Comício no Palácio do Planalto
(relato de uma embaixada em Brasília)
[Relato de um embaixador após ter assistindo a cerimônia, no Palácio do
Planalto, em 22 de março, de juristas e advogados em defesa da Presidente, com
ataque ao processo de impeachment em curso no Congresso.]
[Teor de telegrama
reservado de embaixada não identificada em Brasília]
Senhor Ministro,
A convite da Presidência
da República, transmitido pelo Itamaraty, compareci na manhã de hoje
[22/03/2016], na companhia de diversos de meus colegas em posto nesta capital,
ao Palácio do Planalto, a uma cerimônia que tinha sido apresentada como de
esclarecimento, por parte de eminentes juristas, sobre a situação política em
curso neste país. O evento estava descrito como sendo um “encontro da
Presidenta (sic) da República com juristas pela legalidade e em defesa da
democracia”, mas o que se assistiu, na verdade, superou todas as expectativas negativas,
para quem esperava ouvir ponderações solidamente ancoradas no direito
constitucional e nos textos legais brasileiros em torno da atual crise política
que vem dividindo o Brasil. Meus colegas e eu nos entreolhamos diversas vezes
durante o evento, com a pergunta implícita nos olhos sobre se aquele evento
configurava efetivamente uma ocasião para que representantes diplomáticos dos
países com os quais o Brasil mantem relações comparecessem ao que se revelou
ser, finalmente, um comício político orquestrado pela Presidência da República
em defesa de suas teses políticas.
2. Numerosas
personalidades políticas estavam presentes, sobretudo dos meios jurídicos e
legais, num ambiente que, desde o início, evidenciou seu caráter político.
Antes mesmo de qualquer discurso dos responsáveis pelo encontro, ouviam-se
gritos da audiência, “Não Vai Ter Golpe”, “Não Vai Ter Golpe”, escandido em
altos brados, com punhos erguidos e disposição militante. Foi um prenúncio do
que estava por vir. Estivemos submetidos, Senhor Ministro, durante mais de duas
horas a cenas similares, com discursos proferidos em altos brados pelos mais altos
responsáveis do país interrompidos a cada vez por gritos de uma claque
manifestamente convidada expressamente para fazer o que fez nessa ocasião.
3. Discursou
em primeiro lugar o Governador do Maranhão, e ex-presidente da Associação Nacional
dos Juízes Federais do Brasil, Sr. Flávio Dino, que iniciou por referências
históricas a crises políticas anteriores no Brasil – a que levou ao suicídio do
então presidente Getúlio Vargas, ex-ditador, em 1954, e a que determinou o
afastamento do presidente Jânio Quadros, em 1961 – e logo enveredou por
acusações feitas a grupos supostamente fascistas que teriam levado o Brasil, no
passado, e que estariam tentando levá-lo novamente, a um desfecho “fascista” no
país. Foi bastante aplaudido, sobretudo quando falou em desigualdades sociais
que precisam ser combatidas, mas foi realmente ovacionado ao mencionar as
“iniciativas de corte fascista”, ilegais, segundo ele, que foram reveladas
pelas escutas telefônicas sobre o complicado caso do ex-presidente da
República, investigado pela Justiça Federal neste momento. O impeachment foi
por ele descrito como sendo “distorção e anomalia”, ou “arbitrariedade” e fruto
de “abusos judiciais”, comparando o atual processo aberto no Congresso às
investigações político-militares do regime de 1964, quando se “punia primeiro e
depois se buscavam provas”. Foi bastante ovacionado, aos gritos, pela plateia, sobretudo
quando acusou juízes de fazerem política, o que começou a constranger vários
dos meus colegas (nenhum deles, aliás, levantou-se para aplaudir o governador,
quando ele terminou pelo grito que tornou-se a marca do evento: “Não Vai Ter
Golpe”).
4. Tomou
da palavra, em seguida, o Sr. Francisco de Queiroz Bezerra Cavalcanti, Diretor
da Faculdade de Direito do Recife, ex-juiz, e que teve como aluno justamente o
governador do Maranhão. Seu discurso pautou-se igualmente por argumentos bem
mais políticos do que jurídicos, que por sinal estiveram singularmente ausentes
de uma diatribe contra empresários e opositores do atual governo, mencionando
basicamente fatos e casos locais de sua região. Mencionou, en passant, a
divulgação das conversas telefônicas entre o ex-presidente e a atual
incumbente, mas num tom igualmente político e não jurídico. Sobre as chamadas
“pedaladas fiscais” – que foram infrações às normas orçamentárias e à Lei de
Responsabilidade Fiscal (2000) – disse que se a presidente da República tivesse
de ser punida por esta alegação – aliás, justamente objeto do pedido de
impeachment – outros 16 governadores o teriam de ser igualmente. Seus ataques à
elite econômica do país, supostamente aliada no empreendimento “golpista”,
foram francamente ingênuos ou
politicamente motivados. Foi moderadamente ovacionado.
5. Discursou
na sequência o Sr. Marcelo Neves, professor titular da cadeira de Direito
Público da Universidade de Brasília, centrando foco no combate à corrupção, que
estaria sendo melhor cerceada pelo atual governo. Disse que se deve ser contra
a parcialidade e a ilegalidade do combate à corrupção, as escutas indevidas e o
que descreveu como a “absurda condução coercitiva” do ex-presidente Lula. Levantou-se
contra os “arautos da ética” que estariam por trás de um “Estado policial”,
cujos membros tentam flexibilizar a legislação para “práticas repressivas”
ilegais. Sua mensagem básica foi a de que se estaria construindo no Brasil uma
ditadura judicial e um Estado policial. Defendeu, por outro lado,
“ilegalidades” ou inconstitucionalidades que não constituem “ofensas graves” à
Constituição, e que portanto não merecem ser objeto de impeachment. Chegou a
mencionar a falta de apoio atual da “embaixada americana” (sic) para um golpe,
havendo então esse recurso a distorções legais. Foi aplaudido diversas vezes, sobretudo
ao final, o que deu motivo, e oportunidade, a alguns de meus colegas para se
retirarem discretamente da fileira dos embaixadores e deixar a cerimônia, sem
maior alarde.
6. Subiu
ao pódio então a Juíza de Direito do DF e coordenadora do programa de direito
solidário, Sra. Glaucia Fowley, representante da Associação dos Juízes pela
Democracia. Seu discurso começou atacando a iniciativa do Ministério Público
Federal, em torno das “Dez Medidas para Reduzir a Corrupção”, que segundo ela,
a pretexto de beneficiar-se do “verniz de legitimidade popular”,
representariam, na verdade, “nítido retrocesso nas conquistas constitucionais”,
entre elas, como exemplo, a redução da concessão de habeas corpus, uso de
prisão preventiva e a limitação do trânsito em julgado. Foi moderadamente
aplaudida.
7. O professor
da Faculdade de Direito da USP, Alberto Toron, ex-conselheiro da OAB, voltou ao
argumento do Estado policial para condenar um suposto “principado de Curitiba”,
que estaria aplicando uma justiça de “viés fascista”, fazendo “vazamentos
seletivos”, ilegais, sem respeitar o sigilo da investigação. Atacou também o
Ministério Público, que pretenderia restringir o direito de habeas corpus, como
se isto significasse voltar ao Estado fascista da ditadura Vargas, em meados do
século XX. Apoiou-se, contudo, não em juristas, mas em dois jornalistas de um
conhecido periódico simpático ao governo para acusar novamente os “golpistas”
disfarçados de magistrados.
7. Foi
lido em seguida um manifesto de juízes “em defesa da Constituição e do Estado
de Direito”, redigido pelos juristas que apoiam o governo em sua luta contra o
impeachment. O destaque inicial repudiou o “discurso moralista” que resultaria,
segunda a professora da UnB que leu o texto do manifesto, da conjunção do
“capitalismo” (sic) e da corrupção, esta nunca antes combatida como nos governos
do PT. O manifesto foi disponibilizado pelo Palácio do Planalto neste link: http://blog.planalto.gov.br/confira-a-integra-do-manifesto-de-juristas-lido-durante-cerimonia-no-palacio-do-planalto/.
8. O
discurso do Advogado Geral da União, ex-ministro da Justiça José Eduardo
Cardozo representou uma apoteose do militantismo político, antes que a própria
presidente levantasse seus argumentos parcialmente jurídicos, mas
essencialmente políticos contra o processo de impeachment. Em altos brados, e
constantemente ovacionado aos gritos pela claque partidária reunida na ocasião,
o ex-ministro – que foi acusado pelo Partido dos Trabalhadores de não controlar
a Polícia Federal nas incursões contra dirigentes e altos funcionários do PT
envolvidos na imensa rede de corrupção em torno da empresa estatal Petrobras,
objeto da chamada Operação Lava Jato – foi bastante enfático na defesa da correção
do governo ao respeitar a autonomia dos magistrado e da Polícia Federal. Mas
ele foi muito mais enfático nas acusações contra essas mesmas entidades e
contra o Congresso, ao chamar o processo de impeachment como sendo “claramente
ofensivo à Constituição”, fruto de insatisfeitos com o resultado das eleições
que pretenderiam agora dar um “golpe”. Foi diversas vezes aplaudido, e
absolutamente ovacionado quando terminou seu discurso, em nada jurídico e
totalmente político, pela famosa invectiva “Não Passarão” (que repetiu três,
gritando).
9. Poucas
vezes presenciei, em minha vida diplomática, Senhor Ministro, mesmo em regimes
autoritários como os há pela Ásia, cenas de tamanho ardor militante num palácio
presidencial: imediatamente, não só a claque agrupada ao fundo do salão, mas os
próprios juízes e professores de direito, puseram-se de pé, com punhos em
riste, e passaram a gritar freneticamente o mesmo slogan do Advogado Geral.
Registrei que vários outros colegas meus aproveitaram desse momento de fervor
político, para se retirar eles também do recinto.
10. Finalmente,
também recebida aos gritos de apoio, discursou a Sra. Presidente Dilma
Rousseff, lendo um discurso manifestamente preparado por assessores, em parte
políticos, em parte legalistas, ou advogados do governo. Dispensável resumir um
discurso confuso, misturando argumentos jurídicos com outros totalmente
políticos, que pode ser visualizado no YouTube, https://www.youtube.com/watch?v=53q9jf9D2O0.
Tentou vincular a sua luta contra o atual processo de impeachment à famosa
campanha pela legalidade conduzida pelo seu ex-líder no Partido Democrático
Trabalhista, Leonel Brizola, em 1961, contra os militares que tentavam evitar a
posse do vice-presidente do PTB, João Goulart, no lugar do demissionário
presidente Jânio Quadros. O processo, segundo ela, resultaria de uma conjuração
dos mesmos derrotados nas urnas em outubro de 2014, que agora tentariam criar,
pelo impeachment, um regime parlamentarista. Alegou, uma vez mais, que não
existe nenhum crime qualificado que possa sustentar esse pedido, e referiu-se
mais de uma vez a palavras fortes para caracterizar esse intento: crime contra
a democracia, golpe, ilegalidade e outras do gênero. Quando afirmou que jamais
renunciaria, em hipótese alguma, foi interrompida entusiasticamente pelos
presentes, que a ovacionaram freneticamente.
11. Poucos
dos meus colegas ficaram até o final, ou saíram imediatamente após o discurso
da presidente, uma vez que o ambiente se converteu nitidamente em uma quermesse
política das mais ruidosas. Não tive outra opção senão retirar-me igualmente,
pois já não havia mais protocolo, nem ambiente sereno para conversar com quer
que fosse. Preferi abandonar imediatamente o palácio, para começar a ditar este
despacho a meus assistentes, não em antes ter conversado com dois ou três
interlocutores de confiança em Brasília (que tinham assistido à cerimônia pela
televisão estatal), mas que preferiram (e pediram) expressar-se em off, por
temerem novas revelações futuras que exponham seus nomes de maneira indevida.
Respeito o sigilo, portanto, e limito-me a resumir as observações que recolhi
desses interlocutores.
12. Segundo
um deles, o governo, que era implicitamente bolivariano, parece ter aderido de
vez, e explicitamente, ao bolivarianismo político (ainda bem que não econômico,
caso contrário a atual crise econômica, já de si bastante grave, assumiria
proporções gigantescas). A cerimônia, segundo outro, foi nitidamente partidária,
e não constitui um fator de fortalecimento do governo e do regime lulopetista,
pois vai suscitar ainda mais reações desfavoráveis nos meios políticos, nos círculos
econômicos e provavelmente entre os membros do Ministério Público e na opinião
pública. Resta saber, disse-me este segundo interlocutor, como reagirá o
Congresso, ou melhor, a Câmara dos Deputados, a quem incumbe agora dar
prosseguimento ao processo já aberto pelo presidente da Casa, e que agora
encontra-se sob exame de uma comissão eleita poucos dias antes. Conversei
rapidamente com um político representativo da tendência majoritária no
Parlamento, que inclina-se pela opinião de que o curso dos próximos eventos não
será determinado nem pelo Palácio do Planalto (muito menos pelo PT), nem pelo
próprio Congresso, mas sim pela dinâmica das investigações da Operação Lava
Jato, e sobretudo pela dinâmica das ruas, dos movimentos de oposição ao governo
e ao regime lulopetista, que poderão influenciar decisivamente o voto dos
deputados no momento em que a decisão pelo impeachment – que certamente sairá
da Comissão – for levada a plenário. O governo já não dispõe, provavelmente,
dos votos de bloqueio necessários para impedir a aprovação da abertura do
processo no Senado, nem este ousaria colocar tão frontalmente contra a voz das
ruas, mas tentará, nos próximos dias, delongar o processo com manobras protelatórias
– inclusive recorrendo de forma seguida ao STF – e “adquirir”, no sentido pleno
da palavra, parlamentares do chamado “baixo clero” que admitam receber favores (ou
dinheiro) em troca de seus votos.
13. Este é
o quadro, Sr. Ministro, que encontrei hoje no Brasil, um país dividido e
moralmente abalado pelo que parece ser o maior caso de corrupção não só no
Brasil, mas em escala mundial. Incidentalmente, meus assessores me fizeram
saber, sem por enquanto me fornecer evidências comprovatórias, de circulares
confusas emitidas pelo Itamaraty visando alertar a comunidade internacional
contra um suposto “golpe” que estaria em curso no país. Procurarei informar-me
melhor sobre essa atividade bizarra da chancelaria brasileira, em geral muito
circunspecta e responsável no que respeita o regime político em vigor no Brasil
atualmente, e que parece aproximar-se de um final melancólico. Manterei Vossa
Excelência informado sobre próximos desenvolvimentos nessa matéria.
[expedidor]
Pela tradução:
Paulo Roberto de Almeida
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