Lula e as instituições do Brasil
Marcelo Trindade*
O Estado de S. Paulo, 23 Março 2016 | 03h 00
Para entender a
gravidade da crise institucional em que o Brasil está metido, e reagir
adequadamente, é fundamental a leitura do depoimento de Luiz Inácio Lula da
Silva à Polícia Federal (PF) em 4 de março. Nele não aparece o Lula grampeado
na intimidade, preconceituoso, mal-educado e flertando com a prevaricação a
cada telefonema. Interrogado com toda a cordialidade por um delegado da PF, na
presença de seus advogados e até de um deputado federal de seu partido, foi
muito mais cuidadoso. O resultado, entretanto, é igualmente assustador.
O depoimento está
coalhado das habituais bravatas do ex-presidente, algumas de antologia: foi o
presidente que mais viajou, mais que todos os outros somados, desde a
proclamação da República até a sua chegada à Presidência; “nunca antes da
História deste país” alguém abriu tanto o Palácio do Planalto para debates, e
não só com empresários: “Com favelado, debate com sem-teto, debate com
prostituta, com LGBT, até cachorro, cão-guia, eu fiz reunião lá dentro, pra
falar com os donos, não com os cachorros.”
Lula pode, é claro,
ver-se como o mais importante presidente da História. E pouco importa se é por
vaidade ou ignorância que o ex-presidente menospreza todos os seus
antecessores, embora cite Fernando Henrique com frequência freudiana. O
problema está em como suas palavras se combinam com suas ações. Lula não vê
valor em nada que o tenha antecedido e por isso desvaloriza as instituições
construídas ao longo de nossa História.
Para Lula, foi ele
que fortaleceu o Ministério Público, não a autonomia garantida pela
Constituição de 1988. Foi ele “o primeiro presidente a tomar atitude e indicar
o primeiro da lista” – “ todos eles que eu indiquei, todos”. É daí que vem,
para Lula, a força do Ministério Público. Na Polícia Federal, “a mesma coisa”.
“Melhorou a vida da Polícia Federal pra cacete no meu governo”, disse ele ao
delegado, cobrando a fatura.
Como a força das
instituições decorre de sua liderança, elas não podem contrariá-los – eis a
base do discurso atual de Lula e do Partido dos Trabalhadores. Ao dizerem-se
traídos pelas instituições brasileiras – Poder Judiciário e Ministério Público
à frente –, o ex-presidente e seu partido a um só tempo supervalorizam suas
contribuições do passado e desmerecem as instituições do presente. Pouco
importa que se trate de atitude planejada ou espontânea, que decorra de
estratégia política, de arrogância ou de convicção profunda. O risco para as
instituições é o mesmo.
Basta que as
instituições desconfiem de suas amizades desinteressadas ou investiguem e
condenem seus correligionários para que Lula considere que “estamos vivendo um
período, desde o mensalão, que a pessoa não tem que ser culpada, ele não será
condenado pelo julgamento apenas, ele será condenado pelas manchetes dos
jornais. As manchetes dos jornais amedrontam a Polícia Federal, amedrontam o
Ministério Público, amedrontam a Suprema Corte, amedrontam todo mundo, todo
mundo”.
A negação da
realidade prossegue em outras passagens do depoimento: “O Vaccari era um
companheiro extraordinário, foi um grande dirigente sindical e foi um grande
dirigente do PT. Eu não acredito que o Vaccari tenha acertado percentual com
empresa pra receber, não acredito, não acredito”. O mensalão merece a mesma
avaliação: “Não tinha prova (...) José Dirceu e outros companheiros estavam
condenados mesmo que fossem liberados, estavam condenados”.
As perguntas da
Polícia Federal são tratadas com desdém, dada a suposta irrelevância dos
montantes envolvidos: “Eu fico até constrangido de você estar me fazendo essas
perguntas, porque que interesse alguém tem em saber se uma empresa recebeu 18
mil reais, 17 mil reais? (...) Eu fico constrangido de você me perguntar de
pedalinho e de me perguntar de um barco de 3 mil reais”. O ex-presidente
lembra-se bem do impeachment de Collor, e do cheque da secretária de PC Farias
para comprar o Fiat Elba de dona Rosane. Agora, considera que a bagatela não
pode ser tomada como indício de ilícitos maiores. Afinal, ele é o maior de
todos os presidentes que o Brasil já teve. Quem o investiga, mesmo integrando
instituições basilares da República, é moleque: “Instituições fortes pressupõem
pessoas sérias, não pode ter moleque, não pode ter moleque, tem que ter gente
séria”.
Como podem esses
“moleques” desconfiar dos amigos de fé do ex-presidente? Bumlai “era um cara
que era meu amigo. Nunca, nunca o José? Carlos Bumlai conversou de serviço
comigo. (...) Ele tinha noção de que quando ia em casa era como amigo”.
Léo Pinheiro? “Sou
amigo e gosto do Léo Pinheiro (...) eu disse ao Léo que o prédio era inadequado
porque, além de ser pequeno, um tríplex de 215 metros é um triplex Minha Casa,
Minha Vida, era pequeno.”
O conteúdo do
depoimento à Polícia Federal não é acidental. Está confirmado pelas declarações
da presidente, advogando em causa própria ao prometer processar quem tenha
autorizado a divulgação dos telefonemas. E também pelo novo ministro da
Justiça, ameaçando policiais federais de substituição pelo “cheiro” em caso de
vazamentos, questionando “quem é quem no Paraná” e concedendo indulto moral a
José Genoíno, como se pudesse expressar percepções pessoais no cargo que ocupa.
Lula e o PT, ao
recusarem a autocrítica, recusam-se a aprender com seus próprios erros. Isso
seria problema apenas deles, que tempo e eleições curariam. Mas com Lula
entronizado ministro, e com o discurso contra as instituições dando o tom das
manifestações do governo, cruzou-se a barreira do desrespeito aos fundamentos
da República e da democracia. O problema passa, então, a ser de todos nós, e
cabe às próprias instituições brasileiras resolvê-lo com urgência, em favor de
todos os brasileiros.
*Marcelo Trindade é
advogado, professor da PUC-Rio
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