'A alternância é sempre boa', diz FHC sobre tempo no poder
Em entrevista a Roberto D’Avila, Fernando Henrique falou sobre reforma constitucional, rotatividade no poder, contexto atual e governos FHC e Lula.
Roberto D’Avila conversou com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo. FHC falou sobre reforma constitucional, rotatividade no poder, contexto atual, governo FHC e governo Lula, entre outros assuntos.
Sociólogo, um dos intelectuais mais respeitados do país, às vésperas de completar 83 anos, Fernando Henrique Cardoso conserva o mesmo humor ferino, sua marca registrada, mas sempre com muito amor pela vida.
Sociólogo, um dos intelectuais mais respeitados do país, às vésperas de completar 83 anos, Fernando Henrique Cardoso conserva o mesmo humor ferino, sua marca registrada, mas sempre com muito amor pela vida.
FHC costuma dar entrevistas no instituto que leva seu nome, mas desta vez escolheu sua casa. Fernando Henrique governou o Brasil por oito anos: de 1995 a primeiro de janeiro de 2003.
A primeira vez que Roberto D’Avila entrevistou Fernando Henrique foi em 1979, em Paris.
Ele dava aulas na escola de altos estudos da Sorbonne e já era uma das figuras centrais das discussões políticas que reunia centenas de exilados brasileiros que ainda viviam no exterior. Em 1996, já presidente, recebeu Roberto D’Avila no Palácio da Alvorada, em Brasília.
Ele dava aulas na escola de altos estudos da Sorbonne e já era uma das figuras centrais das discussões políticas que reunia centenas de exilados brasileiros que ainda viviam no exterior. Em 1996, já presidente, recebeu Roberto D’Avila no Palácio da Alvorada, em Brasília.
Confira destaques da entrevista a Roberto D’Avila:
Reforma constitucional
Roberto D’Avila: O senhor escreveu um artigo no Globo e na Folha neste fim de semana, em que faz uma chamada aos ex-presidentes, pedindo a reforma política, uma mudança.
Fernando Henrique Cardoso: Esse sistema não está funcionando. Um país que tem mais de 30 partidos, vinte e poucos operando no Congresso. Agora não são dois ou três partidos que se juntam. É todo mundo que se organiza em partido para poder tirar um pedacinho do governo, para ter uma diretoria. E isso é a mola fundamental para aumentar a corrupção. Estamos vendo que esse negócio não vai dar certo. O que vai dar certo? Acho que de cara não dá pra fazer um parlamentarismo, mas dá pra começar a mexer no modo de votar. A presidente Dilma está lá apertada por causa desse sistema também, como todos foram. No meu tempo foi mais fácil, porque não havia tantos partidos. E eu tinha um propósito: reformar a Constituição. Então a aliança era pra isso. Depois, o presidente Lula veio pra nada, porque não reformou constituição nenhuma! O que ele queria? Hegemonia, dominar tudo. E deu o mensalão! Ele diz que não aconteceu. Todo mundo sabe que houve o mensalão.
Roberto D´Avila: O senhor acha que aconteceu aquilo porque tinha muitos pequenos partidos e tinha que distribuir e tal?
Fernando Henrique Cardoso: É! E com a ambição de ter o controle! Pra que ter 80%? Porque como eu disse neste mesmo artigo, na democracia, a maioria são, em geral, eventuais. Não é pra você ter sempre o controle de tudo, mas a visão prevalecente a partir do presidente Lula, do PT, foi essa, de ter hegemonia. Piorou tudo. Não começou, não foi ele que inventou essas práticas, elas vêm de longe. Elas foram se deteriorando com o tempo. Segundo: tem que ter regra de limitar o que é partido. Agora não tem regra: o sujeito junta 20, 30 deputados, assina não sei o que lá, vai no cartório.
Rotatividade no poder
Roberto D´Avila: Se olharmos o mundo, o François Mitterrand ficou 14 anos, o Felipe González, 13 anos, a Margaret Thatcher, acho que 12 anos, Getúlio aqui no Brasil 15. E sempre a corrupção vai aumentando no final. Agora, se não houver uma mudança de governo, vamos para 16 anos. Como é que o senhor vê essa questão da rotatividade?
Fernando Henrique Cardoso: Eu acho imprescindível! Porque é o seguinte, você não pode. Corrupção, você pode dizer: sempre tem sempre.
Roberto D´Avila: Aliás, no último ano aparece mais! Com a eleição.
Fernando Henrique Cardoso: É uma coisa individual, mas quando você institucionaliza, ou seja, quando você tem um sistema, que você pra ter apoios políticos, você vai dar cargos, você sabe que esses cargos vão ser usados para fazer caixinha, aí é um caminho para a corrupção. Quando você fica muito tempo no poder, os compromissos são muitos. Você não consegue mexer na máquina, mesmo querendo. Veja a presidente Dilma: tentou várias vezes. Agora está lá, nomeando tesoureiro de partido para ter posição no governo. Não consegue. Com o tempo, você perde a capacidade de renovar realmente. A alternância é sempre boa. Você vai dizer: "E vocês em São Paulo?". A regra vale. É preciso que haja alguém para quem você passe o poder que seja confiável, que o povo creia nesse alguém. Por enquanto em São Paulo isso não apareceu.
Contexto atual
Roberto D´Avila: O senhor vê que, não por causa do PT ou do governo, o Brasil está vivendo um momento estranho. Essa moça que foi linchada pelas redes sociais, entre outras coisas.
Fernando Henrique Cardoso: Entre outras coisas, mas é uma coisa preocupante. O que é que há hoje no Brasil? No mundo todo você tem movimentos, a internet mobiliza as pessoas, salta as estruturas, é uma coisa muito rápida. Mas aqui há um certo rancor que não era habitual. O Brasil sempre foi violento lá pro Nordeste, pra Amazônia, por causa da terra.
Roberto D´Avila: No Rio Grande do Sul.
Fernando Henrique Cardoso: No Rio Grande do Sul. O que dizer? No Rio Grande do Sul degolavam, mas com o tempo, fomos criando condições mais civilizadas de vida. Agora, você percebe que há uma raiva. Queimam ônibus. Toda noite se queima ônibus no Brasil. Ônibus, viaturas, não sei o que lá. Quebram bancos, quebram edifícios públicos. Há raiva, isso é preocupante, há um mal-estar. Não é uma coisa dirigida contra um partido, contra um governo, a favor. Não é só isso, não. Há um mal-estar, e esse mal estar está indo para a justiça pelas próprias mãos. Mataram uma moça. Ainda disse um dos que foram acusados: "Eu não sabia que ela era inocente". E se fosse culpada, ele podia matar? Quer dizer, é um clima ruim. Aí vem com o problema: o que vai acontecer na Copa. Ninguém sabe, ninguém sabe. Deverá haver manifestações, porque hoje é um movimento de internet. Agora, eu tenho medo da junção de vários fatores desse tipo assim que vão azedando o clima. Se houver um sentimento de mal-estar, todos os que estão no governo sofrem.
O Plano Real
Roberto D´Avila: Estamos comemorando os 20 anos do Real, que foi importantíssimo. A população brasileira nunca perdeu tanto quanto com a inflação. Era um horror. O senhor tem esse mérito. Aliás, o presidente Itamar tem esse mérito, já que o senhor era o ministro da Fazenda. Como é que foi aquele momento?
Fernando Henrique Cardoso: Aquele momento era o seguinte: você tinha uma inflação em média de 20% ao ano.
Roberto D´Avila: Os jovens nem sabem, não é?
Fernando Henrique Cardoso: Não têm ideia. Agora, nós aprendemos com os planos anteriores, inclusive o plano Cruzado, que ensinou, e eu consegui juntar as pessoas. O governo, os amigos do presidente Itamar desconfiavam muito. Ele próprio: “O que é isso?”. Não entendia. Economia é complicado. Geralmente você tem que fazer o contrário do que parece o óbvio.
Roberto D´Avila: Aliás, o senhor confiou no pessoal.
Fernando Henrique Cardoso: Eu não sou economista, mas eu sei. Fui da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), conheço razoavelmente para acompanhar. É muito difícil juntar gente com muito talento. A visão prevalecente era a seguinte: isso é fruto da especulação. Enquanto o pessoal do governo me dizia: "Olha aqui, prende o Abílio - o Abílio Diniz, dono do Pão de Açúcar -, prende o Abílio, porque é especulador e controla os preços, segura os preços". Era essa a visão comum. Nós tivemos que mostrar o contrário, explicar ao presidente Itamar. O Bacha foi muito importante na explicação ao presidente Itamar, que não entendia muito dessa dinâmica. O Itamar sempre me deu força naquela época. Depois, quando ele foi eleito governador, ele esqueceu o que era o Real. Ele achou que podia fazer uma moratória de Minas e não podia.
Roberto D´Avila: O senhor deve a ele dois ministérios importantes.
Fernando Henrique Cardoso: Devo dois ministérios e o apoio durante aquele período. Fizemos o plano Real. O plano Real, de imediato, beneficiou o salário, porque quando você tem uma inflação de 20, 30 no mês, você na média perdeu 15, que vai perder no dia a dia.
Roberto D´Avila: Os ricos se defendiam, não é?
Fernando Henrique Cardoso: Os ricos tinham uma conta no banco, o banco corrigia automaticamente, correção monetária.
Governo FHC e governo Lula
Roberto D´Avila: Todo mundo, os grandes historiadores, dizem que o seu período e o do Lula vão ficar na história mais ou menos como de continuidade.
Fernando Henrique Cardoso: Porque foram momentos que você teve estabilização e políticas sociais.
Roberto D´Avila: Ele distribuiu mais a riqueza, não é?
Fernando Henrique Cardoso: Porque ele tinha mais condições, porque a economia estava mais... Eu peguei cinco crises, mas as bolsas foram criadas por mim, todas. A reforma agrária eu fiz mais, duas, três vezes mais, do que o governo atual. Educação, o acesso à escola primária foi no meu tempo, e o SUS praticamente foi montado no meu governo. O Globo fez uma síntese de tudo isso muito interessante, publicada há um tempo atrás, comparando os governos. Itamar e FH e Lula e Dilma. Indiscutivelmente, houve uma melhoria maior da situação, porque o mundo também favoreceu isso, porque o Lula tinha um compromisso forte com isso também. Eu nunca faço injustiças como ele faz comigo, mas no conjunto nós aprendemos a manejar as políticas para o mundo atual, que é de globalização, onde os nossos interesses nacionais têm que ser defendidos num plano global.
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