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sábado, 8 de março de 2014

Ucrania: super-Kissinger tem a solucao ao imbroglio

Como resolver a crise ucraniana

Henry Kissinger
O Globo, 8/03/2014

O tema dos debates públicos na Ucrânia é o confronto. No entanto, sabemos para onde estamos nos encaminhando? Em toda a minha vida, presenciei quatro guerras que começaram com grande entusiasmo e apoio da população e, em todas, não sabíamos como terminariam. Em três delas, nos retiramos unilateralmente. O teste, em termos políticos, é como uma guerra termina, não como começa.
Com muita frequência a questão ucraniana é colocada como uma declaração de intenção: se o país adere ao Ocidente ou à Rússia. No entanto, se a Ucrânia pretende sobreviver e prosperar, não pode se tornar um posto avançado de um lado contra o outro. Deve funcionar como uma ponte entre ambos.
A Rússia tem de entender que forçar a Ucrânia a se tornar um país satélite e mexer novamente nas fronteiras russas, condenará Moscou a repetir sua história de ciclos que se concretizam, de pressões recíprocas com Europa e EUA.
O Ocidente precisa entender que, para a Rússia, a Ucrânia jamais será apenas um país estrangeiro. A história russa começou na chamada Kieva-Rus. A religião russa se propagou a partir dali. A Ucrânia fez parte da Rússia durante séculos e suas histórias já estavam entrelaçadas antes disso.
Algumas das mais importantes batalhas pela liberdade russa, a começar pela Batalha de Poltava, em 1709, foram travadas em solo ucraniano. A Frota do Mar Negro, o meio de a Rússia projetar o poder no Mar Mediterrâneo, está baseada, mediante um arrendamento de longo prazo, em Sebastopol, na Crimeia. Até mesmo dissidentes famosos, como Alexander Soljenitsyn e Joseph Brodsky, insistiam que a Ucrânia era parte integral da história russa e, de fato, da Rússia.
A União Europeia precisa admitir que sua demora e a subordinação do elemento estratégico a políticas domésticas nas discussões sobre a inserção da Ucrânia no bloco contribuiu para transformar a negociação numa crise. A política externa é a arte de estabelecer prioridades.
Os ucranianos são o elemento decisivo. Eles vivem num país com uma história complexa e poliglota. O lado ocidental foi incorporado à União Soviética, em 1939, quando Stalin e Hitler dividiram os botins de guerra. A Crimeia, com 60% da população russa, tornou-se parte da Ucrânia apenas em 1954, quando Nikita Kruchev, ucraniano de nascimento, recebeu-a dos cossacos no âmbito das comemorações dos 300 anos de um acordo firmado pelos russos com eles.
Na região ocidental, a maioria é católica. No leste, a população adota a religião ortodoxa russa. Do lado ocidental, a língua falada é o ucraniano. Do lado leste, a maioria fala russo. Qualquer tentativa de uma ala da Ucrânia de dominar a outra levaria eventualmente à guerra civil ou a uma ruptura. Tratar a Ucrânia como parte de um confronto entre Leste e Oeste seria destruir por décadas qualquer perspectiva de unir a Rússia e o Ocidente - especialmente Rússia e Europa - em um sistema internacional cooperativo.
A Ucrânia é um país independente há 23 anos. Antes, manteve-se sob algum tipo de domínio estrangeiro desde o século 14. Não é de surpreender que seus líderes não tenham aprendido a arte do compromisso, e menos ainda a perspectiva histórica.
Rivalidade. A política da Ucrânia pós-independência demonstra claramente que a raiz do problema repousa nos esforços dos políticos ucranianos para impor sua vontade às partes recalcitrantes do país, primeiro por uma facção, depois por outra. Essa é a essência do conflito entre Viktor Yanukovich e sua principal rival política, Yulia Tymoshenko.
Eles representam as duas alas da Ucrânia e não se mostraram dispostos a dividir o poder. Uma política inteligente com relação à Ucrânia deve ser no sentido de buscar uma maneira de as duas partes do país cooperarem uma com a outra. Devemos buscar a reconciliação, não o controle de uma facção.
Rússia e Ocidente, muito menos as diversas facções na Ucrânia, não agiram com base nesse princípio. E tornaram a situação ainda pior. A Rússia não imporia uma solução militar sem se isolar em um momento em que muitas das suas fronteiras já são precárias. Quanto ao Ocidente, a demonização de Vladimir Putin não é uma política, mas um álibi para sua ausência.
Putin deve entender que, sejam quais forem suas queixas, optar pela imposição militar só produzirá uma outra Guerra Fria. Os EUA, por seu lado, devem evitar tratar a Rússia como uma anomalia, um país que precisa ser ensinado pacientemente a respeitar as normas de conduta estabelecidas por Washington.
Putin é um estrategista sério - em termos de história russa. Compreender os valores e a psicologia dos americanos não é o seu forte. Tampouco compreender a história e a psicologia russa é um ponto forte dos estrategistas políticos dos EUA.
Os líderes de todos os lados devem voltar a examinar os resultados e não competir em termos de posições. Eis a minha noção de um resultado compatível com os valores e os interesses no campo da segurança de todos os lados.
Primeiro, a Ucrânia deve ter o direito de decidir livremente suas associações políticas e econômicas, inclusive com a Europa. Em segundo lugar, Kiev não deve aderir à Otan, posição que assumi há sete anos, quando o assunto emergiu pela última vez.
Em terceiro, a Ucrânia deve ser livre para criar um governo compatível com o desejo manifesto do seu povo. Líderes ucranianos sensatos precisam adotar uma política de reconciliação entre as várias partes do seu país. No plano internacional, devem assumir uma posição comparável à da Finlândia. Este país não deixou nenhuma dúvida quanto à sua brava independência e coopera com o Ocidente em muitos campos, mas atentamente evita qualquer hostilidade institucional no tocante à Rússia.
Por fim, é incompatível com as regras da ordem mundial vigente uma anexação da Crimeia pela Rússia. No entanto, deve ser possível manter o relacionamento da Crimeia com a Ucrânia em bases menos tensas. Para isto, a Rússia reconheceria a soberania da Ucrânia sobre a Crimeia. A Ucrânia reforçaria a autonomia da Crimeia em eleições realizadas na presença de observadores internacionais. O processo incluiria a eliminação de qualquer ambiguidade no tocante ao estatuto da Frota do Mar Negro, em Sebastopol.
Esses são princípios, não prescrições. Pessoas que conhecem bem a região saberão que nem todos serão de agrado de todas as partes. O teste não pretende ser uma satisfação absoluta, mas uma insatisfação equilibrada. Se uma solução com base nesses ou em outros elementos comparáveis não for encontrada, a tendência ao confronto irá se acelerar. O que poderá ocorrer muito em breve. /

Henry Kissinger é ex-secretário de Estado dos EUA entre 1973 e 1977.
(Artigo transcrito de O Estado de S. Paulo de 7/3/2014. Tradução: Terezinha Martino)


Um comentário:

Unknown disse...

As propostas do Kissinger mostra a frustração de quem vê a distância do ideal em relação ao estado das coisas. A harmonia democrática é desejável a um país com raízes divididas que não podem se desapegar da outra sem custos enormes. Mas as condições para que isso ocorra ainda estão no âmbito do imaginário dos intelectuais. Os princípios são cunhados pela razão. Mas a dinâmica social segue suas próprias regras (muitas vezes não muito claras ou coerentes). Até mesmo a prudente "insatisfação equilibrada" parece fantasia no caso da Ucrânia. Qualquer esperança de conciliação requer instituições imparciais, garantias dos direitos das minorias e até uma transição de uma cultura de inimizade para uma rivalidade minimamente respeitosa. O reino do real mostra o contrário: corrupção, o predomínio do poder, a falência (institucional e financeira) somados ao cultivo da intolerância e do ressentimento social. O futuro ucraniano parece mais tormentoso do que gostariam de admitir os líderes ocidentais...