terça-feira, 26 de agosto de 2025

A moderna Doutrina Monroe: intervencionismo norte-americano na América Latina - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

Opinião: A moderna Doutrina Monroe

O intervencionismo norte-americano na América Latina começa a submeter os países a pressões que violam sua soberania

Por Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 26/08/2025 


Está em execução a estratégia do governo Trump para a América Latina anunciada, em termos genéricos, pelo secretário de Defesa como o “quintal” dos EUA, onde “os países deverão optar entre os EUA e a China”, como afirmou o presidente norte-americano.

Ao lado da firme oposição aos governos de esquerda no hemisfério (Cuba, Venezuela, Nicarágua, Colômbia, Chile e Brasil), o Departamento de Estado, chefiado por Marco Rubio, senador da Flórida, ultraconservador e primeira geração de cubanos que saíram de Cuba, está tomando medidas concretas para fortalecer os governos de direita (El Salvador, Paraguai, Argentina e agora a Bolívia) e tentar reverter a tendência pendular de governos de esquerda na região para influir nas eleições para eleger governos alinhados às políticas de Washington, “para construir um hemisfério mais seguro, mais forte e mais próspero”.

As medidas tomadas até aqui ressuscitam a Doutrina Monroe de 1823, pela qual se afirmava o princípio da “América para os americanos”, afastando a influência da Europa, e o Corolário Roosevelt (1904), autorizando intervenção militar para a defesa das empresas americanas.

Atualizada, a Doutrina Monroe moderna busca afastar os países da região da crescente presença da China, hoje o principal parceiro comercial da quase totalidade dos países da região, e defender as empresas americanas.

A primeira intervenção foi no Panamá, forçando o governo a pôr um fim nos contratos com empresas chinesas, a fim de controlar o fluxo de transporte por essa via estratégica para os EUA. Mais recentemente, o Departamento de Estado assinou acordos com o Paraguai para criar uma base na fronteira com o Brasil contra o Hezbollah integrada por agentes do FBI. Na semana passada, com o ministro do Exterior paraguaio, foi assinado, em Washington, um acordo para o Paraguai acolher asilados de outros países residentes nos EUA, no contexto de ampla parceria estratégica em segurança, diplomacia e economia, em especial no combate ao crime transnacional, na estabilidade regional, na energia, na mineração e na tecnologia. Nesse contexto, chama a atenção declarações de Marco Rubio sobre a possibilidade de intervenção de Washington na utilização da energia da binacional Itaipu para a instalação de data centers, em função do excedente de energia e seu baixo custo. Em outra iniciativa, na semana passada, o comando do Sul, na Flórida, enviou 4 mil marinheiros e fuzileiros navais para o combate ao tráfico de drogas, ameaça à segurança nacional, para as costas da Venezuela, “governado por um presidente ilegítimo e por um cartel de narcoterroristas”. A Casa Branca afirmou que “Trump mantém todas as opções abertas”, inclusive intervenção armada nos países para atingir os traficantes. Apoio a eventual movimento de parte do Exército venezuelano contra Maduro e proteção à Guiana, com eleição em 1.º de setembro, podem ser outros objetivos dos EUA.

O Brasil parece ser um dos alvos preferidos de Washington, desde a imposição das tarifas mais elevadas (50%), ao lado da Índia, para a exportação de produtos para os EUA, com a escalada de sanções políticas sobre o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e de funcionários do Ministério da Saúde, por terem coordenado a vinda de médicos cubanos ao País, e de relatório crítico sobre direitos humanos no Brasil. Em uma situação de impasse nas negociações comerciais, é possível prever novas ações depois do julgamento de Bolsonaro em setembro, com inaceitável interferência em assuntos internos que atentam contra a soberania nacional. A resistência do governo brasileiro a essas intervenções, contrárias à evolução normal das relações entre os dois países e a tentativa de formação de uma frente de oposição às medidas protecionistas norte-americanas poderão criar uma situação de graves consequências diplomáticas entre os dois países. A possível intervenção militar na Venezuela entrou na pauta de Lula nas conversas com o presidente do Equador e com os chefes de Estado na reunião do Tratado de Cooperação Amazônica, realizada em Bogotá.

Não pode ser afastada a possibilidade de o Brasil estar sendo usado como um exemplo para os países que ousarem se opor à nova versão da Doutrina Monroe. Além de Itaipu, como base de colonização tecnológica e talvez a Amazônia, cujo desmatamento está sendo objeto de investigação no contexto da seção 301 da lei de comércio americana, pelos recursos minerais e pelo maior reservatório de água do planeta, poderão ser, no futuro, os próximos alvos da agressiva política imperial de Washington. A decisão do STF sobre a aplicação da Lei Magnitsky no Brasil, com potencial de forte impacto sobre os bancos e sinais de distanciamento dos EUA na área da Defesa, com o cancelamento da Conferência Espacial das Américas, organizada pela Força Aérea, e da Operação Formosa, principal exercício da Marinha, são os últimos exemplos da escalada entre os dois países.

O intervencionismo do governo norte-americano na América Latina começa a submeter os países da região a pressões que violam a soberania ou demandam subordinação disfarçada de cooperação, além de impor ameaças de intervenção militar, sob pretexto de combate aos “narcoterroristas”.

Essas movimentações de Washington apresentam-se como o maior desafio da política externa brasileira nas últimas décadas.

 

Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), foi embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e em Washington (1999-2004)

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/a-moderna-doutrina-monroe/ 

Xin Fan: World History and National Identity in China: The Twentieth Century, book review by Di Luo (H-Asia)

 Xin Fan. 

World History and National Identity in China: The Twentieth Century

Cambridge University Press, 2021. xiii + 251 pp. $99.99 (cloth), ISBN 978-1-108-90365-3.

Reviewed by Di Luo (University of Alabama)
Published on H-Asia (August, 2025)
Commissioned by Jenny H. Day (Skidmore College)

The rise of nationalism has long been a central theme in scholarship on twentieth-century China, with many studies emphasizing the Chinese state’s role in shaping nationalist discourse. In World History and National Identity in China, Xin Fan offers a compelling counternarrative. By tracing the development of world history as an academic discipline in China throughout the twentieth century, Fan shifts the focus to Chinese world historians who critiqued narrow forms of nationalism. He argues that the emergence of academic nationalism in twenty-first-century China can be traced to intellectual resistance against the state's imposition of a Marxist worldview in the 1950s. Rather than serving merely as “handmaidens” of political ideology (p. 10), as previous scholarship has often suggested, Fan contends that Chinese world historians made significant and nuanced contributions to challenging Eurocentric frameworks in global historical understanding.

Fan focuses on ancient world history as a field that allowed Chinese scholars to formulate alternative historical perspectives, especially in response to the limitations of Eurocentric modernity. This field raised pressing historiographical questions about the relevance of the ancient past, the spatial divide between East and West, and the persistence of ethnic biases both within China and globally. By situating China within a broader global past, Chinese historians sought to construct a Chinese identity.

The book traces four generations of Chinese world historians. Chapter 1 examines the late Qing period through Zhou Weihan’s An Outline of Western History (1901), which integrated traditional historiographical forms with Western chronology and content drawn from translated Western and Japanese sources. This synthesis reflected the rise of a world-historical consciousness grounded in a revisionist Confucianism. Drawing on neo-Confucian concepts such as xing (common human nature) and gongli (universal principals), Zhou interpreted China’s recent decline as a result of intellectual stagnation rather than civilizational inferiority. His belief in a shared human nature, rooted in Confucian training, became a lasting legacy in the development of world-historical studies in China.

The Republican period (1912-49) saw the rise of academic professionals who institutionalized world history as a teaching field. Fan examines three key figures: Chen Hengzhe, He Bingsong, and Lei Haizong. All were educated in the United States, taught at Chinese universities, and valued professionalism, though they diverged in their views. Chen, influenced by American liberalism and empiricism, promoted internationalism and viewed world history as a means to foster global harmony. In contrast, He and Lei, shaped by the growing threat of Japanese imperialism, turned toward nationalism. He regarded nationalism as a tool of anticolonial resistance, while Lei adopted a culturally conservative and nationalistic stance during the Second Sino-Japanese War (1937-45), emphasizing Chinese civilizational uniqueness and calling for strong leadership and militarism.

Through examining the scholarship of these three individuals, Fan highlights how the professionalization of historical studies brought both opportunities and constraints. The inclusion of world history in secondary education in China increased its visibility but also invited state regulation. In times of national crisis, world historians like Lei Haizong, driven by a sense of social responsibility, increasingly aligned themselves with the state and advocated for cultural reconstruction for national survival. The gradual rise of cultural nationalism marked a significant departure from the late Qing vision of a shared human legacy. Despite its limitations, Lei’s culturalist framework, which analyzed world history through seven major civilizations, offered a radical alternative to Eurocentric national historiography and laid the groundwork for future developments in the field.

Chapters 3 and 4 focus on the early People’s Republic, when state control intensified. The Chinese Communist Party (CCP) introduced Soviet-style Marxist historiography and the jiaoyanshi (teaching and research unit) system, which collectivized teaching and research, enforced ideological discipline, and promoted specialization. Chinese world historians responded in varied ways. Lei Haizong, a prominent scholar from the Republican period, was sidelined for his refusal to conform to Marxist historiography. He challenged the Stalinist five-stage framework of history development (primitive, slavery, feudalism, capitalism, and socialism) for its Eurocentrism and teleological assumptions. In contrast, junior scholars like Tong Shuye (1908-68) and Lin Zhichun (1910-2007) embraced Marxism and helped institutionalize world history. Fan emphasizes that belief in Marxism, fear of political persecution, and opportunism all shaped their intellectual trajectories. Despite state control, Chinese historians continued to use the language of professionalization to assert autonomy and critique orthodoxy.

Fan highlights how intellectual resistance emerged through debates over periodization and the Asiatic mode of production (AMP). Tong Shuye’s 1954 periodization of Chinese history, for instance, was criticized for relying too heavily on world-historical models and for drawing inappropriate parallels between China and other ancient civilizations. While the CCP promoted world history as a tool for advancing Marxist-Leninist ideology, many Chinese historians dismissed world-historical research as a series of “forced analogies” that imposed a Eurocentric and teleological framework onto China’s distinct historical trajectory. In this regard, Fan argued that the rise of Chinese cultural exceptionalism was “an unintended consequence of the state’s massive social engineering projects” (p. x). At the same time, Fan cautions against dismissing the work of Chinese world historians as mere “handmaidens” of political ideology. The 1950s saw significant developments in world-historical scholarship. Chinese scholars translated a large body of Soviet texts and primary sources from non-European civilizations, upon which they built their own interpretations using Marxist historical materialism. Tong Shuye, for example, challenged Soviet interpretations by arguing that Asiatic societies were more advanced than their Western counterparts and that the AMP should be seen as a form of feudalism. Tong’s position reflected a broader effort to reconcile national pride with Marxist theory. He used the language of Marxism to challenge Soviet orthodoxy, arguing that Marxist theory was dynamic and open to reinterpretation. Such effort, Fan points out, constituted a form of subtle intellectual resistance to state control.

The Marxist historiography was furthered challenged by Chinese historians in post-Mao China. In chapter 5, Fan explores how economic reforms since 1978 and modernization reshaped world-historical studies. “A belief in cultural difference” between China and the West gradually replaced Marxist historiography that advocated “a common humanity based on historical materialism” (p. 160). Lin Zhichun, once a Marxist advocate, came to view world history as a tool for national rejuvenation in the 1980s. He helped found the Institute for the History of Ancient Civilizations (IHAC) in 1984, promoting ancient world history as a scientific discipline rooted in linguistic expertise and archaeological inquiry. By the 1990s, Lin Zhichun had rejected the applicability of feudalism to Chinese history, arguing it was a mistranslation of Western concepts. Instead, Lin celebrated China’s unique civilizational attributes, echoing Lei Haizong’s wartime nationalism. These ideological and institutional shifts had mixed effects. While international exchange increased, the relevance of ancient world history declined amid economic concerns. Earlier anti-Eurocentric stances softened, and ironically, Eurocentrism reemerged as world history increasingly focused on the “Great Powers.”

Xin Fan’s World History and National Identity in China offers a rich and nuanced account of how world history developed as a discipline and intersected with nationalism and identity formation in twentieth-century China. While the book excels in tracing intellectual and institutional shifts, it gives limited attention to how academic changes influenced the broader public. A more sustained analysis of public discourse—beyond brief references such as the 1988 television series River Elegy (p. 175)—would have strengthened the study. Additionally, while the focus on ancient world history is well justified, it would be helpful to situate this subfield within the broader landscape of world-historical scholarship in China. Did studies of other historical periods follow similar trajectories of politicization, professionalization, and nationalist reinterpretation? Despite these limitations, Fan’s work is a valuable contribution to Chinese intellectual history, historiography, and global history.

If there is additional discussion of this review, you may access it through the network, at: https://networks.h-net.org/h-asia.

Citation: Di Luo. Review of Fan, Xin, World History and National Identity in China: The Twentieth Century. H-Asia, H-Net Reviews. August, 2025.
URL: http://www.h-net.org/reviews/showrev.php?id=61659

Antissemitismo está sendo over sold - Paulo Roberto de Almeida

Antissemitismo está sendo over sold.

Não, não é; é só paranoia equivocada.


A maior parte dos judeus, de par le monde, e muitos israelenses veem antissemitismo em tudo o que se fala do genocidio atual sendo cometido por um criminoso de guerra no território que a extrema-direita sionista acredita ser o Grande Israel bíblico, um mito que nunca existiu.

Os judeus inteligentes precisam parar de falar de antissemitismo em face do que são crimes odiosos dos quais seus ancestrais, e alguns sobreviventes, foram vitimas num passado não muito distante.

Os extremistas, os ingênuos e os oportunistas, continuarão a falar de antissemitismo quando o que existe é revolta legítima contra os crimes de guerra e contra a humanidade que são praticados por alguns dentre eles.

Chega de hipocrisia. A matança há muito tempo passou de insuportável e está justamente reforçando o antissemitismo de muitos que sequer sabem o que é isso, teoricamente e empiricamente.

Acabou a aura; no seu lugar o que há, hoje, são mortes e destruição, como já houve no passado.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 26/08/2025


Certezas e dúvidas - Paulo Roberto de Almeida

 Certezas e dúvidas 

Paulo Roberto de Almeida 

Todos sabem quem é, qual a natureza, quais as intenções de Putin. Creio que não há nenhuma dúvida quanto a isso. Também sabemos, com certeza, de que Trump tem muitas dúvidas e que ele desconhece completamente a natureza profunda e real de Putin.

Todos sabemos, também, que os europeus, em geral, acreditaram, clara e sinceramente, na natureza profundamente ocidental dos EUA, e que, com base nessa certeza, eles se dedicaram, durante 80 anos, a construir uma bela casa agradável de se viver, confiando (mais que isso: tendo certeza) na proteção do Big Cop americano, contra os homens maus que poderiam vir do Leste.

Agora, os europeus estão cheios de dúvidas, e não sabem com certeza se poderão confiar novamente no Big Cop, e têm certeza de que não poderão, sozinhos, guardar a bela casa que construíram nos últimos 80 anos, com flores no jardim, dispensa cheia e tudo mais. A dúvida é sobre quando aparecerão os homens maus.

Trump tem uma única certeza: a de que ele é o homem providencial que poderá arrumar um novo esquema para cuidar das casas dos homens bons, inclusive fazendo alguns negócios com os homens maus, que assim deixarão de ser maus.

Ele tem outra certeza: a de que ele saberá, por meio de tarifaços, de induções e de ameaças, trazer os EUA de volta para as glórias da segunda revolução industrial, aquela do carvão e do petróleo, do motor a explosão, das linhas de montagem cheias de operários felizes e bem pagos, ao estilo do Modern Times de Chaplin.

Putin tem muitas dúvidas sobre as reais capacidades de seu país, com um PIB que é hoje inferior ao de uma potência média como é hoje, por exemplo, o Brasil, ainda que com um PIB per capita maior e capacidade militar muitas vezes maior.

Mas Putin tem uma única certeza: a de que poderá continuar enganando Trump, até que os ucranianos se rendam à exaustão ou de que os europeus consigam convencer Trump de que ele está enganado, ou resolva repentinamente cortar o resto da mesada defensiva que ele ainda concede a esses aproveitadores espertos e temerosos europeus.

O mundo está cheio de dúvidas e de certezas, e assim continuará até que Putin e Trump desapareçam de cena.

Xi tem algumas poucas dúvidas e muitas certezas, por isso ainda espera um pouco para dar seu próximo bote.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 26/08/2025


Trump vai precisar entender quem é Putin -Tom Friedman (OESP, NYT) - Introdução Paulo Roberto de Almeida

 Minha introdução (PRA): Alguém teria coragem de entregar este artigo a Trump? E ele, se receber, vai ler? E se ler, vai entender? E, se entender, vai por acaso mudar de postura? E se mudar, vai adotar as medidas necessárias para contrariar aquele que julga ser seu amigo? E, se o fizer,  vai adiantar alguma coisa? São muitos “ses” para chegar a um resultado que não tem “se” nenhum e uma única certeza: Putin vai dobrar a aposta na sua guerra de agressao! (PRA)

**********

Trump vai precisar entender quem é Putin

Tom Friedman

O Estado de S. Paulo., 24 de ago. de 2025

Buscar a paz na Ucrânia por meio do diálogo é justo, mas sabendo as reais intenções do líder russo

Tento ser justo ao analisar o drama Trump-Putin-Zelenski-Europa que vem se desenrolando nas últimas semanas. Tentando equilibrar o louvável desejo de Donald Trump de acabar com a guerra na Ucrânia com a maneira personalista, improvisada e muitas vezes ridícula com que ele lida com a situação – incluindo a energia que todos os envolvidos precisam gastar para alimentar seu ego e evitar sua ira, antes de chegarem aos compromissos infernais necessários para a paz. Por enquanto, tudo isso me deixa desconfortável.

Cobri muitas negociações diplomáticas desde que me tornei jornalista, em 1978, mas nunca vi uma em que um dos líderes – neste caso, o presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski – sentisse a necessidade de agradecer ao presidente americano 15 vezes nos quatro minutos e meio em que se dirigiu a ele com a imprensa na sala. Sem mencionar os elogios que os aliados europeus sentiram que precisavam fazer a ele.

Quando nossos aliados precisam dedicar tanta energia apenas para manter a paz com Trump, antes mesmo de fazer a paz com Vladimir Putin; quando eles têm de olhar por cima do ombro para se certificar de que Trump não está atirando pelas costas com uma postagem nas redes sociais, antes que Putin atire pela frente com um míssil; e quando o presidente americano não entende que, quando Putin diz à Ucrânia “case comigo ou vou te matar”, Zelenski precisa de mais do que apenas um conselheiro matrimonial americano. Tudo isso me leva a perguntar: como isso vai funcionar?

MUDANÇA. Especialmente quando cada osso do meu corpo me diz que Trump não entende o que está em jogo nesta guerra. Ele é diferente de qualquer presidente americano dos últimos 80 anos. Ele não sente nenhuma solidariedade com a aliança transatlântica e seu compromisso com a democracia, o livre mercado, os direitos humanos e o estado de direito – uma aliança que produziu o maior período de prosperidade e estabilidade para a maioria das pessoas na história do mundo.

Estou convencido de que Trump vê a Otan como se fosse um shopping center de propriedade dos EUA, cujos lojistas nunca pagam aluguel suficiente. E vê a União Europeia como um shopping center que compete com os EUA, que ele gostaria de fechar, martelando-o com tarifas.

A noção de que a Otan é a lança que protege os valores ocidentais e a UE é a melhor criação política moderna do Ocidente – um centro de pessoas livres e mercados livres, estabilizando um continente que foi conhecido por guerras tribais e religiosas durante mil ê ni os – é e s t r a nha para Trump.

De fato, concordo com Bill Blain, analista econômico que vive no Reino Unido, que escreveu na segunda-feira: “Por mais que os líderes europeus elogiem Trump, está claro que o vínculo fundamental de confiança que sustentou o sucesso de 80 anos da economia transatlântica, e serviu tão favoravelmente aos EUA por décadas, agora está rompido. O fim da economia transatlântica mudará a economia global – favorecendo a Ásia e novas relações comerciais.”

Portanto, também não me surpreende que Trump não sinta nenhuma necessidade instintiva de trazer a Ucrânia para o Ocidente ou compreender que a invasão de Putin foi apenas sua mais recente marcha para dividir o Ocidente, como vingança pela divisão da União Soviética.

ENTREVISTA. Como eu sei que Trump é surdo a tudo isso? Basta ouvir a entrevista que seu enviado especial, Steve Witkoff, concedeu a Tucker Carlson em março, após o segundo encontro com Putin no Kremlin. Aqui está apenas um trecho.

Carlson: “O que você achou dele?” Witkoff: “Gostei. Ele foi sincero comigo. A propósito, como resolveríamos um conflito com alguém que é o chefe de uma grande potência nuclear, a menos que estabelecêssemos confiança e bons sentimentos um pelo outro?”

Ele seguiu: “Na minha segunda visita, a coisa ficou pessoal. Putin encomendou um belo retrato do presidente Trump a um importante artista russo, me deu e me pediu para levá-lo para o presidente, o que eu fiz. Isso foi noticiado no jornal, mas foi um momento muito gentil. E me contou uma história, Tucker, sobre como, quando o presidente foi baleado, ele foi à sua igreja local, se encontrou com seu padre e rezou pelo presidente, não porque ele era o presidente dos EUA ou poderia se tornar o presidente dos EUA, mas porque tinha uma amizade com ele e estava rezando por seu amigo. Quer dizer, você consegue imaginar ficar sentado lá ouvindo esse tipo de conversa?”

E continuou: “Eu voltei para casa e entreguei essa mensagem ao nosso presidente e entreguei a pintura, e ele ficou claramente emocionado com isso. Então, esse é o tipo de conexão que conseguimos restabelecer por meio, aliás, de uma palavra simples chamada comunicação, que muitas pessoas diriam que eu não deveria ter feito, porque Putin é um cara mau. Eu não considero Putin um cara mau. É uma situação complicada, essa guerra e todos os ingredientes que levaram a ela. Você sabe, nunca é apenas uma pessoa, certo?”

E fica pior. Trump está tão iludido quanto à natureza de Putin que, durante a cúpula com líderes europeus, na segunda-feira, ele foi ouvido em um microfone aberto dizendo ao presidente francês, Emmanuel Macron: “Acho que Putin quer fazer um acordo para mim. Você entende isso? Por mais louco que pareça.”

Alguém consegue identificar um único diplomata americano em Moscou ou analista da CIA que esteja aconselhando Witkoff e Trump? A minha aposta é que não há nenhum, porque nenhum analista sério lhes diria: “Chegamos à conclusão de que vocês estão certos e todos nós estávamos errados: Putin não é um cara mau, ele só quer uma paz justa com a Ucrânia – e, quando ele diz que foi à igreja e rezou pelo presidente Trump, vocês devem acreditar nele”.


MANIPULAÇÃO.

Desculpem, mas se Putin realmente rezou pela vida de Trump, é porque sabe que nenhum outro presidente americano poderia ser manipulado tão facilmente como Trump tem sido. Putin não está e nunca esteve à procura de “paz” com a Ucrânia. Ele está, como já escrevi anteriormente, à procura de um pedaço da Ucrânia – na verdade, de toda a Ucrânia, se conseguir.

“Essa é tanto a causa primária da guerra, para usar uma das frases favoritas de Putin, quanto a causa primária dos esforços vacilantes de Trump para estabelecer a paz na Ucrânia – sua incapacidade de entender que Putin não quer paz, mas vitória”, disse Leon Aron, estudioso da Rússia e autor de ‘Riding the Tiger: Vladimir Putin’s Russia and the Uses of War’.

“Putin precisa da Ucrânia por todos os tipos de razões ideológicas e políticas internas. E não vai parar de buscá-la e se sacrificar por ela – a menos que o Ocidente torne o custo da guerra proibitivo, militar e economicamente.”

Então, termino onde comecei: Trump e Witkoff não estão errados em querer parar a guerra e todas as mortes. E não é errado manter comunicação regular com Putin para fazer isso. Sou totalmente a favor de ambas as coisas. Mas, para acabar com esta guerra de forma sustentável, é preciso entender quem é Putin e o que ele está tramando.

Putin é um cara mau, um assassino a sangue frio. Ele não é amigo do presidente. Isso é uma fantasia na qual Trump escolheu acreditar. Depois de compreender essas coisas, só há uma conclusão possível: a única maneira sustentável de parar esta guerra e impedir que ela volte a acontecer é um compromisso consistente do Ocidente em fornecer à Ucrânia os recursos militares que convencerão Putin de que seu exército será destruído.

PUNIÇÃO.

Os EUA também devem fornecer garantias de segurança que impeçam a Rússia de tentar isso novamente e incentivar nossos aliados europeus a prometer que a Ucrânia um dia fará parte da UE – para sempre ancorada no Ocidente.

A punição de Putin por esta guerra deve ser que ele e seu povo tenham de olhar para sempre para o Ocidente e ver uma Ucrânia, mesmo uma Ucrânia menor, uma democracia eslava próspera e de livre mercado, em comparação com a cleptocracia eslava autoritária e em declínio de Putin.

Mas como Trump aprenderá essa verdade depois de destruir a equipe do Conselho de Segurança Nacional e reduzir e neutralizar o Departamento de Estado, quando demitiu o chefe da Agência de Segurança Nacional e seu vice-chefe, seguindo o conselho de uma palhaça conspiradora, Laura Loomer, e quando nomeou uma fã de Putin, Tulsi Gabbard, para ser sua diretora de inteligência nacional?

Quem lhe dirá a verdade? Ninguém. Exceto a terra selvagem da Ucrânia. Nas trincheiras de Donbas, há verdade. Nas 20 mil crianças ucranianas que Kiev diz que Putin sequestrou, há verdade. Nos cerca de 1,4 milhão de soldados russos e ucranianos mortos e feridos como resultado dos sonhos febris de Putin de restaurar a Ucrânia à Mãe Rússia, há verdade. Nos civis ucranianos mortos por drones russos, ao mesmo tempo em que Trump estendia o tapete vermelho para Putin no Alasca, há verdade.

E, quanto mais Trump ignora essas verdades, mais ele constrói sua estratégia de paz – não com base em conhecimento especializado, mas em sua autoestima inflada e seu antiocidentalismo antiamericano – mais isso se tornará sua guerra. E, se Putin vencer e a Ucrânia perder, Trump e sua reputação sofrerão danos irreparáveis – agora e para sempre.


Rubens Ricupero, Prêmio Machado de Assis, da ABL - Daniel Afonso da Silva

 

The Machado de Assis Award 2025

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By DANIEL AFONSO DA SILVA*

Diplomat, professor, historian, interpreter and builder of Brazil, polymath, man of letters, writer. As it is not known who comes first. Rubens, Ricupero or Rubens Ricupero

1.

Rubens Ricupero has just been awarded the Machado de Assis Prize. The highest honor of the Brazilian Academy of Letters for the body of work of an author. Surely the greatest couplet of its kind in the country. Which, from now on, leads the laureate to grey of the authors of immortal works in Brazil.

Raising him to the company of the unforgettable Augusto Meyer (1902-1970), Erico Veríssimo (1905-1975), Câmara Cascudo (1898-1986), Gilberto Freyre (1900-1987), Cecilia Meireles (1901-1964), Hermes de Lima (1902-1978), Thales de Azevedo (1904-1995), Mario Quintana (1906-1994), Raquel de Queiroz (1910-2003), Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982), Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017), Rubem Fonseca (1925-2020), Carlos Heitor Cony (1926-2018), Ferreira Gullar (1930-2016), Marina Colassanti (1937-2025), Ana Maria Machado, Adélia Prado and others. Prestigious place. Masterful achievement. Incomparable award. At its height. Brilliant.

Diplomacy in the construction of Brazil, from 2017, had earned him the Senator José Ermírio de Moraes award for best book of the year. But it was Memoirs, from 2024, which placed him once and for all in the pantheon.

Memoirs has various attributes, many of which have not yet been fully analyzed or explored. But its most charming and impressive aspect, which surely weighed heavily in the Academy's decision, lies in its ability to humanize its author. Whoever reads or rereads Memoirs with some calm he notices the emergence of Rubens in front of Ricupero. Of the artist in front of the state servant.

Do man of letters in front of the distinguished diplomat, ambassador, high-ranking national and international official. It is seen, in Memoirs, Rubens in body and soul. Rubens son, grandson, husband, father and grandfather. Rubens reader. With eyes worn out from life marinating the art of writing. Immense writer. Now recognized by this award. The greatest of all. Machado de Assis.

To justify the award, the president of the Academy, Merval Pereira, stated that the laureate's body of work combines "literary merit and a public contribution of historical relevance to the country." All true. Which deserves more polish. This is the reunion of the Baron of Rio Branco (1845-1912) with Machado de Assis (1839-1908). It is also the first time that a full-fledged diplomat and tout court receives this award.

João Guimarães Rosa (1908-1967) received it in 1961. Raul Bopp (1898-1984) in 1977. But neither of them stood out purely as heirs of the baron. Both crushed the diplomat within the man of letters.

Guimarães Rosa producing geniuses like sagarana(1946) Dance Corps (1956) e Great Sertão: Veredas(1956). Raul Bopp remains the longest-lived and most impeccable poet of the 1922 Art Week. Thus, there is no space left for other memories or recollections.

2.

Rubens Ricupero, in turn, was certainly one of the greatest and most faithful followers of the Baron's precepts. A devotee of the diplomacy of knowledge, he took diplomatic alchemy to the highest levels of excellence, renewal and transmission. Becoming a consummate diplomat. Ambassador and minister of state. High-ranking official. In the style of the people of Rua Larga. In the style of the Baron. Mobilizing intelligence, dedication and imagination in the scrutiny of gestures and looks.

By dedicating himself to the arts and letters to achieve perfection in his craft. By becoming truly cultured and erudite. By going far beyond just writing, speaking and acting. By becoming a historian. Then, an interpreter of Brazil. And, finally, a builder of Brazil.

It is not known for sure when such a person is born. Diplomat, professor, historian, interpreter and builder of Brazil, polymath, man of letters, writer. Just as it is not known who comes first: Rubens, Ricupero or Rubens Ricupero.

In any case, there seem to be at least two points of no return in his life. One in 1937, when he was born. Another in 1958, when he entered the Rio Branco Institute.

Starting with the second. It fell on a Saturday, September 6, 1958, the beginning of the Institute's admission tests. Brazil was flowing in glory. The Brazilians, in rejoicing. Feola's team set the tone. Pelé, Garrincha, Didi, Nilton Santos had done what they had done that July: 5-2 against the Swedish hosts at Råsunda. Making the country wear football boots. Calming its demons. Mitigating its complexes. Training its mourning. Letting people know that, yes: the martyrdom of 1954, of the farewell to Getúlio Vargas, was still being felt.

But, on the contrary, the misfortune of the Maracanazo Uruguayan lay in the past. Far and distant. Remote. Irretrievable. Without meaning or reason. “The World Cup is ours/With a Brazilian, no one can do it”. This is the motto of the song. Sung, continuously, at the top of the lungs. Whistled. Mentalized and experienced as catharsis and outlet. Releasing the contained scream imposed by misfortunes that now no longer exist. “Hey, eh, golden squadron/They’re good at samba, they’re good at leather.”

Brasilia was made. Belém-Brasília. Cinema Novo. Bossa Nova. João Gilberto (1931-2019). Chega de saudade. Augusto Boal (1931-2009), Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), Experimental Theater. Abstract vision at the Biennial. Zoo in São Paulo. Archdiocese in Aparecida. Furnas in Minas Gerais. Pan-American Operation in Washington. Sudene in the Northeast. More Ford and more Volkswagen in Brazil. Roads and more roads. Modernization, industrialization, internationalization. Goals Plan in action. JK years. Enthusiasm. Inspiration. Joy. New bossa nova. All in one day. A kind of synthesis, meta-synthesis. That would guide Rubens Ricupero's entire trajectory.

3.

Starting with his approval, in first place, in those exams at the Rio Branco Institute in 1958, advancing to his debut as a diplomat in the brand new Brasília in 1961 and spreading over more than sixty years of attentive observation and confident participation in the national and international fabric of the epics of politics, culture and power in Brazil and the world.

He was an eyewitness to the resignation of President Jânio Quadros in 1961. He witnessed the bitterness of the moment with the leaders Afonso Arinos (1905-1990) and San Tiago Dantas (1911-1964). He perfected his diplomatic accuracy with João Augusto de Araújo Castro (1919-1975), Mario Gibson Barboza (1918-2007) and Ramiro Saraiva Guerreiro (1918-2011).

He began his longest posting abroad at the Brazilian embassy in Vienna in 1963. He was then moved to Buenos Aires from 1966 to 1969. Then to Quito from 1969 to 1971. He returned to Brazil and Brasília from 1971 to 1974. He then moved to Washington from 1974 to 1977. He then returned to Brasília again from 1977 to 1987, to head the prestigious South American Division II of the Itamaraty until 1984.

To then become diplomatic advisor to President Tancredo de Almeida Neves (1910-1985) and inaugurate – on the victors’ ship – the New Republic in 1985. Organize and participate in the momentum international presidential term from January to February 1985. He was a special advisor to President José Sarney. He went to Geneva in 1987 as Brazilian ambassador. He was moved to the United States, also as Brazilian ambassador in Washington, in 1991.

Return to Brazil in 1993 to inaugurate the Ministry of the Environment and the Legal Amazon. Become Minister of Finance, guardian of the currency and apostle of the Real Plan in 1994. Return to be Brazil's ambassador abroad, this time in Rome, in 1995. Become a high-ranking official at the United Nations, as director of UNCTAD – United Nations Conference on Trade and Development, starting in 1995. Remain in this position, based in Geneva and traveling around the world, for almost ten years until retiring in 2004. Return to Brazil in 2004-2005.

To be professionally reborn as director of the School of Economics and International Relations at FAAP – Fundação Armando Álvares Penteado. To be reincarnated in Paulicéia, his native São Paulo. To see friends again. To reconnect with them. To renew experiences. To observe the slow, gradual, sure and catastrophic regression of the Brazilian political, economic and social reality from the Mensalão to the Petrolão. To witness the unequivocal frustration of the Dilma Rousseff presidency since the storms of June 2013. To note the agony of impeachment of 2016.

Participate in the offensive against the greater evil in 2018. Assist in the reconstruction of the lesser evil from 2022 onwards. Compose your primary work: Logbook. Tancredo's presidential trip (2010). Finishing his masterpiece: Diplomacy in the construction of Brazil (2017). Bequeathing his seminal writing: Memoirs (2024). And continue tirelessly offering your analyses, impressions and joy of living – summary of the JK years – to public opinion, to intelligentsia of the country and its numerous students from the Rio Branco Institute, the University of Brasília, the University of São Paulo and the like.

Incredible. Engaging. Moving. Which brings to mind an impression of the late ambassador Marcos Azambuja (1935-2025) who used to say that Rubens Ricupero – person, diplomat and artist – was one of the most extraordinary human beings he had ever met.

For some, this perception borders on exaggeration. Justified only as a sign of friendship. However, this distinguished Machado de Assis award has definitively disproved the skeptics and accentuated the value. The once mere heir of the baron has now also become a wizard heir. Only him. No one else.

Long live, dear Rubens Ricupero.[1]

*Daniel Afonso da Silva Professor of History at the Federal University of Grande Dourados. author of Far beyond Blue Eyes and other writings on contemporary international relations (APGIQ).

Nota


[1] I thank Ambassador Paulo Roberto de Almeida for his careful and generous reading of the first version of this text.

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Fronteiras transformadas - Eduardo Felipe Matias (Revista Exame)

 

Fronteiras transformadas

Revista Exame, 22 Agosto 2025/ Notícias & Artigos/

Eduardo Felipe Matias

https://www.eliasmatias.com/publicacao/fronteiras-transformadas/1057

 

Meu livro A humanidade e suas fronteiras, de 2005, começava com uma parábola futebolística. Um jogo que se desenrolava de forma inesperada, em que treinadores eram forçados a mexer no time por pressões externas incomuns, vindas até de fora do estádio, e regras deixavam de ser respeitadas em partes do campo invisíveis ao árbitro, cuja autoridade também era confrontada por atores diversos à beira do gramado – em uma época em que não havia VAR.

Naquele momento, o mundo passava por transformações que o afastavam da ordem internacional até então vigente. Assim como os técnicos e o juiz daquela estranha partida, Estados soberanos perdiam autonomia e viam sua capacidade de ação reduzida por dois fatores: a globalização econômica – com o fortalecimento das empresas transnacionais e a integração dos mercados financeiros – e a revolução tecnológica, marcada pela consolidação do então chamado “ciberespaço”.

A crescente interdependência vinha acompanhada por uma globalização jurídica, com organizações de cooperação internacional e blocos de integração regional afetando a soberania estatal. Dimensões transnacionais e supranacionais eram incorporadas por meio de novos ordenamentos e instituições que expandiam suas fronteiras, enquanto as fronteiras estatais se tornavam mais permeáveis. Um novo paradigma despontava no horizonte: o da sociedade global.

De lá para cá, muita coisa mudou. Se o avanço da globalização e do multilateralismo sinalizava uma soberania compartilhada, vinte anos depois o cenário se inverteu. Choques sucessivos reergueram barreiras e devolveram aos Estados um papel central.

A crise de 2008 foi o primeiro sinal dessa inflexão. O colapso dos mercados financeiros revelou como turbulências podiam se propagar rapidamente por sistemas interconectados. O comércio internacional recuou 12% em 2009. O G-20 ocupou o centro do palco e garantiu estímulos equivalentes a 1,8% do PIB global, mostrando que, quando a situação apertava, eram os cofres nacionais que pagavam a conta.

Depois, a pandemia de covid-19 expôs a vulnerabilidade das cadeias globais de valor. O PIB mundial caiu 3,5% em 2020. Máscaras cirúrgicas tornaram-se moeda diplomática e cargas de equipamentos médicos foram desviadas em aeroportos. O modelo just-in-time perdeu espaço, sendo substituído por estratégias de redundância, com conceitos como reshoring e friend-shoring orientando políticas industriais e comerciais. O custo aumentou, mas a prioridade passou a ser reduzir riscos e reforçar a resiliência.

A invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022, foi mais um golpe. Sanções coordenadas – como a exclusão de bancos russos do sistema SWIFT e limites ao preço do petróleo – mostraram que a interdependência pode ser usada como arma. O corte no fornecimento de gás à Europa evidenciou a facilidade com que laços econômicos se transformam em instrumentos de pressão geopolítica.

Nesse ambiente, organizações internacionais se enfraqueceram, e o multilateralismo recuou. A eleição de Donald Trump em 2016 desencadeou um populismo protecionista, caracterizado por barreiras alfandegárias e migratórias e pela revisão de acordos. Em seu segundo mandato, essas medidas têm se intensificado, com elevações tarifárias desordenadas que desorganizaram o comércio internacional, frearam investimentos, reacenderam a inflação e levaram a OCDE a prever o menor crescimento global desde a pandemia. A OMC, que poderia ajudar a reverter esse quadro, segue com seu órgão de apelação paralisado desde 2019.

Na integração regional, os resultados são variados. O NAFTA foi substituído pelo USMCA em 2020, mas as tarifas impostas pelos EUA ao México e Canadá causam instabilidade. O Brexit mostrou em 2016 que nem a União Europeia está imune a abalos. Antes disso, a crise da zona do euro entre 2010 e 2012 – com resgates de € 750 bilhões a Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha – havia revelado a fragilidade de uma união monetária sem união fiscal. Poucos blocos surgiram, destacando-se o Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífico (CPTPP) – assim rebatizado em 2018 após a saída dos EUA do pacto original – e a Área Continental Africana de Livre-Comércio (AfCFTA), em operação desde 2021. O Mercosul pouco progrediu.

A sustentabilidade ganhou destaque, e o Acordo de Paris, de 2015, tornou-se um marco no combate às mudanças climáticas, ao alinhar 195 países ao objetivo de limitar o aquecimento global a 1,5°C. Ainda assim, permanecemos distantes de metas compatíveis com essa ambição – contexto agravado pela segunda retirada dos EUA do acordo, anunciada no começo do ano.

Outro vetor central foi a ascensão da China, cujo PIB nominal saltou de US$ 2,3 trilhões em 2005 para mais de US$ 19 trilhões em 2025, a posicionando como segunda economia mundial. A iniciativa Cinturão e Rota, com mais de US$ 1 trilhão destinados a projetos de infraestrutura, amplia a presença chinesa em diversas regiões do planeta.

As previsões do livro sobre o aumento do protagonismo das empresas transnacionais e o impacto da internet se confirmaram, com as gigantes da tecnologia agora no topo do mercado. A economia migrou dos ativos tangíveis para os intangíveis, que em 2020 já representavam 90% do valor do S&P 500. O lançamento do iPhone, em 2007, popularizou os computadores de bolso. Com 5G, computação em nuvem e big data, emergiram plataformas digitais que intermedeiam informação, consumo e trabalho em escala global. Desde 2022, a IA generativa foi incorporada à vida das pessoas e vem reformulando modelos de negócios em ritmo acelerado.

As disputas geopolíticas passaram a envolver dados e algoritmos. Leis de residência de dados e a corrida por datacenters revelam as novas fronteiras da soberania digital. A concentração de poder nas big techs gerou respostas dos Estados. A União Europeia aprovou legislações como o Digital Markets Act e o AI Act, impondo regras de transparência algorítmica e gestão de riscos. Nos EUA, o Departamento de Justiça obteve vitórias em ações antitruste. Governos também reagem à expansão dos criptoativos – que pressionam a lógica da soberania monetária – por meio do desenvolvimento de moedas digitais próprias, testadas em mais de 130 jurisdições.

As fronteiras da humanidade continuam em transformação. O Estado procura mostrar que ainda é o dono da bola, e ameaça colocá-la debaixo do braço e acabar com o jogo se os outros não se comportarem. É a soberania nacional, que persiste e resiste. A interdependência, no entanto, segue incontornável. Nos últimos vinte anos, sua importância foi renovada pela necessidade de enfrentar questões como as mudanças climáticas e a inteligência artificial – que, por seu caráter transfronteiriço, exigem mais governança global, não menos. Daqui a duas décadas – ou quem sabe antes disso – saberemos se estivemos à altura desses desafios.

 

Eduardo Felipe Matias é autor dos livros A humanidade e suas fronteiras e A humanidade contra as cordas, ganhadores do Prêmio Jabuti. Doutor em Direito Internacional pela USP, foi visiting scholar nas universidades de Columbia, em NY, e Berkeley e Stanford, na California, e é sócio de Elias, Matias Advogados

 

Artigo originalmente publicado na edição de agosto de 2025 da revista Exame.

Acesse a imagem do artigo original aqui: PDF

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