RESENHA
Sistema internacional com hegemonia das democracias de mercado: desafios de Brasil e Argentina*
VIOLA, Eduardo & LEIS, Héctor Ricardo. Sistema internacional com hegemonia das democracias de mercado: desafios de Brasil e Argentina. Florianópolis: Insular, 2007, 232 p., ISBN: 978-85-7474-339-4.
Thiago Gehre Galvão
Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima – UFRR e doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB (thiago.gehre@gmail.com)
Um duro retrato da realidade internacional: esta talvez seja a frase que melhor sintetiza o livro de Eduardo Viola, professor titular de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, e Héctor Ricardo Leis, professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Após quase vinte anos do colapso da União Soviética as transformações operadas no sistema internacional agora podem ser melhor percebidas: coube aos autores descrevê-las de forma coerente e contundente.
A linha central de pensamento dos autores é que o sistema de estados que delineia a ordem internacional vigente é baseado na hegemonia das democracias de mercado. Nesse sentido, o protagonismo norte-americano só é válido em composição com outras grandes potências: juntas, como democracias de mercado consolidadas, fazem da democracia seu modelo político, do capitalismo de mercado sua moldura econômica definidora e da globalização seu veículo de manutenção ou transformação da ordem vigente. Ainda que exaltando o verdadeiro liberalismo, a análise de ambos aponta para uma valorização do progresso social e econômico como metas universais, em detrimento de orientações puramente ideológicas.
O objetivo da obra é o de apresentar ao leitor inteligente um retrato realista da cena internacional do século 21, desenhada não por incertezas e bifurcações, nem por antagonismos de classes e forças sociais, mas pela certeza da preponderância do liberalismo em construir um mundo em consonância com as demandas sociais e com o objetivo de preparar as novas gerações para lidar com a infinidade de velhos e novos desafios deste milênio, como terrorismo, pobreza e desigualdades globais, epidemias e problemas ecológicos (poluição, desflorestamento, escassez de água...).
Para tanto, os autores dividem a obra em três partes principais com cinco capítulos: tratam da rota de Brasil, Argentina e América do Sul rumo ao universo pós-histórico das democracias de mercado. No primeiro capítulo, O sistema internacional com hegemonia das democracias de mercado no início do século XXI, os autores se dedicam coerentemente a um esforço de conceitualização das principais categorias explicativas que subsidiam o argumento do livro, como globalização, sociedade do conhecimento, regime político e política exterior. Além disso, produzem um panorama do mundo no início do ano de 2007, numa preocupação de analisar a conjuntura atual das relações internacionais.
O segundo capítulo Brasil: modernização lenta e travada de uma sociedade de corte é dedicado a explicar, a partir do perfil sócio-político brasileiro, os entraves ao desenvolvimento nacional. Para os autores, o tipo de relação pessoal de privilégio e segregação promovido pelas elites nacionais é nefasto para as pretensões nacionais de potência, uma vez que "a lentidão do Brasil cobra um forte preço em termos de prosperidade e oportunidades" (p. 79).
Argentina: modernização parcial e retrocessos cíclicos de uma sociedade movimentista, terceiro capítulo da obra, discute a realidade do principal vizinho brasileiro e coloca em evidência a montanha russa histórica que representa o passado do país em sua investida internacional. Diferentemente do Brasil, marcado por uma lenta progressão no seu processo de desenvolvimento, a Argentina teve sua história marcada por rupturas e retrocessos que foram fatais em colocar o país numa situação periférica e de subdesenvolvimento. Esse descaminho histórico é promovido por movimentos (sociais, ideológicos, nacionalistas) que minam e corroem as bases da fortaleza institucional democrática.
Os capítulos quatro e cinco delimitam uma terceira parte da obra, na qual Viola e Leis ajustam o foco de análise para abarcar o todo sul-americano. No quarto capítulo, América do Sul e suas alternativas de integração, e no quinto, O dilema da América do Sul no século XXI: democracia de mercado com estado de direito ou populismo, os autores apontam para a trajetória declinante da região. Com exceção do Chile, bem sucedido nas reformas políticas e econômicas de liberalização, os outros países apresentam resultados pífios: a estagnação uruguaia, a orientação nortista do Peru, a peculiaridade colombiana (crescimento econômico e crise política interna), a constante instabilidade do Equador, a decadência política e social da Venezuela, a Bolívia como um país a beira da desintegração, o Paraguai como um precursor de Estado fracassado e Guiana e Suriname como portas de entrada dos ilícitos transnacionais. Além disso, na visão dos autores, o Brasil se perde na sua cruzada pela liderança regional, uma vez que a "principal potência da América do Sul' são os EUA, e não o Brasil". O dilema sul-americano evidencia-se do encontro entre populismo e democracia: será o populismo capaz de gerar verdadeiras democracias de mercado? Para Viola e Leis a resposta é óbvia: o populismo só tende a esfacelar as sociedades em fatias irreconciliáveis!
Por um lado, a obra de Viola e Leis apresenta pequenos desvios: por ser uma análise essencialmente conjuntural incorre nas dificuldades inerentes a este tipo de abordagem, como não conseguir enxergar tendências de longa duração, nem acompanhar as modificações recentes da vida política doméstica e internacional. Por outro, compensa pela riqueza analítica e conceitual, contribuindo decisivamente para o campo de estudo das Relações Internacionais ao disseminar uma visão de mundo condizente com os anseios e expectativas de sociedades em desenvolvimento, como a brasileira e a argentina. Ademais, os autores apresentam colocações contundentes e afirmativas acerca da inserção de Brasil e Argentina em um mundo democrático desenvolvido, posicionando-se objetivamente em determinado locus do mundo das idéias. Por exemplo, afirmam que "o maior paradoxo do Brasil é produzir exclusão social em nome da inclusão" (p. 79) ou que "o futuro da Argentina parece ser o eterno retorno do movimento e a contínua decadência do país em ciclos de euforia e de depressão" (p. 171).
Viola e Leis apontam em seu livro para o surgimento de novas esperanças para os medos e ameaças da vida internacional após o colapso soviético e após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Em um novo mundo, no qual sobressai a figura do império norte-americano, desenvolvem a análise com base em um argumento maduro, longe de representar uma visão ingênua ou doutrinária sobre o papel dos EUA no mundo. Isto torna a obra uma referência para debates e discussões dentro do campo de relações internacionais, bem como em outras áreas conexas, algo pouco estimulado na academia brasileira. Além disso, conceitualmente, o livro avança ao apontar uma nova forma de compreender a distribuição de poder no mundo: não a partir de uma sociedade internacional global ou um espaço mundial, nem uma ordem unipolar ou unimultipolar – os autores falam de um sistema de hegemonia das democracias de mercado.
Em suma, os autores vislumbram um novo arranjo nas relações internacionais do século 21, semelhante ao surgido no início do século 19 na Europa. Duzentos anos depois, estaria emergindo um concerto democrático capitalista de mercado para ditar o ritmo da ordem internacional pós-guerra fria. Conforma-se, na visão dos autores, uma poliarquia democrática capitalista mundial para regular uma nova ordem em direção à homogeneização política e econômica. Por isso, a obra de Viola e Leis deve ser lida como uma lúcida saudação à era das democracias de mercado.
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Brasil
e Argentina no contexto regional e mundial
Paulo Roberto de Almeida
Prefácio ao livro de
Eduardo Viola e Héctor Ricardo Leis:
Sistema
Internacional com Hegemonia das Democracias de Mercado: Desafios de Brasil e
Argentina (Florianópolis:
Editora Insular; Programa San Tiago Dantas – CAPES, 2007)
O
historiador Fernand Braudel – que confessou ter ficado “inteligente” no Brasil,
para onde veio como jovem professor universitário nos anos 1930 – costumava
separar os eventos rápidos da vida política dos movimentos mais lentos do
processo econômico, e ambos das transformações seculares das estruturas sociais
e das configurações civilizacionais, que se moviam a uma velocidade próxima à
“história geológica”. Um outro historiador britânico adepto da “história
lenta”, Lawrence Stone, dizia, por sua vez, que a história avança muito
lentamente, como uma velha carroça desajustada, com os eixos rangendo e as
rodas desalinhadas.
O
mesmo parece se aplicar, sob nossos olhos, a certas configurações
“ideológicas”, em especial aquelas derivadas da tradição revolucionária
francesa, que criou todo o vocabulário e a coreografia que ainda agitam a
política contemporânea. Alguns dos conceitos consagrados por essa velha
tradição converteram-se, efetivamente, em “tradicionais”: eles estão
desajustados aos requerimentos da vida moderna, mas continuam por aí, num
deslocar errático e irregular, como os eixos rangentes de um velho carro de
bois que ainda não foi aposentado pela modernidade.
Tomemos,
por exemplo, os conceitos de esquerda e de direita, ou de progressista e
conservador, geralmente identificados a valores, normas e princípios que
seriam, cada um a seu modo, positivos ou negativos no plano das mudanças
sociais. A esquerda estaria identificada com a justiça e a igualdade, lutando por
uma distribuição mais equânime da riqueza, normalmente por via do
distributivismo estatal e da solidariedade contratual. À direita restaria o
papel de preservar as velhas estruturas, ressaltando o papel do esforço e do
mérito individuais e das estruturas de mercado na promoção da prosperidade
geral, aceitando, portanto, a desigualdade como um fato natural da vida. No
plano social e político, a esquerda estaria sempre do lado dos humildes e
oprimidos, lutando pelos direitos dos trabalhadores contra os patrões
“exploradores”. A direita, obviamente, se alinharia com aqueles capitalistas de
cartola e charuto, na missão de estender a dominação do capital aos mais
diferentes cantos do planeta, concentrando ainda mais riqueza e poder, em
detrimento dos povos da periferia e dos pobres dos países ricos.
Qualquer
que seja a validade respectiva desses estereótipos para o mundo contemporâneo,
não se pode recusar o fato de que a direita ainda apóia os seus discursos no
liberalismo clássico, de antiga extração britânica, e que parte da esquerda,
por sua vez, ainda pretende aplicar Marx ao contexto atual, repisando velhos
argumentos classistas, anticapitalistas e antimercado, ao mesmo tempo em que
clama por reivindicações igualitárias, sem muito embasamento na economia real.
Na América Latina, em especial, o pensamento dito “progressista” ainda é
estatizante, centrado na distribuição dos “lucros do capital” e voltado para um
combate de retaguarda contra a marcha da globalização contemporânea.
O
retrato pode parecer caricatural, mas é certo que a esquerda latino-americana,
aliada no chamado movimento antiglobalizador a velhos sindicalistas, a jovens
idealistas e a universitários em tempo integral, pretende extrair das antigas
lições marxianas sobre a “dominação do capital” a necessidade de superar esse
estado de coisas, rejeitando tudo isso que aí está, em nome de “um outro mundo
possível”. Ela acaba, pateticamente, se rendendo a contrafações do modelo
original, como se pode constatar em experiências regionais que demonstram uma
filiação “genética” mais próxima do fascismo mussoliniano do que de um
pretendido socialismo gramsciano. Em termos braudelianos, a esquerda congela
seus conceitos e ações políticas no mundo quase estático das lentas mudanças
“geológicas”, em lugar de adaptar-se a uma conjuntura histórica de
transformações – para empregar o conceito de outro historiador francês, Ernest
Labrousse –, que se descortina aos olhos de quem quer enfrentar a realidade sem
as viseiras ideológicas do passado e aspira a entender o mundo como ele é,
realmente, não como ela gostaria que ele fosse.
Curiosamente,
a América Latina era apontada, até meados do século XX pelo menos, como o
continente que lograria igualar-se aos países desenvolvidos, se perseverasse
nos esforços de industrialização substitutiva, no planejamento estatal, no
protecionismo comercial, nos subsídios à “indústria infante”, na integração
introvertida e em políticas dirigistas que atribuíam ao Estado o papel
principal na determinação quanto ao uso de fatores, na mobilização de capitais
– por via inflacionária, uma forma de poupança forçada – e na alocação
autoritária dos recursos assim capturados do conjunto da sociedade. Incidiu
nesse tipo de recomendação o economista sueco Gunnar Myrdal – prêmio Nobel em
1974, junto com o liberal austríaco Alfred Hayek, por ironia da história – que,
no seu tão aclamado quanto errôneo Asian
Drama, vaticinava que a Ásia era sinônimo de miséria insuperável e que se
havia países no Terceiro Mundo que tinham alguma chance de alçar-se aos patamares
de bem-estar e riqueza dos desenvolvidos, estes eram os latino-americanos.
Myrdal preconiza para todos o modelo indiano, feito de planejamento
centralizado, empresas estatais em todos os “setores estratégicos” e
descolamento dos mercados internacionais, que supostamente condenava esses
países à exportação de commodities
sujeitas às flutuações das bolsas de mercadorias. À época em que ele pesquisou
e escreveu – início dos anos 1960 – a maior parte dos países da América Latina
estava mais integrada à economia mundial do que os da Ásia, ostentava, na
média, o dobro da renda per capita asiática e possuía instituições públicas –
Estados consolidados, depois de 130 anos de independência, estruturas de
mercado capitalistas – que seriam, no cômputo global, mais “weberianamente”
pró-crescimento e pró-desenvolvimento do que as arcaicas tradições confucianas
da região asiática. O itinerário seguido desde então pelas duas regiões não
precisa ser relembrado: a Ásia decolou espetacularmente na economia mundial e nos
indicadores de crescimento – tanto mais rapidamente quanto ela se afastou das
políticas socialistas e estatizantes recomendadas por Myrdal – enquanto a
América Latina manteve-se, com poucas exceções, no subdesenvolvimento, na
desigualdade e na pobreza. Para isso também contribuíram experimentos
populistas, irresponsabilidade emissionista, desrespeito aos direitos de
propriedade, desconfiança da abertura ao exterior – comércio e investimentos –
e uma insistência no centralismo estatizante que marca ainda hoje boa parte da
esquerda neste continente.
Os
autores deste livro conhecem um pouco dessa história, por experiência própria,
se ouso dizer. Outrora pertencentes, como vários jovens dessa geração, ao
universo do marxismo latino-americano, naturalizados brasileiros justamente em
virtude da história trágica de equívocos conceituais e de erros práticos da
esquerda argentina do último terço do século XX, eles estão muito bem
preparados para enfrentar a tarefa de analisar a trajetória do Brasil e da
Argentina no contexto das modernas democracias de mercado. A migração forçada
de um país a outro, a descoberta de realidades políticas relativamente
similares, ainda que sob roupagens distintas, e o comparatismo inevitável que
esse tipo de situação cria, permitiu-lhes constatar, provavelmente, como os
mesmos diagnósticos equivocados feitos por lideranças políticas, lá e aqui,
redundaram em perda de oportunidades de inserção no mundo globalizado da
atualidade, atrasando o processo de desenvolvimento e postergando a conquista
da almejada prosperidade social.
De
fato, a despeito de uma história singular, que corre em trilhas próprias, o
Brasil e a Argentina reproduzem, em boa medida, equívocos similares de
políticas públicas – tanto macroeconômicas quanto setoriais – cometidos por
diferentes regimes políticos ao longo do século XX. Se o recurso a Suetônio
cabe na sociologia comparada do desenvolvimento, pode-se dizer que os dois
grandes da América do Sul exibem “vidas paralelas”. Tanto o Brasil como a Argentina padecem de insuficiências de
desenvolvimento, mas a maior parte dos problemas de cada um deriva de erros de
gestão macroeconômica e de escolhas infelizes das elites políticas ao longo da
formação das nações e das dificuldades de ajuste aos desafios externos.
Durante muito tempo, grosso modo na primeira metade
desse século, prevaleceu no Brasil a idéia de que a Argentina era bem mais
desenvolvida, graças a um maior componente “europeu” na sua formação étnica e
aos maiores cuidados com a educação do seu povo. Em contrapartida, ao
aprofundar-se sua trajetória em direção à decadência econômica, prevaleceu na
Argentina a noção de que o Brasil foi mais bem sucedido na industrialização e
no fortalecimento da base econômica graças ao maior envolvimento de seu Estado
na gestão macroeconômica, em lugar do liberalismo que teria sido praticado nas
margens do Prata. Em ambos os países, líderes populistas e ditadores militares
se revezaram nos comandos do Estado pretendendo construir a grandeza nacional
com base no nacionalismo industrializante e no emissionismo inflacionário.
Ambas as economias foram relativamente excêntricas – isto é, voltadas para os
parceiros privilegiados no hemisfério norte – e os regimes políticos
mantiveram, contra toda racionalidade e interesses imediatos, certo
distanciamento competitivo, que em alguns momentos quase descambou para a
hostilidade, isto é, para a corrida armamentista e uma possível disputa pela
hegemonia regional.
Os dois países passaram, depois de superadas suas
repúblicas “oligárquicas” – mais ou menos na mesma época, os anos 1930 –, por
processos de modernização econômica e política, sob a forma de experimentos
nacionalistas e populistas, identificados com as figuras de Vargas e Perón. A
Argentina logrou, provavelmente, um maior grau de inserção social, mas o Brasil
foi menos errático no processo de desenvolvimento, conseguindo consolidar a
construção de uma base industrial que nunca teve paralelo na Argentina, que
permanece ainda hoje uma economia agroexportadora. Os azares da Guerra Fria e
as ameaças percebidas pelas classes médias como provenientes da sindicalização
excessiva do sistema político conduziram ambos os países em direção de
episódios mais ou menos prolongados de autoritarismo militar.
O período militar – responsável pela vinda dos autores
ao Brasil – assumiu dimensões mais dramáticas na Argentina, com um custo
elevado em vidas humanas e outras conseqüências menos desejáveis no plano das
relações bilaterais, com o fenômeno que dois autores consagrados – Boris Fausto
e Fernando Devoto, no livro Brasil e
Argentina: um ensaio de história comparada (1850-2002) – chamaram de
“afinidades repressivas”. As esquerdas padeceram muito no tempo das baionetas,
mas talvez conservem, desse período, a mesma inclinação fundamental ao culto do
Estado, para a autarquia econômica e o protecionismo instintivo que exibiam os
militares. Hoje, se pretende avançar no desenvolvimento conjunto, mediante o
Mercosul, mas as salvaguardas e os desvios ao livre comércio colocam limites à
integração econômica.
Com efeito, a fase de redemocratização permitiu
revigorar o processo de integração, que tinha começado no final dos anos 1950,
desta vez segundo um formato bilateral – tratado para a formação de um mercado
comum de 1988 – que logo se desdobrou numa dimensão quadrilateral, ao
incorporar os dois vizinhos menores em 1991. O Mercosul logrou incluir outros
países, como o Chile e a Bolívia (associados em 1996) e, mais recentemente, a
Venezuela, mas sua zona de livre-comércio permanece incompleta, sua união
aduaneira é perfurada por inúmeras exceções nacionais e o mercado comum,
prometido para 1995, é um sonho ainda distante.
O itinerário dos dois países, mesmo contrastante nos
planos cultural, social e político, não deixa de apresentar coincidências ou
similitudes nos planos do desenvolvimento econômico e da inserção
internacional, o que talvez permita retomar ao presidente argentino Roque Sáenz
Peña uma frase, do início do século XX, que resume a visão otimista da
cooperação bilateral, sempre invocada pelas autoridades engajadas no atual
processo de integração: “Tudo nos une, nada nos separa”. Talvez – com a
provável exceção dos campos de futebol –, mas a história raramente se contenta
com projetos meramente retóricos de desenvolvimento ou de integração internacional.
Nesse particular, o Brasil e a Argentina apresentam trajetórias erráticas, com
impulsos positivos em determinadas épocas e atitudes defensivas em outras. O
elemento mais notável, da presente fase, é provavelmente constituído pela
incapacidade respectiva em empreender reformas que os coloquem em condições de
se inserir de modo mais afirmativo na economia globalizada que caracteriza o
Atlântico Norte e a região da Ásia Pacífico.
Os
trabalhos compilados neste livro discutem as novas circunstâncias da economia
global e os padrões atuais de organização política, com os problemas daí
derivados para Estados, como o Brasil e a Argentina, que ainda estão
construindo sua inclusão no novo sistema, que os autores chamam de “hegemonia
das democracias de mercado”. A leitura destas páginas, impregnadas de
conhecimento histórico e de racionalidade sociológica, permite constatar como
são anacrônicas as demandas e reivindicações de alguns desses militantes de
causas equivocadas, armados de slogans retirados de um já mundo desaparecido
nas dobras da história – como os conceitos de “dependência” ou de
“antiimperialismo” –, que insistem em defender causas que não são mais de
vanguarda ou sequer progressistas. A oposição desses grupos e movimentos
políticos a reformas institucionais que permitiriam inserir mais rapidamente os
países da América Latina nas correntes mais dinâmicas da globalização –
reformas política, previdenciária, trabalhista, tributária, sindical ou
educacional – não é apenas conservadora, mas pode ser tachada de propriamente
reacionária, em vista dos imensos problemas acumulados pelos países da região
nesses aspectos que muito têm a ver com as perspectivas de emprego, renda e
oportunidades de ascensão social de imensas massas ainda hoje excluídas de
qualquer possibilidade de inserção produtiva no tecido social.
Os
autores não deixam de confessar sua surpresa, logo na introdução, com o fato de
que muitos intelectuais desenvolveram um agudo senso de anticapitalismo –
sentimento que, no meu ponto de vista, consegue inclusive ser antimercado – , o
que os fez cúmplices objetivos das piores barbaridades cometidas no século XX
contra os direitos humanos e a democracia. Na América Latina, em particular,
esse anticapitalismo visceral dos intelectuais obstaculizou a modernização
econômica e social dos países, a começar pelo aggiornamento do próprio Estado, no sentido de libertá-lo, ou pelo
menos distanciá-lo, da herança centralista e patrimonialista ibérica, em prol
de uma visão do mundo que estivesse mais objetivamente em consonância com os
requisitos de uma moderna “democracia de mercado”, aberta aos influxos da
economia global.
Aparentemente
incapazes de renovar conceitos e aceitar as novas realidades da economia
mundial, os intelectuais da América Latina continuarão a mover-se, no futuro
previsível, ao ritmo do “tempo geológico” de Fernand Braudel, arrastando-se, em
grande medida, pelos caminhos da modernidade numa trajetória tão tortuosa e
torturada quanto o permitido pela “velha carroça da história”, de que falava Lawrence
Stone. Isto a despeito de se poder constatar, hoje em dia, que outros povos e
países estão fazendo melhor e mais rápido no caminho da modernidade do que a
quase totalidade da América Latina. A região poderia ser uma espécie de
“Prometeu acorrentado”, se apenas grilhões materiais a prendessem a um passado
mercantilista e patrimonialista, se meros impedimentos técnicos a impedissem de
avançar mais aceleradamente no caminho do progresso tecnológico e da
capacitação científica. Mas, os grilhões que a prendem ao atraso material e à
irrelevância intelectual são de outra natureza: são propriamente mentais,
invisíveis, se quisermos, ainda que alertas sejam regularmente lançados contra
essa busca ativa pelo declínio econômico e pelo retrocesso político. Este livro,
aliás, é um exemplo de alarme intelectual.
A
insistência na velhas soluções estatizantes, na repetição dos mesmos erros do
passado, a tendência a encontrar bodes expiatórios no estrangeiro e a alimentar
teorias conspiratórias sobre as razões do nosso fracasso são tanto mais
surpreendentes quanto estão disponíveis boas análises – por analistas
individuais ou por organismos multilaterais – sobre as razões da trajetória
errática e da miopia das elites. O mais surpreendente e frustrante é que
continue a prevalecer, tanto na academia quanto na opinião pública, explicações
simplistas, e geralmente equivocadas, sobre as causas de nossos problemas – que
são de origem majoritariamente interna – e sobre as soluções que lhes seriam
pertinentes. Não constitui surpresa, assim, se a cada classificação
internacional de desempenho relativo – no crescimento, na educação, na
competitividade, na tecnologia e em vários outros setores ainda –, a América
Latina continua a ser ultrapassada por todas as demais regiões, com a possível
exceção da África, ainda assim melhor colocada esta, nas taxas atuais de
crescimento econômico. A julgar por certas “inovações” populistas recentes na
região, a escolha parece ser por mais Estado, mais nacionalizações, menor
atratividade do capital estrangeiro e, de forma não surpreendente, uma opção
preferencial pelas soluções distributivistas e rentistas.
Acadêmicos
experientes no debate intelectual em torno da “contra-reforma” modernista
latino-americana, tanto pela sua vivência pregressa na Argentina, como pelo
longo convívio nas universidades do Brasil, observadores atentos das realidades
regionais e, à maneira de Raymond Aron, “espectadores engajados” na construção
da ordem mundial pós-guerra fria e no grande espetáculo da globalização contemporânea,
os dois autores, Eduardo Viola e Héctor Ricardo Leis, estão amplamente
capacitados para oferecer uma análise de qualidade sobre os desafios do Brasil,
da Argentina e de toda a região nessa difícil, mas indispensável, inserção no
sistema internacional das democracias de mercado. O retrato que eles fazem da
região, dos dois grandes da América do Sul em particular, não é muito otimista,
mas é sem dúvida alguma necessário e bem-vindo, em face dos desafios
remanescentes.
Intelectuais
verdadeiros devem ostentar, antes de mais nada, espírito crítico, sem se deixar
aprisionar pelas lutas políticas em curso na sociedade na qual vivem ou se
enredar nas ideologias em competição na ágora universitária. A honestidade
intelectual é o seu primeiro e único dever. Desse ponto de vista, nossos dois
autores não se enquadram na antiga crítica sobre a “traição dos clérigos” de
que falava Julien Benda. Ao contrário: eles estão em sintonia com as
necessidades do tempo presente e fazem do seu ofício um instrumento crítico de
esclarecimento da maioria, em prol do progresso social e em benefício da razão,
como apreciaria Kant.
Paulo Roberto de Almeida
Doutor em ciências sociais, diplomata,
professor no mestrado em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).
Brasília, maio de 2007
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