Quero dizer, ela se dirigia mais aos grandes capitalistas que iriam sustentar o "governo popular" do carismático líder sindicalista do que propriamente ao povinho miúdo das políticas assistencialistas?
É o que transparece desta matéria, que promete revisar algumas das suposições que tínhamos, em 2002, a respeito desse importante documento que praticamente carimbou a vitória de Lula nas eleições de outubro de 2002.
Lembro-me perfeitamente de grandes banqueiros e capitalistas brasileiros, reunidos para um daqueles grandes encontros de plutocratas nos EUA – eu estava então servindo na embaixada em Washington –, e que praticamente selaram a vitória de Lula: eles passaram o tempo todo, numa reunião em New York em agosto de 2002, fazendo elogios a Lula, ignorando totalmente o candidato Serra, do PSDB, e convencendo seus interlocutores americanos, preocupados com a vitória de um "esquerdista socialista" nas eleições de outubro, que Lula não era nada daquilo que diziam, e que ele seria um bom candidato e um presidente perfeitamente aceitável para a plutocracia americana.
Esta matéria deixa a entender porque.
Eu sempre fiquei intrigado pela súbita, total e completa conversão da plutocracia brasileira – grandes capitalistas e banqueiros conhecidos – ao candidato "socialista" e procurei explicar essa conversão num texto que escrevi praticamente no imediato seguimento da divulgação dessa Carta, e muito antes da vitória de Lula, mas que só desvendei muito anos depois:
“Lula e as relações internacionais do Brasil”, Washington, 24 junho 2002, 6 pp. Comentários aos aspectos de relações internacionais da “Carta ao Povo Brasileiro”, apresentada como resultado da conferência nacional sobre programa do PT, pelo candidato Luis Inácio Lula da Silva. Divulgado no blog Diplomatizzando (22/10/2017; link: https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/10/carta-ao-povo-brasileiro-lula-2002.html).
Num texto de abril de 2004, e jamais divulgado, eu fazia um comentário à Carta e às novas posições econômicas de Lula, que divulgo agora, ao final desta postagem.
Pouco depois, ao se completarem dois anos desde a divulgação da Carta ao Povo Brasileiro, eu fazia uma análise daquele "documento de ruptura" num artigo que foi, sim, publicado em meu nome, e novamente divulgado em 2016, como registro abaixo:
1294. “Dois anos de ‘Carta ao Povo
Brasileiro’: De volta a um documento de ruptura”, Brasília, 27 junho 2004, 16
p. Análise do discurso argumentativo desse documento de campanha do candidato
Lula (06/2002), com base em sua lógica intrínseca, sem tentativa de balanço em
relação ao conteúdo efetivo. Publicado no Espaço
Acadêmico (n. 38, jul. 2004). Relação de Publicados n. 474. Postado
novamente no blog Diplomatizzando, em
4/04/2016 (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/04/a-carta-ao-povo-brasileiro-de-2002.html); disseminado no Facebook (https://www.facebook.com/paulobooks/posts/1126550154075100).
Creio que a história revisitada sempre nos traz algumas precisões sobre o passado.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4 de janeiro de 2020
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LAVA-JATO
O dedo de Emilio Odebrecht na carta mais importante de Lula
Por Lauro Jardim
02/01/2020 • 08:03
A reportagem de capa da revista piauí que chega amanhã às bancas, "História de uma amizade — como Emílio Odebrecht se aproximou de Lula e o que aconteceu depois", escrita por Malu Gaspar, traz uma revelação sobre a célebre "Carta ao povo brasileiro": o texto com o qual Lula pretendeu acalmar o establishment econômico na eleição de 2002 teve o dedo do pai de Marcelo Odebrecht. Escreve Malu:
— Em meio a intenções genéricas, um item em particular indicava a digital da Odebrecht: a criação de uma secretaria de Comércio Exterior, ligada diretamente à Presidência da República, com a intenção de facilitar o financiamento a obras de infraestrutura e exportação de serviços.
A capa de piauí é um trecho inédito do livro que a autora do excepcional "Tudo ou Nada — a verdadeira história do grupo X" está escrevendo sobre a Odebrecht e que será lançado em meados do ano pela Companhia das Letras.
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Comentário PRA, de abril de 2004, inédito até o momento:
Puxando pela memória
Paulo Roberto de Almeida
7 de abril de 2004
“Nosso povo constata com pesar e
indignação que a economia não cresceu e está muito mais vulnerável, a soberania
do país ficou em grande parte comprometida, a corrupção continua alta e,
principalmente, a crise social e a insegurança tornaram-se assustadoras.”
Triste quadro, não é? Mas a frase não tem, ou não tinha, a intenção de
descrever a atual situação de incertezas e de baixo crescimento.
Ela data de
22 de junho de 2002 e visava o governo de FHC. Seu autor?: Luiz Inácio Lula da
Silva, na “Carta ao Povo Brasileiro”. Que voltas que o mundo dá, não é?
“O povo brasileiro quer
mudar para valer. Quer trilhar o caminho da redução de nossa vulnerabilidade
externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado
interno de consumo de massas.”
Mudou para valer? Estamos menos vulveráveis? Sim, aumentamos nossas
exportações, mas nisso o governo atual leva pouco crédito: depois da
desvalorização provocada pelo pânico eleitoral, o câmbio valorizou-se em 2003,
sendo a boa situação da economia mundial e a crescente demanda chinesa por
importações os reais responsáveis pelo bom desempenho exportador. A dívida
externa aumentou e a interna seguiu atrás. Quanto ao amplo mercado interno, só
se for para calmantes e anti-depressivos, pois a massa real de rendimentos caiu
7,3% em 2003.
“O nervosismo dos mercados
e a especulação não nascem das eleições. Nascem, sim, da graves
vulnerabilidades estruturais da economia apresentadas pelo governo, de modo
totalitário, como o único caminho possível para o Brasil. Na verdade, há
diversos países estáveis e competitivos no mundo que adotaram outras
alternativas.”
Parece que foi hoje, não é mesmo? Pois o governo do PT se eximiu, em 2002 ou
atualmente, de dizer, concretamente, quais eram esses caminhos alternativos, sob risco de
pensarmos que a carta-compromisso era mera demagogia. Quais seriam esses
países? Índia, China, Rússia? Eles estão mesmo melhor do que o Brasil? Ou será
que Lula queria se referir aos Estados Unidos, à Inglaterra, à França,
democracias avançadas, com bem estar pleno para suas populações? Mas esses
países são neoliberais, para dizer o minimo.
Será que é a
esse modelo a que Lula se referia? Eu, por mim, penso que sim, e a política do
Dr. Palocci é totalmente consistente com as receitas do G7 em matéria de
responsabilidade econômica. Então, a alternativa do “new” PT é o
neoliberalismo? Essa orientação não casa muito bem com a política externa
terceiro-mundista que ele vem conduzindo, para alegria e satisfação do “old”
PT, que ainda não se converteu ao sensato realismo da equipe econômica. Falando
de política externa, eis o que Lula dizia em 2002:
“Nossa
política externa deve ser reorientada para esse imenso desafio de promover
nossos interesses comerciais e remover graves obstáculos impostos pelos países
mais ricos às nações em desenvolvimento.” Não parece, pois que ela desdenha os
mercados e os investimentos americanos, parecendo preferir os dos
ultra-protecionistas europeus, que só nos compram produtos primários.
E o que Lula
propunha na frente interna? “Superando a nossa vulnerabilidade externa,
poderemos reduzir de forma sustentada a taxa de juros. Poderemos recuperar a
capacidade de investimento público tão importante para alavancar o crescimento
econômico.” Não ocorreu a redução e os investimentos, portanto, não foram
sustentados, o que deixou o crescimento irrealizado. Mas aqui ocorreu um erro
de avaliação. A taxa de juros depende das necessidades de financiamento do
setor público, que se abastece no mercado interno. Se Lula quisesse mesmo
reduzir a vulnerabilidade externa, deveria começar propondo um superávit
primário de 5 ou 6% do PIB, isto é, o governo não precisaria ficar tomando
dinheiro no mercado e faria com que os banqueiros deixassem de ser “gigolôs” do
Estado. Os juros baixariam rapidamente. Ele pode fazer isso?
Lula tinha
consciência, em 2002, de que pelo menos deveria manter a política de
responsabilidade fiscal de FHC, mas à sua maneira: “Queremos equilíbrio fiscal
para crescer e não apenas para prestar contas aos nossos credores.” Excelente:
é o que todo mundo quer. Mas o PT tem a receita mágica do equilíbrio fiscal com
crescimento? Se tem, já estava na hora de dizer, pois estamos há anos atolados
no desequilíbrio e no baixo crescimento e, até aqui, prestando contas aos
credores externos. Onde estão os gênios econômicos do PT? Escondidos de
vergonha? Assim fica dificil ganhar as próximas eleições e as de 2006: se eles
guardam suas receitas geniais para depois, correm o risco de serem acusados de
demagogia eleitoreira e de inconsistência governamental.
Precisamos
de uma nova “Carta ao Povo Brasileiro”, que reafirme as bases do crescimento
responsável e que diga que a política econômica é essa mesma que está aí. O Dr.
Palocci agradece. Nós também, pois saberemos que o PT adotou um novo manual de
economia política, que nos livrará, finalmente, de novas promessas de rupturas…
1229. “Puxando
pela memória”, Brasília, 20 março 2004, 3 p. Comentário sobre a Carta ao Povo
Brasileiro, emitida por Lula em junho de 2002. Inédito.
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