Caça a mapas antigos e espionagem: as aventuras do Barão de Rio Branco pelas fronteiras do Brasil
"Estão aí os traços característicos do segundo Rio Branco: genuíno patriotismo, culto amoroso ao pai, organização conservadora (...) São impulsos de um mesmo motor, o amor ao país."
As palavras do diplomata Joaquim Nabuco descrevem o Barão do Rio Branco, ou José Maria da Silva Paranhos Júnior (1845-1912) - filho do Visconde do Rio Branco, primeiro-ministro do Brasil e deputado conservador. Os elogios são o testemunho do momento em que o barão saía do desconhecimento para a exaltação após vencer uma disputa territorial contra a Argentina, em 1895 - cumprindo tardiamente um projeto de ascensão social traçado desde o nascimento pelo pai.
A imagem de um diplomata que só abre mão da timidez para colocar a erudição à serviço da pátria é pintada aí, perdurando até hoje na personificação do barão, uma das figuras históricas mais reverenciadas do país.
Mas um novo livro que acaba de chegar às livrarias mostra que essa é uma entre as várias versões possíveis do Barão do Rio Branco. Há também o Paranhos Júnior boêmio, decepcionado com seus rumos profissionais ou ainda às voltas com o sustento financeiro da família.
"Havia uma expectativa imensa em cima dele. Ele nasceu durante o Antigo Regime: naquele momento, a ideia de sucesso era fazer com que as famílias transcendessem. O pai, o visconde, é um filho ilegítimo que consegue uma ascensão social muito grande mas que só poderia ser completa ao transformar os Paranhos em uma das grandes famílias do império. Ele não conseguiria fazer isso sozinho, precisava dos filhos. E era (o barão do) Rio Branco quem seria o próximo patriarca da família", explica Luís Cláudio Villafañe, autor da biografia Juca Paranhos, o Barão do Rio Branco, da Companhia das Letras.
A história de Juca Paranhos se entrelaça com marcos de importantes mudanças no Brasil - da transição da monarquia para a República ao fim da escravidão. Mas é só depois dos 50 anos de idade, em sua atuação em disputas por fronteiras contra a Argentina, França e Bolívia, que o barão do Rio Branco consegue imprimir sua digital na história do país.
Deputado pelo Mato Grosso sem nunca ter pisado lá
A biografia escrita por Villafañe detalha como, desde pequeno, cada passo de Juca Paranhos foi planejado com esmero pelo visconde. Esta trajetória incluiu a formação em Direito e o patrocínio do pai à carreira parlamentar, em que o barão assumiu uma cadeira na Câmara dos Deputados pelo Mato Grosso sem sequer pisar naquela província - algo que só seria feito na véspera de um segundo mandato. O voto censitário se reduzia a algumas dezenas de pessoas: homens e com rendimentos acima de uma determinada faixa.
Membro do Partido Conservador, Juca carregaria consigo este posicionamento ideológico ao longo da vida. Era monarquista convicto também, tendo que se conformar e readaptar à chegada da República em 1889.
"Os Paranhos chegam no final da festa do Antigo Regime, e esta festa está acabando. Tudo o que eles não querem é que isso aconteça: eles partilham dos valores daquele regime e querem validá-los", explica Villafañe, que pesquisa a biografia do barão desde 2012. "O Barão do Rio Branco é uma grande janela deste mundo que está caindo e aquele que está surgindo."
Nessa transição, o fim da escravidão expõe também a postura conservadora e aversa às rupturas de Juca. A promulgação da Lei do Ventre Livre levava a assinatura do pai, o visconde - correspondendo a uma vertente do Partido Conservador que via riscos de violência e imprevisibilidade na insistência à manutenção do trabalho escravo.
O filho teve atuação discreta neste processo e, posteriormente, defendeu uma transição gradual ao fim da escravidão - para ele, idealmente extinta somente com a morte do último cativo nascido antes da Lei do Ventre Livre. Nisso também foi vencido, já que a Lei Áurea é assinada em 1888.
Casamento tardio e a contragosto
Sem sorte no jogo da política, as coisas também não eram pacíficas no amor.
Se nos grandes planos do visconde para o filho estava a ascensão social, o casamento era um ponto crucial nesta trajetória. A realidade mostrou, porém, um cenário muito diferente da expectativa.
Juca Paranhos frequentava aquela que era uma das casas de espetáculos mais polêmicas do Rio de Janeiro, o Alcazar Lyrique du Père Arnaud, fundado na década de 1860 na atual rua Uruguaiana e uma afronta ao moralismo da época. Ali, Juca conheceu a jovem belga Marie Philomène Stevens, que foi tentar a vida no Rio se apresentando no palco do cabaré. Começou ali um relacionamento que nunca seria aprovado pelo visconde e se estendeu por mais de duas décadas, até a morte dela.
Eles tiveram cinco filhos, mas a belga nunca foi celebrada com uma parceira à altura por Juca. Por muitos anos, o barão era "oficialmente" solteiro e mantinha a família em outra casa. O casamento só veio 17 anos depois de relacionamento. No fim da vida, uma carta de Marie reproduzida na biografia escrita por Villafañe expõe as dores de um relacionamento conturbado - pelo qual, em outro documento, diz ter "pago muito caro por sua coroa de baronesa".
"Eu já sofri tanto por ti que me é impossível responder com calma, já que tu só sabes me dizer coisas desagradáveis como quando me disse que todos seus filhos são desequilibrados porque eu sou a mãe deles e, além disso, não se discute com uma mulher que se crê louca", diz a carta.
A biografia mostra também que a vida privada e a fama de farrista pesou no círculo social e político no entorno de Juca - sendo quase um consenso que emperrou, por exemplo, sua nomeação como cônsul-geral do Brasil em Liverpool, posição que acabou por ocupar por quase duas décadas.
Visconde: morte com desgosto
É esta página da vida do filho a última que o Visconde do Rio Branco pôde ver. Há sinais de que ele morreu frustrado em suas expectativas de ascensão familiar, vendo o filho como um obscuro cônsul e longe de um "bom casamento".
"Tem até uma coisa até freudiana. O barão só vai brilhar depois que o pai morre", aponta Villafañe, atualmente diplomata do Brasil na Nicarágua.
Buscando uma recolocação na República e o contorno de dificuldades financeiras, o barão acaba conquistando de forma improvável a chefia da defesa do Brasil em uma arbitragem contra a Argentina, mediada pelos Estados Unidos, na disputa conhecida como a Questão de Palmas.
A Argentina reivindicava os territórios que hoje compõem parte do oeste do Paraná e Santa Catarina, argumentando que tratados do século 18 apontavam para uma divisão entre Portugal e Espanha definida pelos rios Jangada e Chapecó, e não pelo Pepiri-Guaçu e Santo Antônio - como seria favorável ao Brasil.
Com a assistência de auxiliares, o barão recuperou documentos e mapas em locais como o Arquivo Geral de Simancas, na Espanha, e o Depósito Geográfico do Ministério dos Negócios Estrangeiros da França. Com cálculos matemáticos e interpretações historiográficas - como a de que a cartografia portuguesa era mais avançada que a espanhola no século 18 -, Juca conseguiu reunir evidências para a versão brasileira.
Depois de se debruçar sobre montanhas de papéis em meio a noites mal dormidas, o barão tratou de conquistar também, nos Estados Unidos, autoridades e a opinião pública. Para isso, contratou um consultor jurídico nos EUA, John Bassett Moore, que abriria espaço para o acesso a membros da arbitragem americana.
"O lobby, como se comprova, é uma atividade com larga tradição nos Estados Unidos", diz a biografia de Villafañe.
Com o "trabalho inegavelmente brilhante", como classifica o autor, Paranhos Júnior foi vitorioso na disputa e finalmente consagrado por seu talento como geógrafo e historiador. Para um Brasil que se via às voltas com a violenta Revolução Federalista, a vitória contra a Argentina veio como uma redenção para o país e o presidente Floriano Peixoto. Juca foi recebido como herói nacional em meio ao carnaval de 1895, em que foi homenageado pelo Clube dos Fenianos, uma das grandes sociedades carnavalescas do Rio.
"Obviamente, ele era um grande erudito, mas ninguém sabia. Ele foi atrás (dessa conquista). E não é ilegítimo: ele foi se reconstruir como personagem. Isso é contrário às biografias em que ele aparece como um sujeito que nasceu pronto", aponta o escritor de Juca Paranhos, o Barão do Rio Branco.
Frente a frente com o maior geógrafo do mundo
A fama com a Questão de Palmas o impulsionaria como principal representante brasileiro em outro imbróglio: a Questão do Amapá.
Tratava-se também de uma guerra de versões sobre rios acordados em tratados. Na prática, o Brasil poderia perder parte importante da região Norte, sobretudo na fronteira entre o Amapá e a Guiana Francesa. Em arbitragem mediada pela Suíça, Brasil e França foram à mesa.
Rio Branco enfrentava um jogo mais desafiador do que o de Palmas: a proximidade histórica e cultural entre França e Suíça; além do verdadeiro exército de diplomatas, advogados e especialistas no outro lado da mesa, incluindo Vidal de la Blanche, o maior geógrafo da época.
Juca também empreendeu mais uma caça a mapas por arquivos na Inglaterra, Espanha e França; no caso do Amapá, adotou ainda uma nova estratégia. Infiltrou Emílio Goeldi, naturalista suíço estabelecido no Pará, para assessorar os conselheiros da Suíça em sua decisão - sanando dúvidas ou coletando impressões desfavoráveis.
"Por ora o que desejo é que v. sa. Trate de ir fazendo relações em Berna (...) é indispensável que v. sa. Não seja considerado um auxiliar meu, e sim como um cientista que apenas veio tratar de estudos ou trabalhos que nenhuma relação têm com a causa que vai ser julgada", diz um documento reproduzido na biografia, que classifica a atuação de Goeldi como um "espião sem licença para matar, mas eficaz".
"Rio Branco atuava como um exército de um só homem nas questões dos limites. Era ao mesmo tempo o pesquisador que escarafunchava arquivos em busca de velhos mapas e documentos empoeirados, o historiador que desvendava os manuscritos e criava uma narrativa consistente (...) e o advogado implacável, munido da jurisprudência e do conhecimento do direito para construir argumentos irrefutáveis", afirma o livro.
Na Suíça, a arbitragem foi favorável ao Brasil, mais uma vez fazendo do barão o centro de uma aclamação geral.
"Do Amazonas ao Prata há um nome que parece irradiar por todo o círculo do horizonte num infinito de cintilações: o do filho do emancipador dos escravos, duplicando a glória paterna com a de reintegrador do território nacional", diria Rui Barbosa sobre a conquista em 1900.
Disputa por fronteiras como chanceler
Dali para frente, Rio Branco imaginava um futuro em confortáveis postos europeus, mas teve que ceder à pressão do presidente Rodrigues Alves para assumir o Ministério das Relações Exteriores.
O Acre, região que o Brasil reconhecia como pertencente à Bolívia por três décadas, passou a atrair hordas de brasileiros pela extração da borracha. Os planos do país andino em arrendar aquele território a uma companhia com capital americano e britânico catalisou a pressão para que o Brasil reivindicasse-o. Para completar, parte daquela região era demandada também pelo Peru.
Diferentemente dos outros episódios em que foi consagrado, Paranhos apostou em um acordo direto, e não na arbitragem, para o caso. O Tratado de Petrópolis previa o pagamento, pelo Brasil, de indenização, favores e até cessão de partes do território à Bolívia. Este aceno, com perdas para o Brasil, colocou o barão sob forte escrutínio na imprensa e na opinião pública.
Rio Branco resolveu, então, escrever artigos para jornais sob um pseudônimo. "Kent", entre outros argumentos, defendia que a arbitragem seria demorada e teria um resultado incerto. Afinal, o Brasil havia reconhecido a soberania da Bolívia sobre aquele território de 1867 a 1902.
Após muitas quedas de braço, o Congresso aprovou o Tratado de Petrópolis - depois também de forte mobilização política empreendida por Rodrigues Alves e por Rio Branco.
"Sem dúvida alguma a negociação do Acre foi o desafio mais difícil enfrentado pelo chanceler; a solução alcançada, vista à distância de mais de um século, pode ser considerada um sucesso espetacular", diz Villafañe na biografia.
O próprio Barão registraria em um dos seus escritos: "para mim vale mais esta obra (...) do que as duas outras, julgadas com tanta bondade pelos nossos cidadãos".
Um barão para a posteridade
A "bondade" a que se referiu Jucá de fato corresponde à imagem heroica que ficou de sua figura. Para Villafañe, isto é tributário de suas inegáveis qualidades, mas também é perpetuada por outras condições históricas do país.
"Uma ideia base da nacionalidade brasileira é a do território. O Rio Branco está muito associado a essa ideia. Nesse sentido, Rio Branco é um grande pai da pátria, deslocado um século (após a independência)", aponta o biógrafo.
Villafañe afirma também que, como Winston Churchill fez em relação ao conhecimento sobre a Segunda Guerra, o Barão de Rio Branco também pautou a historiografia à sua maneira - interpretação endossada com o fortalecimento do Itamaraty e a formação do Estado Novo.
Se empresta a sua figura ao país, Juca também se preocupou durante toda a vida com a imagem do país no exterior.
"Ele era elitista, mas seria injusto dizer que isso fosse pura vaidade. Nessa Era dos Impérios (expressão cunhada pelo historiador Eric Hobsbawm para resumir a dinâmica geopolítica do período entre 1875 e 1914), a visão que determinado país projetava no mundo dizia como esse país seria tratado. A África foi partilhada pelas potências europeias com a ideia de que ali não tinha nada de civilizado, então era terra de ninguém", aponta o diplomata.
"Para Rio Branco, era importante projetar para o Brasil uma ideia de estabilidade, modernidade, civilização - isso garantia uma tratamento melhor nesse mundo."
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