido e os filhos.
O que não vemos em momento algum, ao longo das suas memórias, é uma dimensão importante – que talvez seja o seu aspecto mais fascinante. Margaret entrou na vida do pequeno Esca Brooke, possível herdeiro de Sarawak, como presença nefasta, a clássica madrasta má. Com isso, conseguiu tornar-se, de fato, não uma Rastignac real, como fantasiou ser, mas uma personagem digna de Balzac.
“For Chinese people, history is our religion,” the intellectual Hu Ping has argued. “We don’t have a supernatural standard of right and wrong, good and bad, so we view History as the ultimate judge.” The Chinese Communist Party has finessed this tradition. It sees history not as a record, still less a debate, but a tool. It can be adjusted as necessary yet appears solid and immutable: Today’s imperatives seem graven in stone, today’s facts the outcome of a logical, inexorable process. The contingencies and contradictions of the actual past are irrelevant. The truth is what the Party says, and what the Party chooses to remember.
Its current narrative is enshrined in the National Museum of China. It stands in Tiananmen Square, directly opposite the Great Hall of the People, where grand political ceremonies are held; across the way hangs the portrait of late Chinese leader Mao Zedong, stretching 4.5 by 6 meters and reputedly 1.5 tons in weight. The picture morphed through a few incarnations before Mao approved its final template at the height of the Cultural Revolution. Now it is replaced with an identical version each year, just before October’s National Day celebrations. At least one spare is kept at the ready in case it is damaged, as in 1989, when dissidents pelted it with eggs (and paid with years in prison). Come what may, Mao continues to surveil his successors and his country. Most assume that the picture will hang there as long as the Party hangs on to power, so symbolic that the leadership would never dare remove it.
For centuries, this part of the city has been the political heart of the nation. The square lies in front of the Forbidden City, home of the emperors, on Beijing’s north-south central axis. Under Mao its size was quadrupled to 400,000 square meters, making it the world’s largest city square. The Great Hall of the People and what were then the twin Museums of the Chinese Revolution and Chinese History were completed in the same year, 1959, as part of a monumental building program marking the Party’s tenth year in power. It had established already that its rule depended not only on the promise of a better future, but also on a shared understanding of that pledge’s contrast with former misery. So the grand museums were erected, and workers and peasants were encouraged to dwell on long-gone injustices in rituals of “recalling past bitterness and cherishing present happiness.” The people were still developing their political consciousness. Sometimes they included the terrible famine just past in their list of miseries, but officials would quickly set them straight, reminding them that Past Bitterness meant the years before the Party came to power.
For Chinese people, Tiananmen Square is their history. It saw the nationalist student protests of the May Fourth Movement in 1919, Mao’s proclamation of the founding of the People’s Republic thirty years later, the mass rallies by Red Guards. Foreigners mainly associate it with the bloody crackdown on the protests which erupted here in 1989, attacking corruption and demanding reform and even democracy. When Chinese troops launched the final assault to clear the square, hundreds of soldiers poured in from behind the museum building.
Turning its guns against its citizens finally demolished the Party’s mandate: its claim to serve the people, already fatally undermined by the Cultural Revolution. Its rule now rests upon its promise of economic well-being and its restoration of national pride. The more conflicted and uncertain the former, with China’s years of double-digit growth rates well behind it and the effects of rapacious capitalism glaring, the more essential the latter. Since 1989 the Party has redoubled its commitment to patriotic education, portraying the Communist triumph over foreign aggression. It has rewritten textbooks and opened a swathe of red history sites. Officials and schoolchildren are bussed to places such as Shaoshan, Mao’s birthplace, and the former revolutionary base at Yan’an.
Chinese President Xi Jinping, born of the revolution, has embraced his party’s heritage. His first public act on assuming power was to escort the Politburo Standing Committee to the National Museum’s landmark exhibition: the Road to Rejuvenation, conceived a few years earlier but now promoted from its more modest home in the Museum of Military Affairs. A photograph blazoned across state media showed the seven men posed with such exquisite awkwardness that they could have been on show themselves. At the heart of the narrative was China’s Hundred Years of Humiliation at the hands of foreign bullies and its liberation by the Party. It was the story of the country’s suffering through the Opium Wars and subsequent imperialist aggressions; of how China had been brought to its knees; and how, through the sacrifices of heroic Party members, it had thrown off its shackles and returned to glory. It set the theme of Xi’s leadership: the Chinese dream of wealth and power. The last room portrayed both the glories and the comforts of modern China, from a space capsule for its taikonauts to a glass case of mobile phones.
“History has proven that without the Communist Party of China, the People’s Republic of China would never have come into being, nor would socialism with Chinese characteristics,” the exhibition concluded. The last six decades had been blurred into one broad advance, the sharp and deadly political clashes reshaped into a gentler, happier tale of historical inevitability under the Party’s benign leadership. It was not the historical inevitability of Karl Marx, with the triumph of the proletariat; rather, the notion that authoritarian power had brought greatness to the Chinese nation again. It was no coincidence that the Museums of the Chinese Revolution and of Chinese History had been fused into a single National Museum.
When it was rebuilt, in the late 2000s, the architects were instructed to ensure the result was larger than any other in the world. Nothing about the museum is human-sized. The ceilings are so high, the spaces so expansive, that weekend crowds look like model railway passengers clustering at a real station. The exhibition spanned four giant halls, but there was one small—very small—section titled “Setbacks and Progress in the Exploration of Socialist Construction.” It daintily posed the question of how the Chinese people, under CCP leadership, “overcame hardships,” without, of course, elucidating those hardships, still less exploring the causes. It did not educate; it confirmed, discreetly, and to a very limited degree. Only if you already knew your history could you see what it deigned to acknowledge.
A glass case held three documents dated 1961, including one captioned: “Liu Shaoqi’s notes from a meeting held during his investigations in Changsha and Ningxiang, Hunan.” This was part of Liu’s research into the Great Famine, and it helped to end the disaster, but it paved the way to his own death in the Cultural Revolution, thanks to a vengeful Mao.
There was little more on this second great disaster of the era. An exhibition which made space for two dozen different mobile phones could find only a dingy corner for the Cultural Revolution; and it dared not show the catastrophe itself, only its aftermath. High on the wall was a photo of Mao’s heir, Hua Guofeng, and other leaders, following the Gang of Four’s fall, and another of joyful youths massing in the square to celebrate the purge.
No country faces its past honestly, and some in China have asked why the West was transfixed by the Maoist trauma recorded in books like Wild Swans when it appeared uninterested in slave narratives. America’s self-image as a beacon of democracy is undimmed by its cozying up to dictators, plots to oust or kill elected leaders, and backing of murderous anti-communist purges. More Britons believe the empire was a source of pride than shame; a benevolent institution, not created at gunpoint to enrich ourselves but rolled out to bring railways, cricket, and Shakespeare to the globe’s four corners. The West didn’t consciously conceal as China did; in its arrogance, it rarely noticed there was something to forget. We had often preferred to export our greatest sadism, and to allow others to enrich us by means we never questioned or recognized.
In Britain, convenience, implicit bias, and power differentials were enough to produce the distortions and erasures. In China, explicit orders and self-censorship did the work. The Cultural Revolution was not a totally forbidden subject, as discussion of the 1989 crackdown was. People found spaces in which they could operate by picking their times, shunning the spotlight, bending the rules, and having the right connections. The haziness of the line between forbidden and permitted was partly a by-product of China’s size and the multiple levels of bureaucracy. But it was also deliberate. While some were adept at exploiting grey areas, many shrank back further. It was simply easier and more efficient to make people censor themselves.
Blur the boundaries and you could also move them without acknowledging the shift. In some ways the Cultural Revolution had become less risky territory. Online discussion proliferated. One professor, though barred from launching a course called “The Cultural Revolution,” won approval by simply retitling it “Chinese Culture, 1966-1976.” But in most ways it had become harder to talk about. The amnesia about the Cultural Revolution is more recent than it seems. In its immediate aftermath, a flood of memoirs and novels had laid bare trauma and oppression, handily confirming the wisdom of the Party’s turn from Mao to market under Deng Xiaoping.
Then, in the early eighties, a campaign against bourgeois liberalism began to target such “scar literature.” In 1988 a regulation warned that, “from now on and for quite some time, publishing firms should not plan the publication of dictionaries or other handbooks about the ‘Great Cultural Revolution’.” In 1996 researchers held a symposium on the anniversary; ten years later they were warned off. In 2000 Song Yongyi, a repentant Red Guard turned historian, was held for more than five months due to his work, despite his American citizenship. And in 2013 Xi would issue a warning against “historical nihilism.”
The official Party verdict on the Cultural Revolution called it a catastrophe, which isn’t surprising. By the time it was formulated, Deng was in charge. He had been purged not once but twice, and his son has used a wheelchair since “falling” from a third-floor window while imprisoned by Red Guards. But Deng didn’t want to brood on what had happened: “The aim of summarizing the past is to lead people to unite and look ahead,” he instructed those drafting the judgement. It acknowledged that the events had caused “the most severe setback and the heaviest losses suffered by the Party, the country and the people since the founding of the People’s Republic.” It was “initiated by a leader laboring under a misapprehension and capitalized on by counter-revolutionary cliques.” Laboring under a misapprehension. It was worse than a crime, then; it was a mistake. Mao’s errors were acknowledged but could not be dwelled upon.
Conventional wisdom has it that the Party had no other way to square this circle: Mao was both Russian revolutionary Vladimir Lenin and Soviet premier Joseph Stalin. Chinese communism’s triumphs and disasters cannot be separated; he stands for both and still commands love and respect from many. To cut him off would saw away the roots which anchor the Party’s power, as well as raising dangerous questions about other leaders’ failure to stop him. Cloaking the Party in Mao’s aura also veiled its rejection of its past and its adoption of the things it once sought to destroy. Instead of acknowledging its turn to the market, the Party proceeded as though nothing had happened: Deng said his reforms were upholding Mao Zedong Thought. Mao’s preservation, psychically and even physically, made sense in terms of the Party’s own past: the Lenin/Stalin dilemma. But it addressed a larger problem too. Allowing people to judge their history acknowledges their right to judge things in general. Permit them to repudiate Mao, and they may repudiate you.
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Tania Branigan is a Guardian leader writer and author of Red Memory: Living, Remembering and Forgetting China's Cultural Revolution.
“Existe um fio de história que liga os acontecimentos de 1964 aos dias atuais, que passa pelas reformas de base na marra, a luta armada, o voto nulo, o não apoio a Tancredo Neves, a rejeição ao Plano Real e o fracasso do governo Dilma Rousseff: o voluntarismo e a frustração de esquerda porque a queda da ditadura não se confundiu com a revolução.”
domingo, 31 de março de 2024
Luiz Carlos Azedo - Por quem os sinos dobram neste 31 de março
Correio Braziliense
Há um pacto de silêncio entre Lula e os comandantes militares, que proibiram as comemorações nos quartéis do golpe de 1964, enquanto golpistas prestam contas à Justiça
É preciso fugir ao senso comum e ao passado imaginário para ter um novo olhar sobre o dia 31 de março de 1964. O regime militar que ali se instalou somente se encerrou com a eleição de Tancredo Neves, em 1985, e a bem-sucedida transição à democracia presidida por José Sarney, cujo coroamento foi a promulgação da Constituição de 1988. Desde então, temos uma democracia representativa de massas, de caráter social-liberal. Não é pouca coisa a preservar.
Um velho amigo, o sociólogo Caetano Araújo, consultor do Senado, a propósito da polêmica sobre se o governo Lula deveria comemorar ou não o golpe de 1964, fez uma sensata separação entre a verdade e a Justiça, que não são mesma coisa, embora devam caminhar juntas. É verdade que os órgãos de segurança cometeram crimes hediondos, sobretudo no caso dos desaparecidos, mas a aprovacão da anistia em 1979, que não foi exatamente como os militares queriam, foi o grande pacto entre o governo e a oposição que deu início efetivo à ultrapassagem pacífica do regime autoritário.
Era a justiça possível, como correu em outras transições complexas da época. O Chile até hoje convive com uma constitucionalidade herdada do governo de Augusto Pinochet. O Uruguai promoveu um plebiscito que anistiou os militares. A Argentina puniu seus ditadores, depois do desastre das Malvinas, mas também motoneros e militantes do ERP envolvidos em crimes de sangue. Na África do Sul, sob liderança de Nelson Mandela, a Comissão da Verdade promoveu uma reflexão para que o passado do apartheid não se repetisse, não teve papel criminal.
Seguiram o rastro da Espanha, profundamente dividida desde a década de 1930. Após a morte de Franco, em meio à crise econômica e social, sem a mínima estrutura democrática, com apoio do rei Juan Carlos I, Adolfo Suarez abriu o diálogo entre esquerda, centro e direita. No Palácio la Moncloa, em 1977, em Madri, todos os partidos assinaram um pacto no qual predominava a preocupação econômica, mas que abarcava previdência, trabalho, liberdade, direito, energia, defesa e educação. A Espanha tornou-se uma democracia sólida, que sobreviveu à tentativa de golpe militar de 1981.
“Por quem os sinos dobram” (Bertrand Brasil), de Ernest Hemingway, que lutou como voluntário nas Brigadas Internacionais, é uma grande história de amor, tendo por referência a experiência pessoal do escritor na Guerra Civil Espanhola. Entretanto, narra a extrema violência das tropas de ambos os lados: os nacionalistas, auxiliados pelo governo italiano e nazista alemão, e os republicanos, apoiados pelas brigadas e a União Soviética. O livro é inspirado no poema “Meditações”, do pastor e poeta John Donne: “Quando morre um homem, morremos todos, pois somos parte da humanidade”. Empresta o título à coluna.
Mortos e desaparecidos Sim, os sinos hoje dobram por 434 mortos e desaparecidos, vítimas do regime militar, a maioria dos quais na tortura ou executados em confrontos simulados com os órgãos de repressão. Mas também dobram por cerca de 119 mortos pelos grupos armados que se opuseram à ditadura. E quatro militantes de esquerda que foram executados pelos próprios companheiros. Não eram “cachorros”. Qualquer tentativa de ajuste de contas punitivo com esse passado é um equívoco. Isso não significa confinar essa memória ao culto doméstico dos familiares de mortos e desaparecidos.
A radicalização política que antecedeu o golpe de 1964 dividiu profundamente a sociedade, inclusive as classes sociais e as famílias. Nem tudo foi fruto da “guerra fria”. Havia, como há ainda, um ambiente de iniquidade social propício. E também uma visão de ambos os lados de que as coisas se resolveriam pela força bruta do Estado e não pela sociedade, por via democrática.
A esquerda deveria se perguntar: por que Juscelino Kubitscheck e Ulyssses Guimarães apoiaram o golpe? A resposta é simples: foram empurrados para os braços de Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, que empunharam a bandeira da democracia contra o radicalismo de esquerda. Os militares deveriam também se perguntar: por que Juscelino e Ulysses passaram à oposição, logo após o golpe de 1964? Outra resposta simples: o regime cancelou as eleições e derivou para uma ditadura sanguinária.
Existe um fio de história que liga os acontecimentos de 1964 aos dias atuais, que passa pelas reformas de base na marra, a luta armada, o voto nulo, o não apoio a Tancredo Neves, a rejeição ao Plano Real e o fracasso do governo Dilma Rousseff: o voluntarismo e a frustração de esquerda porque a queda da ditadura não se confundiu com a revolução.
Outro fio de história liga a frustração dos militares que ingressaram na carreira quando era uma via de ascensão ao poder político, cuja recidiva se deu no governo Bolsonaro, à tentativa de golpe de 8 de janeiro da extrema direita bolsonarista, inspirada no passado imaginário do regime militar: a mentalidade de que às Forças Armadas cabe tutelar a nação, por representar “o povo em armas”.
A polêmica sobre a decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de não relembrar oficialmente o golpe militar de 31 de março de 1964 é fruto dessas vicissitudes históricas. De fato, há um pacto de silêncio entre Lula e os comandantes militares, que proibiram as comemorações nos quartéis, enquanto generais e outros oficiais golpistas prestam contas à Justiça comum, fato inédito na história.
Entretanto, a sociedade não está proibida de reverenciar seus mortos, como fizeram os professores da Faculdade de Direito de Niterói (UFF), ao propor o título de Doutor Honoris Causa ao seu ex-aluno Fernando Santa Cruz, sequestrado e assassinato em 1974, depois de diplomá-lo bacharel post mortem.
“O governo Lula tem de fazer mais para despolitizar as Forças Armadas brasileiras, porque aqueles que estiveram envolvidos nos planos golpistas permanecem quase todos impunes”
É um académico que sabe e adora comunicar. Nas redes sociais e em órgãos de comunicação social de referência (The New York Times, Foreign Policy, Americas Quarterly, El País, ZDF, Globo) é capaz de comentar – em português, inglês ou alemão – o que se passa no mundo e também no país onde escolheu viver, o Brasil. Professor e investigador na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, Oliver Stuenkel, nascido há 42 anos em Dusseldorf, especializou-se nos desafios colocados pelos países do chamado Sul Global ao Ocidente.
Escreveu há poucas semanas [na Foreign Policy] que uma das ações menos conhecidas da administração de Joe Biden tem a ver com a forma como se envolveu na disputa eleitoral entre Lula da Silva e Jair Bolsonaro. Os EUA salvaram a democracia brasileira? Em primeiro lugar, é importante lembrar o papel que alguns outros atores tiveram nesse processo. Em particular, a mobilização da sociedade civil. Essa dinâmica interna tem de ser destacada. Porém, através de uma série de conversas e entrevistas com especialistas em assuntos militares, com políticos e diplomatas brasileiros, começámos a perceber que a pressão dos Estados Unidos ao longo do ano 2022 parece ter sido crucial para dividir e alertar alguns elementos golpistas nas Forças Armadas brasileiras. Os EUA fizeram saber que não aceitavam uma rutura democrática no Brasil. Criou-se um ambiente muito hostil a esse tipo de ação, ao contrário do que se verificou em 1964 [Washington apoiou a conspiração e o golpe contra o então Presidente João Goulart, instaurando um regime militar que vigorou até 1985].
Como se exerceu a pressão americana? Boa parte ocorreu nos bastidores. Sabemos das viagens dos dirigentes dos EUA. É muito raro que, num período eleitoral, o chefe da CIA, o secretário da Defesa, o conselheiro de Segurança Nacional, entre outros, visitem o mesmo país. Sabemos hoje que, para o setor antidemocrático das Forças Armadas brasileiras, a falta de apoio dos EUA foi um fator-chave. O ex-vice-presidente do Brasil, depois da derrota eleitoral, explicou aos seus seguidores que não havia mais nada a fazer. Ele sabia que uma parte da população desejava que as Forças Armadas dessem um golpe de Estado.
Está a referir-se ao general Hamilton Mourão? Sim. Ele veio dizer [aos bolsonaristas] que entendia a insatisfação, mas que o ambiente internacional não o permitia. Outra explicação importante. Os EUA não pressionaram para que existisse uma vitória do Lula, pressionaram para que os generais reconhecessem o resultado eleitoral.
Para que houvesse respeito pela vontade popular? Exato, e isso é muito significativo.
Porquê? Por norma, vemos o envolvimento dos EUA com muito ceticismo, a perceção é de que só ocasionalmente defendem a democracia. Por terem vários regimes autoritários como aliados. Parece-me que Washington não queria uma rutura democrática no Brasil, talvez por recear um maior ostracismo brasileiro no Ocidente e isso facilitar a atuação chinesa no maior país da América do Sul. A China não se preocupa se os seus parceiros têm governos democráticos ou respeitam os direitos humanos. Com frequência, consolida a sua influência em Estados em situação de isolamento. Vejamos o que aconteceu com a Venezuela, com a Rússia e com uma série de países africanos que estão sob sanções ocidentais…
Interesses estratégicos… Por um lado, evitar essa abertura estratégica à China; por outro, o fator Trump. Jair Bolsonaro posicionou-se como um dos principais fãs do ex-Presidente americano e questionou a legitimidade das eleições, em 2020. Para a administração Biden era muito importante evitar uma escalada autoritária na maior democracia do subcontinente.
Podemos dizer que a estrutura do Estado brasileiro já está desbolsonarizada? Os generais golpistas foram afastados? Houve avanços, mas é um processo longo. Há que dizer que o Brasil, desde a sua independência, vive numa tensão permanente entre civis e militares. Vimos como logo no início do século XX – com o tenentismo – se criou a ideia de que os militares são mais patriotas, mais comprometidos com a nação, mais competentes, menos corruptos e que podem envolver-se em aventuras democráticas. Em momentos de crise, quando os civis se comportam de forma irresponsável, permanece essa ideia de que os militares precisam de atuar. É uma visão profundamente paternalista, como se os civis fossem crianças e os militares os adultos que precisam de intervir e supervisionar o que acontece. Isto é algo que um só governo não consegue eliminar.
Como assim? É preciso demitir generais, afastar quem não denuncia situações graves. Como dizemos no Brasil, “o buraco é mais em baixo”. É uma questão que tem a ver com a educação e a formação dos militares, é preciso mudar os currículos nas academias. As nossas Forças Armadas nunca reconheceram de forma explícita as violações cometidas durante a ditadura [1964-1985] e isso deve-se ao processo de transição para a democracia, que foi excessivamente harmonioso.
Lula gostaria de ser um ator internacional como Modi, que tem um papel-chave na contenção da China. Só que a Índia é uma potência nuclear e tem o espaço de manobra estratégica que falta ao Brasil
Harmonioso? Não teve nada a ver com o que aconteceu na Argentina, nos anos 80, em que houve um colapso moral das Forças Armadas e uma grave crise económica devido à guerra com o Reino Unido, como retrata o filme Argentina 1985[realizado por Santiago Mitre e protagonizado por Ricardo Darín]. No Brasil foi diferente. Foram os generais que conduziram a transição e ditaram que não haveria aquilo que eles designavam como “caça às bruxas”. Essas exigências foram cumpridas e, 35 anos depois, surge um indivíduo [Bolsonaro] com uma narrativa enviesada e romantizada da ditadura militar.
Que pode então ser feito? O governo Lula tem de fazer mais para despolitizar as Forças Armadas, porque aqueles que estiveram envolvidos na elaboração de planos golpistas, aqueles que planearam a violência de 8 de janeiro de 2022, permanecem quase todos impunes.
Há processos a decorrer… São processos simbólicos. Uma coisa é condenar cidadãos que estiveram em Brasília a destruir propriedade pública, outra coisa são os generais. Por enquanto, tudo indica que esses oficiais de alto escalão sairão ilesos. Temos o direito de questionar se algum general, se algum coronel, será expulso, será preso… No Brasil, o controlo civil sobre as Forças Armadas é muito mais recente do que parece. Só se criou um Ministério da Defesa em 1999. Antes, as chefias militares tinham assento no gabinete presidencial e faziam automaticamente parte do governo. O primeiro responsável pela pasta da Defesa com competência direta para decidir, por exemplo, orçamentos militares, foi Nelson Jobim [2007-2011]. Os outros cinco ministros civis que o antecederam não tinham poder nenhum.
Com Lula, a diplomacia brasileira voltou a ser “ativa e altiva”? Esse conceito concebido por Celso Amorim [ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e atual conselheiro do Presidente] voltou a ser recuperado logo a seguir às eleições de 2022. Ainda antes de tomar posse, em novembro desse ano, Lula foi ao Egito, à Cimeira do Clima, anunciar: “O Brasil está de volta.” De certa forma, é verdade, devido ao isolamento internacional causado por Jair Bolsonaro. O país deixou para trás a abordagem trumpista e de abandono do multilateralismo. Está novamente envolvido no combate às mudanças climáticas, regressou ao G-20, recebeu convite para participar no G-7…
Não é estranho que o Brasil tenha três grandes atores na sua política externa – Lula, Celso Amorim e Mauro Vieira [ministro dos Negócios Estrangeiros]? Que nem sempre parecem estar em sintonia… Do ponto de vista geopolítico, está de volta, está mais ambicioso do que no tempo de Bolsonaro. Neste momento, tem uma abordagem que alguns chamam de não alinhamento, outros de multialinhamento, de neutralidade estratégica, de equidistância face às principais potências. É um caminho cada vez mais difícil num ambiente de grande turbulência geopolítica, com as relações entre os EUA e a China, ou entre a Rússia e o Ocidente, a piorarem. Claro que o Brasil quer manter e fortalecer os laços com o Ocidente, mas é o maior comprador mundial de diesel russo e também um dos maiores importadores de fertilizantes da Rússia. Lula já disse explicitamente que quer que Vladimir Putin esteja na cimeira dos G-20, no Rio de Janeiro, em novembro.
Um anúncio surpreendente… O Brasil assinou o Estatuto de Roma [acordo que permitiu criar o Tribunal Penal Internacional e que entrou em vigor em 2002] e, portanto, em princípio, terá de prender o Presidente russo se este entrar em solo brasileiro. Isto parece o novo normal do Brasil. Em alguns momentos, parece estar do lado do Ocidente; em outros, não. Creio que existe uma intenção de aparente neutralidade, mas depois há a parte retórica. Lula gosta de falar de improviso, os assessores dele ficam em desespero. As palavras importam, pesam e muitas vezes atrapalham. Já tivemos afirmações dele muito controversas, das quais discordo em absoluto – sobre Zelensky e a Ucrânia, sobre Maduro e a Venezuela, sobre Israel e o Holocausto.
Lula está a comprometer a capacidade do Brasil de mediar alguns conflitos? Ou está a tentar ser o líder do Sul Global? Ele gostaria de envolver mais o Brasil nas grandes questões. Sem dúvida que as nações do Sul Global têm de se sentar à mesa na hora de debater a reforma das instituições internacionais. O diretor do FMI tem de continuar a ser sempre um europeu? O presidente do Banco Mundial tem de ser americano? Os EUA e o Ocidente ainda ditam demasiadas condições. Porém, o que pode o Brasil fazer pelo futuro da Ucrânia? Conversei recentemente com dirigentes ucranianos e, na perspetiva deles, os governantes brasileiros demonstram ignorância sobre o conflito.
Um comentário que, presumo, lhe tenha sido feito na Conferência de Segurança de Munique [16-18 fevereiro]. Já antes ouvira algo assim. Em Munique não houve sequer uma participação brasileira de alto nível, com ministros e o Presidente [Lula estava na Etiópia, na Cimeira da União Africana]. A perceção na Ucrânia e no Ocidente é de que o Brasil tem simpatia pela Rússia.
Como é que Lula pode contrariar essa perceção? Um dos países que inspiram o Brasil é a Índia. Narendra Modi [primeiro-ministro da Índia] também se posiciona de forma ambígua, compra armas e energia russas, mas é visto como um aliado do Ocidente. Creio que Lula gostaria de ser um ator internacional como Modi, que tem um papel-chave na contenção da China. Só que a Índia é uma potência nuclear e tem o espaço de manobra estratégica que falta ao Brasil.
Daí os entendimentos nos BRICS? Os BRICS tornaram-se um instrumento-chave da política externa brasileira. Até Bolsonaro, que se apresentou como o candidato pró-EUA e anti-China, acabou por abraçar os BRICS – estava tão isolado no Ocidente, que se virou para os BRICS como uma espécie de seguro de vida diplomático. Mas a única coisa que une esse grupo é o incómodo com a liderança internacional dos EUA. Só que o Brasil possui uma visão reformista, não revolucionária, das organizações internacionais existentes. Por isso se opôs ao alargamento dos BRICS. Lula não quer pertencer a um clube antiocidental. Na próxima cimeira, em outubro, na Rússia, Putin pode ter a seu lado os presidentes do Irão, da Síria, da Bielorrússia…
O que pensa do fracasso das negociações entre a UE e o Mercosul? Uma oportunidade perdida para todos. Parte das preocupações ambientalistas europeias em relação ao acordo é um protecionismo velado, porque não o assinar não vai preservar um centímetro de floresta no Brasil. Pelo contrário. O Brasil teria de adotar padrões ambientais muito mais exigentes. A alternativa é que o Brasil amplie agora o seu comércio com a China, que se importa muito menos com as questões ambientais.