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sábado, 10 de abril de 2021

Objetivos estratégicos e prioridades táticas do Brasil (2019) - Paulo Roberto de Almeida

Achei um dos trabalhos que fala de reformas no Brasil, não é exatamente o que eu estava buscando, mas pode servir como "estepe". Eu ainda tinha a esperança de que reformas poderiam ser feitas, e algumas de fato foram ou estão sendo feitas, mas na área política interna e na externa, o quadro é pavoroso.

Paulo Roberto de Almeida

Objetivos estratégicos e prioridades táticas do Brasil

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 9 de fevereiro de 2019

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

[Objetivo: estabelecer metas e meios; finalidade: propostas de trabalho]

 

 

1. Características gerais da presente fase de transição no Brasil

O Brasil atravessa atualmente uma fase de transição política e um processo de ajuste econômico, absolutamente necessário depois da mais grave recessão de toda a sua história. Aquilo que pode ser denominado como a “Grande Destruição” lulopetista da economia teve tal dimensão – em termos de perda de crescimento, de desemprego, de desestruturação de amplos setores das atividades produtivas, a começar pelos setores orçamentário e fiscal, nos três planos da federação – que as correções a serem necessariamente introduzidas vão ocupar o executivo e o legislativo por longos meses, provavelmente anos, prevendo-se que as deformações mais graves possam apenas ser parcialmente corrigidas ao longo do mandato governamental de 2019-2022. Cabe então colocar as bases de um futuro processo de crescimento sustentado, com transformações estruturais e distribuição social de seus benefícios, ou seja, a essência do que se chama desenvolvimento inclusivo. Este é o objetivo principal deste ensaio sintético. 

O processo de transição política teve início em maio de 2016, quando se pôs termo um ciclo de três mandatos e meio de um regime politicamente populista e economicamente caótico, o lulopetismo. Após a fase intermediária de dois anos e meio liderada pelo vice-presidente da antiga coalizão governista (mas amputada das forças de esquerda), que presidiu às eleições presidenciais de outubro de 2018, essa transição política deve continuar ao longo de todo o governo que teve início em janeiro de 2019, a partir do novo mandato presidencial de quatro anos, com o titular definido no segundo turno das eleições de outubro de 2018. Essa conformação política não está isenta de crises adaptativas e de turbulências nos planos do Executivo e do Legislativo, uma vez que se trata de nova coalizão de forças, declaradamente de direita, mas integrando outros componentes em três importantes polos de poder: o econômico (agora liberal), o da justiça (egressa em grande medida dos quadros da Operação Lava Jato) e, sobretudo, o militar, com características próprias em relação a experiências precedentes de atuação de militares no sistema político. Este último componente é o mais próximo que se possa pensar de uma atuação corporativa (não estruturada e não formalizada) das FFAA, no seguimento de exemplos históricos precedentes de intervenção militar na política.

O segundo processo, o de ajuste econômico, deve continuar a ser feito ao longo de todo o presente mandato dos dois poderes definidores das políticas públicas (macro e setoriais), o Executivo e o Legislativo, pois comporta um conjunto completo, complexo e difícil, de reformas estruturais e de medidas setoriais, indispensáveis para a retomada de um novo ciclo de crescimento sustentado, num ambiente econômico supostamente mais favorável a uma maior inserção internacional do Brasil. Um dos meios a essa integração do Brasil a padrões mais elevados de qualidade em suas políticas econômicas é o de sua plena adesão plena à OCDE, que no entanto deve ser considerada apenas um meio, não um fim em si mesmo, para tal objetivo. O ajuste econômico é absolutamente essencial para que o Brasil possa conduzir o conjunto de outras reformas nos planos institucional e de integração internacional, sem o qual a base fiscal de sustentação do governo poderia entrar em colapso.

O diagnóstico da situação é, resumidamente, o seguinte: o Brasil está em meio a um processo de recuperação da mais grave recessão de toda a sua história econômica, causada pela inépcia colossal, e a corrupção gigantesca da organização criminosa que assaltou o país em 2003, que provocou uma extrema deterioração de todas as instâncias de governança, cujo partido hegemônico foi alijado do poder em 2016. A organização criminosa não teria chegado aos extremos da destruição a que se chegou se não contasse com a complacência e a conivência de uma classe corrupta de políticos aproveitadores, que se beneficiou e que também ampliou o sistema de roubo oficial instaurado na cúpula do poder pela clique de meliantes políticos e de sindicalistas corruptos.

Os desafios nesse terreno são extremamente relevantes, uma vez que o déficit orçamentário precisa ser sanado, para que se possa reorganizar essa base fiscal, que se constitui no mais relevante problema de curto prazo do país. Secundariamente, o país também tem um problema de médio prazo, que é dos investimentos (em infraestrutura e demais serviços coletivos a cargo do Estado), e que pode ser sanado com novos regimes de concessão, de privatização e de abertura aos capitais estrangeiros. Finalmente, há o enorme problema da produtividade medíocre da economia brasileira, que é de longo prazo, mas que deve ser enfrentado desde já, para permitir a retomada do crescimento em bases sustentadas, com a devida transformação tecnológica da base econômica.

Especificamente no terreno político, o Brasil precisa passar por reformas institucionais dados os problemas acumulados em sua legislação eleitoral e partidária, assim como para atender às demandas da sociedade por maior transparência e maior responsabilização – accountability – no trabalho do Estado e em relação à atuação e comportamento dos agentes públicos, não apenas os executivos e representantes parlamentares, mas também em instâncias do Judiciário. Continuam, de toda forma, as pressões para a própria reforma do Estado e do sistema previdenciário, o principal responsável pelo desequilíbrio estrutural das contas públicas, depois de anos e anos do peso maior representado pelo serviço da dívida, ou seja, os juros e encargos associados.

As mudanças estruturais podem, e devem alcançar, da mesma forma, a interface externa do Brasil, tanto em sua política externa, quanto em sua diplomacia. A política externa não é o foco central do processo de ajuste, constituindo apenas um elemento acessório nas medidas de ajuste, mas ela pode ser um coadjuvante importante, sobretudo no que se refere aos processos de abertura econômica e de liberalização comercial, que contribuem para a competitividade e ganhos de produtividade do Brasil.

Esse conjunto de medidas e de novas políticas requer uma visão clara quanto aos objetivos estratégicos do Brasil, para uma definição dos obstáculos (sobretudo internos) à consecução desses objetivos, das formas pelas quais eles serão superados, assim como no tocante às prioridades (urgências, medidas de curto e médio prazo) que precisarão ser implementadas no curso dos governos seguintes ao do mandato corrente (pois se estima que a meta principal seja, na verdade, um processo contínuo de reformas, não apenas objetivos táticos de curto prazo, que precisam ser implementados até 2022).

Este documento pretende abordar, ainda que de forma perfunctória, cada um desses problemas segundo propostas de ordem geral, para o início de uma discussão a ser levada a efeito desde já. Relaciono, a seguir, os componentes desse processo, que requerem desenvolvimentos mais amplos, a serem oferecidos em textos suplementares.

 

2. Objetivos estratégicos do Brasil: uma visão sintética das tarefas à frente

Apresento as grandes linhas de um plano de governo deliberadamente limitado a um conjunto estritamente definido de objetivos em três campos – desenvolvimento, segurança e integração externa – que compreendem tanto políticas macroeconômicas quanto as setoriais. 

1) Desenvolvimento social como prioridade máxima

Cinco linhas de ação:

1.1. Estabilidade macroeconômica (políticas macro e setoriais);

1.2. Competição microeconômica (fim da cartelização);

1.3. Boa governança (reforma das instituições nos três poderes);

1.4. Alta qualidade do capital humano (revolução educacional);

1.5. Abertura ampla a comércio e investimentos internacionais.

 

2) Segurança pública

Preocupação prioritária da cidadania, como das empresas privadas:

2.1. Integração dos serviços de segurança nos três níveis da federação;

2.2. Reforma dos códigos processuais e do sistema penitenciário;

2.3. Reequipamento das forças de segurança; treinamento.

 

3) Política externa e integração internacional

Revisão dos conceitos básicos da política externa, no sentido da abertura:

3.1. Abertura comercial unilateral, concomitante à reforma tributária;

3.2. Revisão do processo de integração com perspectiva de inserção externa;

3.3. Análise das “alianças estratégicas” em sentido puramente pragmático.

 

Pode-se agora oferecer breves considerações sobre cada uma dessas tarefas. 

 

3. As grandes linhas de um processo de reformas estruturais no Brasil

Sem intenção de debater exaustivamente o conteúdo, os métodos e as diversas etapas desse amplo e complexo processo de reformas, apresento a seguir minhas breves considerações sobre cada um dos “capítulos” do empreendimento.

 

3.1. Desenvolvimento social como prioridade máxima

O objetivo é o de alcançar um processo sustentado de crescimento do PIB, com transformações estruturais do sistema produtivo (aumento da produtividade e inovação), com efeitos sociais positivos vinculados a esse processo, notadamente via qualificação do capital humano. 

Esse processo passa por:

3.1.1. Estabilidade macroeconômica (políticas macro e setoriais)

A estabilidade macroeconômica deve ser preservada com equilíbrio das contas públicas, inflação baixa, flutuação cambial, juros de mercado, reforma tributária, com o objetivo de reduzir a carga fiscal total, mesmo progressivamente. Quaisquer que sejam as políticas macro – fiscal, monetária e cambial – e as setoriais – agrícola, industrial, tecnológica, etc. – a serem implementadas pelo governo, o que cabe ser feito, em caráter emergencial e prioritário, é um combate duríssimo à corrupção associada ao peso descomunal do Estado na economia. No plano fiscal e orçamentário, a sociedade e o sistema produtivo não aceitam mais elevação de impostos e da carga fiscal em geral, o que recomenda uma redução radical dos gastos do Estado e também do seu tamanho e peso na economia; a médio e longo prazo deve-se caminhar para uma diminuição sensível da carga tributária total. Isso passa, entre outros, pela eliminação de empresas e agências públicas inúteis e ineficientes, bem como pela extinção da extração de recursos para fins não produtivos (como, por exemplo, as contribuições sindicais, tanto as entidades patronais, como as de trabalhadores).

 

3.1.2. Competição microeconômica (fim da cartelização)

O Brasil é um país notoriamente dominado por monopólios e carteis setoriais. Cabe definir novas modalidades de prestação de serviços coletivos relevantes, como saneamento básico, educação, saúde, que possam ser oferecidos mais pela via dos mercados do que pela intermediação de entidades públicas, sempre sujeitas a desvios e ineficiências, ademais de se prestarem à criação e preservação de feudos políticos que alimentam o rentismo de elites predatórias e parasitárias. Deve-se implementar a concorrência plena no plano microeconômico, com a eliminação de carteis e monopólios, a privatização das empresas públicas, a abertura dos setores financeiro e de comunicações, a eliminação de controles intrusivos e das limitações às liberdades econômicas, com diminuição da burocracia em todos os níveis. 

Não é preciso constituir grandes comissões de estudo para empreender a tarefa, pois tudo está identificado, mapeado, diagnosticado. Basta aplicar sistematicamente o roteiro traçado nos relatórios anuais do Banco Mundial, “Fazendo Negócios”, para se ter o roteiro das reformas a serem empreendidas em todos os níveis.

 

3.1.3. Boa governança (reforma das instituições nos três poderes)

Uma governança de qualidade, nas diferentes instâncias do Estado, deve começar por importantes reformas no Judiciário (revisão dos códigos processuais; eliminação completa da Justiça do Trabalho, com atribuição de suas competências a varas especializadas e o recurso amplo à soluções arbitrais, com o objetivo mais geral de diminuir o peso do Estado). Uma reforma administrativa geral no Estado brasileiro é tarefa complexa demais para ser descrita neste momento, mas constitui igualmente tarefa básica no sentido da diminuição geral do peso do Estado na vida social.

O Legislativo é fonte notória de distorções, não apenas orçamentárias – pois custa muito mais caro do que congêneres em outros países – mas também em sua administração e funcionamento, com um inchaço inaceitável em todos os níveis em que ele existe na federação. O debate sobre a redução dos legislativos, a diminuição de seus custos, a redução da dispersão e fragmentação partidária e a correção das deformações eleitorais e de representação proporcional, deve começar de imediato, com vistas a um sistema distrital adequado às peculiaridades geográficas e demográficas do país. 

 

3.1.4. Alta qualidade do capital humano (revolução educacional)

Não se trata apenas de reformas nos currículos de ensino, nos dois primeiros níveis, mas de empreender uma verdadeira revolução educacional, a partir do básico e do ensino técnico-profissional, centrada sobre a formação de professores (e talvez a criação de novas carreiras não comprometidas com a isonomia mediocrizante). No terceiro ciclo, deve-se conceder completa autonomia às instituições de ensino superior, tanto públicas quanto privadas, mas com a reforma dos regimes de contratação no caso das primeiras, e atribuição de dotações oficiais limitadas, deixando-se o restante à área de captação livre de recursos junto aos mercados. Os dirigentes dessas instituições devem ser administradores desvinculados das tarefas didáticas habituais (entregues a decanos de suas áreas), aptos a gerir essas instituições de modo empresarial. 

 

3.1.5. Abertura ampla a comércio e investimentos internacionais

Uma política econômica externa compatível com as necessidades do país deve ser caracterizada por abertura econômica ampla e liberalização comercial (unilateral, se for o caso), com adesão a padrões mais elevados no plano regulatório e mais liberal no setor das compras governamentais, com supressão de reservas de mercados, regras de conteúdo local ou preferências de compras nacionais com preço adicional autorizado.

 

3.2. Segurança pública

Trata-se da preocupação prioritária, primordial da cidadania, bem como das empresas privadas, que enfrentam enormes custos de transação, em função dos riscos associados à delinquência crescente, ao aumento geral da criminalidade no país. Cabe, portanto, uma prioridade efetiva à segurança pública, que afeta seriamente o patrimônio e a vida dos mais pobres, a renda da classe média e os lucros dos empresários, o que tem motivado muitos profissionais de qualidade a deixar o país, fechando empresas e elevando o desemprego. Essa área se desdobra em três vetores principais.

3.2.1. Integração dos serviços de segurança nos três níveis da federação

A recomendação é tão óbvia que não exige elaboração explicativa, cabendo apenas lamentar que não tenha ocorrido plenamente até o momento presente.

 

3.2.2. Reforma dos códigos processuais e do sistema penitenciário

A tarefa está contemplada nos planos setoriais do presente governo (2019).

 

3.2.3. Reequipamento das forças de segurança; treinamento

Requer um plano integrado de capacitação dos recursos humanos nessa área, com a adoção de padrões tecnológicos mais sofisticados na segurança pública, bem como um monitoramento constante dos progressos no setor. 

 

3.3. Política externa e integração internacional

Consoante a nova visão de plena inserção do Brasil na globalização, cabe empreender uma revisão dos conceitos básicos da política externa, no sentido da abertura econômica e da interdependência global. A soberania sequer necessita ser objeto de retórica, pois ela se exerce, simplesmente. A diplomacia do Brasil sempre foi universalista, focada no interesse nacional e no direito internacional. O multilateralismo é uma de suas bases inquestionáveis, assim como a ausência de quaisquer limitações de ordem ideológica ou partidária na definição dos grandes objetivos na frente externa. Sem adentrar nas grandes definições conceituais da agenda internacional do Brasil, cabe na presente conjuntura convertê-la em importante coadjuvante do processo de reformas econômicas e comerciais, o que implica novas determinações em três frentes.

 

3.3.1. Abertura comercial unilateral, concomitante à reforma tributária

Não existe espaço, no horizonte previsível, para grandes negociações no plano multilateral, sugerindo-se eventuais acordos bilaterais, que passam necessariamente por um novo perfil da política comercial do Brasil, com ou sem revisão do Mercosul. A exposição do setor produtivo à concorrência internacional – benéfica em si, para os próprios produtores e consumidores – requer a redução da carga tributária no plano interno, e uma reforma não pode ser feita sem a outra, sob risco de desmantelar ainda mais as empresas do setor manufatureiro. Sugere-se considerar uma reforma tarifária baseada no conceito de tarifa única, ou reduzida a apenas duas alíquotas, com vistas a reduzir o volume de barganhas setoriais entre os diferentes ramos da indústria.

 

3.3.2. Revisão do processo de integração com perspectiva de inserção externa

O Mercosul – ademais de eventuais arranjos que possam ser feitos em paralelo ao seu processo de revisão – não é culpado pelo fechamento comercial do Brasil, ou por suas disfunções acumuladas ao longo dos anos, exclusivamente por distorções criadas no período do lulopetismo e por descumprimentos das obrigações institucionais por parte de seus dois maiores países membros. Se e quando esses dois países resolverem cumprir os requerimentos estabelecidos no tratado original, ele voltará a ser uma base para a integração mundial das economias dos países membros. Caberia, portanto, efetuar um exame profundo das opções estratégicas do Brasil em matéria de política comercial, para decidir, a partir daí, se cabe reformar o Mercosul, ou caminhar no sentido da independência total nesse terreno. Uma agenda aberta, portanto. 

 

3.3.3. Análise das “alianças estratégicas” em sentido puramente pragmático

A política externa do lulopetismo conduziu o Brasil a uma série de coalizões político-diplomáticas definidas a partir de uma visão partidária deformada das relações internacionais do país, uma vez que baseada na miopia de um “Sul Global” que não existe, a não ser nas concepções ideológicas de seus promotores. O tema também implica uma revisão profunda das grandes escolhas estratégicas do Brasil na arena mundial, e requer uma exposição específica que não cabe nos limites deste texto. 

O autor já ofereceu amplos comentários a esse respeito em dois livros dedicados a essa área: Nunca Antes na Diplomacia...: a política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014), e Contra a Corrente: ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil, 2014-2018 (Curitiba: Appris, 2019). 

 

Este texto é necessariamente sintético, para não prejudicar uma leitura rápida nos diferentes níveis de debate em torno dos objetivos estratégicos (ajuste econômico, reformas políticas e setoriais, melhoria na segurança pública e maior integração à economia mundial) e das prioridades táticas associadas a cada uma dessas áreas abrangentes de políticas públicas: a sustentabilidade fiscal das políticas macro e setoriais, a correção dos enormes desafios em matéria de segurança e uma revisão importante no modo de inserção internacional do Brasil. Um debate responsável e bem informado nessas três áreas requer uma visão clara das prioridades governamentais ao longo dos próximos anos, e uma coordenação rigorosa das ações em nível decisório. 

 

 

Paulo Roberto de Almeida

(pralmeida@me.com)

Brasília, 9 de fevereiro de 2019

 

Balanço e trajetória futura das relações internacionais do Brasil (2018) - Paulo Roberto de Almeida

 Mais um daqueles textos de "reforma", já que eu não consigo achar o que eu quero. Mas este, feito no começo de 2018, era de uma tentativa de planejamento para uma "boa" política externa para o governo que iria começar em 2019. Deu tudo errado...

Paulo Roberto de Almeida

Balanço e trajetória futura das relações internacionais do Brasil

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 20 de abril de 2018

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

 [Objetivo: análise da situação, temas da agenda; finalidade: planejamento]

 

 

Introdução

O conceito de relações internacionais, no presente ensaio, compreende tanto uma breve análise do quadro global, do contexto regional, e das diferentes vertentes do enquadramento do Brasil nesses ambientes, quanto uma avaliação sumária de sua política externa no período recente e da atuação de sua diplomacia, complementando esta síntese por um enunciado resumido das diferentes frentes de trabalho abertas ao país, a cargo dos responsáveis políticos e dos profissionais das relações exteriores.

 

1. O quadro global

A ordem mundial caracterizada pela existência da ONU e de grandes potências autônomas, capazes de influenciar a agenda multilateral, se desenvolve entre as regras do direito internacional e a ação política dos atores mais influentes, com coalizões diversas atuando em diferentes frentes de trabalho, tais como: paz e segurança, comércio mundial e finanças internacionais, blocos regionais e esquemas de integração, desequilíbrios estruturais e permanência de situações de instabilidade política, insuficiência de desenvolvimento e de níveis adequados de prosperidade em largas porções do planeta, desafios comuns advindos de sustentabilidade não garantida, criminalidade e violência em diferentes ambientes interestatais, fragilidades dos regimes democráticos, não observância dos direitos humanos ou sua violação sistemática, etc.

O Brasil se situa nesse quadro como uma potência média, dotada de recursos e fatores produtivos relativamente amplos, mas fragilizado nos últimos anos pela mais grave crise econômica de sua história, provocado inteiramente no âmbito interno, por erros graves de política econômica e extenso quadro de corrupção no próprio seio do poder central, o que diminuiu o ímpeto de sua ação diplomática, sempre muito ativa nas diferentes frentes de trabalho abertas aos profissionais de seu serviço exterior. A recuperação vem se fazendo de forma lenta, porém segura, o que deve garantir, no próximo mandato presidencial, a retomada de dinamismo habitual.

Sua diplomacia sempre se guiou por valores e princípios solidificados ao longo da história, na defesa da igualdade soberana das nações, mas reconhecendo de forma realista as diferenças de poder e de influência nos diferentes processos decisórios nos diversos órgãos da interdependência global contemporânea. Sempre partidário do diálogo e da busca de consenso por meios pacíficos, sua capacidade de projeção em cenários de exercício de poder é relativamente limitada em razão de carência de recursos apropriados para suas Forças Armadas, estritamente limitadas ao desempenho de suas funções constitucionais e alinhadas com sua diplomacia no plano externo. 

A pequena limitação do “domínio de competência exclusiva” nos assuntos internos de cada Estado membro da ONU representada pelo conceito de “responsabilidade de proteger” suscitou a proposta feita pela diplomacia brasileira de “responsabilidade ao proteger”, mas ambiguidades na aplicação dos dois conceitos devem persistir no futuro previsível. Não é seguro que a aparente multipolaridade atual, com o declínio relativo de velhos poderes imperiais e a ascensão de novas potências emergentes, favoreça um ambiente favorável a um multilateralismo ordenado; pode criar novas fontes de tensão, resultantes dessas alterações nas capacidades decisórias. 

Do ponto de vista de sua segurança, não parecem existir ameaças reais ou potenciais que exijam postura ativa de sua defesa, e menos ainda um ambiente regional que requeira uma atitude ofensiva, mas a persistência de tensões localizadas e de conflitos efetivos em diferentes cenários confirma a necessidade de preparação adequada de suas FFAA, sobretudo no quadro de operações multilaterais legalmente autorizadas no quadro do direito internacional e do órgão de segurança da ONU. A proliferação de atores não estatais dotados de certa capacidade destrutiva implica, todavia, inovações doutrinais e adaptação nas ferramentas necessárias a esses novos desafios, sobretudo no campo da criminalidade transnacional. 

O ambiente econômico internacional se apresenta como quase completamente liberado dos modelos alternativos à economia de mercado, mas o recrudescimento de posturas nacionalistas e mercantilistas e de desequilíbrios derivados de contas fiscais deficitárias em grande número de países não poupa o mundo da possibilidade de novas crises financeiras. A demagogia política e o populismo econômico, inclusive por parte de economias dominantes, também podem contribuir para o arrefecimento da construção de uma ordem econômica internacional verdadeiramente interdependente. O Brasil, reconhecidamente, é um país dotado de instintos nacionalistas exacerbados, sendo notoriamente fechado a essa interdependência global, ficando bem mais próximo de uma postura protecionista e mercantilista do que de uma postura propensa à abertura econômica e à liberalização comercial. Sua baixíssima integração a cadeias de valor não augura progressos significativos nessa frente, que demandaria aumentos significativos de produtividade, exatamente dependente dessa maior abertura e da redução da proteção efetiva à produção doméstica, acoplada à melhoria dos padrões de inovação tecnológica.

 

2. O quadro regional

O ambiente geral é desprovido de maiores focos de tensão, embora persistam fricções localizadas em alguns cenários interestatais – Bolívia-Chile, Venezuela-Guiana – ou mesmo internos: guerrilhas residuais, erosão política e “exportação” populacional de crises (Venezuela). O continente sul-americano permanece marcado por amplo quadro de pobreza, a despeito dos progressos realizados, desigualdades persistentes e enormes bolsões de corrupção, quando esta não se encontra incrustrada no próprio seio do poder (como no caso brasileiro a partir de 2003). A América Latina, de modo geral, apenas acompanhou a evolução da economia global, sem grandes avanços estruturais, uma vez que permanece basicamente exportadora de commodities, a despeito do vigor (não isento de retrocessos) dos processos de industrialização. Ela perdeu espaços de forma consistente para a região da Ásia Pacifico nos grandes fluxos de comércio e de atração de investimentos, e não parece pronta a alterar significativamente seus padrões de inserção global, com a exceção de algumas economias adeptas de uma postura globalizante. A Aliança do Pacífico é notoriamente mais aberta que o Mercosul.

Os diferentes experimentos de integração serviram para abrir reciprocamente economias nacionais anteriormente introvertidas ou extrovertidas unicamente em direção dos mercados mais avançados, mas não conseguiram consolidar um espaço econômico verdadeiramente integrado ou dotado de um quadro regulatório uniforme e aberto a uma maior complementaridade entre setores. A cartografia desses vínculos é notoriamente inferior às cadeias de valor existentes em outras regiões, o que se explica essencialmente pela ausência de uniformização nos mecanismos de acesso a mercados e sobretudo pelas enormes diferenças de padrões regulatórios, mais até do que pela existência de barreiras físicas ou as dificuldades de comunicações. 

No plano político, a retórica continua suplantando largamente o pragmatismo necessário ao aprofundamento dos laços inter-regionais, inclusive no Brasil, que se tem revelado tímido em sua própria abertura aos vizinhos, como autorizaria sua economia mais avançada e sua produtividade relativamente mais robusta. Sua diplomacia, entre 2003 e 2016, foi errática ou excessivamente contaminada por influências partidárias claramente enviesadas no plano político e ideológico, o que claramente lhe retirou algumas alavancas para exercer certa preeminência consensual em iniciativas que poderiam ter impulsionado o processo de integração ou de convergência para ações e políticas mais conformes à globalização e à interdependência global. A “exportação” de corrupção, no mesmo período, também deixou uma marca negativa na projeção do Brasil, na região e fora dela. Uma completa normalização de sua ação externa parece depender da instalação de novo governo em 2019, assim como de claras orientações de política externa que caminhem no sentido da integração regional e da inserção global. 

Caberia, a propósito, uma revisão ponderada dos diferentes mecanismos de coordenação política criados na esfera regional durante aquele período, vários deles marcados ou contaminados pela mesma visão enviesada que caracterizou a diplomacia brasileira em outras esferas, bem como o reexame de algumas “parcerias estratégicas”, mais definidas em função dos mesmos critérios puramente políticos do que com base nos reais interesses nacionais. Por fim, os mecanismos de financiamento a projetos no exterior padeceram das mesmas deformações, o que criou uma exposição excessiva dos recursos nacionais a iniciativas dotadas de poucas garantias efetivas de repagamento, o que também pode ser explicado pelas simpatias políticas do regime anterior. 

 

3. Uma agenda de reformas e de modernização

O Brasil continuará padecendo, no futuro imediato, de uma enorme crise fiscal criada pelo regime anterior, que limitará de alguma forma tanto iniciativas localizadas ou multilaterais de projeção de seus interesses quanto seu engajamento decisivo nos processos de interdependência global (que requerem abertura econômica e liberalização comercial). As soluções são praticamente todas de âmbito interno, ainda que a sua diplomacia profissional possa contribuir para a definição e a implementação de toda uma série de reformas internas já suficientemente diagnosticadas e prescritas em vários relatórios de entidades multilaterais ou foros globais. Documentos como o “Fazendo Negócios” do Banco Mundial, os relatórios de competitividade do World Economic Forum, as evidências eloquentes de análises como as inseridas nos estudos “Economic Freedom of the World”, assim como avaliações tecnicamente embasadas de órgãos como a OCDE ou mesmo de instituições nacionais (Ipea, FGV, SAE-PR) representam um manancial completo de “terapêutica e cura” da maior parte dos males nacionais. 

A diplomacia econômica brasileira pode e deve contribuir no e ao necessário processo de modernização econômica do país, trazendo evidências quanto à eficácia de uma série de reformas já efetuadas em outros contextos, mas dotadas do mesmo sentido de abertura resoluta à interdependência global. O fortalecimento da economia nacional, assim como a correção das deformações mais evidentes em seu ambiente regulatório – sobretudo na esfera tributária, no excesso de burocracia, no nacionalismo exacerbado – devem poder assegurar ao Brasil um retorno mais efetivo às iniciativas e à participação efetiva na agenda internacional de que é capaz sua diplomacia profissional. A nova postura necessita de meios adequados à projeção dos interesses brasileiros, não apenas na cooperação com países em desenvolvimento, mas basicamente na aceitação decidida de novos compromissos no plano da interdependência, o que de toda forma emergirá naturalmente a partir da aceitação não defensiva de padrões superiores de qualidade nas políticas macroeconômicas e setoriais, a partir do ingresso pleno do país na OCDE.

Essa interface econômica não representa todos os componentes já presentes na agenda multilateral – global e regional – e nos diferentes outros compromissos já inscritos na ordem do dia da diplomacia brasileira, derivados de suas parcerias já consolidadas ou a serem criadas a partir dessa nova postura engajada. Existem muitos outros itens no multilateralismo político – sobretudo paz e segurança internacionais –, nos foros econômicos, no plano bilateral ou de foros específicos que vão continuar a exigir recursos humanos e financeiros, ademais de uma visão clara das prioridades externas, todos eles amplamente cobertos pela diplomacia profissional. Mas esse lado de reformas econômicas e de modernização da agenda nacional representa a condição sine qua outros objetivos políticos e diplomáticos não poderão ser alcançados. A nova política externa do Brasil deveria dar clara prioridade aos capítulos mais importantes de sua diplomacia econômica. Esta é a direção dos próximos anos.

 

Paulo Roberto de Almeida

(pralmeida@me.com)

Brasília, 20 de abril de 2018

 

 

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Reflexões sobre a transição no Brasil: um partido das reformas (2017) - Paulo Roberto de Almeida

Ainda continuo buscando um trabalho meu sobre reformas no Brasil, que tenho certeza de ter produzido, mas ainda não encontrei. Mas tenho encontrado outros dos quais nem me lembrava mais. Depois da postagem anterior, que se situava no momento do impeachment anterior (teremos um novo), em 2016, o texto abaixo é de 2017.

Paulo Roberto de Almeida

Reflexões sobre a transição no Brasil: um partido das reformas

Paulo Roberto de Almeida
 [Continuidade do exercício de reflexão – iniciado pelo trabalho 3134, “Lições da história, de 1961 a 2017: da necessidade de reformas no Brasil” (30/06/2017; https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/07/nas-origens-da-crise-divisao-estrutural.html); tarefas políticas da presente conjuntura]


1. Introdução: liberdade, igualdade, civilidade
Em outubro de 1789, muito pouco tempo depois, portanto, da queda da Bastilha, Edmund Burke deu início às suas “Reflexões sobre a Revolução na França” (“e sobre as discussões em certas sociedades de Londres relativas a esse evento”) sob a forma de uma carta que tencionava despachar a um “jovem cavalheiro em Paris”, que havia solicitado sua opinião sobre aqueles acontecimentos que, “desde então e continuamente, capturaram a atenção de todos os homens”. A resposta foi mantida sob reserva devido a “prudential considerations”. Imediatamente depois Burke deu início a uma discussão ampla sobre o tema, que ele terminou na primavera seguinte, tendo o resultado sido publicado em Londres, por J. Dodsley, em Pall-Mall, em “M.DCC.XC”, isto é, 1790 (como leio no texto das “coleções online do século XVIII” da Universidade de Oxford).
Nessa carta, aludindo retoricamente a dois clubes de cavalheiros londrinos, a “Constitutional Society” e a “Revolution Society”, Burke faz uma distinção bastante nítida entre aquilo que se poderia designar por “partido constitucional” – que seria algo equivalente ao sistema político inglês depois da Revolução Gloriosa de um século antes – e um “partido da revolução”, que seria justamente representado pelo espírito da Assembleia Nacional nos quadros da Revolução francesa. Burke primeiro cumprimenta os franceses pelo “espírito da liberdade em ação”, mas ele imediatamente suspende os seus cumprimentos com base num raciocínio bastante sensato:
I must be tolerably sure, before I venture publicly to congratulate men upon a blessing, that they have really received one. Flattery corrupts both the receiver and the giver; and adulation is not of more service to the people than to kings. I should therefore suspend my congratulations on the new liberty of France, until I was informed how it had been combined with government; with public force; with the discipline and obedience of armies; with the collection of an effective and well-distributed revenue; with morality and religion; with the solidity of property; with peace and order; with civil and social manners. All these (in their way) are good things too; and, without them, liberty is not a benefit whilst it lasts, and is not likely to continue long. The effects of liberty to individuals is, that they may do what they please: We ought to see what it will please them to do, before we risque [sic] congratulations, which may be soon turned into complaints. Prudence would dictate this in the case of separate insulated private men; but liberty, when men act in bodies, is power. Considerate people before they declare themselves will observe the use which is made of power; and particularly of so trying a thing as new power, in new persons, of whose principles, tempers, and dispositions, they have little or no experience, and in situations where those who appear the most stirring in the scene may possibly not be the real movers. (Burke, 1790, p. 7-8 of the “Eighteenth Century Collections Online”, University of Oxford; original emphasis)

Burke, que reconhece, pouco adiante (p. 9), que “tomadas em conjunto todas as circunstâncias, a Revolução francesa é a mais impressionante [das crises] que aconteceram no mundo até aqui.” Mas ele sempre contrasta o exercício da liberdade com a garantia da legalidade do exercício do poder e do respeito aos “direitos do homem”, um conceito que já estava então bastante assentado no constitucionalismo inglês, desde a Magna Carta, e que estava sendo introduzido no direito e na política da França. E, como revelado pelo trecho acima transcrito de sua carta dirigida a um “jovem cavalheiro francês”, ele combinava o exercício da liberdade à existência de um governo legítimo, à segurança pública, à disciplina e obediência nos exércitos, à arrecadação e à boa distribuição das rendas auferidas pelo Estado, à moralidade e religião, à solidez da propriedade, à paz e ordem e, finalmente, às maneiras civis e sociais, ou seja, o bom comportamento dos indivíduos em sociedade.

À maneira de Burke, mas sem pretender absolutamente comparar-me a ele, vou também alinhar algumas reflexões sobre o atual momento de transição no Brasil, que alguns chamam de “golpe”, que eles pretendem transformar em revolução, mas que para outros consiste num processo de ajuste e de reformas, após uma deterioração sensível da situação econômica e das contas públicas, quase tão relevante quanto aquela ocorrida pouco antes da Revolução francesa. Pretendo permanecer no espírito da Sociedade Constitucional, mas levarei em conta a ação do “clube revolucionário”, suas ações, sua filosofia e seus propósitos divisionistas, tentando oferecer algumas luzes para a atuação dos homens de bem em meio ao caos e à fragmentação atual da política brasileira.
As notas a seguir podem ser lidas na sequência deste trabalho, “Lições da história, de 1961 a 2017: da necessidade de reformas no Brasil” (30/06/2017), sobre a crise política criada com a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, a título de reflexão retrospectiva sobre a atual crise brasileira, disponível em meu blog Diplomatizzando (https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/07/nas-origens-da-crise-divisao-estrutural.html) e preliminar a um esforço de elaboração de propostas de reformas. Elas também oferecem continuidade a trabalho imediatamente anterior, no qual eu já refletia sobre o estado relativo de anomia política no Brasil, perguntando se o Brasil já era um “Estado falido”, mas constatando, ao mesmo tempo, que seu sistema político já podia ser considerado como completamente falido: “Brazil as a Failing State (or, is it already a Failed State?)” (12/06/2017, igualmente disponível no blog Diplomatizzando http://diplomatizzando.blogspot.pt/2017/06/brasil-existe-uma-crise-da-democracia.html).

2. A dominação hegemônica da esquerda: incontornável?
O Brasil aparece hoje como uma sociedade dividida, embora muito dessa divisão seja alimentada artificialmente, calculadamente pelos inimigos da liberdade, que se apresentam como pretensos defensores da igualdade, dois conceitos que estão no coração da Revolução francesa e que constituem o objeto das reflexões de Burke e de mais de dois séculos de debates contínuos sobre o papel do Estado, sobre a organização do sistema político, sobre as prioridades na determinação das políticas públicas, ou seja, aquilo que o filósofo conservador britânico chamava de exercício do poder. Essa divisão ocorre em meio à maior crise econômica – que se desdobrou em grave crise política e que explica, mais do que os atos de corrupção, o ato do impeachment, em maio-agosto de 2016 – jamais enfrentada pelo Brasil (quase 10% a menos no PIB entre 2015 e 2016), o que deveria supostamente suscitar alguma unidade de propósitos entre as principais forças políticas na difícil missão de resgatar o país da recessão e levá-lo novamente ao caminho do crescimento.
Tal união, no entanto, não ocorreu, por uma razão muito simples: a sociedade, especialmente em sua fração “pensante” – ou seja, aquela porção que influencia a opinião pública e que determina parte dos comportamentos, não sociais, mas dos movimentos ditos “sociais”, entre os quais se situa o sindicalismo – já se encontrava dividida por décadas de “hegemonia cultural” da esquerda, basicamente representada pelo assim chamado “gramscismo acadêmico”, que conforma o padrão usual de referência intelectual para a quase totalidade dos movimentos de esquerda no Brasil. Há muito tempo existe uma preeminência desse tipo de pensamento político – para não dizer ideologia – nos meios típicos de influência social relevante no Brasil. Não é difícil citar as esferas usualmente afetadas: todo o aparelho educacional (a partir das universidades para todo o sistema), na rede sindical (em praticamente todos os níveis e nas diferentes centrais existentes), na mídia (na qual, em sua maioria, os jornalistas são esquerdistas mesmo sem o saber, resultado de uma deformação curricular até inconsciente), nos meios culturais e supostamente “intelectuais” (onde, até por força do politicamente correto, o progressismo de tipo esquerdista predomina amplamente), no ambiente político, de modo geral (já que não existem partidos de “direita” e quase todos dizem defender “causas sociais”) e até em certas categorias profissionais supostamente identificadas com os mercados (engenheiros, por exemplo) ou a defesa da legalidade (os bacharéis em direito são especialmente “vítimas” desse tipo de contaminação).
Não seria exagerado dizer que o “universo mental” ordinário, no Brasil, se confunde com esse espectro cultural do pensamento de esquerda, isto é, socialmente progressista, distributivista, igualitário, ainda que a maioria da população se defina ao longo de valores conservadores para a maior parte dos costumes correntes. A questão é que são aqueles meios identificados com o pensamento progressista que fornecem os ativistas de base – militantes de partidos de esquerda; voluntários de movimentos ditos “sociais”; jornalistas que “trabalham” as informações e análises; sindicalistas que fazem de sua atividade um meio de vida, antes que uma atividade-meio; professores com teses pré-concebidas, absorvidas de acadêmicos gramscianos; funcionários públicos e agentes de entidades oficiais que estão comprometidos antes com a “justiça social” do que com a legalidade dos atos – que sustentam, direta e indiretamente, a predominância dessas ideias identificadas com a hegemonia cultural da esquerda.  
A própria acumulação de fatos, evidências e processos que comprovam o envolvimento direto de grande parte da esquerda “oficial” – ademais de outros agentes políticos de todo o espectro ideológico – com a onda avassaladora de corrupção que passou a percorrer praticamente todas as instâncias públicas, as maiores estatais e até grandes empresas privadas, não parece ter abalado o apoio de que dispõem esses meios desde o início das investigações identificadas com a chamada Operação Lava Jato, a despeito de algumas poucas desvinculações tópicas de personalidades progressistas.

3. O que fazer?; as tarefas do partido da reforma
Uma situação de hegemonia cultural só poderia ser aparentemente vencida por um outro tipo de hegemonia cultural, mas esse é um caminho longo, eivado de dúvidas quanto à eficácia desse tipo de estratégia, povoado de incertezas quanto à temporalidade dessa substituição e, de toda forma, a “contra-hegemonia” não dispõe, e não disporá no futuro previsível, do conjunto de aparelhos civis, paraestatais ou diretamente estatais, que permitiram à esquerda estabelecer e manter seu predomínio cultural e político ao longo das últimas décadas. Quais seriam, então, os caminhos para o início de uma inversão das tendências observadas até aqui no campo da mobilização política de apoios sociais em prol de outras políticas mais identificadas com a liberdade dos mercados?
Pessoalmente não creio que uma ação no mesmo plano conceitual dos resultados atualmente exibidos pela hegemonia cultural da esquerda consiga ter sucesso nos próximos anos, pela ausência, por parte do “partido da reforma”, de meios, mecanismos e instrumentos similares ou funcionalmente equivalentes aos detidos atualmente pelos “hegemônicos”, de maneira a ocorrer uma substituição de hegemonias. Uma estratégia de “combate de ideias”, em torno de conceitos abstratos, do tipo defender o liberalismo ou o conservadorismo, ou um “partido de direita”, enquanto alternativas melhores, ou desejáveis, como eixos de ação política, não parece suscetível de conquistar apoios ou influências significativas na sociedade. Menos ainda terá sucesso qualquer projeto no sentido de esperar alguma ação por parte das FFAA, ainda que fosse por meio dessa figura totalmente contraditória designada pela nome esquizofrênico de “intervenção militar constitucional”. O que resta, então, às forças da reforma?
Justamente esquecer qualquer debate no plano das ideias “liberais”, de “direita” ou de inspiração “conservadora”, conceitos que não possuem qualquer chance de se impor no plano das referências sociais para fins de influência política. O debate precisa se dar ao nível de questões práticas, concretas, vinculadas à vida cotidiana dos cidadãos, e suas preocupações mais prosaicas. Mesmo que esse fosse o terreno de jogo, e não é, o partido da reforma não tem condições de levar um “combate” nesses termos, e por razões muito simples: em primeiro lugar, não existem liberais no Brasil, ou são poucos; os conservadores são ainda em menor número, e os que se acreditam pertencer a um ou outro campo, parecem (ou são) totalmente desprovidos de formação teórica numa ou noutra vertente, já que ideias das vertentes respectivas não são discutidas, aprendidas, transmitidas nas instituições de ensino superior, ou em qualquer outro nível de estudo.
Em segundo lugar, os que se classificam sob esses rótulos, ou até mesmo os de “direita”, se apressam em agregar algum conteúdo ou adjetivo “social” ao epíteto principal, para não incorrerem em qualquer acusação de “insensibilidade” em relação aos graves problemas sociais que existem objetivamente no Brasil. O antigo Partido da Frente Liberal se apressava em agregar o conceito de “liberalismo social” às suas propostas de políticas públicas, e mais tarde abandonou completamente o adjetivo, talvez por pressentir que não encontrava receptividade eleitoral (o que se explica, justamente, pela campanha viciosa da esquerda contra qualquer ideia de liberalismo como opção política aceitável no plano eleitoral ou no das definições de políticas). Não existem perspectivas de mudanças repentinas nessa frente, o que pressupõe que tais conceitos, abstrata ou concretamente, não gozarão de ampla aceitação e legitimidade política em prazos razoáveis. O Brasil ainda é um país no qual o conceito de igualdade prevalece arrasadoramente contra o da liberdade.
A mensagem, ou as mensagens que devem ser defendidas incessantemente pelo partido da reforma, a ser apresentado sob essa designação, são justamente as de que o Brasil é um país entrevado, bloqueado, cerceado e empobrecido pelo conservadorismo das ideias de esquerda, que são de fato anacrônicas, desadaptadas ao mundo moderno, contraditórias com os requerimentos da globalização, e de que propostas reformistas, de ampliação das franquias democráticas no campo das atividades econômicas são, de fato, progressistas e avançadas. Não será uma tarefa fácil, pois isso implica, justamente, sair do terreno das ideias abstratas, dos conceitos políticos gerais, e penetrar na formulação de propostas pragmáticas, que atendam aos interesses da população, de forma clara, direta, empiricamente comprovada.
A população provavelmente não quer ouvir, ou se ouvir não vai entender, que o liberalismo econômico, se implantado, vai ser bom para o Brasil, ou que, na outra vertente, o conservadorismo é melhor que o “progressismo” para resolver os problemas que ela enfrenta, concretamente. A população gostaria de ouvir propostas práticas sobre como sua vida pode ser melhorada ou facilitada por meio de explicações claras, diretas, contendo medidas podendo ser implementadas de modo transparente. Tal objetivo implica um estudo detido e fundamentado de cada um dos grandes problemas concretos da população brasileira, geralmente a nível microeconômico (mas que necessitam ter, igualmente, alguma sustentação macro, ou seja, fiscal, monetário, creditício).
O que liberais, conservadores, pessoas de “direita” precisam fazer, no Brasil, é arregaçar as mangas, abrir livros, relatórios, consultar especialistas, reunir técnicos e começar a preparar propostas simples para os grandes problemas do países. Não existem, obviamente, respostas simples a problemas complexos, mas existem modos de explicar à população como as propostas esquerdistas, socialistas, distributivistas e intervencionistas são nefastas e, na verdade, agravam os problemas, em lugar de resolvê-los. É preciso quantificar os custos efetivos, orçamentários e de oportunidade, das políticas atualmente em curso no Brasil, em todos os terrenos práticos de atividade.
Um começo de ativismo, nesse terreno, seria partir de mapeamentos já feitos, que indicam, aliás, onde estão os problemas existentes, e quais seriam as possíveis soluções aos obstáculos atuais. Um dos melhores “mapas da realidade” disponíveis no mercado é o relatório anual do Banco Mundial “Fazendo Negócios” (Doing Business), que tem indicadores precisos sobre cada uma das etapas burocráticas que infernizam a vida dos empreendedores no Brasil, nas dimensões nacional e comparada. Uma equipe dedicada ao estudo desse relatório do Banco Mundial, fazendo um detalhamento das distorções mais aberrantes atualmente em curso, poderia produzir propostas de políticas nos terrenos mais relevantes da atividade empresarial, aquela suscetível de produzir emprego e criar renda para milhões de trabalhadores.
Uma concentração nesse tipo de exercício traria mais frutos, a curto e a médio prazo, do que milhões de horas-aulas dedicadas ao enriquecimento cultural dos eleitores mediante aulas teóricas sobre os benefícios do liberalismo ou do conservadorismo para ouvintes preocupados com problemas da vida diária. Os conservadores, na verdade, são aqueles que se opõem às reformas, e estes são os esquerdistas e em primeiro lugar, mas também, e amplamente, os políticos tradicionais. Liberais, ou pessoas se apresentando como tais, já partem com o ônus original da desconfiança, quando não com a acusação (equivocada mas “credível”) de “inimigo dos pobres” ou “amigo dos ricos”, o que pode ser mortal. Uma ação política eficaz não pode ficar na defensiva, e sim partir para a ofensiva, teórica e praticamente.
Sou por um “partido das reformas”, progressista, inovador, ousado, voltado para soluções práticas e desprovido de qualquer rebuscamento intelectual ou de deformações conceituais inúteis para 99% dos eleitores. Num momento de transição como o que o Brasil atravessa atualmente, liberais, conservadores, pessoas de “direita” (se existem, de fato) não podem perder o seu tempo em propaganda abstrata ou discussões principistas em torno das grandes ideias que dizem defender, inclusive porque elas não serão bem recebidas pelo eleitor médio, que é desprovido completamente de educação política, quando não de educação simplesmente. Mas não basta proclamar-se a favor de reformas, também tomadas genericamente: seria preciso ter um cadernos de sugestões e de debates sobre cada uma das reformas focadas em resultados práticos, com exposição concreta sobre as maneiras de implementá-las. Edmund Burke pode até fornecer belas ideias sobre a superioridade do constitucionalismo civil sobre o igualitarismo violento, mas isso não basta: é preciso descer ao terreno da práxis, como já disse um filósofo...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3141: 23 de julho de 2017.


Uma lista de reformas elaborada em 2016, muitas ainda válidas em 2021 - Paulo Roberto de Almeida

O Brasil é um país paralisado por impasses estruturais, requerendo reformas urgentes. Apresento abaixo minha lista de reformas elaborada em 14 de abril de 2016, muitas das quais ainda validas cinco anos depois. 

1) Redução radical do peso do Estado na vida da nação, começando pela diminuição à metade do número de ministérios, com a redução ou eliminação concomitante de uma série de outras agências públicas;
2) Fim do Fundo Partidário e financiamento exclusivamente privado dos partidos políticos, como entidades de direito privado que são;
3) Redução e simplificação da carga tributária, com seu início mediante uma redução linear, mas geral, de todos os impostos atualmente cobrados nos três níveis da federação, à razão de 0,5% de suas alíquotas anualmente, até que um esquema geral, e racional de redução ponderada seja acordado no Congresso envolvendo as agências pertinentes das unidades da federação dotadas de capacidade arrecadatória;
4) Eliminação da figura inconstitucional do contingenciamento orçamentário pelo Executivo; a lei orçamentária deve ser aplicada tal como foi aprovada pelo Parlamento, e toda e qualquer mudança novamente discutida em nível congressual; fica também eliminadas as emendas individuais ou dotações pessoais apresentadas pelos representantes políticos da nação; todo orçamento é institucional, não pessoal;
5) Extinção imediata de 50% de todos os cargos em comissão, em todos os níveis e em todas as esferas da administração pública, e designação imediata de uma comissão parlamentar, com participação dos órgãos de controle e de planejamento, para a extinção do maior volume possível dos restantes cargos, reduzindo-se ao mínimo necessário o provimento de cargos de livre nomeação; extinção do nepotismo cruzado;
6) Eliminação total de qualquer publicidade governamental que não motivada a fins imediatos de utilidade pública; extinção de órgãos públicos de comunicação com verba própria: a comunicação de temas de interesse público se fará pela própria estrutura da agência no âmbito das atividades-fim, sem qualquer possibilidade de existência de canais de comunicação oficiais;
7) Criação de uma comissão de âmbito nacional para estudar a extinção da estabilidade no setor público, com a preservação de alguns poucos setores em que tal condição funcional seja indispensável ao exercício de determinadas atribuições de interesse público relevante;
8) Início imediato de um processo de reforma profunda dos sistemas previdenciários (geral e do setor público), para a eliminação de privilégios e adequação do pagamento de benefícios a critérios autuarias de sustentabilidade intergeracional do sistema único;
9) Reforma radical dos sistemas públicos de educação, nos três níveis, segundo critérios meritocráticos e de resultados;
10) Reforma do Sistema Único de Saúde, de forma a eliminar gradualmente a ficção da gratuidade universal, com um sistema básico de atendimento coletivo e diferentes mecanismos de seguros de saúde baseados em critérios de mercado;
11) Revisão dos sistemas de segurança pública, incluindo o prisional-penitenciário, por meio de uma Comissão Nacional de especialistas do setor;
12) Eliminação de todas as isenções fiscais e tributárias, ou privilégios exorbitantes, associados a entidades religiosas;
13) Reforma da Consolidação da Legislação do Trabalho, no sentido contratualista, e extinção imediata do Imposto Sindical e da unicidade sindical, conferindo liberdade às entidades associativas, sem quaisquer privilégios estatais para centrais sindicais; no limite, extinção da Justiça do Trabalho, que é, ela mesma, criadora de conflitos e de extrema litigiosidade, impondo um custo enorme à sociedade;
14) Revisão geral dos contratos e associações do setor público, nos três níveis da federação, com organizações não governamentais, que em princípio devem poder se sustentar com recursos próprios, não com repasses orçamentários oficiais;
15) Privatização de todas as entidades públicas não vinculadas diretamente a uma prestação de serviço público sob responsabilidade exclusiva do setor público.

Eu teria muitas outras propostas de reformas a fazer – como por exemplo a extinção do salário mínimo para permitir pleno emprego no Brasil, a abertura ampla ao comércio e aos investimentos internacionais –, mas me contento no momento com estas quinze reivindicações para a melhoria do Brasil.
Como se pode verificar, nada disso é muito fácil, ou será conduzido de maneira exitosa nos próximos anos, ou décadas. Mas estas me parecem ser ideias mais ou menos condizentes com um Brasil liberal, ou seja, um país totalmente diferente do que tem sido historicamente e até hoje.
Ilusão, utopia da minha parte. Não creio. Nenhuma dessas propostas apresenta dificuldades técnicas, são socialmente prejudiciais ao desenvolvimento do país (ao contrário, elas permitiriam o crescimento e o desenvolvimento) ou apresentam efeitos nefastos do ponto de vista social. Elas são apenas politicamente difíceis, não porque sejam impossíveis de serem conduzidas pela via legislativa, mas porque ainda não nasceram (ou apareceram) estadistas capazes de conduzi-las, ou porque nossa classe política, nossas elites, de forma geral, estão despreparadas para enfrentar esse rol de reformas modernizadoras.
Cada vez me convenço mais que não temos propriamente um problema de atraso material a vencer, mas sobretudo alguns bloqueios mentais a serem superados. O trabalho dos liberais, nos anos e décadas à frente deve contudo orientar-se nessa direção: menos Estado, mais liberdades econômicas, mais responsabilização da classe política, maior participação e consciência cidadã.
Paulo Roberto de Almeida

Homenagem a Alfredo Bosi (1936-2021) - Lilia Moritz Schwarcz, Pedro Meira Monteiro (FSP)

 Crítico produziu interpretações originais e ácidas sobre a literatura 

Lilia Moritz Schwarcz

Pedro Meira Monteiro

Folha de S.Paulo, Ilustrada, 8 abr. 2021, p.B13

 

Com a pandemia se desenvolvendo de forma desenfreada e sem controle no Brasil, andamos perdendo vozes fundamentais na defesa da nossa tão combalida democracia. É o caso de Alfredo Bosi (1936-2021), que ocupou um lugar único na crítica literária brasileira.

Descendente de italianos do Vêneto, Bosi começou sua carreira acadêmica dando aulas de literatura italiana na USP, para onde levou seu amor pela poesia de Leopardi e pelos personagens angustiados de Pirandello. Bosi também fazia mágica ao misturar um autor como Croce, com sua ideia do sopro vital movimentando a literatura, e Gramsci, com sua atenção às contradições da sociedade capitalista incrustadas na cultura, mas também à ideia de resistência. Desse caldo improvável, bem como de uma cultura literária e filosófica extraordinária, vasta e profunda, assim como de uma militância constante contra a ditadura, nasceram algumas das interpretações mais agudas e originais da literatura brasileira e universal: Vieira, Machado de Assis, Rosalía de Castro, Cecília Meireles, Antonil, Nabuco, Graciliano, Lima Barreto—a lista é interminável.

Interessava a Bosi entender como a liberdade era escavada na escrita, algumas vezes de forma aberta, outras vezes de forma contida e recôndita como se os compromissos e a situação social e política fossem uma força operando dentro do sujeito, ao mesmo tempo contra e a favor dele. O mestre também não opunha a estética à política e aos aspectos sociais. Ao contrário, era essa a sua “dialética”. Essa contradição fundamental foi explorada em aulas na USP, já como professor de literatura brasileira, ao longo das décadas de 70 e 80, bem como no Instituto de Estados Avançados, da mesma universidade.

O resultado dessa militância do espírito, alerta dentro e fora da sala de aula, foi um livro que se tornaria um dos grandes clássicos da historiografia literária brasileira: a Dialética da Colonização, publicado pela primeira vez em 1992. Ali podem ser sentidas as principais linhas de força de sua interpretação, que estão também em outros livros, anteriores e posteriores, como O ser e o tempo da poesia (1977, com nova edição em 2000), Literatura e resistência (2002) e Ideologia e contraideologia (2010). Neles, a resistência não é vista necessariamente como ato heroico e por vezes isolado, mas como uma forma complexa de insurgência, muitas vezes torturada, sentida como contradição. As forças presentes no interior da pessoa, presas, mas capazes de atravessar a fresta de sua máscara social, o emocionavam muito.

Talvez a figura de Eugênia, nas Memórias póstumas de Brás Cubas, seja uma das que mais o fascinavam: “triste como os enterros pobres, solitária, calada, laboriosa”, até que viesse “para esta outra margem”, escreve o defunto autor. Aí estava um pensamento dialético, combinado a uma sensibilidade fina e um profundo saber histórico que superava, de longe, dicotomias fáceis como pessimismo resistente ou otimismo falastrão; negatividade diante do passado ou confiança cega no progesso. Bosi, tal qual equilibrista, era avesso à mística das ideologias, mas guardava seu afeto pelos projetos de literatos, pelas palavras deles, também entendidos como agentes sociais.

O professor viveu essa forma de resistência e de empatia irrestrita pelos pobres. Uma simplicidade franciscana o unia, em amor completo, a sua querida Ecléa, falecida em 2017, leitora profunda da poesia que ambos amavam, e ela mesma poeta cujo trabalho Alfredo Bosi recentemente recuperou e tornou público. Já o mestre buscou pelo “ser da poesia”—a imagem que “busca aprisionar a alteridade estranha das coisas e dos homens”. O casal era alimentado pela docência e pelo bom conhecimento. Ecléa era professora do Departamento de Psicologia, Bosi do Departamento de Letras, ambos da USP. Os dois lidavam, cada um à sua maneira mas em conjunto, com as tantas memórias que este Brasil costuma esquecer e deixar passar.

Um detalhe engraçado: em 2008, quando foi lançado seu primeiro livro em inglês, Alfredo Bosi fez sua única viagem aos Estados Unidos, mas apenas depois de certificar-se que George W. Bush deixara a Casa Branca. Entrando em Nova Iorque pela ponte do Brooklyn, ao entardecer, seus olhos se iluminaram: “essa paisagem mágica que conhecemos do cinema”, disse ele. Encontrou tempo para passear, comprar um presente para Ecléa, e refletir sobre aquela sociedade que via com tanta suspeita, mas cuja complexidade ele também reconhecia. Em Princeton, conheceu Ricardo Piglia e Arcadio Díaz-Quiñones, com quem descobriu afinidades profundas.

Na chácara em que moraram por muito tempo, em Cotia, Ecléa plantou uma giesta—a flor que, num poema de Leopardi, sobrevive à beira do Vesúvio, “amante de lugares do mundo abandonados, e de infelizes fados companheira”. Bosi lembrou o fato quando recebeu o título de professor emérito na USP, em 2012. A imagem da giesta atravessa sua obra e seu espírito, clara e potente, como se nela se contivesse a força insuspeitada da resistência que foi tema e prática na vida de Alfredo Bosi.

Politica Externa: vai mudar de fato? - Creomar de Souza

 

Muda-se tudo, mas se altera algo?

Como bem cita Lampedusa em sua magistral obra ‘Il Gattopardo’, algumas vezes as coisas precisam mudar para permanecerem iguais 
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As últimas semanas foram intensas em Brasília. A troca repentina de uma série de ministros deixou muita gente perplexa. Passado o susto das águas de março que alteraram a foto do ministério Bolsonaro, é legítimo perguntar se as mudanças são reais ou apenas mais um exemplo da famosa citação do Gattopardo de Lampedusa segundo a qual para que tudo fique na mesma, é preciso que alguma coisa mude.

O caso do Itamaraty, em particular, suscita dúvidas. Afinal, a Chancelaria havia se transformado, nos últimos dois anos, em espaço privilegiado de atuação do discurso ideológico que elegeu o presidente da República. Por afinidade política ou interesse em tornar-se político, o ex-Chanceler Araújo incorporou o papel de militante a serviço de uma causa. Neste processo, nitidamente, a política externa foi colocada a serviço da mobilização de setores mais extremos do bolsonarismo. 

Esse movimento, que teve sua serventia político-eleitoral, nunca redundou em um avanço real de temas importantes para o desenvolvimento nacional. Ao contrário, acarretou prejuízos evidentes no momento em que o país mais precisava de canais diplomáticos azeitados com parceiros e organismos internacionais. Não por acaso, o capítulo final do Embaixador Araújo foi marcado por um confronto desnecessário com o Senado Federal e uma carta de demissão construída às pressas diante de um cenário de descarte concreto. 

Posse do novo Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Carlos Alberto Franco França. Foto: Gustavo Magalhães/MRE/Fotos Públicas
Posse do novo Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Carlos Alberto Franco França. Foto: Gustavo Magalhães/MRE/Fotos Públicas

O novo ministro, Carlos França, assume com essa carga negativa, sucedendo um Chanceler que procurou implementar uma ruptura com as tradições do Itamaraty. O discurso de posse do novo Chanceler, por contraste com seu antecessor, foi como uma lufada de ar fresco, uma sinalização à normalidade, à ponderação e ao pragmatismo. Teria sido um discurso apenas correto em tempos normais, mas diante da comparação com o que se via no Itamaraty, assumiu ares de grande peça retórica. Foi possível ouvir de longe uma grande suspiro coletivo de alívio dos diplomatas de carreira.

De fato, em seu discurso de posse, França enfileirou conceitos que evocam a melhor tradição do Ministério.  Ao falar da importância do multilateralismo, da necessidade de construir pontes com o mundo e do uso da diplomacia como elemento de solução de controvérsias, gerou uma sensação de normalidade que permite relação direta com a substituição de Pazuello por Queiroga na Saúde. 

O discurso, por mais que tenha sido bem recebido, não foi suficiente para superar certa desconfiança em quem conhece como funciona Brasília e, em particular, como a política externa esteve sob uma tutela de núcleo bolsonarista desde o início do governo. E neste ponto há um elemento importante a ser lembrado: “na relação entre um ministro e o presidente, só um dos dois é demissível, e não é o presidente”. Este axioma serve para lembrar que muito da lealdade do antecessor de França deveu-se à percepção de que era uma peça de fácil substituição na engrenagem política do Palácio do Planalto. 

Esta percepção, obviamente, levou a um processo de sinergia e alguma submissão intelectual aos desígnios da família presidencial em termos de concepção de mundo. Ciente deste processo e do destino do seu antecessor, tal como um faquir, França tem o desafio cotidiano de não ser espetado pela cama em que decidiu deitar-se. E neste verdadeiro malabarismo que é ser ministro no Brasil de 2021, o ministro deverá pesar constantemente eventuais ajustes em nome dos interesses do país e os limites do que seria aceitável pelo próprio presidente e seus conselheiros em política externa, o próprio filho e deputado Eduardo e o assessor palaciano Filipe Martins, que segue no cargo. 

Se prevalecer a tutela palaciana, as ideias vertidas por França em seu discurso de posse não passarão de palavras ao vento e nossa diplomacia adentrará o terreno descrito por Lampedusa. A mudança não passará de uma pantomima, um teatrinho para ganhar tempo com uma aparência momentânea de normalidade. É preciso que o bom discurso do Ministro se traduza em posições concretas e ações palpáveis, de modo que  nossa diplomacia, despida da ideologia excêntrica que lhe corroeu a alma, possa contribuir efetivamente para o enfrentamento das urgências em matéria de saúde, segurança e prosperidade.


Argentina e Brasil: dois países condenados ao retrocesso? - Paulo Roberto de Almeida

 Desculpem me repetir, mas vivo angustiado com nossos retrocessos, frutos da ESTUPIDEZES dessas elites MEDÍOCRES!

Argentina: o caso mais trágico na história econômica mundial - Paulo R. de Almeida, Instituto Mises: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/04/argentina-o-caso-mais-tragico-na.html - Conheço a Argentina muito bem e os argentinos, em especial, e lamento pela decadência auto-infligida. Trágico!

Espero que o IDIOTA do Bolsovirus não se converta num Perón de araque e destrua o Brasil como Perón fez com o seu país! 

Em toda a minha vida de estudo da história econômica mundial, eu nunca encontrei um caso mais dramático como a Argentina. Talvez a China imperial, mas ela foi foi esquartejada pelo império czarista, pelos colonialistas europeus e depois pelos bárbaros japoneses, ao passo que a Argentina conseguiu se suicidar por seus próprios meios, inteiramente destruída pela ação de estúpidos nacionais (como talvez o Brasil agora), corporativos militares , mafiosos sindicais, mandarins do Estado, todos unidos, inconscientemente, no saque e na dilapidação da riqueza nacional, exatamente como estamos sendo saqueados agora pelos mandarins do Estado, pelos corruptos da política, pelos barões ladrões do empresariado, pelos gigolôs do sistema bancário, por todos os oportunistas de todos os matizes.

Lamento, sinceramente, mas estamos em uma trajetória de DECADÊNCIA que se situa entre Grécia, Itália e Argentina.

A menos que consigamos reagir. Seremos capazes?

Duvido muito: nossas elites são muito MEDIOCRES!

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 9/04/2021