Carreira Diplomática:
respondendo a questões de candidatos (+comentários)
Paulo Roberto de Almeida
Texto principal de 2009
Questões e comentários subsequentes
Postado na plataforma Academia.edu (06/05/2018; link: http://www.academia.edu/36092063/Carreira_Diplomatica_respondendo_a_questoes_de_candidatos_comentarios).
QUINTA-FEIRA, 21 DE MAIO DE 2009
1112)
Carreira Diplomática: respondendo a um questionário
Carreira Diplomática: respondendo a um
questionário
Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org)
Respostas a questões colocadas por graduanda em administração na UFSC.
1. Como você se sente por ter escolhido essa profissão (área de atuação)?
PRA: Bastante bem: de certa forma, a profissão me escolheu, posto que desde muito cedo comecei a viajar, primeiro pelo Brasil, depois pela América do Sul e, finalmente, ao completar 21 anos, decidi estudar na Europa, por meus próprios meios e obtendo meus próprios recursos. Foi uma escolha que me preparou para uma vida nômade e aventureira e nunca me arrependi de ter-me lançado ao mundo em fase ainda precoce e sem sequer ter terminado o segundo ano da graduação. Como minha intenção era estudar fora do Brasil, pode-se dizer que realizei meu intento. Quando regressei ao Brasil, depois de quase sete anos na Europa, eu já estava preparado, digamos assim, para tornar-me diplomata. Mas, antes, não tinha pensado: “tropecei” com a carreira, se ouso dizer. Até então, eu só queria derrubar o governo militar.
2. Como você descreveria a sua profissão?
PRA: Uma burocracia de alto nível de qualificação técnica com ampla abertura para as humanidades e o conhecimento especializado. Trata-se, simplesmente, da mais intelectualizada carreira na burocracia federal, combinando aspectos da carreira acadêmica, da pesquisa aplicada e da elaboração de decisões em ambiente altamente competitivo, tanto interna, quanto externamente. Uma elite, como se costuma dizer.
3. Qual sua formação acadêmica? Você considera que ela foi fundamental para o sucesso profissional?
PRA: Ciências Sociais, ou humanidades, no sentido lato, e acredito que ela foi fundamental no ingresso e sucesso na carreira escolhida. Desde muito cedo inclinei-me para os estudos sociais, com forte ênfase na história, na política e na economia, complementados por uma dedicação similar a geografia, antropologia, línguas e cultura refinada, de uma maneira geral. Sou basicamente um autodidata e creio que isso facilitou-me enormemente o ingresso na carreira, pois quase não necessitei de muito estudo para os exames de ingresso. Aliás, entre a decisão de fazer o concurso (direto, no meu caso) e o ingresso efetivo, decorreram pouquíssimos meses (três).
4. Quais as principais dificuldades enfrentadas para conseguir passar no concurso?
PRA: Direito e Inglês, posto que eu havia estudado amplamente todas as demais matérias, mas não Direito, e todos os meus estudos foram feitos em Francês, que eu dominava amplamente. Mas, meu Inglês era muito elementar, servindo tão somente para leituras. Acho que passei raspando nessas duas matérias, nas outras fui bem.
5. Quando você iniciou sua carreira você tinha definido alguns objetivos e metas de onde queria chegar?
PRA: Não especialmente: nunca fui carreirista, no sentido tradicional do termo, e não me preocupava em ser embaixador ou ocupar qualquer posto de distinção. O que me seduzia era a profissão em si, a mobilidade geográfica, o conhecimento de novos países, a possibilidade de estar sempre aprendendo, estudando, viajando. Sou basicamente um estudioso, um observador da realidade, um “compilador” de informações e análises e um escritor improvisado. Todo o resto me é secundário.
6. Como você integra as diversas esferas de sua vida (trabalho, família, lazer, esporte, cursos, etc.)? Está satisfeito?
PRA: Imenso sacrifício para consegui fazer tudo aquilo que tenho vontade, pela simples razão que eu tenho vontade de ler tudo, o tempo todo, em qualquer circunstância, assim como tenho vontade de viajar, de participar de atividades acadêmicas e intelectuais, tendo ao mesmo tempo de me desempenhar em funções atribuídas pela burocracia no meio de tudo isso. Ora, é praticamente impossível conciliar tantas vontades, e ainda ser um marido perfeito, um pai de família perfeito e outras coisas da vida social e relacional. Em síntese, esses outros aspectos foram de certa forma sacrificados no empenho pessoal em ler, estudar e escrever. Reconheço essas imperfeições, mas não se pode ter tudo na vida: escolhas são inevitáveis, e as minhas estão do lado da leitura, do saber e da escrita. São atividades nas quais eu me realizo plenamente. Em outros termos, ninguém consegue integrar todos os seus interesses perfeitamente, e algum aspecto (ou vários) acaba sempre sendo sacrificado; no meu caso, são horas de sono, de lazer, de simples far niente, e também certa negligência familiar, reconheço. Não pratico esportes, a não ser caminhadas moderadas, já em idade madura. Pratico leituras, com alguma intensidade, eu diria intensíssima, e sobretudo o gosto da escrita. No mais, sou um pouco eremita...
7. Quais os períodos de sua carreira que você mais gostou?
PRA: Todos, pois em todos e em cada um eu fiz aquilo que mais gosto: viajar, muito, intensamente, ler, também intensamente, escrever, observar, aprender, em toda e qualquer circunstância, mesmo em situações difíceis de abastecimento, conforto, restrições monetárias ou outras. Toda a minha carreira me trouxe algo de bom, mesmo em situações temporariamente de sacrifício. Nunca deixei de fazer aquilo que mais gosto, e que já foi descrito anteriormente.
8. Quais os períodos de sua carreira que você menos gostou?
PRA: Numa ou noutra situação, alguns postos apresentam dificuldades materiais, desconfortos psicológicos, desafios razoáveis: por pequenos momentos, chega-se a desejar voltar ao Brasil e retornar à rotina burocrática do cerrado central, onde os atrativos são menores, mas também as surpresas. De toda forma, sempre aproveitei os momentos de dificuldade para refletir e escrever, como sempre, aliás.
9. Dentro da perspectiva de sua carreira tem alguma coisa que você gostaria especialmente de evitar?
PRA: Sim, talvez eu devesse ter dedicado menos atenção aos livros e mais às pessoas, mas essas são escolhas que fazemos deliberadamente, por opções próprias, pensadas ou não. Quem tem a compulsão pela leitura e pela escrita, não consegue acalmar-se a menos de satisfazer o seu “vicio”, daí o sacrifício de outros aspectos da vida social que muita gente valoriza em primeiro lugar. Por outro lado, nunca, na carreira, fui obrigado a assumir obrigações que eu mesmo não desejasse assumir, como por exemplo trabalhar em áreas para as quais eu não me sinto talhado nem tenho a mínima vontade de experimentar: administração, por exemplo, ou cerimonial, ou talvez ainda consular. São áreas nas quais eu provavelmente me sentiria infeliz, pois o meu terreno natural são os estudos, de qualquer tipo: geográfico, político, econômico, cultura, antropológico, no sentido amplo. Todas as áreas funcionais de caráter geográfico, político ou sobretudo econômico me servem perfeitamente. Aliás, nunca me pediram para trabalhar em áreas nas quais eu não gosto, e se me pedissem eu não teria nenhuma hesitação em recusar, mesmo podendo incorrer em alguma falta funcional ou ser sancionado por isto. Sou um pouco anarquista, e não gosto de fazer o que me mandam e sim o que eu decido e gosto de fazer.
Por outro lado, jamais me pediram para escrever ou dizer algo que violentasse minha consciência, e eu não hesitaria um segundo em recusar-me terminantemente, como algumas vezes me recusei a defender determinados pontos de vista, que não eram os meus. Por outro lado, jamais enfrentei a obrigação de escrever naquele estilo clássico, ou chatérrimo, que é o diplomatês habitual, cheio de adjetivos hipócritas e de pura formalidade vazia: não tenho espírito, paciência nem disposição para esse tipo de enrolação. Costumo escrever o que penso, sem qualquer concessão a formalismos. Sobretudo, não costumo produzir bullshits, muito freqüentes nesta profissão...
10. Você tem objetivo em longo prazo na sua carreira? Você tem uma visão de futuro profissional?
PRA: Acredito que o diplomata deve servir antes à Nação do que a governos, deve defender valores, e não se subordinar a teses momentaneamente vitoriosas que por alguma eventualidade confrontem esses valores. Já escrevi algo a esse respeito, e remeto a meu trabalho: “Dez Regras Modernas de Diplomacia” (Chicago, 22 jul. 2001; São Paulo-Miami-Washington 12 ago. 2001, 6 p., n. 800; ensaio breve sobre novas regras da diplomacia; revista eletrônica Espaço Acadêmico, a. 1, n. 4, setembro de 2001; link: http://www.espacoacademico.com.br/004/04almeida.htm).
11. Você se considera realmente bom em quê? Quais são seus pontos fortes? E como você aproveita seus pontos fortes no seu trabalho?
PRA: Creio que sou capaz de fazer análises contextuais que envolvam conhecimento histórico, embasamento econômico e situação política, ou seja, tenho instrumentos analíticos e amplos conhecimentos que me permitem situar qualquer problema (ou quase) em um contexto mais amplo, e daí extrair alguns elementos de informação para a instrução de um processo decisório que tenha em conta o interesse nacional. Toda a minha vida eu estudei o Brasil e o mundo, visando tornar o primeiro melhor, num mundo que nem sempre é cooperativo. Registre-se que eu não pretendo tornar o Brasil melhor para si mesmo, ou seja, uma grande potência ou qualquer pretensão desse gênero, que encontro simplesmente ridícula. Eu pretendo tornar o Brasil melhor para os brasileiros, ponto. Contento-me apenas com isso. Minha perspectiva, a despeito de ser um funcionário de Estado, não é a do Estado. Não pretendo trabalhar no Estado, para o Estado, com o Estado: minha perspectiva é a dos indivíduos concretos, e meus objetivos são promover os indivíduos, se preciso for contra o Estado. Não tenho nenhum culto ao Estado e nem pretendo torná-lo maior ou mais poderoso, apenas mais eficiente para servir aos indivíduos, não a si mesmo. Desespera-me essas pretensões nacionalistas estatizantes, pois elas se fazem, em geral, em detrimento do bem-estar individual da maior parte dos cidadãos.
Por outro lado, não me considero patriota, no sentido corriqueiro do termo. Sou brasileiro por puro acidente geográfico, pois poderia ter nascido em qualquer outro país ou em qualquer outra época, por puro acaso. Gostaria de reiterar esse ponto, com toda a ênfase que me é permitida. Não sou dado a patriotismos, nem a chauvinismos ultrapassados e ridículos. A nacionalidade, repito, é um acidente geográfico, ou talvez seja a naturalidade, da qual decorre a primeira. Parto do pressuposto da unidade fundamental e universal da espécie humana. Sou brasileiro, como poderia ter sido esquimó, hotentote ou pigmeu, e ninguém seria responsável por esses acasos demográficos, nem mesmo meus pais, posto que ninguém “fabrica” uma pessoa com base em especificações pré-determinadas. Somos em parte o resultado da herança genética (em grande medida, talvez mais do que o indicado ou desejável, mas talvez não a parte mais decisiva de nossas personalidades); em parte o resultado do meio social e cultural no qual crescemos, e das influências que experimentamos involuntariamente em diversas etapas formativas de nosso caráter; e em parte ainda (o que espero mais substancial ou importante), somos o produto de nossa própria formação ativa, dos estudos empreendidos e dos esforços que fazemos nós mesmos para moldar nossas vidas, nosso estilo de comportamento e nossa maneira de pensar, com base em escolhas e preferências que adotamos ao longo da vida. Devemos sempre assumir responsabilidade pelo que somos, e jamais atribuir ao meio ou a qualquer herança genética determinados traços que podem eventualmente revelar-se menos funcionais para nosso desempenho profissional ou intelectual.
Meus pontos fortes, portanto, são minha capacidade analítica, meus conhecimentos acumulados e meu devotamento à causa dos indivíduos, não dos Estados, e sempre tento passar esses pontos à frente de qualquer outra consideração. Não hesito em defender meus pontos de vista, mesmo contra meus interesses imediatos, que poderiam recomendar uma acomodação com a situação presente – a lei da inércia é uma das mais disseminadas na humanidade – ou com autoridades de qualquer tipo. Não costumo fazer concessões a autoridades apenas para obter vantagens pessoais, e acho essa atitude basicamente correta (ainda que a um custo por vezes enorme no plano pessoal). Talvez seja teimosia de minha parte, mas considero isso antes uma virtude, do que um defeito. Enfim, tendo concepções fortes sobre determinados temas, me é muito mais fácil preparar e expor posições do interesse do Brasil, com base em conhecimentos previamente acumulados, o que me dispensa de longas pesquisas ou buscas em arquivos.
12. Quais são seus pontos fracos?
PRA: Devo ter (e tenho) vários, sendo os mais evidentes essa introversão habitual, essa preferência ao convívio com os livros, mais do que a convivência com pessoas, uma certa arrogância intelectual (que reconheço plenamente), derivada de leituras intensas e de uma imensa acumulação de conhecimentos e informações – que em excesso podem ser prejudiciais, dizem alguns – essa pretensão a saber mais do que os outros (o que em parte é verdade, pela simples intensidade de leituras, mas os outros não gostam que se lhes confronte os argumentos, obviamente). Por outro lado, não tenho nenhum respeito pela hierarquia ou pela autoridade, o que muitos consideram um defeito (mas não eu, dado meu anarquismo particular). Não sou de respeitar o argumento da autoridade, mas apenas a autoridade do argumento, a lógica impecável, e a decisão bem formulada, posto que empiricamente embasada, tecnicamente sólida, com menor custo-oportunidade ou a melhor relação custo-benefício. Enfim, sou um racionalista, e detesto impressionismos e subjetivismos, o que é muito fácil de encontrar em quaisquer meios. Daí choques inevitáveis com determinadas pessoas que pretendem mandar a partir de sua vontade exclusiva, não de um estudo aprofundado de situação. Enfim, ser rebelde assim deve ser um defeito...
13. O que você mais deseja na sua carreira?
PRA: Todos somos egocêntricos ou narcisistas em certa medida. Todos queremos reconhecimento e prestígio, por mais que se diga o contrário. Todos queremos ser elogiados e premiados (no meu caso não monetariamente ou em qualquer aspecto material). Assim, desejo ser reconhecido não necessariamente como um bom diplomata, mas simplesmente como um bom cidadão, alguém que cumpre seus deveres e atua conscienciosamente em benefício da maioria (que calha de ser o povo brasileiro, mas poderia ser qualquer outro, pois como disse, eu me coloco do ponto de vista dos indivíduos, não do Estado). Gostaria de ser reconhecido como estudioso, como esforçado e, sobretudo, como alguém comprometido com o bem comum. Pode ser vaidade, mas é assim que vejo minha carreira, que para mim não é uma simples carreira de Estado, mas sim uma atividade que me coloca no centro (ou pelo menos numa das agências) do Estado, ali colocado para servir a pessoas, não a instituições abstratas.
Gostaria que se dissesse de mim, em algum momento futuro: foi um funcionário dedicado, foi um homem bom, esforçado, devotado ao bem comum, sobretudo foi correto consigo mesmo e com todas as instâncias de interação social ou profissional. Praticou a honestidade intelectual e se esforçou para fazer do Brasil e do mundo lugares melhores do que aqueles que encontrou em sua etapa inicial de vida.
14. O que você pensa que acontecerá à sua carreira nos próximos dez anos?
PRA: Nada de muito relevante, posto que não sou carreirista e não faço da carreira o centro de minhas preocupações intelectuais ou sequer materiais. Estou na carreira diplomática, como poderia estar na academia ou em alguma outra atividade que tenha a ver com o estudo, o esforço intelectual, a análise e a elaboração de propostas. Sou basicamente um intelectual e a carreira para mim é secundária. Provavelmente vou me aposentar nos próximos dez anos, e aí dispor de todo o meu tempo livre para me dedicar àquilo de que mais gosto: leitura, redação, um pouco de aulas e palestras, viagens, alguns prazeres materiais (como a gastronomia, ou a gourmandise, por exemplo) e espero ter condições físicas de continuar escrevendo, ensinando e colaborando com a elevação intelectual da sociedade pelo maior tempo possível. Se me sobrar tempo gostaria de consertar algumas coisas que encontro muito erradas no Brasil, como por exemplo: a corrupção (generalizada em todas as esferas), a desonestidade intelectual nas academias, a miséria material de grande parte da população (que decorre, em minha opinião, de políticas erradas e do excesso de poderes conferidos ao Estado), enfim, tudo aquilo que sabemos errado em nosso País.
15. O que você aconselharia para alguém que estivesse iniciando na mesma área?
PRA: Seja estudioso, dedicado, honesto intelectualmente, esforçado no trabalho, um pouco (mas apenas um pouco) obediente, inovador, curioso, questionador – mas ostentando um ceticismo sadio, não uma desconfiança doentia –, tente aprender com as adversidades, trate todo mundo bem (e, para mim, da mesma forma, um porteiro e um presidente), não seja preguiçoso (embora dormir seja sumamente agradável), cultive as pessoas, mais do que os livros (o que eu mesmo não faço), seja amado e ame alguém, ou mais de um... Enfim, seja um pouco rebelde, também, pois a humanidade só avança com aqueles que contestam as situações estabelecidas, desafiam o status quo, tomam novos caminhos, propõem novas soluções a velhos problemas (alguns novos também). No meio de tudo isso, não se leve muito a sério, pois a vida é uma só – sim, sou absolutamente irreligioso – e vale a pena se divertir um pouco. Tudo o que eu falei ou escrevi acima, parece sério demais. Não se leve muito a sério, tenha tempo de se divertir, de contentar a si mesmo e os que o cercam.
Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org)
Respostas a questões colocadas por graduanda em administração na UFSC.
1. Como você se sente por ter escolhido essa profissão (área de atuação)?
PRA: Bastante bem: de certa forma, a profissão me escolheu, posto que desde muito cedo comecei a viajar, primeiro pelo Brasil, depois pela América do Sul e, finalmente, ao completar 21 anos, decidi estudar na Europa, por meus próprios meios e obtendo meus próprios recursos. Foi uma escolha que me preparou para uma vida nômade e aventureira e nunca me arrependi de ter-me lançado ao mundo em fase ainda precoce e sem sequer ter terminado o segundo ano da graduação. Como minha intenção era estudar fora do Brasil, pode-se dizer que realizei meu intento. Quando regressei ao Brasil, depois de quase sete anos na Europa, eu já estava preparado, digamos assim, para tornar-me diplomata. Mas, antes, não tinha pensado: “tropecei” com a carreira, se ouso dizer. Até então, eu só queria derrubar o governo militar.
2. Como você descreveria a sua profissão?
PRA: Uma burocracia de alto nível de qualificação técnica com ampla abertura para as humanidades e o conhecimento especializado. Trata-se, simplesmente, da mais intelectualizada carreira na burocracia federal, combinando aspectos da carreira acadêmica, da pesquisa aplicada e da elaboração de decisões em ambiente altamente competitivo, tanto interna, quanto externamente. Uma elite, como se costuma dizer.
3. Qual sua formação acadêmica? Você considera que ela foi fundamental para o sucesso profissional?
PRA: Ciências Sociais, ou humanidades, no sentido lato, e acredito que ela foi fundamental no ingresso e sucesso na carreira escolhida. Desde muito cedo inclinei-me para os estudos sociais, com forte ênfase na história, na política e na economia, complementados por uma dedicação similar a geografia, antropologia, línguas e cultura refinada, de uma maneira geral. Sou basicamente um autodidata e creio que isso facilitou-me enormemente o ingresso na carreira, pois quase não necessitei de muito estudo para os exames de ingresso. Aliás, entre a decisão de fazer o concurso (direto, no meu caso) e o ingresso efetivo, decorreram pouquíssimos meses (três).
4. Quais as principais dificuldades enfrentadas para conseguir passar no concurso?
PRA: Direito e Inglês, posto que eu havia estudado amplamente todas as demais matérias, mas não Direito, e todos os meus estudos foram feitos em Francês, que eu dominava amplamente. Mas, meu Inglês era muito elementar, servindo tão somente para leituras. Acho que passei raspando nessas duas matérias, nas outras fui bem.
5. Quando você iniciou sua carreira você tinha definido alguns objetivos e metas de onde queria chegar?
PRA: Não especialmente: nunca fui carreirista, no sentido tradicional do termo, e não me preocupava em ser embaixador ou ocupar qualquer posto de distinção. O que me seduzia era a profissão em si, a mobilidade geográfica, o conhecimento de novos países, a possibilidade de estar sempre aprendendo, estudando, viajando. Sou basicamente um estudioso, um observador da realidade, um “compilador” de informações e análises e um escritor improvisado. Todo o resto me é secundário.
6. Como você integra as diversas esferas de sua vida (trabalho, família, lazer, esporte, cursos, etc.)? Está satisfeito?
PRA: Imenso sacrifício para consegui fazer tudo aquilo que tenho vontade, pela simples razão que eu tenho vontade de ler tudo, o tempo todo, em qualquer circunstância, assim como tenho vontade de viajar, de participar de atividades acadêmicas e intelectuais, tendo ao mesmo tempo de me desempenhar em funções atribuídas pela burocracia no meio de tudo isso. Ora, é praticamente impossível conciliar tantas vontades, e ainda ser um marido perfeito, um pai de família perfeito e outras coisas da vida social e relacional. Em síntese, esses outros aspectos foram de certa forma sacrificados no empenho pessoal em ler, estudar e escrever. Reconheço essas imperfeições, mas não se pode ter tudo na vida: escolhas são inevitáveis, e as minhas estão do lado da leitura, do saber e da escrita. São atividades nas quais eu me realizo plenamente. Em outros termos, ninguém consegue integrar todos os seus interesses perfeitamente, e algum aspecto (ou vários) acaba sempre sendo sacrificado; no meu caso, são horas de sono, de lazer, de simples far niente, e também certa negligência familiar, reconheço. Não pratico esportes, a não ser caminhadas moderadas, já em idade madura. Pratico leituras, com alguma intensidade, eu diria intensíssima, e sobretudo o gosto da escrita. No mais, sou um pouco eremita...
7. Quais os períodos de sua carreira que você mais gostou?
PRA: Todos, pois em todos e em cada um eu fiz aquilo que mais gosto: viajar, muito, intensamente, ler, também intensamente, escrever, observar, aprender, em toda e qualquer circunstância, mesmo em situações difíceis de abastecimento, conforto, restrições monetárias ou outras. Toda a minha carreira me trouxe algo de bom, mesmo em situações temporariamente de sacrifício. Nunca deixei de fazer aquilo que mais gosto, e que já foi descrito anteriormente.
8. Quais os períodos de sua carreira que você menos gostou?
PRA: Numa ou noutra situação, alguns postos apresentam dificuldades materiais, desconfortos psicológicos, desafios razoáveis: por pequenos momentos, chega-se a desejar voltar ao Brasil e retornar à rotina burocrática do cerrado central, onde os atrativos são menores, mas também as surpresas. De toda forma, sempre aproveitei os momentos de dificuldade para refletir e escrever, como sempre, aliás.
9. Dentro da perspectiva de sua carreira tem alguma coisa que você gostaria especialmente de evitar?
PRA: Sim, talvez eu devesse ter dedicado menos atenção aos livros e mais às pessoas, mas essas são escolhas que fazemos deliberadamente, por opções próprias, pensadas ou não. Quem tem a compulsão pela leitura e pela escrita, não consegue acalmar-se a menos de satisfazer o seu “vicio”, daí o sacrifício de outros aspectos da vida social que muita gente valoriza em primeiro lugar. Por outro lado, nunca, na carreira, fui obrigado a assumir obrigações que eu mesmo não desejasse assumir, como por exemplo trabalhar em áreas para as quais eu não me sinto talhado nem tenho a mínima vontade de experimentar: administração, por exemplo, ou cerimonial, ou talvez ainda consular. São áreas nas quais eu provavelmente me sentiria infeliz, pois o meu terreno natural são os estudos, de qualquer tipo: geográfico, político, econômico, cultura, antropológico, no sentido amplo. Todas as áreas funcionais de caráter geográfico, político ou sobretudo econômico me servem perfeitamente. Aliás, nunca me pediram para trabalhar em áreas nas quais eu não gosto, e se me pedissem eu não teria nenhuma hesitação em recusar, mesmo podendo incorrer em alguma falta funcional ou ser sancionado por isto. Sou um pouco anarquista, e não gosto de fazer o que me mandam e sim o que eu decido e gosto de fazer.
Por outro lado, jamais me pediram para escrever ou dizer algo que violentasse minha consciência, e eu não hesitaria um segundo em recusar-me terminantemente, como algumas vezes me recusei a defender determinados pontos de vista, que não eram os meus. Por outro lado, jamais enfrentei a obrigação de escrever naquele estilo clássico, ou chatérrimo, que é o diplomatês habitual, cheio de adjetivos hipócritas e de pura formalidade vazia: não tenho espírito, paciência nem disposição para esse tipo de enrolação. Costumo escrever o que penso, sem qualquer concessão a formalismos. Sobretudo, não costumo produzir bullshits, muito freqüentes nesta profissão...
10. Você tem objetivo em longo prazo na sua carreira? Você tem uma visão de futuro profissional?
PRA: Acredito que o diplomata deve servir antes à Nação do que a governos, deve defender valores, e não se subordinar a teses momentaneamente vitoriosas que por alguma eventualidade confrontem esses valores. Já escrevi algo a esse respeito, e remeto a meu trabalho: “Dez Regras Modernas de Diplomacia” (Chicago, 22 jul. 2001; São Paulo-Miami-Washington 12 ago. 2001, 6 p., n. 800; ensaio breve sobre novas regras da diplomacia; revista eletrônica Espaço Acadêmico, a. 1, n. 4, setembro de 2001; link: http://www.espacoacademico.com.br/004/04almeida.htm).
11. Você se considera realmente bom em quê? Quais são seus pontos fortes? E como você aproveita seus pontos fortes no seu trabalho?
PRA: Creio que sou capaz de fazer análises contextuais que envolvam conhecimento histórico, embasamento econômico e situação política, ou seja, tenho instrumentos analíticos e amplos conhecimentos que me permitem situar qualquer problema (ou quase) em um contexto mais amplo, e daí extrair alguns elementos de informação para a instrução de um processo decisório que tenha em conta o interesse nacional. Toda a minha vida eu estudei o Brasil e o mundo, visando tornar o primeiro melhor, num mundo que nem sempre é cooperativo. Registre-se que eu não pretendo tornar o Brasil melhor para si mesmo, ou seja, uma grande potência ou qualquer pretensão desse gênero, que encontro simplesmente ridícula. Eu pretendo tornar o Brasil melhor para os brasileiros, ponto. Contento-me apenas com isso. Minha perspectiva, a despeito de ser um funcionário de Estado, não é a do Estado. Não pretendo trabalhar no Estado, para o Estado, com o Estado: minha perspectiva é a dos indivíduos concretos, e meus objetivos são promover os indivíduos, se preciso for contra o Estado. Não tenho nenhum culto ao Estado e nem pretendo torná-lo maior ou mais poderoso, apenas mais eficiente para servir aos indivíduos, não a si mesmo. Desespera-me essas pretensões nacionalistas estatizantes, pois elas se fazem, em geral, em detrimento do bem-estar individual da maior parte dos cidadãos.
Por outro lado, não me considero patriota, no sentido corriqueiro do termo. Sou brasileiro por puro acidente geográfico, pois poderia ter nascido em qualquer outro país ou em qualquer outra época, por puro acaso. Gostaria de reiterar esse ponto, com toda a ênfase que me é permitida. Não sou dado a patriotismos, nem a chauvinismos ultrapassados e ridículos. A nacionalidade, repito, é um acidente geográfico, ou talvez seja a naturalidade, da qual decorre a primeira. Parto do pressuposto da unidade fundamental e universal da espécie humana. Sou brasileiro, como poderia ter sido esquimó, hotentote ou pigmeu, e ninguém seria responsável por esses acasos demográficos, nem mesmo meus pais, posto que ninguém “fabrica” uma pessoa com base em especificações pré-determinadas. Somos em parte o resultado da herança genética (em grande medida, talvez mais do que o indicado ou desejável, mas talvez não a parte mais decisiva de nossas personalidades); em parte o resultado do meio social e cultural no qual crescemos, e das influências que experimentamos involuntariamente em diversas etapas formativas de nosso caráter; e em parte ainda (o que espero mais substancial ou importante), somos o produto de nossa própria formação ativa, dos estudos empreendidos e dos esforços que fazemos nós mesmos para moldar nossas vidas, nosso estilo de comportamento e nossa maneira de pensar, com base em escolhas e preferências que adotamos ao longo da vida. Devemos sempre assumir responsabilidade pelo que somos, e jamais atribuir ao meio ou a qualquer herança genética determinados traços que podem eventualmente revelar-se menos funcionais para nosso desempenho profissional ou intelectual.
Meus pontos fortes, portanto, são minha capacidade analítica, meus conhecimentos acumulados e meu devotamento à causa dos indivíduos, não dos Estados, e sempre tento passar esses pontos à frente de qualquer outra consideração. Não hesito em defender meus pontos de vista, mesmo contra meus interesses imediatos, que poderiam recomendar uma acomodação com a situação presente – a lei da inércia é uma das mais disseminadas na humanidade – ou com autoridades de qualquer tipo. Não costumo fazer concessões a autoridades apenas para obter vantagens pessoais, e acho essa atitude basicamente correta (ainda que a um custo por vezes enorme no plano pessoal). Talvez seja teimosia de minha parte, mas considero isso antes uma virtude, do que um defeito. Enfim, tendo concepções fortes sobre determinados temas, me é muito mais fácil preparar e expor posições do interesse do Brasil, com base em conhecimentos previamente acumulados, o que me dispensa de longas pesquisas ou buscas em arquivos.
12. Quais são seus pontos fracos?
PRA: Devo ter (e tenho) vários, sendo os mais evidentes essa introversão habitual, essa preferência ao convívio com os livros, mais do que a convivência com pessoas, uma certa arrogância intelectual (que reconheço plenamente), derivada de leituras intensas e de uma imensa acumulação de conhecimentos e informações – que em excesso podem ser prejudiciais, dizem alguns – essa pretensão a saber mais do que os outros (o que em parte é verdade, pela simples intensidade de leituras, mas os outros não gostam que se lhes confronte os argumentos, obviamente). Por outro lado, não tenho nenhum respeito pela hierarquia ou pela autoridade, o que muitos consideram um defeito (mas não eu, dado meu anarquismo particular). Não sou de respeitar o argumento da autoridade, mas apenas a autoridade do argumento, a lógica impecável, e a decisão bem formulada, posto que empiricamente embasada, tecnicamente sólida, com menor custo-oportunidade ou a melhor relação custo-benefício. Enfim, sou um racionalista, e detesto impressionismos e subjetivismos, o que é muito fácil de encontrar em quaisquer meios. Daí choques inevitáveis com determinadas pessoas que pretendem mandar a partir de sua vontade exclusiva, não de um estudo aprofundado de situação. Enfim, ser rebelde assim deve ser um defeito...
13. O que você mais deseja na sua carreira?
PRA: Todos somos egocêntricos ou narcisistas em certa medida. Todos queremos reconhecimento e prestígio, por mais que se diga o contrário. Todos queremos ser elogiados e premiados (no meu caso não monetariamente ou em qualquer aspecto material). Assim, desejo ser reconhecido não necessariamente como um bom diplomata, mas simplesmente como um bom cidadão, alguém que cumpre seus deveres e atua conscienciosamente em benefício da maioria (que calha de ser o povo brasileiro, mas poderia ser qualquer outro, pois como disse, eu me coloco do ponto de vista dos indivíduos, não do Estado). Gostaria de ser reconhecido como estudioso, como esforçado e, sobretudo, como alguém comprometido com o bem comum. Pode ser vaidade, mas é assim que vejo minha carreira, que para mim não é uma simples carreira de Estado, mas sim uma atividade que me coloca no centro (ou pelo menos numa das agências) do Estado, ali colocado para servir a pessoas, não a instituições abstratas.
Gostaria que se dissesse de mim, em algum momento futuro: foi um funcionário dedicado, foi um homem bom, esforçado, devotado ao bem comum, sobretudo foi correto consigo mesmo e com todas as instâncias de interação social ou profissional. Praticou a honestidade intelectual e se esforçou para fazer do Brasil e do mundo lugares melhores do que aqueles que encontrou em sua etapa inicial de vida.
14. O que você pensa que acontecerá à sua carreira nos próximos dez anos?
PRA: Nada de muito relevante, posto que não sou carreirista e não faço da carreira o centro de minhas preocupações intelectuais ou sequer materiais. Estou na carreira diplomática, como poderia estar na academia ou em alguma outra atividade que tenha a ver com o estudo, o esforço intelectual, a análise e a elaboração de propostas. Sou basicamente um intelectual e a carreira para mim é secundária. Provavelmente vou me aposentar nos próximos dez anos, e aí dispor de todo o meu tempo livre para me dedicar àquilo de que mais gosto: leitura, redação, um pouco de aulas e palestras, viagens, alguns prazeres materiais (como a gastronomia, ou a gourmandise, por exemplo) e espero ter condições físicas de continuar escrevendo, ensinando e colaborando com a elevação intelectual da sociedade pelo maior tempo possível. Se me sobrar tempo gostaria de consertar algumas coisas que encontro muito erradas no Brasil, como por exemplo: a corrupção (generalizada em todas as esferas), a desonestidade intelectual nas academias, a miséria material de grande parte da população (que decorre, em minha opinião, de políticas erradas e do excesso de poderes conferidos ao Estado), enfim, tudo aquilo que sabemos errado em nosso País.
15. O que você aconselharia para alguém que estivesse iniciando na mesma área?
PRA: Seja estudioso, dedicado, honesto intelectualmente, esforçado no trabalho, um pouco (mas apenas um pouco) obediente, inovador, curioso, questionador – mas ostentando um ceticismo sadio, não uma desconfiança doentia –, tente aprender com as adversidades, trate todo mundo bem (e, para mim, da mesma forma, um porteiro e um presidente), não seja preguiçoso (embora dormir seja sumamente agradável), cultive as pessoas, mais do que os livros (o que eu mesmo não faço), seja amado e ame alguém, ou mais de um... Enfim, seja um pouco rebelde, também, pois a humanidade só avança com aqueles que contestam as situações estabelecidas, desafiam o status quo, tomam novos caminhos, propõem novas soluções a velhos problemas (alguns novos também). No meio de tudo isso, não se leve muito a sério, pois a vida é uma só – sim, sou absolutamente irreligioso – e vale a pena se divertir um pouco. Tudo o que eu falei ou escrevi acima, parece sério demais. Não se leve muito a sério, tenha tempo de se divertir, de contentar a si mesmo e os que o cercam.
Brasília, 21 de maio de 2009.
quarta-feira, 28 de março de 2012
Carreira
Diplomatica: respondendo a questionamentos
Texto das perguntas e respostas postado na plataforma Academia.edu (06/05/2018; link: http://www.academia.edu/36092063/Carreira_Diplomatica_respondendo_a_questoes_de_candidatos_comentarios).
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