Pedro Doria - Editor Executivo do Jornal O Globo
Em outubro de 2012, quando Hugo Chávez se elegeu pela última vez presidente da Venezuela, eu estava em Caracas cobrindo o pleito para O Globo. Foi uma baita aula de eleição venezuelana.
Quando o domingo de eleição chegou, eu já havia ouvido de um dos ministros do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) seus anseios; havia conversado com demógrafos, tinha as últimas pesquisas de opinião de cor. Entendia a distribuição geográfica e social dos votos de Henrique Caprilles e do presidente. Havia assistido a comícios de ambos os candidatos, todos incrivelmente cheios, todos otimistas. Naquela manhã, qualquer um poderia encontrar uma pesquisa para seu gosto: vitória folgada de um, vitória folgada do outro. As duas pesquisas com maior histórico de acerto em pleitos passados davam uma vantagem ligeira para a oposição.
Passei uma boa parte do dia em Petare, maior favela da capital. Ali, Caprilles havia sido eleito governador de Miranda pouco tempo antes.
(Pausa: erro comum a respeito de Venezuela. Não é 'pobre vota chavismo' e 'rico vota oposição'. Muitos ricos ganharam seus Humvees e BMWs por conta da política bolivariana; vi mais carros de alto luxo em uma semana de Caracas do que em cinco anos de São Paulo ou em um ano de Vale do Silício. Na mesma toada, o chavismo piora a vida de muitos pobres. Mais sobre isso à frente.)
Mais de uma vez assisti, em Petare, a voto de cabresto. Daqueles escancarados. De o presidente da mesa acompanhar o eleitor à urna "para ensiná-lo". Duas, três, quatro. Em uma das vezes, filmei. Também escancaradamente. Eu, um repórter estrangeiro, com credencial pendurada no pescoço, o iPhone travado à frente, sem disfarce. Neste caso, era um fiscal do PSUV que ajudava a senhorinha. Nem ligou. O que estava fazendo lhe era tão natural que não parecia errado. Alguém está filmando? E daí? O vídeo, publicado no site do Globo, foi trending topics na Venezuela por uma semana e tanto.
Quando saíram as pesquisas de boca de urna apuradas até as 13h, todas apontavam vantagem ligeira de Caprilles. A turma do PSUV se trancou em silêncio, nenhum jornalista conseguia acesso ao mais reles assessor. A da oposição, por sua vez, vivia uma ansiedade de que, nem acreditam, mas parece estar próximo. Havia a possibilidade de uma eleição histórica. Já à noite, na sede do CNE, os boletins começaram a demorar. Decidi com alguns companheiros rumar para o comitê Caprilles. Se Chávez fosse reeleito, 'mas de lo mismo', tudo como dantes; por outro lado, haveria história.
Aí veio o telefone: 'Gana Chávez', me informou um colega, repórter de um diário caraquenho, com suas boas fontes no CNE. A vantagem seria apertada, o anúncio ainda demoraria uma hora. Twittei, passei a notícia para o site. E meu motorista estava chorando. Ele acreditara numa vitória Caprilles. Era otimismo só o dia todo. Agora, tinha todos os motivos do mundo para chorar. Sua filha: onze anos. Viviam em um bairro pobre. A escola pública mais próxima de sua casa era excelente. Mas, lá, a menina não conseguia vaga. Por quê? Porque o pai não andava de vermelho, não fazia o serviço do partido. Uma vitória de Caprilles, para ele, era vaga naquela escola. Uma de Chávez era 'más de lo mismo', era tudo como dantes. Para a menina, seis anos de Chávez a levavam numa escola ruim até quase o fim da adolescência. Aquela notícia era uma pequena tragédia pessoal. Sua educação seria pior. Suas oportunidades de chegar à faculdade, piores. Seu futuro era permanecer onde estavam seus pais. E o homem chorava seu vazio.
Quando a manhã do dia de eleição fechou para Caprilles, a máquina bolivariana entrou em ação. Motoqueiros, carros e ônibus foram às ruas em todo o país, na direção dos lugares onde o chavismo era mais forte. Lá, o voto não é obrigatório. E o movimento tem uma capacidade ímpar de mobilização. Os homens e mulheres do partido começaram a bater à porta. 'Já votou?', 'Então venha, Chávez conta com vc.' Fazer o quê? Foram. Seções escolhidas ficaram abertas até muito além do horário e filas ainda se formavam depois das 17h, outras seções fecharam com o rigor da lei.
Cada um daqueles votos depositados em favor de Chávez existiu.
O país estava, como está, rachado. Cindido ao meio. No tempo de Chávez vivo, uma vitória estreita seria sempre impossível para a oposição. Porque vitória estreita a máquina conseguia virar na força bruta. Só que a crise econômica está pior. Será que a margem seria ainda estreita? E Chávez não está mais vivo. De que adianta? Maduro ainda vive o primeiro anos de muitos no mandato. Um Golpe governista? Talvez. Um impeachment? Com o atual Congresso, impossível. Que nem se fale do Supremo. Uma queda por fadiga de material? Talvez. Mas com que formato? Quem assume?
À distância, cada dia desses, me bate uma certa angústia. É muito barra pesada ver em cada esquina o retrato de Chávez ou de Bolívar. O culto à imagem de um país soviético. A truculência dos motoqueiros de vermelho. Os carros de luxo na rua. O altíssimo índice de latrocínios na capital. A falta de papel higiênico no supermercado. A multa para quem consome luz em excesso. Os apagões.
Quem acha que o Brasil do PT parece a Venezuela do PSUV não tem a mais vaga ideia do que aquele pobre país se tornou.
Quando o domingo de eleição chegou, eu já havia ouvido de um dos ministros do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) seus anseios; havia conversado com demógrafos, tinha as últimas pesquisas de opinião de cor. Entendia a distribuição geográfica e social dos votos de Henrique Caprilles e do presidente. Havia assistido a comícios de ambos os candidatos, todos incrivelmente cheios, todos otimistas. Naquela manhã, qualquer um poderia encontrar uma pesquisa para seu gosto: vitória folgada de um, vitória folgada do outro. As duas pesquisas com maior histórico de acerto em pleitos passados davam uma vantagem ligeira para a oposição.
Passei uma boa parte do dia em Petare, maior favela da capital. Ali, Caprilles havia sido eleito governador de Miranda pouco tempo antes.
(Pausa: erro comum a respeito de Venezuela. Não é 'pobre vota chavismo' e 'rico vota oposição'. Muitos ricos ganharam seus Humvees e BMWs por conta da política bolivariana; vi mais carros de alto luxo em uma semana de Caracas do que em cinco anos de São Paulo ou em um ano de Vale do Silício. Na mesma toada, o chavismo piora a vida de muitos pobres. Mais sobre isso à frente.)
Mais de uma vez assisti, em Petare, a voto de cabresto. Daqueles escancarados. De o presidente da mesa acompanhar o eleitor à urna "para ensiná-lo". Duas, três, quatro. Em uma das vezes, filmei. Também escancaradamente. Eu, um repórter estrangeiro, com credencial pendurada no pescoço, o iPhone travado à frente, sem disfarce. Neste caso, era um fiscal do PSUV que ajudava a senhorinha. Nem ligou. O que estava fazendo lhe era tão natural que não parecia errado. Alguém está filmando? E daí? O vídeo, publicado no site do Globo, foi trending topics na Venezuela por uma semana e tanto.
Quando saíram as pesquisas de boca de urna apuradas até as 13h, todas apontavam vantagem ligeira de Caprilles. A turma do PSUV se trancou em silêncio, nenhum jornalista conseguia acesso ao mais reles assessor. A da oposição, por sua vez, vivia uma ansiedade de que, nem acreditam, mas parece estar próximo. Havia a possibilidade de uma eleição histórica. Já à noite, na sede do CNE, os boletins começaram a demorar. Decidi com alguns companheiros rumar para o comitê Caprilles. Se Chávez fosse reeleito, 'mas de lo mismo', tudo como dantes; por outro lado, haveria história.
Aí veio o telefone: 'Gana Chávez', me informou um colega, repórter de um diário caraquenho, com suas boas fontes no CNE. A vantagem seria apertada, o anúncio ainda demoraria uma hora. Twittei, passei a notícia para o site. E meu motorista estava chorando. Ele acreditara numa vitória Caprilles. Era otimismo só o dia todo. Agora, tinha todos os motivos do mundo para chorar. Sua filha: onze anos. Viviam em um bairro pobre. A escola pública mais próxima de sua casa era excelente. Mas, lá, a menina não conseguia vaga. Por quê? Porque o pai não andava de vermelho, não fazia o serviço do partido. Uma vitória de Caprilles, para ele, era vaga naquela escola. Uma de Chávez era 'más de lo mismo', era tudo como dantes. Para a menina, seis anos de Chávez a levavam numa escola ruim até quase o fim da adolescência. Aquela notícia era uma pequena tragédia pessoal. Sua educação seria pior. Suas oportunidades de chegar à faculdade, piores. Seu futuro era permanecer onde estavam seus pais. E o homem chorava seu vazio.
Quando a manhã do dia de eleição fechou para Caprilles, a máquina bolivariana entrou em ação. Motoqueiros, carros e ônibus foram às ruas em todo o país, na direção dos lugares onde o chavismo era mais forte. Lá, o voto não é obrigatório. E o movimento tem uma capacidade ímpar de mobilização. Os homens e mulheres do partido começaram a bater à porta. 'Já votou?', 'Então venha, Chávez conta com vc.' Fazer o quê? Foram. Seções escolhidas ficaram abertas até muito além do horário e filas ainda se formavam depois das 17h, outras seções fecharam com o rigor da lei.
Cada um daqueles votos depositados em favor de Chávez existiu.
O país estava, como está, rachado. Cindido ao meio. No tempo de Chávez vivo, uma vitória estreita seria sempre impossível para a oposição. Porque vitória estreita a máquina conseguia virar na força bruta. Só que a crise econômica está pior. Será que a margem seria ainda estreita? E Chávez não está mais vivo. De que adianta? Maduro ainda vive o primeiro anos de muitos no mandato. Um Golpe governista? Talvez. Um impeachment? Com o atual Congresso, impossível. Que nem se fale do Supremo. Uma queda por fadiga de material? Talvez. Mas com que formato? Quem assume?
À distância, cada dia desses, me bate uma certa angústia. É muito barra pesada ver em cada esquina o retrato de Chávez ou de Bolívar. O culto à imagem de um país soviético. A truculência dos motoqueiros de vermelho. Os carros de luxo na rua. O altíssimo índice de latrocínios na capital. A falta de papel higiênico no supermercado. A multa para quem consome luz em excesso. Os apagões.
Quem acha que o Brasil do PT parece a Venezuela do PSUV não tem a mais vaga ideia do que aquele pobre país se tornou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.