Alguns deslizes nesta matéria no geral bem escrita sobre o intelectual e diplomata (nessa ordem) José Guilherme Merquior, que não comprometem a qualidade geral da informação, mas que peca, talvez, pela insistência em pretender ver no "garoto prodígio" do Itamaraty apenas um contendor da esquerda, o que reduz, e muito, a natureza de sua magnífica produção intelectual.
Por exemplo, essa mania de apresentá-lo como "antimarxista convicto" me parece enviesado, pois ele tinha um grande respeito pelos marxistas inteligentes com os quais dialogava, e até dedicou o seu Western Marxism (o livro foi escrito diretamente em inglês) ao seu amigo Leandro Konder (que não tem Comparato no nome, como escreve o jornalista). Ele não estava prioritariamente interessado em "desmascarar a esquerda" e sim em defender o espaço da razão, contra quaisquer irracionalismos, inclusive da direita, daí o seu "social-liberalismo".
Tampouco acusou Marilena Chaui de "plagiar" o sociólogo francês Claude Lefort (falta um t, no texto do jornalista): apenas revelou que ela havia feito certos empréstimos sem aspas, talvez por distração, ou esquecimento.
O defeito principal está mesmo nessa tentativa de fazer de Merquior um "desmascarador da esquerda", o que não corresponde ao importante papel dele como intelectual renascentista.
Paulo Roberto de Almeida
Perfil
Redescobrindo
José Guilherme Merquior: um pioneiro em desmascarar a esquerda
Intelectual
precoce e exímio polemista, o diploma José Guilherme Merquior ganhou
notoriedade com seus ensaios eruditos nos quais desmascarava a esquerda
Por
Gabriel de Arruda Castro, especial para a Gazeta do Povo
[07/02/2020]
[10:46]
José Guilherme Merquior foi um intelectual precoce em quase
tudo. Aos 18, já era crítico literário no Jornal do Brasil. Aos 22, diplomata
de carreira. Aos 40, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.
Capaz
de discorrer com profundidade sobre literatura, história, sociologia e
política, ele foi uma figura de primeira grandeza no cenário intelectual do
país entre as décadas de 1960 e 1980 – e um raro expoente do pensamento liberal
naqueles tempos.
Formado
em filosofia e direito, o carioca Merquior tornou-se doutor em Letras pela
Universidade de Paris e em Sociologia pela London School of Economics, na
Inglaterra. Como diplomata, ele atuou em diversos cargos, incluindo o de
representante do Brasil na Unesco e o de embaixador no México.
“Ele
foi um adolescente brilhante e, quando entrou no Itamaraty, se distinguiu muito
rapidamente mesmo entre os diplomatas mais velhos. Àquela altura, ele já tinha
lido sobre tudo”, diz o embaixador Paulo Roberto de Almeida, um estudioso do
liberalismo.
Cultura
e mundo das ideias
Mas
foi como crítico literário e ensaísta que Merquior se tornou mais conhecido.
Não que seus textos cativassem o grande público. Embora colaborasse com jornais
de ampla circulação, como o Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo, ele falava
sobretudo de cultura e do mundo das ideias. Seus artigos combinavam um estilo
provocativo com demonstrações de erudição e numerosas citações (inclusive em
alemão e francês, sem tradução).
Quem
pegasse o jornal para ler um artigo de Merquior poderia se deparar com trechos
assim:
“No nosso espaço político-cultural, o impulso
desenvolvimentista e modernizador não só deve como pode assumir um caráter
(também) nomocrático, sensível à polifonia dos interesses coletivos numa
sociedade altamente diferenciada.”
O
rigor com a língua portuguesa e, sobretudo, com a fidelidade aos autores que
ele pretendia citar estavam, para Merquior, acima das preocupações com a
popularização de suas ideias.
E as
ideias eram de fato pouco populares à época. Merquior advogava por um regime
liberal, na definição mais ampla do termo. Mais do que isso, ele tinha
afinidade com o social-liberalismo (uma vertente do pensamento liberal que
defende um regime de liberdade política e econômica, mas com prioridade para a
redução da pobreza).
O
diplomata também criticava aqueles que defendiam uma versão doutrinária e
idealizada do liberalismo: “Num país com as nossas carências de capitalização e
de serviços sociais, o antiestatismo sistemático não tem como ser um combate
liberal, pelo simples motivo de que sua aplicação atrofiaria ou imobilizaria no
Estado um dos principais, senão o principal instrumento de criação efetiva de
liberdades – de oportunidades concretas de vida e de avanço para a maioria
esmagadora da população”, escreveu.
Liberalismo
social
O
liberalismo social era, na visão que Merquior expressou no início dos anos
1980, a “única face legítima do liberalismo contemporâneo”. A posição
social-liberal, dizia ele, tinha como cerne “o desiderato da igualdade das
oportunidades”.
O
tema era recorrente nos escritos de Merquior, embora poucas vezes ele tratasse
diretamente de economia e dedicasse a maior parte de seus escritos à crítica
literária, à sociologia e à política.
A
política diária não o atraía tanto quanto os grandes debates filosóficos e
artísticos. Ainda assim, Merquior ajudou a elaborar o programa do Partido
Liberal, em 1985, e tratava de política com alguma frequência. “No reino da
censura e no império ideocrático, não pode haver independência intelectual; só
na república das liberdades floresce a autonomia do espírito, a altivez da
palavra, a bravura da opinião”, escreveu ele, em 1981, ainda sob o regime
militar.
O
embaixador Paulo Roberto de Almeida afirma que José Guilherme Merquior tinha
uma erudição ímpar. “É um tipo de intelectual que não existe mais. Merquior se
destacou mais pela sua inteligência e pela sua cultura do que pelo trabalho
diplomático”, diz.
Antimarxista
convicto
Em
um tempo no qual o diálogo entre intelectuais de esquerda e direita era
frequente, Merquior foi amigo de figuras mais à esquerda, como o escritor
Carlos Drummond de Andrade e o professor Leandro Konder Comparato [?; sic]. Mas não
deixou de marcar posição: anti-marxista convicto, ele era com frequência
definido como “polemista” por causa de seus ataques à esquerda.
Em
seu livro O Marxismo Ocidental, publicado originalmente em inglês, ele faz uma
análise rigorosa da tradição marxista e, ao fim, chega à seguinte conclusão:
“Em conjunto, o marxismo ocidental (1920-70)
foi apenas um episódio na longa história de uma velha patologia do pensamento
ocidental cujo nome é, e continua a ser, irracionalismo”.
Em
1981 Merquior envolveu-se em uma controvérsia quando acusou a professora Marilena
Chauí, intelectual idolatrada no Partido dos Trabalhadores, de plagiar trechos
do francês Claude Lefor [?; sic] em seu livro Cultura e Democracia. A afirmação, feita
por ele em um artigo de jornal, lhe trouxe a antipatia de parte da esquerda.
Na
mesma época, analisando um livro recém-lançado do consagrado antropólogo
Roberto da Matta, ele foi implacável quanto ao estilo:
“O autor expõe, em geral, com clareza, não
raro com certa elegância; mas volta e meia sucumbe ao desleixo ou, pior ainda,
a esse fraseado esquisito com que tantos textos universitários macaqueiam
gratuitamente palavras e construções inglesas ou francesas. O desleixo abrange
alguns anacolutos e várias regências incorretas, além da estranha menção a um
tal ‘Alex’ de Tocqueville (que intimidades são essas, Professor Matta? O homem
se chamava Alexis.)”
Merquior
escreveu 22 livros, incluindo obras em francês e inglês. Naquele que talvez
seja o mais conhecido deles, Liberalismo Moderno e Antigo, ele traça um
panorama abrangente da origem e do desenvolvimento das ideias liberais e mostra
como essa tradição intelectual abarca conceitos diferentes, por vezes
contraditórios, de liberdade.
Em
seus anos finais, o diplomata ocupou um cargo na Casa Civil do governo
Figueiredo chegou a colaborar com a campanha presidencial e com o governo de
Fernando Collor.
O
precoce José Guilherme Merquior acabou não resistindo a um câncer e morreu em
1991, antes de completar 50 anos de idade. Boa parte de sua obra ainda está à
espera de ser redescoberta.
Copyright
© 2020, Gazeta do Povo. Todos os direitos reservados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário