quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Militares em operações de peace-keeping e funções de Estado - Paulo Roberto de Almeida

Para atender a consulta de pesquisador acadêmico, elaborei uma quantas repostas a suas perguntas, que entendo possam interessar a um número mais vasto de estudiosos da área.


Pesquisa sobre participação de militares do Brasil em operações de Peace Keeping


Paulo Roberto de Almeida
Repostas a questionário submetido por pesquisador acadêmico sobre operações de paz da ONU e participação de militares do Brasil nessas missões.


DADOS DO ENTREVISTADO

1.          Por favor, informe a sua profissão, idade e local de nascimento?

PRA: (...)

Somente militares

2.              Quando o senhor ingressou nas Forças Armadas? O que motivou essa decisão? Existiam militares na sua família?

PRA: Não aplicável.

3.              Por favor, caracterize o contexto social e político à época que o senhor ingressou nas Forças Armadas.

PRA: Não aplicável.

4.              O senhor ocupou ou ocupa algum cargo na administração do governo de Jair Bolsonaro? Caso positivo, descreva o contexto da sua nomeação para desempenhar tal função.

PRA: Nenhum cargo no governo atual; Serviu durante a Administração Temer como Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais da Fundação Alexandre de Gusmão, vinculada ao Ministério das Relações Exteriores. Exonerado sob a atual administração do Itamaraty; sem qualquer cargo no MRE ou no governo.

5.              O senhor participou de uma operação de paz? Caso positivo, indique o período e qual a função desempenhada.

PRA: Jamais.

CRENÇAS E VALORES

6.         Segundo pesquisas de opinião como o Latinobarómetro, as Forças Armadas são a segunda instituição na qual a população brasileira mais confia (58%), após a Igreja (73%). Esses números contrastam com a baixa confiança no governo (7%), no Congresso (12%) e nos partidos políticos (6%). Como o senhor justifica esses números contrastantes?

PRA: A pesquisa, obviamente, tem problemas metodológicos e pode não refletir exatamente o pensamento dos diferentes estratos da população, inclusive do ponto de vista do contexto local ou regional, em relação a essas instituições maiores da sociedade. Não existe “uma Igreja” que receba tal grau de adesão do conjunto da população, mas diferentes segmentos religiosos, amplamente difundidos na população, e deve existir alguma variação nas percepções em função do tipo de crença organizada. As Forças Armadas já tiveram uma percepção negativa, mas voltaram a ocupar posição positiva nas percepções devido a seu atual profissionalismo, dedicação às causas nacionais e aparente não envolvimento na gestão deficiente da vida pública, cujos problemas são atribuídos, com razão, ao governo, ao Congresso e aos partidos políticos. De fato, se consolidou no país uma casta de políticos profissionais voltados mais para o interesse próprio, da mais humilde Câmara de Vereadores ao poderoso Senado da República, que transmitem ao conjunto da população essa noção de corrupção, de vantagens indevidas, mas que ao mesmo tempo não destrói a percepção de que é pelo Estado que os problemas locais, reais (saúde, educação, segurança, emprego, moradia), precisam ser resolvidos.

7.          Atualmente, é desejável a intervenção dos militares na política? Quais as habilidades desenvolvidas, através do ensino militar, que podem ser empregadas nesse meio?

PRA: Militares não deveriam se envolver na política, embora enquanto instituição as FFAA podem participar das políticas de Estado, via Conselhos de Governo e similares. O papel das FFAA na formação de pessoal, em vista das imensas deficiências do sistema de ensino público, é essencial, ainda que elas depois percam parte desse pessoal qualificado para o setor privado dados os baixos soldos da maior parte dos quadros de carreira nas FFAA. Pode-se considerar que elas participam da qualificação de capital humano extremamente importante para a boa gestão da coisa pública, e poderiam ser mais envolvidas em políticas setoriais nas quais essa capacitação seria bem vinda (pesquisa avançada em áreas sensíveis, tecnologias de ponta, etc.).

8.         Na sua opinião, a intervenção dos militares na política fortalece ou debilita a democracia?

PRA: Isso depende muito do quadro geral da política e dos papeis respectivos das diferentes elites que podem fornecer quadros para o exercício de cargos públicos. Pelas características corporativas das FFAA elas poderiam ter, teoricamente, uma função agregadora da sociedade em vista de grandes objetivos nacionais, o que não impede que, sendo o braço armado da nação, possam ser envolvidas na política para cumprir objetivos setoriais ou de caráter específico a determinada força política ou econômica dominante. Também depende do contexto ideológico geral existente no mundo, do papel de certas ideias e sua influência nos movimentos políticos. As crises econômicas e políticas do início do século XX, as grandes disputas ideológicas, levaram as FFAA bem mais para o lado do corporativismo e dos fascismos do que do lado do socialismo ou comunismo, em todo caso, uma adesão a sistemas autoritários de Governo, que levaram o Brasil para o lado de sistemas não democráticos no plano político e da administração pública. Na atualidade, as FFAA estão sinceramente comprometidas com uma visão democrática do Brasil e do mundo, mas isso também tem a ver com o sistema internacional e a afirmação de valores democráticos na sociedade brasileira.

9.         O politólogo americano brasilianista Alfred Stepan, na obra que se tornou célebre na literatura “Os militares na política: as mudanças de padrões na vida brasileira”, publicada inicialmente em 1975, caracterizou a atuação dos militares brasileiros entre 1930 e 1964 como um poder moderador, visto a sua intervenção em sucessivas ocasiões (1930, 1945, 1954 e 1964) como aliados aos interesses de diferentes grupos políticos. Comente sobre a atualidade desse conceito para descrever a participação de militares no governo de Jair Bolsonaro.

PRA: Costumo distinguir entre intervenções de militares na política e intervenções das FFAA na política, ou seja, a atuação coordenada das forças militares no sistema político, em momento de crise sistêmica, à diferença do envolvimento de militares individualmente ou até em grupo (mas não como instituição) no jogo político, em aliança com partidos, movimentos ou personalidades da vida pública. As intervenções das FFAA são mais raras e, em minha opinião, se restringem a apenas três episódios da vida política brasileira, e não começa com o episódio que muitos historiadores consideram o marco original dessa interação: o golpe da República, ou seja, a derrocada da monarquia e inauguração do novo regime político. Tanto 1889 e os dois primeiros presidentes militares, quanto as revoltas da Armada nos anos 1890, a eleição do Marechal Hermes, as muitas revoltas tenentistas dos anos 1920 são meras intervenções de militares na política, não da instituição enquanto tal. A primeira intervenção das FFAA na política foi, em minha visão, o afastamento de Washington Luís da presidência, em outubro de 1930, para evitar uma guerra não desejada pela cúpula do Exército (a famosa batalha de Itararé, que não ocorreu), em aliança com a Marinha. Voltam as intervenções de militares na política – tanto na direita, quanto na esquerda – nos anos 1930, mas nem o golpe de 1937 nem o Estado Novo têm a ver com a “intervenção das FFAA” na política: elas foram usadas pelo caudilho Vargas para os seus objetivos personalistas. A segunda intervenção das FFAA na política se refere ao afastamento do ditador em outubro de 1945, porque ele justamente estava interferindo no jogo político das eleições previstas para o final do ano.
Ocorreram muitas e novas intervenções de militares na política nacional durante toda a década de 1950 e sobretudo no início dos anos 1960, mas não considero que tenham sido intervenções das FFAA, a não ser marginalmente, como no veto à assunção de João Goulart, vice-presidente de Jânio Quadros, como presidente, em agosto-setembro de 1961: o conflito foi “resolvido” no âmbito do próprio sistema político, com a emenda parlamentarista de setembro desse ano. Nem 1964 pode ser classificado como uma pura intervenção das FFAA na política brasileira: tratou-se de uma grave crise político-militar que tomou a forma de um “golpe”, mas apenas a pedido e sob a pressão de forças políticas que disputavam o poder na ocasião. A partir do “golpe civil-militar”, aí sim, as FFAA passaram a assumir a responsabilidade direta pelo poder político, mais o Exército do que as duas outras forças, o que criou uma situação inédita na vida nacional: não uma simples intervenção de militares ou das FFAA na política, mas a assunção das FFAA pela direta responsabilidade pelo sistema político, ainda que militares disputaram entre si diferentes visões de como deveria ser conduzido o processo. Não havia muito consenso entre as diferentes tendências das FFAA, ou melhor, de militares individuais tentando atuar como políticos num cenário altamente contraditório.
A terceira, e até aqui a última intervenção das FFAA na política se deu não exatamente no “golpe dentro do golpe” do AI-5, mas mais exatamente no veto interposto ao vice-presidente Pedro Aleixo como substituto legal do presidente Costa e Silva, por ocasião de seu acidente vascular-cerebral, em agosto de 1969. Foi uma decisão consensual das FFAA, no contexto de ameaças ao regime (guerrilhas, atentados, oposição civil, etc.) e na desestruturação do sistema político civil, assim como foi consensual uma certa “tutela” das FFAA sobre o processo de transição, tanto em 1979, quanto em 1984-85, na redemocratização. O que se seguiu foi um longo desengajamento das FFAA e de militares individuais da política brasileira, só ocorrendo, ocasionalmente, por meio dos clubes militares, quando “generais de pijama” se manifestavam episodicamente em torno de determinadas questões, inclusive na questão da defasagem dos soldos, que foi o que abriu caminho para a ascensão política de um militar do “baixo clero” no Legislativo.
Os governo de Fernando Collor e FHC representaram mais uma etapa no processo de afastamento dos militares da política, no primeiro caso pelo controle das iniciativas de setores das FFAA na área nuclear, nos segundo com a criação do Ministério da Defesa, destinado, precisamente, a institucionalizar esse afastamento. Em momentos de crise da política brasileira, como por ocasião do impeachment de 2016, militares individualmente, eventualmente um ou outro comandante, interpretando algum “consenso virtual” das FFAA, exerceram uma ou outra forma de “intervenção soft” na política, delimitando certas soluções a alguns impasses no sistema político ou no âmbito do Judiciário. Foi o que ocorreu com os “twits” do comandante do Exército nessas oportunidades.
No governo Bolsonaro, pode estar acontecendo um envolvimento maior das FFAA e de militares individualmente na política na política e no governo, mas não de forma estratégica ou planejada, e sim em função de uma fase não convencional da política brasileira. Talvez seja um estilo de participação não intervencionista, algo como um tipo de “maçonaria militar” em defesa da democracia, das instituições, da estabilidade do governo num momento de polarização da luta política, mas em todo caso é o mais “próximo” que temos de intervenções das FFAA ou de militares na política, como não tínhamos tido desde o governo Collor. 
Não creio que se possa caracterizar como um “novo padrão de intervenção” de militares ou das FFAA na política, pois o governo Bolsonaro não responde a nenhuma outra experiência, civil ou militar, que o Brasil tenha tido nos seus 140 anos de República, ou mesmo nos quase dois séculos de Estado-nação independente. Creio que este governo, assim como a participação de militares no governo, fará parte de um parêntese, ou de um nicho específico na nossa história política, sem qualquer comparação com experiências precedentes, e arrisco até ulteriores. Não creio, tampouco, que os conceitos e as práticas observadas por Alfred Stepan nos anos 1960 se apliquem ao Brasil do presente. As FFAA evoluíram num sentido profissionalizante, os militares se tornaram mais preparados, mais educados no sentido lato, mais capacitados no plano profissional, e também mais democráticos no terreno de suas ideias políticas. 

RELAÇÃO ENTRE PEACEKEEPERS E A POLÍTICA

10.       A participação de militares na política brasileira não é uma novidade. Em vários períodos históricos, como 1930, 1945, 1954 e 1964, isso ocorreu. Por outro lado, a participação de ex-peacekeepers em funções governamentais é um fenômeno recente. Nos últimos anos, tem havido uma forte participação de ex-peacekeepers, sobretudo daqueles que estiveram na Minustah no Haiti, em funções governamentais. Como o senhor explica o incremento dessa participação?

PRA: Trata-se de uma evolução natural e saudável, esse envolvimento das FFAA e de militares em operações de paz da ONU, uma vez que os militares não tiveram, depois da FEB e do envolvimento na Segunda Guerra Mundial, nenhum conflito direto – ou seja, envolvendo o Brasil – ou indireto, envolvendo guerra interestatal na região. Sempre atuamos, desde a guerra do Chaco, no sentido do apaziguamento militar e da mediação diplomática de conflitos. A primeira operação real, fora, das missões da ONU, foi a intervenção na guerra civil na República Dominicana, em 1965, a pedido dos EUA, mas ainda assim “legalizada” por um mandato da OEA. Todas as demais operações foram sempre respondendo a demandas da ONU (desde Suez, em 1957) ou por interesse direto de natureza política (Minustah, no Haiti). Mas evitamos a guerra da Coreia (autorizada pelo CSNU), o Congo belga (idem), o Vietnã (sob demanda americana) e outras missões ou operações que mesmo autorizadas não correspondiam ao interesse nacional. 
Quanto à participação de ex-peacekeepers em funções governamentais, não creio que seja uma prática corrente ou constante, tendo ocorrido justamente agora no governo Bolsonaro em função da atitude acima classificada de “maçonaria militar”, ou uma espécie de “tutela” de alguns militares (não das FFAA, de modo consensual), sobre a candidatura e depois o governo do atual presidente. Não me parece que a participação de militares em missões da ONU os habilite necessariamente ao exercício de atividades no âmbito do Executivo, e tais ocorrências devem ser consideradas ad hoc, ou caso a caso.

11.       Em outros países sul-americanos que tem enviado tropas para as missões de paz da ONU, como o Chile, a Argentina e o Uruguai, essa participação, não foi registrada. Na sua opinião, por que o Brasil é um caso excepcional?

PRA: Não creio que o Brasil represente um caso excepcional, e tal se deve unicamente pelo fato de que a candidatura do capitão-político representou um momento especial da política brasileira e do relacionamento entre quadros das FFAA com esse personagem, que, aliás, nunca foi considerado positivamente no âmbito das FFAA, ao contrário. Trata-se, a meu ver, de experiência não destinada a criar novos padrões de conduta ou relacionamento entre militares e o sistema político. Diga-se de passagem que as FFAA sempre foram bastante “legalistas”, no sentido em que se distanciaram da tradição caudilhesca dos países hispânicos, e buscaram se cercar de conselheiros jurídicos e de atos institucionais para legitimar suas intervenções no jogo político.

12.       O fato de ex-peacekeepers desenvolverem expertise em funções relacionadas à segurança pública promove a superioridade dos mesmos sobre os civis na gestão política?

PRA: Não creio, embora isso possa se dar em função das característica específicas dessas missões. No Haiti, por exemplo, o cenário era quase o mesmo que se desvenda no Brasil, ou seja, missão mais de natureza policial e de natureza de segurança civil, do que de interposição entre bandos armados disputando o poder político, como pode ser o caso no Congo ou em outras missões. O que, sim, ocorreu a partir do Haiti é que as FFAA se mostraram mais tolerantes com missões de “segurança pública”, o que antes elas não aceitavam, assim como não aceitavam as sugestões do governo dos EUA e de militares americanos no sentido de se engajarem mais na luta contra o narcotráfico, o que elas diziam não ser função das FFAA e sim das forças policiais (à exceção de certos pontos de controle nas fronteiras, sobretudo amazônicas). Pode ser que com esse envolvimento, militares se tenham tornado mais capacitados em tarefas de segurança pública, e que possam, a partir daí, exercer funções pertinentes no governo, mas não creio que haja, no caso, uma relação direta, e numa ampla interface, com missões de paz da ONU.

13.       A participação de ex-peecekeepers em funções políticas de alto escalão pode ter algum impacto sobre as relações civis-militares no Brasil?

PRA: Sim, provavelmente, tanto na esfera propriamente governamental, no Executivo (federal ou estaduais), quanto no plano diplomático ou das relações exteriores do país. Considero tal possibilidade como altamente positiva, tanto para o governo quanto para as FFAA e os militares individualmente, que se tornam assim plenamente integrados às funções de Estado, à margem de suas atribuições normais ou constitucionais.

14.       A participação de ex-peacekeepers na política brasileira contemporânea estaria relacionada ao fato de os mesmos serem tecnocratas, ou seja, funcionários com alta expertise técnica e capacidade de articulação política?

PRA: Não creio que o termo “tecnocrata” seja apropriado, pois que o tecnocrata é um funcionário dedicado a planejamento e execução de tarefas administrativas, ao passo que o peacekeeper segue instruções precisas, de caráter militar, ou civil-militar, em situações de tensão política, guerra civil, conflitos bélicos, erosão de instituições do Estado ou coisas similares, ao passo que o tecnocrata trabalha em condições “normais”, digamos assim, de exercício de funções públicas.
Ainda que a ONU e suas agências estejam envolvidas numa super-burocracia, altamente contaminada pela política de poder e de influência dos Estados, o peacekeeper tem uma atribuição precisa, de manutenção da paz e da segurança, num cenário que pode ser imprevisível, o que o distingue das funções repetitivas, altamente burocráticas, de um funcionário público ou agente do Estado situado na tecnocracia “pacífica” de um Estado normalmente constituído. Tampouco creio que a expertise adquirida nas missões de paz os habilite para uma tecnocracia normal, e essa função de “articulação política” pode existir, ou não, dependendo do tipo de missão de paz no qual eles estão envolvidos. Algumas dessas missões são puramente de terreno, de observação, de interposição, e de controle de contingentes armados, de deslocamento de pessoal civil, ao passo que no governo estamos falando basicamente de papeis e outros burocratas. Chefes de missões de paz podem sim ter de articular com dirigentes locais, políticos civis ou mesmos chefes de contingentes militares, mas a missão é sempre circunscrita por instruções que têm muito pouco a ver com a atividade burocrática normal de um Estado. Eles até poderão emergir dessas missões bem mais capacitados, no plano intelectual ou técnico, mas essa hipótese é um pouco aleatória.

 Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 de janeiro de 2020

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