Sem chance de dar certo
Editorial Veja, 17/07/2013
Uma reportagem desta edição de VEJA examina como o governo está reagindo aos gigantescos e inéditos desafios propostos pelas manifestações de rua e à inflexão para pior dos cenários interno e externo na economia. Tomamos como ponto de partida a medida provisória mandada ao Congresso que muda o regime acadêmico e de trabalho dos médicos no Brasil, obrigando-os a doar ao SUS dois anos de sua vida profissional. Se faltava um exemplo perfeito da descoordenação e do caos no Planalto, a MP dos Médicos cuidou de suprir essa lacuna. Foi a gota d’água. A decisão é autoritária, inaplicável na prática e, acima de tudo, inconstitucional. A reportagem de VEJA mostra que, mesmo se fosse viável dentro da ordem jurídica vigente, de nada adiantaria obrigar os médicos a trabalhar em rincões desassistidos do Brasil. Continuariam faltando equipamentos, remédios, ambulâncias e enfermeiros — e em nada melhoraria a vida dos brasileiros que hoje sofrem por falta de acesso à medicina de qualidade.
Com toda a certeza, a submissão dos médicos aos desígnios do governo será, em breve, lembrada apenas como mais uma das muitas falsas soluções simples para problemas complexos emanadas do laboratório de trapalhadas do Palácio do Planalto. As propostas oficiais somem na mesma velocidade com que aparecem. Lembra-se do plebiscito para consultar o povo sobre a reforma política que acabaria com todos os males da nação? Está morto e enterrado. Lembra-se da ideia de trazer 6000 médicos cubanos para suprir a carência de mão de obra especializada na saúde no interior do Brasil? Esqueça. Alguém no governo acordou para o fato de que, se a ditadura cubana tem poder de exportar gente como mercadoria, esse tipo de comércio humano é inaceitável para os padrões humanitários brasileiros.
É inescapável a conclusão de que o Planalto está imerso em um momento de “realismo fantástico’’, aquela corrente da literatura em voga em meados do século passado que, ao contrário do gênero de terror em que o sobrenatural assusta, espera que o leitor ache a coisa mais natural do mundo que pessoas mortas passeiem pelas ruas das cidades e que bois possam voar. Essa tem sido a tônica das decisões tomadas pelo governo. Fala-se da distribuição de dezenas de bilhões de reais, como se dinheiro nascesse em árvore. Decide-se o destino de médicos que ainda nem entraram na faculdade. Convoca-se um plebiscito em um dia para descobrir no seguinte que isso é uma tolice. O economista Joseph Schumpeter (1883-1950) deu a esse padrão de comportamento o nome de “racionalidade subjetiva”, circunstância em que as pessoas — em vez de adaptar o pensamento e a ação às novas realidades — tentam encaixotar a realidade na sua moldura mental. Isso não tem chance de dar certo.
O remédio errado
Natalia Cuminale
Revista Veja, 17/07/2013
Por que o programa federal Mais Médicos, que obriga os alunos de medicina a trabalhar dois anos no SUS, já nasce como arbitrariedade e não tem como dar certo
A medida provisória que amplia, a partir de 2015, de seis para oito anos a duração do curso de medicina e obriga os estudantes a trabalhar durante esse período extra no SUS é o remédio errado para um antigo problema da saúde no Brasil: a má distribuição geográfica dos médicos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) preconiza, no mínimo, um médico para cada 1000 habitantes. Em média, temos o dobro disso. Os números gerais, no entanto, escondem a disparidade no modo como os médicos estão alocados pelo país. Da iniquidade, emergem dois Brasis. Quem vive nas capitais tem acesso ao dobro da atenção dispensada a quem mora fora dos grandes centros. Além disso, 72% dos médicos estão nas regiões Sul e Sudeste. É bobagem imaginar que esse desequilíbrio possa ser resolvido com o despacho de alunos de medicina para os rincões desamparados, como pretende fazer a presidente Dilma com o programa Mais Médicos. “Sem melhoria das condições estruturais básicas, o médico enviado a esses locais não será capaz de mudar a realidade da população”, diz Roberto Luiz d’Avila, presidente do Conselho Federal de Medicina. Continuariam a faltar remédios, seringas, enfermeiros, leitos com lençóis limpos e, em muitos casos, até água potável. Não há solução mágica. Nas palavras de Milton de Arruda Martins, professor de clínica médica da USP, “não há saúde sem médico, mas também não há saúde apenas com médicos”. Nas próximas páginas, VEJA lista cinco motivos que comprovam a ineficácia da MP dos médicos, fadada ao fracasso.
1 - É INCONSTITUCIONAL
Todas as Constituições democráticas do mundo estabelecem uma série de direitos individuais capazes de preservar a liberdade dos cidadãos nas mais diversas esferas. Só existe vida digna se o cidadão tem liberdade de ir e vir, de pensar e se expressar, de professar a religião que quiser, entre outros tantos direitos básicos. No Brasil, a Constituição garante expressamente que também é livre “o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão”. Não se pode obrigar alguém a trabalhar onde não quer. “O governo diz que os dois anos de trabalho no SUS são uma complementação da formação médica, mas na verdade são uma obrigação de prestação de serviço, claramente inconstitucional”, diz o ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior. “O único serviço obrigatório permitido no país é o militar.” Segundo o jurista, como dificulta a obtenção do diploma sem oferecer complementação didática ou pedagógica, a medida restringe o exercício profissional dos médicos, o que também afronta a liberdade profissional e, portanto, a Constituição. Além disso, o fato de a proposta ter sido feita via medida provisória é uma aberração. "Medidas provisórias são para questões urgentes, e essa MP somente valerá para estudantes que entrarem na universidade em 2015", afirma Reale Júnior.
2 - É AUTORITÁRIA
O caminho natural para alterar regras que influenciam o cotidiano da população é o Poder Legislativo. “O governo preferiu agir sozinho com essa espécie de chantagem contra os estudantes em vez de pedir a participação do Congresso, o que é uma atitude claramente autoritária”, diz Carlos Ari Sundfeld, professor da Fundação Getulio Vargas. A arbitrariedade de Dilma decorre de incompetência e má gestão. “O problema de falta de médicos no interior do Brasil é de mercado de trabalho, e não de regulamentação profissional”, diz Marcelo Figueiredo, diretor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo. “Como o governo tentou — mas não conseguiu — atrair médicos para esses lugares com medidas políticas, achou que o jeito de suprir sua incompetência era obrigando os estudantes a trabalhar no SUS.”
3 - REFORÇA A DESIGUALDADE
A MP dos Médicos aguçará ainda mais as diferenças entre os sistemas público e privado de saúde. Aos mais pobres caberá como única opção o atendimento feito por profissionais ainda em formação. Além do serviço compulsório de estudantes no SUS, o programa Mais Médicos isenta os médicos formados no exterior da obrigatoriedade da revalidação do diploma. Não será preciso também comprovar os conhecimentos na língua portuguesa com teste de proficiência. A única exigência é que eles participem de um curso com duração de três semanas em uma universidade conveniada ao programa. Nesse período, os professores brasileiros determinam se o profissional está apto para exercer a medicina e receber uma bolsa de 10000 reais por mês. “O Brasil está dando autorização para que médicos exerçam a profissão sem saber se eles têm competência ou não. Está-se criando a medicina dos pobres”, diz Florentino Cardoso, presidente da Associação Médica Brasileira.
Como diminuir a desigualdade? O grande problema do país é o baixo financiamento federal para a saúde pública, concordam nove especialistas ouvidos por VEJA. No Brasil, a participação do governo no gasto nacional em saúde é de 47%, enquanto na Inglaterra chega a 83%. “A falta de médicos é apenas uma parte da equação”, diz Paulo Hoff, diretor clínico do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) e do Centro de Oncologia do Hospital Sírio-Libanês. Na França, Inglaterra e Suécia, que possuem um sistema público semelhante ao brasileiro, o investimento per capita na saúde é seis vezes o daqui. “Nosso gasto hoje é comparável ao desses países na década de 60”, diz Adib Jatene, ex-ministro da Saúde. Sem recursos federais adequados, muitas prefeituras não têm condições de bancar o atendimento médico e a manutenção da infraestrutura.
4 - É INCOERENTE
Em defesa do serviço médico compulsório, o ministro da Educação, Aloizio Mercadante, saiu-se com a história de que a medida melhoraria o serviço de saúde para o povo e humanizaria a profissão. “Esse é um argumento de quem. claramente, não conhece a universidade”, diz Milton de Arruda Martins, professor da USP. “Quem cursa medicina nos moldes atuais (seis anos) já pratica o internato hospitalar com pacientes do SUS no 5o e 6o anos.” A residência médica, que confere o título de especialista ao médico, tem duração de dois a cinco anos e também é feita, na imensa maioria dos casos, na rede pública.
Com o novo programa, o governo espera a entrada de 20 500 médicos na chamada “atenção básica” em 2021. Em nota, o Ministério da Saúde garante que esses alunos serão supervisionados por professores. Outra falácia. “Há um sucateamento da educação médica no país. Alguns cursos de medicina não têm nem hospital apropriado para o ensino, com um preceptor e um ambiente apto a receber estudantes”, diz Mário Scheffer, do departamento de medicina preventiva da USP e coordenador do estudo “Demografia médica no Brasil”. A MP dos Médicos propõe ainda a criação de 11 447 vagas de graduação em medicina, tanto em escolas já existentes como em novos cursos em regiões mais desassistidas. “A interiorização de escolas de medicina não resolve a fixação do médico. Elas funcionam como repúblicas de estudantes. A maioria deles vem dos grandes centros para fugir da concorrência e depois retorna ao seu local de origem”, explica Scheffer.
5 - NÃO ESTIMULA A PRÁTICA DA MEDICINA
Exemplos bem-sucedidos na França e no Canadá mostram que os médicos se fixam em regiões mais recônditas por três motivos: bom salário, plano de carreira adequado e possibilidade de especialização e aperfeiçoamento. A solução no Brasil, portanto, seria a criação de uma carreira federal nos moldes do que já existe no Judiciário e no Exército. Terá os melhores salários, as maiores gratificações ou a ascensão mais rápida quem optar — e não for obrigado — por trabalhar na áreas inóspitas. O Canadá adotou com sucesso essa estratégia. Graças aos incentivos governamentais, entre 2007 e 2011, o número de generalistas aumentou 14%. Hoje, metade dos médicos canadenses dedica-se aos cuidados básicos da saúde. É em casos como esse que o governo de Dilma deveria se inspirar — e não inventar remédios que podem matar o doente. (com reportagem de Bela Megale, Kalleo Coura, Robson Bonin e André Eler)
Quando falta tudo
O Maranhão é o estado brasileiro com o menor número de médicos do país. A proporção é de 0,71 profissional para cada 1000 habitantes. O Hospital Municipal de Imperatriz, conhecido como Socorrão, a 630 quilômetros de São Luís, é o retrato dessa precariedade. É para lá que vão os doentes mais graves de pelo menos 100 municípios do Pará, do Tocantins e do Maranhão. Com 400 leitos, o Socorrão é o único da região com UTI e, ainda assim, tem apenas trinta vagas. Na tentativa de aliviar a demanda, a prefeitura aluga cinquenta leitos da rede particular. Isso ajuda, mas pouco. Os pacientes se amontoam no hall de entrada do hospital. Na falta de médicos e enfermeiros, os doentes são ajudados pelos acompanhantes. Na enfermaria, as camas estão enferrujadas. “Fazemos o que está ao nosso alcance, mas às vezes acontece de o paciente morrer na fila de espera”, diz o prefeito Sebastião Madeira (PSDB). “Além da sobrecarga do sistema, recebemos mensalmente apenas 6,5 milhões de reais do governo federal, mas gastamos no mínimo o dobro com a rede de saúde do município." A 500 quilômetros dali, em Matões do Norte, o hospital da cidade está pronto desde 2011 (foto menor). Apesar de já ter camas e colchões novos, não recebe nenhum paciente. O hospital faz parte do programa Saúde É Vida, da governadora Roseana Sarney (PMDB). O motivo: hospitais como o de Matões foram construídos para ser instituições municipais, mas faltou combinar isso com os prefeitos.
O problema não é a escassez de médico
O Distrito Federal é a unidade da federação com o maior número de médicos (4,09) por 1000 habitantes. Os serviços, no entanto, são precários. Médica de clínica geral, Lilian Suzany Pereira, de 42 anos, trabalha há dezesseis em emergências de hospitais. Ela assume o plantão na lotada emergência do Hospital Regional da Asa Norte, região central de Brasília, às 19 horas, e só para às 7 da manhã. “Acho um insulto o governo sugerir mais humanização à classe médica”, esbraveja ela. Com todos os seus médicos, seus dezesseis hospitais e seus 5,1 bilhões de reais de orçamento anual, a rede pública do Distrito Federal carecia na semana passada de Buscopan, medicamento para cólicas e dores abdominais, e fio cirúrgico para cesariana. Onde existia, era porque havia sido comprado pelos próprios médicos. O problema, descobre-se, não estava no médico, estava na gestão - ou melhor, na falta dela.
É longa a espera
O Rio Grande do Sul está entre os cinco estados com mais médicos. São 2,37 doutores para cada 1000 habitantes. A proximidade com a capital, Porto Alegre (8.73 médicos por 1000 habitantes), não é sinônimo de saúde de qualidade. A apenas 12 quilômetros dali, o posto de saúde 24 horas de Eldorado do Sul sofre as precariedades dos hospitais dos rincões mais desassistidos. Com apenas oito leitos de emergência para a população de 35000 habitantes, os casos mais graves são encaminhados para hospitais próximos. O problema está na demora da transferência, que pode chegara uma semana. Em um episódio recente testemunhado pela clínica geral Carla Pfeifer, um paciente com hemorragia digestiva teve de aguardar três dias para ir para a capital.
O governo na emergência
Rodrigo Rangel, Otávio Cabral e Adriano Ceolin
Revista Veja, 17/07/2013
Depois da Constituinte e do plebiscito, Dilma quer resolver o problema da saúde obrigando estudantes de medicina a trabalhar dois anos para o governo – mais uma proposta autoritária produzida pelo “pensamento mágico” e destinada ao fracasso.
A sabedoria política imorredoura informa que “quem monta no lombo do tigre acaba dentro da barriga do bicho”. Colocado de outra forma: “O governante que acha que pode controlar os fatos acaba controlado por eles”. As duas lições acima se aplicam com perfeição ao atual momento de Dilma Rousseff e seu governo. Desde que os brasileiros saíram às centenas de milhares às ruas nas grandes cidades, a presidente e seus oráculos estão dando demonstração atrás de demonstração de que não entenderam o recado das ruas. Estão imaginando que podem montar o tigre. Iludem-se com a fantasia de que podem controlar os fatos. As pesquisas já apontavam uma queda significativa da popularidade da presidente quando eclodiram as primeiras manifestações de rua que deixaram o governo em estado de animação suspensa. Era preciso reagir, dar uma resposta firme, mostrar que havia comando — e, principalmente, um comando sintonizado com a opinião pública. O governo optou pelo ilusionismo. Primeiro, anunciou que convocaria uma Assembleia Constituinte para realizar uma reforma política. A ideia, de tão autoritária e inconstitucional, não resistiu 24 horas. A fracassada Constituinte transmutou-se em uma proposta de plebiscito, que, por ser igualmente autoritária e inconstitucional, também teve vida curta.
Na semana passada, o Palácio do Planalto anunciou outra medida na mesma direção. Para atender às demandas dos manifestantes na área da saúde e suprir a falta de profissionais, o governo quer obrigar os futuros estudantes de medicina a trabalhar dois anos nos hospitais públicos. O aluno terá direito apenas a uma bolsa de estudos e, se não cumprir o chamado “período de treinamento”, não receberá o diploma de médico. Apresentada por meio de medida provisória, a decisão precisa ser aprovada pelo Congresso. Porém, tem tudo para ficar pelo meio do caminho. Por quê? Pela mesma razão das anteriores: é autoritária, inconstitucional, inaplicável. É a notória falsa solução simples para um problema complexo. Mas, como dizia Cesare Cantù, o grande historiador universal do século XIX, se a ideia for apenas jogar uma “frase feita à massa ignara e esperar que ela a rumine pelos tempos afora”, os oráculos do Planalto terão feito a sua parte. A do público é não se deixar enganar.
Batizado de Mais Médicos, o programa é mais uma criação do laboratório de ideias atrapalhadas montado no Palácio do Planalto e que funciona à base de pesquisas de opinião. Os resultados das pesquisas chegam, os sábios se reúnem e maquinam uma ideia capaz de passar a impressão de que Dilma resolverá tudo. É um universo paralelo. Em vez de preparar medidas estruturantes capazes de solucionar os problemas, ainda que elas levem mais tempo para dar resultado, recorre-se ao improviso e à marquetagem. O povo está nas ruas reclamando dos problemas na saúde? Basta anunciar que se vão importar médicos e criar um serviço civil obrigatório para os futuros doutores. Isso funciona? Não, né. Mas ilude a plateia por um tempo, pelo menos até que os sábios inventem o próximo ato de ilusionismo.
Entidades de classe, o Conselho Federal de Medicina à frente, compararam a medida do governo às decisões de regimes totalitários e reclamaram por não ter sido consultadas. O mais doloroso para os brasileiros é o fato de que, se a solução oficial é falsa, o problema é verdadeiro. Faltam médicos, enfermeiros, auxiliares. Falta gestão e sobra corrupção. Em uma região privilegiada como o Distrito Federal, por exemplo, cujo orçamento da saúde chega a 5,2 bilhões de reais e que tem o maior número de médicos por habitante do país, somente a incompetência justifica o que se vê: pacientes espalhados em corredores de hospitais imundos e falta de materiais básicos, como macas, medidores de pressão e fios de sutura para cirurgias, só para citar três exemplos. O Distrito Federal, a propósito, é governado por um médico, o petista Agnelo Queiroz.
Na tentativa de ressuscitar o governo, combalido pelas manifestações de rua. Dilma vem recorrendo a um grupo de emergência. Dele fazem parte o ministro da Educação, Aloizio Mercadante, e duas figuras íntimas do poder, mas estranhas ao governo: o marqueteiro João Santana e o ex-ministro da Censura do governo Lula. Franklin Martins. Responsável pela propaganda eleitoral do PT e da então candidata Dilma Rousseff. João Santana é tratado como o quadragésimo ministro, dada a influência que seu trabalho exerce no Planalto. Suas pesquisas serviram de base ao pronunciamento de Dilma no fim de semana mais agudo da crise e continuam pautando as decisões presidenciais. Na questão dos médicos, por exemplo, um auxiliar da presidente chegou a avisar que ela seria torpedeada pelas associações de classe, o que poderia ser eleitoralmente perigoso, considerando o poder de influência da categoria. Prevaleceu o argumento de João Santana, segundo o qual valia a pena enfrentar os médicos, uma vez que o ganho eleitoral do governo compensaria o desgaste provocado pela medida. A presidente decidiu com os olhos voltados para 2014.
Desde o início das manifestações, Dilma Rousseff vem tentando reduzir ao mínimo os danos. De candidata imbatível, hoje os próprios correligionários põem em dúvida seu potencial. A presidente sabe que só vai recuperar a popularidade e chegar a outubro de 2014 com chance real de ser reeleita se der respostas concretas à crise. Franklin Martins foi escalado pelo ex-presidente Lula, a quem Dilma acorre sempre em situações de emergência. A parceria, quase compulsória, entre o ex-ministro e João Santana obrigou os dois a vencer uma rusga recente, ocorrida na Venezuela, onde ambos foram contratados para trabalhar na campanha presidencial que pôs Nicolás Maduro no lugar de Hugo Chávez. Por divergências de opinião, Franklin se desentendeu com Santana, arrumou as malas e voltou para o Brasil. O chamado de Lula fez com que os dois reatassem. Como ambos trabalham para o projeto petista de poder, eles não descuidam da imagem de Lula. Por isso, as mesmas pesquisas que sondam a aprovação da presidente também avaliam a popularidade do ex.
A ideia de incluir na pauta do governo a convocação da Assembleia Constituinte foi de Martins. A trapalhada, no entanto, funcionou como desinformação, especialidade do ex-ministro. Durante quase duas semanas de crise, Dilma e seu plebiscito pautaram as discussões. No futuro, a presidente pode argumentar que tentou resolver as coisas, mas foi impedida pelo Congresso Nacional. As duas ideias atarantadas — ambas saídas dos manuais do PT — também serviram para aproximar a presidente de uma parte da militância que andava se sentindo desprestigiada. Uma pesquisa mostrou que, apesar dos absurdos, mais da metade dos entrevistados aprovou as iniciativas do governo depois dos protestos. Iniciativas, ressalte-se, que na prática não resultaram em nada.
Pesquisas, pesquisas, pesquisas... É disso que se trata. Após as manifestações, a popularidade de
Dilma caiu de 57% para 30%. Não é o que os petistas gostariam, mas também não é o fim do mundo, segundo eles. O grupo de estrategistas da presidente avalia que ela chegará ao fim do ano com pelo menos 40% de índice de aprovação, o que garantiria sua presença no segundo turno. “Há uma relação entre popularidade e quantidade de votos. Com 40%, ela teria cerca de 40 milhões de votos no primeiro turno e sairia na frente na disputa do segundo turno”, diz o cientista político David Fleischer, da Universidade de Brasília. Dentro do PT, a oposição à presidente tem crescido na mesma medida do movimento dos companheiros que trabalham 2 pela volta de Lula. Com a base governista dividida, parte das ações anunciadas por Dilma em resposta aos protestos já foi rechaçada pelo Congresso. Até as centrais sindicais, que nos oito anos de governo Lula se recolheram ao anonimato, tentaram, mesmo que de modo pífio, voltar às ruas. Se Dilma quiser mesmo ressuscitar seu governo, é hora de agir. Só encenação não dá mais.
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Apostas de alto risco
Revista Carta Capital, 13/07/2013
Atrair um médico estrangeiro ao Brasil sem validar seu diploma não é importá-lo, é contrabandeá-lo. Também é arriscado sequestrar estudantes de medicina e colocá-los em locais sem nenhuma estrutura ou sem o treinamento adequado
Ajudar quem precisa é a razão da profissão médica. O salário conta, mas não é tudo. Desconsiderando a situação de emergência, na qual vale tudo para salvar uma vida, nenhum médico em sã consciência trabalharia a rotina em um local sem condições de exercer uma boa medicina.
Não se opera sem centro cirúrgico, não se medica sem remédios, não se faz curativo sem gaze e esparadrapo. Infelizmente, os poucos lugares no Brasil onde há tudo isso e nunca falta estrutura ou materiais são as instituições privadas. A regra nos postos de atendimento público é funcionar como um inferno à brasileira: um dia acaba a lenha, em outro falta o diabo e, no terceiro, esquecem-se de acender o fogo.
A cada ano, formam-se mais de 16 mil médicos. Cerca de 390 mil estudantes tentam entrar em uma faculdade de medicina para ocupar uma dessas vagas. Nos últimos dez anos, abriram-se 77 novas escolas no Brasil, é mais que uma por bimestre. Em 2009, havia 185. Nos Estados Unidos, são 141. Dessas, apenas 27 foram criadas nos últimos dez anos. Se as coisas continuarem assim, em vez de importar médicos precisaremos exportá-los. Isso em menos de uma década.
Não faltam médicos no Brasil, o problema é a concentração deles nos grandes centros. Em qualquer lugar do mundo, essa concentração é ocasionada por dois fatores: infraestrutura e salário. Em geral, o médico tem dois ou mais empregos, um para o sustento e outro para continuar o aprendizado. Se o governo quer médicos em lugares remotos, deveria montar um bom hospital-escola na região, a exemplo do que faz a Marinha do Brasil, que possui um hospital de ponta flutuando em rios da Floresta Amazônica.
A partir de 2015 será mais fácil trabalhar como médico no Brasil se você fizer medicina na Venezuela, por exemplo, e depois vir para cá. Hoje, existem mais de 600 médicos formados por lá e ávidos pela ação do governo a seu favor. Sem contar os brasileiros formados em universidades cubanas.
Na minha juventude, espelhava-me em Che Guevara. Com exceção do charuto, ele era um médico impecável, honesto e dedicado a seu propósito. Conviveu com as diferenças de acesso à saúde e percebeu que a América Latina estava à mercê de corruptos. Assim, formou-se revolucionário. Se o governo realmente quer trazer alguns Ches, precisa considerar que eles podem se voltar contra o próprio governo se esse continuar se desviando dó compromisso: de criar uma nação mais justa.
Melhor seria se o governo criasse um plano de carreira para o médico no trabalho público. É preciso pagar um salário digno e dar condições duradouras para que possam exercer a profissão, em qualquer região do País. Em vez disso, o governo inventou de sequestrar estudantes de medicina, colocá-los em locais sem estrutura e sem treinamento adequado. Promete que haverá médicos pós-graduados para supervisioná-los e mantê-los lá por dois anos. Mas o custo de manter uma equipe tão especializada de supervisão pode tornar inviável o ensino médico. Ou faltarão recursos para a assistência dos pacientes.
Todo médico pode trabalhar em quase qualquer lugar do mundo, mas a validação do diploma é fundamental. Nesse processo, também é avaliado o conhecimento médico sobre às peculiaridades do país onde quer atuar. Trabalhei como médico em outras nações e tive de validar meu diploma. Também trabalhei com médicos cubanos em Angola. Após o convênio entre os países minguar, os cubanos que ficaram definitivamente por lá passaram a trabalhar em clínicas particulares e em bons hospitais.
Trazer um profissional da saúde que não tem fluência em nossa língua e não conhece o modus operandi da medicina brasileira pode ocasionar sérios problemas. Atrair um médico estrangeiro ao Brasil sem validar seu diploma não é importá-lo, é contrabandeá-lo. Existe uma pergunta fundamental ainda não respondida pelas autoridades: se o governo trouxer um médico sem validação de currículo para o Brasil e este com um erro durante o trabalho, de quem será a culpa? Do próprio médico ou do governo que o trouxe para cá, sem a cautela de avaliá-lo?
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