Abuso expõe farsa chavista
26 de março de 2014 | 2h 14
Editorial O Estado de S.Paulo
Violações da Constituição que o próprio caudilho Hugo Chávez fez aprovar por plebiscito em 2007 não são exatamente desconhecidas no desditoso país. Mas a que ocorreu na segunda-feira foi clamorosa até para os padrões da ordem bolivariana. Consistiu na cassação sumária, determinada pelo presidente da Assembleia Nacional, Diosdado Cabello, do mandato da deputada María Corina Machado, do partido Vente Venezuela.
A legenda integra o bloco de cinco agremiações que convocaram manifestações pela destituição de Maduro. Outra frente de oposição, a da Mesa da Unidade Democrática, sustenta que o chavismo deve ser batido nas urnas. María Corina assumiu a liderança da ala oposicionista radical desde a prisão de seu mentor, Leopoldo López, do partido Vontade Popular, recolhido desde fevereiro a uma penitenciária militar acusado de insuflar um golpe.
Na sexta-feira, ela aceitou um convite do Panamá - país com o qual Caracas havia rompido relações - para integrar temporariamente a sua delegação junto à Organização dos Estados Americanos (OEA) para expor ao Conselho Permanente da entidade sua visão da crise política em seu país. No entanto, o colegiado aprovou por 22 votos em 34 pedido da Venezuela para que o assunto fosse excluído da pauta.
Já no dia seguinte, antecipando o abuso de que María Corina seria alvo, Maduro se referiu a ela como "ex-deputada". Apanhando a deixa, a Mesa Diretora da Assembleia, presidida por Cabello, destituiu-a de sua cadeira e do direito à imunidade parlamentar, sob a alegação de que ela violara dois artigos da Constituição. Ainda que o tivesse feito, a cassação só poderia ser imposta pelo Tribunal Supremo de Justiça, depois de devido processo.
Um dos artigos que a deputada teria transgredido é o de número 149, que proíbe servidores públicos de aceitar cargos de governos estrangeiros sem autorização legislativa. Para o jurista venezuelano Asdrúbal Aguiar, ex-membro da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a proibição não se aplica a detentores de mandato eletivo. O outro artigo supostamente infringido, o 191, impõe a perda da cadeira a deputados que venham a aceitar ou exercer cargos públicos.
O despropósito é flagrante - não há como equiparar o convite panamenho a María Corina à aceitação ou ao exercício de função pública. "Cabello age como administrador de Justiça", aponta Aguiar. "Isso revela que está em curso na Venezuela uma ditadura sem nenhuma limitação." Segundo outro crítico, Vicente Díaz, integrante do Conselho Nacional Eleitoral, quem violou a Constituição foi a Mesa do Parlamento. "A vontade popular está sendo usurpada", avaliou. "A medida desvaloriza o voto."
Consumada a violência, até os setores moderados da oposição, liderados pelo governador do Estado de Miranda, Henrique Capriles - candidato presidencial derrotado por Chávez e depois por Maduro -, devem ter ficado sem gás para tomar pelo valor de face as propostas de interlocução do Palácio Miraflores, mesmo sob instigação dos chanceleres da Unasul.
Não bastasse a punição de María Corina - um extremo a que o chavismo ainda não tinha ousado chegar -, a Unasul não é propriamente um mediador insuspeito. Foi criada em 2008 por iniciativa de Chávez como alternativa à OEA, segundo ele, a serviço de Washington. Não raro, a Unasul se presta à projeção dos interesses chavistas na região. Poucos de seus membros, por exemplo, concordarão com a ex-deputada quando, ao saber de sua cassação em Lima, no Peru, definiu como "brutal" o regime de Maduro. Será outra coisa?
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