domingo, 3 de agosto de 2025

A deterioração fiscal da economia brasileira - Roberto Campos Neto (FSP)

 Roberto Campos Neto

Economista, foi presidente do Banco Central do Brasil por seis anos. É vice-chairman do Nubank e mestre em economia pela universidade UCLA 


Desafios de uma nova ordem global 

Vislumbramos uma equação insustentável: mais dívida, juros mais elevados, alta da desigualdade, maior necessidade de recursos e pouca capacidade de elevar impostos 

O mundo está em transformação. Como observador atento, ocupando uma posição privilegiada no Banco Central do Brasil ao longo dos últimos seis anos, identifiquei tendências que moldarão o equilíbrio global e que, frequentemente, escapam a debates mais aprofundados. Nos perdemos no debate de curto prazo: tarifasdólar, polarização política etc. Mas o problema é mais profundo: uma equação econômica e social insustentável. Neste artigo, mais generalista, abordo algumas dessas forças. Nos próximos, mergulharemos em mais detalhes.

Durante muito tempo, nos acostumamos à ideia de que dívida pública crescente não era um problema. O fiscal seria um tema para outras gerações. A narrativa dominante sustentava que o crescimento econômico seria estruturalmente baixo, os juros baixos por muito tempo, e a inflação, controlada.

A pandemia, no entanto, alterou drasticamente esse panorama. Assistimos à maior coordenação global de políticas fiscal e monetária já registrada, com a dívida mundial em relação ao PIB crescendo aproximadamente 15 p.p. (pontos percentuais). Desde 2019, a dívida das economias emergentes cresceu 20 p.p.. A inflação global, por sua vez, disparou e, na maioria dos países, não apresenta sinais de retorno aos níveis pré-pandêmicos. Essa percepção é reforçada quando se analisa as taxas de juros de longo prazo.

Aproximadamente 65% da dívida soberana global —concentrada em Japão, Estados Unidos e Europa— enfrenta hoje custos de rolagem muito maiores, devido ao aumento combinado do estoque de dívida e das taxas de juros. Esse movimento drena recursos de outras partes do mundo, especialmente de economias emergentes e pobres.

Embora tenhamos sido eficazes na coordenação de esforços fiscais e monetários durante a pandemia, a retirada dessas medidas revelou-se muito menos eficiente. Os programas de transferência de renda, por exemplo, aumentaram globalmente entre 1,5 e 2 p.p. do PIB durante a crise, e permanecem com volumes muito superiores aos níveis pré-pandêmicos. Recordo uma discussão entre banqueiros centrais numa tarde fria no FMI, onde se debateu que esses programas deveriam seguir a "regra dos 3 Ts": deveriam ser temporários, direcionados (targeted) e sob medida (tailored). Hoje, é evidente que a maioria desses princípios foi negligenciada.

Diante de tudo isso, o fiscal se tornou um tema premente. Virtualmente, todos os países apresentam atualmente déficits em suas contas públicas. Segundo o FMI, o grupo das economias avançadas apresenta uma média de déficit primário de 2% do PIB, enquanto as economias emergentes, de 3,8%. Gastos discricionários em diversos países, incluindo o Brasil, encontram-se severamente pressionados em orçamentos cada vez mais restritivos.

Diante da dificuldade de muitos países em equilibrar suas contas públicas, ajustes fiscais têm sido propostos e implementados, mas, na maioria dos casos, os ajustes priorizaram o aumento da receita em detrimento da contenção de despesas. Mais preocupante ainda, grande parte dos novos tributos incide sobre estoques de riqueza ou sobre empresas, sobrecarregando o capital e comprometendo a produtividade de longo prazo.

Outro fator crítico é o envelhecimento populacional, que pressiona os orçamentos de seguridade social, reduz a produtividade e afeta diversas áreas da economia. Projeções para os próximos 15 anos indicam que quase todo o crescimento populacional estará concentrado em nações mais pobres, enquanto a maioria dos países desenvolvidos enfrentará declínio populacional.

A esse cenário, soma-se a crescente instabilidade geopolítica, com impactos diretos nas cadeias globais de suprimento e nos gastos militares. Além disso, a transição energética, essencial para o futuro, enfrenta dificuldades para sair do papel. Todos esses elementos demandam enormes recursos.

Assim, vislumbramos um futuro com mais dívida, juros mais elevados, aumento da desigualdade, e maior necessidade de recursos para maiores despesas com defesa, investimentos robustos na transição energética, custos elevados para reestruturar cadeias de suprimento e encargos sociais crescentes devido ao envelhecimento populacional. A previsão do FMI é que a dívida global, que representava 84% do PIB em 2019, alcance 100% em 2030.

Essa equação é, claramente, insustentável. E o modelo atual começa a ser questionado. Teremos uma nova ordem global? As preocupações recentes com a trajetória da dívida pública nos Estados Unidos e as tensões observadas nas curvas de juros de longo prazo em alguns países levantam sérias indagações. Entre elas, destacam-se: o impacto do chamado "trumpenomics" no cenário global; a crescente vulnerabilidade dos países mais pobres e o agravamento da desigualdade; a necessidade de reinventar o modelo econômico europeu; os desafios da trajetória de dívida no Japão, com juros longos mais altos; e as implicações do crescente domínio da China em mercados estratégicos.

Como vemos, há mais perguntas do que respostas. Uma certeza, porém, emerge: o debate fiscal ganhará centralidade, e o modelo de Estado assistencialista em seu formato extremo terá que ser repensado. Será necessário equilibrar as demandas sociais com equilíbrio fiscal. Sem uma estratégia para equilibrar a dívida global e promover políticas que expandam a oferta e elevem a produtividade, caminhamos para uma crise global de dívida.

recente orçamento aprovado nos Estados Unidos, longe de ser motivo de celebração, marca o primeiro capítulo dessa narrativa. Para as economias emergentes, como o Brasil, é imperativo adotar políticas de ajuste fiscal e preparar-se para um ambiente mais volátil. Qualquer semelhança com a realidade brasileira não é mera coincidência.

 

Retornando 28 anos atrás - Paulo Roberto de Almeida

Retornando 28 anos atrás

Pouco tempo depois do acordo RPC-UK, em 1997, de devolução da colônia inglesa de Hong Kong à soberania continental, com a promessa de manutenção de um regime especial de liberdades democráticas na ilha durante meio século, eu escrevi um artigo sobre esse acordo, sem ter ainda conhecido HK, mas finalizando ao expressar meu desejo ou esperança de que em 2047 a China Continental, ou seja a RPC, fosse bem mais parecida com a HK daqueles anos últimos do século XX, do que esta com aquela.

Em 2010, Carmen Lícia Palazzo e eu visitamos finalmente HK e cobstatamos, realmente o clima de liberdades predominantes na ilha ex-inglesa: os hongkonguianos não queria ser chineses e os produtos mais vendidos na ilha, naquele momento, ou melhor, os produtos mais comprados pelos visitantes chineses da RPC (total liberdade para visitar a ilha, menos Taiwuan) eram, pela ordem, leite em pó para bebês (tinha havido uma série de mortes de bebês por leite irregular) e livros banidos ou proibidos na RPC (em especial sobre a história da China e sobre o regime “comunista”. Isso em 2010.

Em 2021 tudo isso acabou e a repressão orwelliana se abateu sobre a ilha e seus cidadãos.

Preciso retificar meu artigo dos anos 1990: em 2047, HK será muito mais parecida com a China atual do que esta com aquela. Aliás já é!

Uma tristeza: muito jornalista preso, censura total na impeensa, nas escolas e universidades, enfim o universo orwelliano já conhecido. 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3/08/2025

sábado, 2 de agosto de 2025

Stephen Kotkin and Dan Wang about the craft of History - Hoover Institution

Historian of Russia, geopolitics, and authoritarian regimes Stephen Kotkin joins Dan Wang to discuss the craft of history, the risks of misusing it, and how serious scholarship can engage the wider public, inform policymaking, and help cultivate the next generation of historians.

https://www.youtube.com/watch?v=myi0FWQs0nY

Today's conversation is brought to you by the Hoover History Lab. Learn more about the lab's work: https://www.hoover.org...

ABOUT THE HOOVER HISTORY LAB

The Hoover History Lab is not a traditional academic department but instead functions as a hub for research, teaching, and convening—in person and online, in the classroom and in print. The Lab studies and uses history to inform public policy, develops next-generation scholars, and reinforces the work of Hoover’s world-class historians to inform scholarship and the teaching of history at Stanford and beyond.

__________

The opinions expressed in this video are those of the authors and do not necessarily reflect the opinions of the Hoover Institution or Stanford University. 

© 2025 by the Board of Trustees of Leland Stanford Junior University.

🔔 Subscribe for more discussions: ‪@HooverInstitution‬ 



Nova visita à Coleção PRA na Biblioteca do Itamaraty: expandindo gradualmente...


Nova visita à Coleção PRA na Biblioteca do Itamaraty: expandindo gradualmente...

Nesta sexta-feira, visitando novamente a Biblioteca do Itamaraty para devolver e emprestar novos livros, aproveitei para verificar a incorporação à Coleção PRA da mais recente doação (várias dezenas de livros anteriormente em minha kit-biblioteca ou em meu apartamento) que já foram colocadas nas estantes, na ordem própria segundo os códigos do catálogo.
Fiz algumas novas fotos...





sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Book: Gilmar Masiero: Brazilian Socio-Economic: Dynamics Contexts and Contemporary Realities (Springer)

Um recente livro do grande estudioso Gilmar Masiero:

Brazilian Socio-Economic Dynamics

Contexts and Contemporary Realities

  • Book
  • © 2025

https://link.springer.com/book/10.1007/978-3-031-87685-1

Overview

  • Presents original research on Brazil's structural problems and how to manage them
  • Explores Brazilian dynamics from both a socio-economic and a business management perspective
  • Includes contemporary research on recent events, such as the Covid-19 pandemic and climatic challenges.

Part of the book series: Contributions to Economics (CE)

About this book

This book presents a detailed study of Brazil's structural problems and offers suggestions  for managing them. It is organized  into two parts. The first part provides a foundation in Brazilian socio-economic dynamics, discussing regional diversity, economic inequalities, access to education, and global commodity supplies from the country's agribusiness. The second part describes contemporary realities in the business and management sector, such as entrepreneurship, small businesses, and incubators, the country's financial system, its international presence, and its present and future challenges. The need for academic literature to support discussions on Brazilian issues is also addressed. The original research presented here may be helpful as a supplementary text in instructional settings.


Table of contents (6 chapters)

  1. Brazilian Socio-economic Dynamics

  2. Brazilian Contemporary Realities





O Direito e a Força - Sérgio Moreira Lima (O Estado de S. Paulo)

O Direito e a Força
Sérgio Moreira Lima*
O Estado de S. Paulo, 1/08/2025

        As decisões anunciadas pelo Presidente Trump representam atentado injustificado e sem precedentes contra o Brasil, que construiu um legado de paz e segurança nas Américas com diálogo e cooperação. Reconhecido por sua contribuição ao multilateralismo e a ordem internacional baseada em normas, o Brasil não merece a sanção. Ela agride o Estado, o direito, a democracia e a amizade entre os povos das Américas. A maior ironia é que ela se dirige a um parceiro com o qual os EUA compartilharam momentos decisivos da História e que tem contribuído para o progresso e a estabilidade na região.
        Os EUA foram o primeiro a reconhecer, em 1824, a independência do Brasil. A decisão revestiu-se de simbolismo: a chamada doutrina Monroe foi anunciada em 1823. E já, em agosto de 1822, D. Pedro, príncipe regente, e José Bonifácio, Ministro do Reino e chanceler, enviaram carta a Monroe com vistas ao estabelecimento de relações diplomáticas. Apesar do legado ambíguo de proteção e ingerência do monroísmo, o Patriarca da Independência inaugurou relação de confiança mútua com os EUA.
        Na II Conferência de Paz da Haia (1907), o Brasil resgatou o princípio da igualdade soberana dos Estados, que, mais tarde, serviu de pilar para criação da ONU. Ao negociar com dez países vizinhos as fronteiras, o Brasil, de Rio Branco, erigiu, no início do século XX, no Hemisfério Ocidental, um marco ao Direito Internacional, que responde pela ausência de conflitos bélicos entre os países sul-americanos.
    A Aliança não escrita com os EUA contribuiu para esse processo. Historicamente, o Brasil logrou permear o unilateralismo de Monroe com princípios e valores que ajudaram a moldar o Pan-americanismo. Foi o único país da América Latina beligerante nas duas Guerras Mundiais. O encontro de Roosevelt com Vargas em Natal, em 1943, estabeleceu uma aliança que fez a diferença em termos logísticos e estratégicos. A participação do Brasil contribuiu para o equacionamento de fase crucial do conflito. Roosevelt via com simpatia a ideia de inclusão do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, mas faleceu. Como arquiteto do multilateralismo econômico, os EUA contaram ainda com o Brasil na criação do GATT/OMC, que ajudou a substituir a lógica da guerra pela ordem internacional baseada em regras, como fator de cooperação e prosperidade.
        Em sua inusitada carta, Trump já havia feito tábula rasa de mais de dois séculos de relação bilateral que influiu nos princípios consagrados nos sistemas da ONU, da OEA e da OMC. A nota de resposta emitida pelo Presidente do Brasil revelou correção, objetividade e temperança. A atitude de Trump não é aquela que se espera de um dirigente dos EUA. Seus aspectos políticos ferem o Direito Internacional de maneira inaceitável. A própria guerra de tarifas revela protecionismo sem precedente em sua escala. Põe em risco o que levou séculos para construir: o multilateralismo, a ordem internacional e a arquitetura da governança.
        Intimidar parceiros e aliados compromete o livre comércio, que tantos benefícios trouxe à economia americana. Ele é parte de uma liberdade mais ampla que inspira a humanidade no curso da História. Uma das bases do sistema multilateral de comércio é o princípio da nação mais favorecida (NMF). Todo membro da OMC deve tratar de forma igual os demais. Trump repudia a cláusula NMF e abre a porta para um comércio de relações seletivas, baseado em preferências unilaterais. Se todos seguirem esse caminho, o comércio baseado em regras desaparecerá com prejuízo geral, especialmente para os países mais vulneráveis. Aplicar tarifas retaliatórias aumenta a probabilidade de guerra comercial global.
        O bem mais importante nas relações internacionais é a confiança mútua. Um ganho material imediato pode representar perda futura incomensurável. A liderança exercida pelos EUA no século XX foi fundada em princípios e valores que motivaram as demais nações. Luta pela liberdade, autodeterminação dos povos, descolonização, direitos humanos, democracia foram bandeiras que mobilizaram e firmaram a ideia de Ocidente. É preciso não esquecer o resultado trágico na Europa da supremacia e da lógica do conflito. Durante duas décadas, o Brasil viveu sob regime militar que violou direitos e liberdades fundamentais. A Constituição de 1988 é marco na identidade do povo brasileiro. Consagra o equilíbrio entre os poderes do Estado, o mecanismo de freios e contrapesos para evitar abuso de autoridade.
        Tarifas de 50% sobre produtos exportados pelo Brasil, a partir de 6 de agosto, inviabilizam o comércio. Trata-se de ato de protecionismo que compromete o Direito e a parceria entre os dois países. O anúncio anterior já determinara a suspensão de encomendas e enorme prejuízo a brasileiros e americanos. Dado o tempo exíguo, as circunstâncias inesperadas, e os danos imediatos às partes, o rumo mais sensato é estender o prazo e aprofundar o diálogo para a solução da disputa. As tarifas elevam inflação e desemprego e reduzem renda. Para cada dólar exportado pelo Brasil, a indústria dos EUA gera 43 dólares. Diálogo e bom senso devem prevalecer para honrar a histórica amizade entre os dois povos, que tanto fazem para o progresso das Américas.

*Embaixador de carreira, serviu na Missão junto à ONU em Nova York e nas Embaixadas em Washington, Londres, Tel Aviv e Camberra. Atualmente é advogado e Presidente do Conselho da Sociedade Brasileira de Direito Internacional.


Introdução do livro Interpretações do Brasil: uma nova história da pensamento político brasileiro - Christian Lynch, Diogo Cunha (FGV Editora)

 Introdução do livro Interpretações do Brasil: uma nova história da pensamento político brasileiro

Por Christian Lynch (IESP/UERJ) &

Diogo Cunha (UFPE)

Este livro oferece uma nova abordagem da história do pensamento político brasileiro, destinada especialmente a estudantes de graduação em ciência política, ciências sociais e história que estão sendo apresentados aos grandes pensadores do país. Embora tenhamos priorizado esse público-alvo, estudantes de pós-graduação, pesquisadores experientes e entusiastas da nossa tradição intelectual também encontrarão grande valor neste trabalho. O impulso para esse empreendimento veio da constatação da falta de uma obra que fosse simultaneamente ampla em termos temporais e profunda em sua análise. Em outras palavras, buscávamos um texto que oferecesse mais do que meros perfis introdutórios e resumos superficiais das obras principais dos pensadores brasileiros. Dessa forma, solicitamos às autoras e aos autores de cada capítulo que se esforçassem para reconstruir a trajetória de cada pensador em análise e, a partir da contextualização de suas obras políticas, explicar e explorar em detalhes os principais conceitos mobilizados. O resultado são capítulos densos e acessíveis ao mesmo tempo, que servem como uma excelente porta de entrada ou suporte para quem deseja se aprofundar nesse estudo.

O pensamento político brasileiro deve ser compreendido como uma interseção complexa de influências europeias e americanas adaptadas às idiossincrasias históricas e culturais do Brasil. A tradição jurídica e o constitucionalismo desempenham um papel central em sua formação, moldada por confrontos e adaptações entre modelos exógenos e realidades endógenas, resultando em um ideário autóctone que busca equilibrar a modernidade com as peculiaridades nacionais. Esse arcabouço intelectual pode referir-se tanto ao conjunto de ideologias que compõem a cultura política brasileira quanto aos clássicos da teoria política nacional, escritos antes da institucionalização universitária na década de 1970.

Por seu caráter “periférico”, o pensamento político brasileiro apresenta menor grau de generalização e maior sentido prático nas reflexões. A centralidade da retórica, da oratória e do argumento de autoridade é notável, assim como a tendência dos autores de se apresentarem como pioneiros da modernidade e a orientação prospectiva da política brasileira.

A principal manifestação do “fantasma da condição periférica” expressa-se na per sistente crença de que a produção intelectual do país é inferior à dos países “cêntricos”, principalmente aqueles situados na Europa e os Estados Unidos. Essa percepção de inferioridade, internalizada pelas elites intelectuais brasileiras ao longo dos séculos XIX e XX, resulta na recorrente desqualificação da produção nacional como mera “aplicação”, “cópia” ou “deformação” das ideias e teorias elaboradas no centro. Consequentemente, o estudo do pensamento político brasileiro frequentemente foi relegado a uma posição subalterna, visto como desprovido de originalidade e relevância fora das fronteiras nacionais.

Os autores analisados demonstram como essa percepção se manifestou em diferentes contextos e perspectivas ideológicas. Por exemplo, a preferência pelo termo “pensa mento” em detrimento de “teoria” para designar a produção intelectual brasileira reflete essa ideia de inferioridade. Enquanto a “teoria” era associada à produção intelectual universalizante dos países centrais, o “pensamento” era visto como uma produção de caráter local, pragmático, voltado para a resolução de problemas específicos da realidade brasileira. Essa classificação dicotômica deixa transparecer a relação assimétrica entre periferia e centro, reforçando uma noção de hierarquia na produção do conhecimento.

A filosofia da história do século XIX, com sua visão linear e teleológica do progresso, contribuiu para consolidar a imagem de um Brasil “atrasado”, ainda em processo de formação, desprovido de um “povo” e de uma “cultura”, no sentido pleno dessas palavras. Mesmo durante o período marcado pela ascensão do nacionalismo, a partir da década de 1930, a sombra da “condição periférica” continuou a pairar sobre o pensamento político brasileiro. Embora reconhecessem a importância de estudar a realidade nacional, muitos partiam do pressuposto de que as “leis gerais da evolução dos povos” haviam sido elaboradas nos países centrais. A superação da condição periférica, nesse contexto, passaria pela elaboração de um projeto nacional capaz de, a partir da compreensão das “singularidades” brasileiras, conduzir o país a um patamar de desenvolvimento similar ao dos países centrais.

O pensamento político brasileiro, em sua essência, pode ser compreendido de duas maneiras principais: uma abordagem abrangente e uma interpretação mais específica. Em um sentido amplo, ele abarca o conjunto completo de escritos ideológicos – liberais, conservadores, socialistas – que moldaram e representam a cultura política brasileira. Tal perspectiva reconhece que o pensamento político brasileiro é profundamente influenciado pela posição do país na periferia do cenário global, em contraste com os centros estabelecidos de poder e civilização. Nessa visão, destaca-se a importância do estilo de escrita “periférico”, caracterizado por um menor grau de generalização e uma ênfase em abordar os desafios práticos e imediatos enfrentados pelo Brasil.

Em contraste, a definição mais restrita de pensamento político brasileiro concentra–se em um grupo seleto de obras consideradas “clássicas” devido à sua profundidade, sistematização e impacto duradouro. Essas obras, frequentemente produzidas por figuras proeminentes da “velha” ciência política brasileira, que antecedeu a institucionalização acadêmica formal da disciplina, representam um núcleo fundamental do nosso pensamento.

Neste livro, o que se pretende é apresentar uma visão o mais completa e abrangente possível do pensamento político brasileiro, focando principalmente o horizonte do Brasil como comunidade imaginada. Os autores elencados como objetos de estudo compõem uma lista ilustrativa, embora não exaustiva, de figuras que pertencem a essa categoria: José Bonifácio, Evaristo da Veiga, José de Alencar, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Alberto Torres, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Raymundo Faoro, Sérgio Buarque de Holanda, Guerreiro Ramos, Celso Furtado, Florestan Fernandes, entre outros.

Esses autores não apenas analisaram a realidade brasileira, mas também moldaram a maneira como o país se compreende. Suas “interpretações do Brasil” transcenderam os limites da academia, influenciando debates políticos, movimentos sociais e a própria identidade nacional. E, embora eles frequentemente tenham se embasado em ideologias existentes, suas obras não são redutíveis a rótulos ideológicos simples. Além disso, a maioria delas tinha entre seus objetivos, implícitos ou explícitos, influenciar ativamente o discurso e os processos políticos no Brasil.

Essa dupla abordagem – abrangente e específica – é essencial para entender a evolução e a dinâmica do cenário político e intelectual do país, oferecendo uma com preensão mais rica e nuançada a seu respeito. Mas, para entender completamente o pensamento político brasileiro em um sentido estrito, é essencial situá-lo dentro de seu contexto histórico e intelectual. Seu desenvolvimento, desde a Independência até a atualidade, pode ser compreendido com a análise de três períodos distintos, cada um com suas características e abordagens próprias.

De 1822 a 1889, durante o Império, a política era vista como uma “arte de governar”, exigindo a sabedoria de estadistas ilustrados que buscavam inspiração em modelos estrangeiros, adaptando-os à realidade brasileira. Enquanto os liberais defendiam princípios universais e imutáveis, os conservadores priorizavam a flexibilidade e a adaptação às circunstâncias específicas do Brasil. O debate entre liberais e conservadores foi marcado pela tentativa de encontrar um equilíbrio entre os ideais iluministas e a singularidade da sociedade brasileira, culminando em um pensamento político que buscava conciliar a modernidade com a tradição.

O segundo período, que se estendeu de 1889 a 1930, marcou a República e a ascensão de uma perspectiva “científica” da política, influenciada pelo positivismo e pelo evolucionismo. Muitos intelectuais buscavam uma “política científica”, baseada na observação e na análise crítica, citando autores estrangeiros. Outros defendiam uma ciência política pragmática, atenta às particularidades do contexto brasileiro. Esse período foi caracterizado pela tentativa de aplicar teorias científicas ao governo, na busca de um progresso racional e ordenado, em contraste com o empirismo e o pragmatismo do período imperial.

Em 1930, iniciou-se o terceiro período, marcado por uma crítica ao formalismo jurídico e à dependência em relação a modelos estrangeiros. Intelectuais comprometidos com o ideário nacionalista defenderam uma ciência política pragmática, com foco na transformação da realidade nacional, utilizando a sociologia como ferramenta de análise. Após a Segunda Guerra, o nacionalismo passou a falar a linguagem do desenvolvimento, buscando formular uma teoria que respondesse aos desafios do Brasil. O marxismo também ganhou espaço, analisando as contradições sociais e as relações de poder no país. Esse período é caracterizado pelo empenho em se criar uma ciência política brasileira apta a interpretar e transformar a sociedade nacional a partir de suas próprias bases.

Apesar da influência de diferentes correntes, o pensamento político brasileiro sempre buscou uma identidade, capaz de articular ideias universais à realidade específica do país. Novas vozes e perspectivas continuam a enriquecer e desafiar as interpretações tradicionais, garantindo que a produção intelectual brasileira permaneça dinâmica.

Do ponto de vista metodológico, é fundamental considerar o contexto histórico e evitar a aplicação anacrônica de conceitos contemporâneos. É preciso reconhecer que a interpretação do Brasil é sempre influenciada pelo sujeito que a realiza, e a busca por uma resposta definitiva é um desafio constante. Também é crucial evitar o eurocentrismo, reconhecendo o valor autônomo, a originalidade, a capacidade de inovação – em suma, a relevância – da produção intelectual brasileira, que reflete as especificidades da experiência nacional.

A dicotomia entre “idealismo” e “realismo” é frequentemente utilizada para analisar o pensamento político brasileiro. No entanto, essa classificação pode ser simplista e obscurecer a riqueza e diversidade de perspectivas presentes na história do país. O idealismo, frequentemente associado a autores liberais, é criticado por sua suposta desconexão com a realidade. Por outro lado, o realismo, frequentemente associado a autores conservadores ou nacionalistas, é valorizado por sua atenção às condições específicas do Brasil. Porém, é importante analisar as nuances e as diferentes formas como os autores lidaram com a relação entre ideias e realidade.

Podem ser identificados três principais modelos de história intelectual que influenciaram a interpretação do pensamento político brasileiro: o liberal, o nacionalista e o marxista. É preciso reconhecer seus efeitos e suas diferentes abordagens, evitando a adesão acrítica a um único ponto de vista. A análise do pensamento político brasileiro deve combinar o rigor textual com a contextualização. Ou seja, as ideias dos autores devem ser compreendidas em seus próprios termos textuais, mas também considerando as condições históricas, as relações de poder e os debates que influenciaram suas obras.

A influência do contexto é particularmente evidente na forma como os intelectuais do país se apropriaram de conceitos estrangeiros. Esse processo não pode ser reduzido a uma simples importação de ideias. Pelo contrário: é um campo dinâmico e criativo, no qual conceitos universais são reinterpretados e transformados à luz das experiências e desafios locais. Essa adaptação e inovação é o que pode conferir ao pensamento brasileiro sua originalidade e relevância.

***

O termo “nova história”, que figura no subtítulo desta obra, não é mero artifício retórico, mas sim uma escolha que se justifica plenamente. Cada capítulo foi meticulosamente redigido por especialistas nos pensadores em análise; autores cujos extensos registros de publicações sobre seus temas abrangem desde teses de doutorado até artigos em revistas acadêmicas de renome, além de capítulos de livros relevantes. Desse modo, cada texto desta coletânea reflete um profundo amadurecimento reflexivo em relação ao seu objeto, embasado em um diálogo contínuo com as mais recentes contribuições da teoria política, tanto nacional quanto internacional. As reflexões aqui apresentadas fundamentam-se em referenciais teóricos sofisticados, como a história dos conceitos alemã de Reinhart Koselleck, o contextualismo da escola de Cambridge, a abordagem francesa do político, bem como os estudos recentes sobre linguagem política, história das circulações e transferências culturais. O resultado são releituras extraordinariamente sugestivas e instigantes dos clássicos do pensamento político brasileiro.

Qualquer obra que se proponha a oferecer uma história do pensamento político é, inevitavelmente, incompleta. Nenhuma é capaz de abranger toda a produção intelectual gerada ao longo de um extenso período em um determinado país, e esta não é uma exceção. Toda seleção é desafiadora. Por que Evaristo da Veiga, e não Hipólito da Costa? Visconde do Uruguai, e não Bernardo Pereira de Vasconcelos? Alberto Sales, e não Campos Sales? Gilberto Freyre, e não Gilberto Amado? Miguel Reale, e não Plínio Salgado? Nelson Werneck Sodré, e não Caio Prado Júnior? Florestan Fernandes, e não Octávio Ianni? A lista poderia continuar. É inegável que, nessas escolhas, há uma dimensão subjetiva considerável. No entanto, dentro das limitações de cada período, guiamo-nos por critérios de representatividade histórica e teórica em cada uma das cinco fases em que dividimos o século e meio que vai da Independência ao início da Nova República.

Optamos por não nos estender aos pensadores contemporâneos, na medida em que nenhum ainda se sagrou “clássico”. Além disso, diferentemente das décadas que precederam a Constituição de 1988, quando predominava a preocupação com a questão nacional, novos temas emergiram na virada do século XX, como o feminismo, o racismo e a identidade de gênero. Isso não significa que não seja possível elaborar uma “história do tempo presente” do pensamento político, mas sim que tal empreitada exigiria um enfoque distinto, a ser desenvolvido em um volume separado.

Assim, a primeira fase, intitulada “A construção do Estado nacional”, abrange a primeira metade do século XIX e inclui estudos sobre figuras como José Bonifácio, marquês de Caravelas, frei Caneca, Evaristo da Veiga e visconde do Uruguai. A segunda fase, “A emergência da sociedade nacional”, situa-se entre o final do século XIX e o início do século XX, com análises dedicadas a Tavares Bastos, José de Alencar, Joaquim Nabuco, Alberto Sales e Rui Barbosa. A terceira fase, “A reestruturação do Estado nacional: nacionalismo e autoritarismo”, aborda a primeira metade do século XX, período marcado pelo florescimento do pensamento autoritário, com estudos sobre Alberto Torres, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Azevedo Amaral e Otávio de Faria. Na quarta fase, “A transição para a sociedade de massas (1): o experimento democrático”, adentramos um momento de mudanças significativas após o ciclo autoritário encerrado em 1945, com análises de figuras como Sérgio Buarque de Holanda, Afonso Arinos de Melo Franco, Guerreiro Ramos, Nelson Werneck Sodré e Celso Furtado. Por fim, a seção “Transição para a sociedade de massas (2): o regime militar” examina autores cujas obras, ao menos em parte, foram produzidas durante o regime militar e estão, portanto, intrinsecamente ligadas ao autoritarismo da segunda metade do século XX. Essa seção inclui estudos sobre João Camilo de Oliveira Torres, Miguel Reale, Raymundo Faoro, Florestan Fernandes e Wanderley Guilherme dos Santos.

Esperamos oferecer, assim, um estudo minucioso da história do pensamento político brasileiro, tanto em sua amplitude histórica quanto em sua profundidade conceitual. Ao contemplar desde os primórdios da construção do Estado nacional até os desafios enfrentados durante o regime militar e os contemporâneos processos de democratização, buscamos não apenas desvelar as complexidades intrínsecas desse pensamento, mas também explorar as sutilezas e implicações das diversas abordagens sobre uma ampla gama de temas. Estes abrangem desde a formação e o papel do Estado, a questão da identidade nacional, as dinâmicas das relações sociais em uma nação periférica, passando por questões como liberdade, igualdade e democracia, até a legitimidade, participação e funcionamento das instituições democráticas. Assim, almejamos que nossa obra, além de proporcionar uma visão abrangente do desenvolvimento do pensamento político no Brasil, ofereça ferramentas analíticas para a compreensão dos desafios democráticos que a sociedade brasileira enfrenta na contemporaneidade.


Postagem em destaque

Livro Marxismo e Socialismo finalmente disponível - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...