Poderia ter escolhido outro trecho ou passagem de sua obra, mas escolhi essa deliberadamente porque já naquele entonces eu temia pelas liberdades no Brasil.
Agora então, nem falar.
Segue o repeteco, pois a advertência continua mais válida do que nunca...
Paulo Roberto de Almeida
A liberdade de destruir a liberdade: um aviso preventivo vindo do
passado
Minha homenagem a
Norberto Bobbio nos seus 100 anos de nascimento
Paulo Roberto de
Almeida
Norberto Bobbio, o maior
intelectual italiano do século 20, nasceu em Torino no dia 18 de outubro de
1909, e teria, portanto, neste dia 18 de outubro de 2009, exatamente cem anos,
o que ele ‘falhou’ em completar em aproximadamente cinco anos, tendo falecido
em Torino em 9 de janeiro de 2004. Retomo esses dados da excelente cronologia
elaborada sobre sua vida e obra por Marco Revelli, no volume que adquiri
recentemente em Veneza tão pronto ele foi publicado:
Norberto Bobbio
Etica e Politica:
Scritti di impegno civile
Progetto editoriale e saggio introduttivo di
Marco Revelli
(Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 2009, 1718
p.; ISBN: 978-04-57314-2)
(Paguei 55 euros, o que representa 3 centavos
de euro por página, cada uma bem mais valiosa em sabedoria e conhecimento do
que o seu estrito valor monetário)
O volume é uma compilação de
seus escritos mais importantes, divididos em cinco partes, começando por sua Autobiografia intellettuale: Compagni e Maestri (seus colegas de
colégio, de universidade e de lutas políticas, sobretudo antifascistas e pela
liberdade e democracia na Itália republicana do pós-guerra); Valori Politici e Dilemmi Etici
(escritos e conferências sobre a ética e a política, sobre a liberdade e a
igualdade, sobre a paz e a guerra); Le
Forme della Politica (seus textos mais famosos de polêmica: Democrazia e dittatura, Socialismo e comunismo e Destra e sinistra); e, ao final, Congedo (seus escritos da idade senil: De senectute e A me stesso).
O livro é precedido por uma
introdução magistral de Marco Revelli (Nel
labirinto del Novecento), de uma cronologia e notas a esta edição, do mesmo
autor, que também complementa o livro por notas sobre os textos, por uma
bibliografia completíssima e por um índice dos nomes (não, infelizmente não
existe um índice de ideias, que teria sido um instrumento muito útil ao
pesquisador).
O livro é um tesouro de trouvailles (como os textos sobre os
amigos, homenagens publicadas em revistas, para nós obscuras, geralmente por
ocasião da morte de cada um deles; e Bobbio sobreviveu à maior parte dei suoi compagni), assim como um
instrumento poderoso de referências sobre todos os seus trabalhos publicados,
aqui apenas selecionados. Bobbio
tem, segundo Revelli, 4.803 escritos catalogados, em todas as categorias –
livros, artigos, conferências, entrevistas – o que daria 128 volumes, com 944
artigos, 1.452 ensaios, 457 entrevistas, 316 palestras). Ufa!: vai ser preciso
algum tempo para ler tudo, por isso mesmo este volume é um achado.
Na impossibilidade de falar
aqui de todos, ou sequer dos mais importantes textos selecionados neste volume,
prefiro fazer uma transcrição de um dos escritos compilados por Revelli, que
talvez guarde alguma similaridade com a situação política do Brasil atual. Ele
foi escrito por Norberto Bobbio em 1969 e fazia parte de uma homenagem prestada
ao seu colega de colégio Leone Ginzburg, intelectual de origem russa, judeu,
lutador antifascista, assassinado pela Gestapo em Roma, em 1944. No 25o.
aniversário de sua morte, Bobbio publicou uma carta numa edição especial, Dialogo con Leone Ginzburg, na revista Resistenza (a. XXXIII, n. 4, aprile
1969), na qual dizia o seguinte (transcrevo o original italiano, e depois tento
a minha tradução improvisada):
Oggi, sappiamo che la libertà si può usare per il bene e
per il male. Si può usare non per educare ma per corrompere, non per accrescere
il proprio patrimonio ideale ma per dilapidarlo, non per rendere gli uomini più
saggi e nobili, ma per renderli più ignoranti e volgari. La libertà si può
anche sprecare. Si può sprecarla fino al punto di farla apparire inutile, un
bene non necessario, anzi dannoso. E a furia di sprecarla, un giorno o l’altro
(vicino? lontano?) la perderemo. Ce la toglieranno. Non sappiamo ancora chi: se
coloro che abbiamo lasciato prosperare alla nostra destra, o coloro che stanno
crescendo tumultuosamente alla nostra sinistra. Abbiamo comunque il sospetto,
alimentato da una continua severa lezione durata mezzo secolo, che la
differenza non sarà molto grande. (p. cviii-cix)
(tradução não autorizada, e
sobretudo não competente, de Paulo R. de Almeida:)
Hoje, sabemos que a liberdade
pode ser usada para o bem e para o mal. Ela pode ser usada não para educar, mas
para corromper, não para aumentar o próprio patrimônio ideal [mental], mas para
dilapidá-lo, não para tornar os homens mais sábios e nobres, mas para torná-los
mais ignorantes e vulgares. A liberdade pode inclusive ser desperdiçada.
Pode-se desperdiçá-la até o limite de fazê-la parecer inútil, um bem não
necessário, aliás prejudicial. E nessa fúria de desperdiçá-la, um dia ou outro
(próximo? longínquo?) nós a perderemos. Vão tirá-la de nós. Não sabemos ainda
quem: se aqueles que deixamos prosperar à nossa direita, ou aqueles que estão
crescendo tumultuosamente à nossa esquerda. Temos de toda forma a suspeita, alimentada
por uma contínua e grave lição que perdurou por meio século, que a diferença
não será muito grande.
Acredito, pessoalmente, que
esta advertência de Bobbio, feita no seguimento das convulsões estudantis que
agitaram a Europa, e um pouco todo o mundo, a partir de 1968, com seu cortejo
de atos libertários, bastante criatividade e espontaneidade, mas também com
muitas exibições de irracionalidade anticapitalista e de comportamentos
antidemocráticos – basta dizer que a Revolução Cultural chinesa, um exemplo
extremo de irracionalidade obscurantista, era saudada pelos revoltosos de “maio
de 1968” como se fosse a libertação final da exploração capitalista e da
democracia burguesa –, se aplica inteiramente à conjuntura presente no Brasil,
com seu cortejo de ataques velados à liberdade de imprensa, seu festival de
banalidades políticas e de irracionalidades econômicas, enfim suas ameaças
latentes a uma liberdade duramente conquistada em algumas décadas de lutas
democráticas (hoje enganosamente apropriadas por aqueles mesmos que queriam
esmagar a liberdade no altar de suas crenças ultrapassadas).
Bobbio nasceu numa Itália
pré-fascista, cresceu na crise política do pós-primeira guerra, atravessou todo
o período de totalitarismo mussoliniano (tendo inclusive, por razões
familiares, flertado com o movimento em sua juventude), se fez homem na luta
antifascista dos anos 1930 e 40, participou da construção constitucional da
Itália liberada e republicana do pós-segunda guerra, e deu sua imensa
contribuição intelectual para os debates do seu tempo: as difíceis escolhas
entre liberdade e igualdade, entre democracia representativa e seus simulacros
pela via direta ou plebiscitária – um cenário que infelizmente ressurge de
maneira irracional na América Latina – e faleceu sem ter visto o sistema
político italiano expurgado das pragas da corrupção e do loteamento das
instituições estatais por políticos fisiológicos.
A sua Itália era – e é –
muito parecida com o Brasil em seus “costumes” políticos. Pena que não
ostentemos (ainda?) nenhum Norberto Bobbio entre nós.
Minhas homenagens a Norberto
Bobbio em seus ‘100’ anos de vida...
Brasília, 2051: 17.10.2009
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