terça-feira, 5 de janeiro de 2021

2021, o ano Merquior (5): A legitimidade na perspectiva histórica (1980) - José Guilherme Merquior, Celso Lafer

 Durante meus tempos de diretor do IPRI, e correspondendo a meus dotes de arqueólogo, ou pelo menos garimpeiro de coisas muito velhas, eu ficava examinando armários, gavetas, estantes, e descobria coisas do "arco da velha", da era pré-computador. Então colocava o pessoal para trabalhar: todo mundo a scannear todo aquele material precioso, convertê-lo em pdf, se o arquivo fosse bem editado, ou então tentar "ocrizar", para tornar o arquivo um texto podendo ser retrabalhado e editado novamente. 

Comandei dezenas de operações desse tipo. Nem sei onde tudo está, em algum subterrâneo de meu computador, mas separei os materiais por temas ou nomes.

Aqui este trabalho de Merquior apresentado na UnB em 1980: talvez persistam alguns defeitos de edição, mas permite recuperar o texto tal como publicado na época.

Paulo Roberto de Almeida


MERQUIOR, José Guilherme. A LEGITIMIDADE NA PERSPECTIVA HISTÓRICA. 

Seguido de comentário de Celso Lafer (p. 22 do arquivo em Word)

 

Encontros Internacionais da UnB: Alternativas Políticas, Econômicas e Sociais Até o final do Século

Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1980

A LEGITIMIDADE NA PERSPECTIVA HISTÓRICA, p. 297-317.  

José Guilherme Merquior 

Universidade de Brasília.

 

I.               Três pressupostos e uma condição 

Permitam-me considerar de início três pressupostos básicos: o primeiro é que qualquer que seja o período no tempo considerado, dentro de cada sociedade, deparamo-nos com pelo menos um "simbólico de justificação" de estruturas de poder e ordenações normativas, não importando se tais estruturas estão estabelecidas ou emergindo; o segundo é que o alcance desses simbolismos de justificação abarca não só formas de regulamento, leis e comando o que se poderia chamar a dimensão jurídico- política da legitimidade mas também certos códigos de conduta e padrões de comportamento, em suma, o aspecto "cultural" da legitimidade; o terceiro é que esses simbólicos são grosso modo redutíveis a uns poucos costumes ou macrótipos históricos predominantes, cuja sucessão está liga a muitas modificações de grande importância em tecnologia, métodos de produção, estrutura social, formas de governo e ideologia. 

Ouso afirmar que se admitirmos o primeiro desses pressupostos, pouca dificuldade teremos de aceitar o terceiro; poucos especialistas em ciência social negariam que quaisquer que sejam as variações significativas na ideologia da legitimidade, elas devem estar relacionadas, de alguma maneira, com suas bases sociais. Nosso segundo postulado, porém, já não parece evidente por si mesmo. Pode-se até admitir que as sociedades tem a tendência de justificar igualmente regras de conduta ou padrões de comportamento, além dos arranjos políticos e jurídicos, sem que isso implique uma forma de justificação moldada em modelos similares para ambos os casos. 

Estudiosos atuais de processos de legitimidade, de Karl Deustsch a Jurgen Habermas e Roland Robertson, estão, ao que parece, perfeita

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mente dispostos a reconhecer que a legitimidade se encontra nas fronteiras não a deixa de ser significante que mesmo o território da ciência política, o assunto mereça tratamento normalmente sob o rotulo de "cultura política” - limítrofe, como sabemos, do campo reservado ao "sistema politico". Além do mais, não estariam os três aclamados tipos de dominação de legitimidade, propostos por Weber, o tradicional, o carismático e o racional-normativo, apoiados, de um lado, pelo fator politico e, do outro, pelo cultural? 

É evidente que estão - e na verdade caberia perguntar: e sendo assim, por que não simplesmente adotar o pensamento de Weber? A resposta é que Weber não teve a preocupação de apresentar seus três tipos gerais numa sucessão histórica. Embora tenha compreendido que a racionalização era a chave a evolução cultural, negou explicitamente uma preocupação diacrônica, conquanto seu motivo tenha sido tão-somente o desejo imenso de que o carisma sobrevivesse nos tempos atuais. Além disso, dos quatro modos históricos que esboçaremos, três estão compreendidos no campo do seu modelo racional-normativo. 

Introduzidos nossos pressupostos básicos, mas antes de começar a delinear o quadro histórico há uma condição a ser lembrada, que gostaria de pedir guardassem na lembrança. O objeto de nossa discussão compreenderá apenas alguns "simbólicos" de legitimidade. Seria imperdoável se esquecêssemos de que existe sempre um hiato, por vezes muito grande, entre este nível de ideologia e a própria experiência histórica do poder e norma. Tivesse eu o talento dos sociólogos da escola wittgensteiniana ou, melhor ainda, fosse filiado à corrente estruturalista, estejam certos de que tentaria transformar aos poucos a “empiria" da historia do poder e da legitimidade num aprazível mundo conceitual auto protegido. Sendo as coisas como são, perdoem-me se relembro em beneficio próprio a impertinente distância que separa a ideologia do fato. Como temos todo o direito de fazê-lo, examinemos demoradamente as ideologias, alias um exercício não de todo inútil; mas nunca nos deixemos enganar ao tomar a nuvem amontoada de símbolos e ideias pelo brilho de Juno da vivida - e muitas vezes sofrida - história. Especialmente se o amontoado nublado trata do assunto justificação... 

II.             O modelo arcaico ("archic") de legitimidade 

Passemos ao nosso esboço - nada mais que um esboço, e não analise dos princípios internos, a "formae mentis", por assim dizer, de grandes modelos históricos de legitimidade. Como sugerido antes, o primeiro mo

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delo a entrar em cena, na minha classificação coincide em grandes linhas com o tipo tradicional de Weber. À primeira vista, portanto, pareceria razoável que tomássemos, pelo menos, este tipo dentre os três propostos por Weber - mas não o farei assim. A dificuldade com o conceito de tradição de Weber é que ele esta talvez demasiado identificado com, em suas próprias palavras, um passado eterno (an “eternal yesterday") entranhado na noção de santidade do precedente. Se tomarmos a Idade Média como o reinado da tradição no Ocidente, torna-se difícil compatibilizar a ênfase posta no precedente sagrado com o fato, corretamente realçado por muitos medievalistas, de que a Idade Média foi, durante muito tempo, uma sociedade que viveu “sem precedente” – uma sociedade que teve de superar uma ausência de luz quase total de tantas estruturas de poder e normativas do mundo antigo. Poder-se-ia contrapor o argumento de que nos tempos medievais, o costume possuía forca. Mas não é o bastante, porquanto o próprio Weber foi o primeiro a separar uso e costume (Brauch und Sitte) da esfera de "bindingness" a que pertencem todas as ordens de legitimidade (não é preciso dizer que isso em nada compromete o valor extraordinário de sua análise comparativa das formas tradicionais demando, como o feudalismo e o regime patriarcal, no chamado "Herrschaft tssoziologie" da economia e sociedade). 

Poderíamos pensar numa forma alternativa de descrever a tradição - poderíamos reter o sentido de uma "autoridade do passado" sem, no entanto ceder noção venerável de um precedente sagrado? Proponho o modelo "archic" de legitimidade. Por quê? Porque "arché" significa ambas as coisas "autoridade" (ou soberania e começo ou “inicio”). O verbo "archein" tinha o sentido de "governar" e também de "começar", iniciar Como um elemento retorico de legitimidade, a ideologia "archic" si ficou sempre uma palavra que queria dizer origem - algo que se escuta e sempre retorna a uma fonte primitiva, sagrada, da origem do poder ou do correto. 

Para exemplificar: as poesias artesanais mnemotécnicas eram típicos mecanismos arcaicos que conferiam significação e valor como agente de moralidade, como se ode observar em muitas épocas populares e, a nível mais sofisticado, gosto amplamente difundido do exemplo: estórias particulares dotadas de significação universal, de tal modo que a historia era experimentada de maneira fortemente paradigmática. Como é sabido, o "exemplum” desapareceu do cenário cultural bem no alvorecer da era do livro a segunda metade do século dezoito. Significamente, foi só então que a historiografia tradicional - a história escrita e lida como

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 "magistra vitae", com uma imperturbável tendenciosidade a favor das “coisas nossas" ("de nostra re”) cedeu lugar a uma nova atitude, embora não as técnicas da historiografia cientifica moderna. Momigliano mostrou como a historia clássica estava desinibidamente centrada no presente, com uma surpreendente falta de perspectiva cronológica. Algo semelhante parece aplicar-se mentalidade arcaica em geral. Curiosamente, a maneira “archic" de ver a legitimidade se reportava origem precisamente porque seu conteúdo era - e como estava destinado a sê-lo nas sociedades predominantemente iletradas - altamente “centrado no presente". A dependência quase total das massas na oral como meio de transmissão de conhecimento na sociedade tradicional (a prevalência estrutural do que Basil Bernstein chama códigos linguísticos restritos) fez com que elas se tornassem presa do contexto, e dai escravas dos "hic et nunc" (disse-me- disse) da existência. A observação de Spengler de a palavra escrita livra a mente da tirania que paradoxalmente, a mente do homem arcaico ("archic"), era, ao mesmo tempo altamente mnemonica (nos termos de Jack Goody) "estruturalmente amnésica".

Podemos distinguir varias figuras do "arcaico", todas nomeadas e reconhecidas pelo clero e mais tarde pelos sábios e humanistas da época: a própria palavra traditio, mas também translatio (de império e de estudos) renovatioreformatiorestauratio ... Em todas elas, o tema subjacente é claramente o sentido da autoridade do passado que representa a origem. Movimentos culturais momentosos como a Renascença ou a Reforma podem ser vistos sob esse prisma, e de fato seus principais porta-vozes, Erasmo Lutero, Calvino, e seus seguidores, viviam constantemente na cruel duvida se deviam apresentar suas ideias mais ousadas como "repristinationes" da fé. 

Talvez a melhor maneira de caracterizar resumidamente o modo "arcaico" da legitimidade, especialmente na esfera jurídico-politica, seja uma maneira obliqua e negativa, relacionando-o com o seu contexto social e contrastando-o com outros princípios subsequentes. A primeira coisa a dita sobre o contexto social do estilo arcaico de justificação do poder e da norma é que ele repousava sobre uma civilização material que apresentava cronicamente baixos níveis de produtividade, justamente com sistemas de produção que operavam com baixíssima concentração capital tanto de como de trabalho; pois tal era o quadro geral da economia ocidental até a véspera da revolução industrial.

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Em segundo lugar, era uma sociedade caracterizada pela "hierarquia", se com isso pretendemos explicar não somente a existência de grandes distâncias sociais entre as classes mas também a pouca mobilidade social. George Duby escreveu que, na Alta Idade Média, "todos os ricos eram herdeiros"; e na verdade o eram, ou a grande maioria deles, até que, na Europa ocidental do século XVIII, foi consolidada a agricultura capitalista, e a economia eventualmente tomou o rumo da industrialização.

Podíamos até ser tentados a carregar nas cores desse quadro de atraso econômico e hierarquia na sociedade, fazendo notar que a civilização tradicional conhecia apenas uma forma "paroquial de cultura política», em que a própria consciência do sistema político, por parte de seus habitantes, era excessivamente fraca. De qualquer maneira, isso poderia ser uma interpretação errônea dos fatos, pois a verdade é que, durante longo período de tempo, simplesmente não existiu sistema político que merecesse esse nome e do qual os governados precisassem tomar conhecimento.

No apogeu de um tal ambiente social, o padrão de relações de poder era conspicuamente o da dependência pessoal, aliado a um grau mínimo de compreensão do poder, no sentido de que o escopo efetivo do uso consciente do poder ligitima8o era muito restrito. Por um lado, a própria lei não era entendida como um produto da agência humana, mas como uma norma imemorável; por outro lado, não existia uma concepção do estado, em qualquer nível, como sendo algo distinto do governante. Em suma: impessoalidade da lei, personalização do poder (na apropriada fórmula de Passerin d'Entrèves).

C. Wright Mills certa vez conjecturou brilhantemente sobre a base sociológica da percepção da história como destino. O homem da cultura tradicional interpretava quase todos os grandes acontecimentos de larga escala como se estivessem fora do controle da humanidade. Ele sabia usar o poder como elemento de coerção, mas tinha pouca noção do poder como habilidade para dirigir a ação coletiva e obter resultados desejados numa escala maior do que a doméstica. Não admira assim que a visão tradicional da legitimidade fosse ávida por delinear réplicas transcendentais dos arranjos sociais existentes, operando, como disse Ernest Gellner, numa base de "fé refletida" ("mirror-faith"). Num sentido importante, o mundo era sempre o "mesmo". A sociedade era assim, de uma maneira um tanto compensatória, garantida pelo aval da autoridade de suas transcendentais imagens refletidas. O arcaico como recordação da origem foi assim o vocábulo ideal para representar esse mimetismo da negação.

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A maior parte da legitimação arcaica era praticada em ritual e protegida em linguagem simbólica. Com efeito, de todos os maiores tipos históricos de legitimidade, o arcaico foi de longe o mais "simbólico" no sentido "romântico" (que lhe deu Durkheim) como tendo um valor semântico alusivo, um conjunto de sinais conotativos mais do que diretamente denotativos. A mística da realeza ungida com óleos sagrados, os ritos da vassalagem (com suas metáforas de parentesco decifradas por Jacques le Golf ), o denso simbolismo daquelas "figuras" arcaicas por nós mencionadas, são todos exemplos a evocar. Havia também, é claro, tentativas acanhadas de teorizações da legitimidade; mas a sua aparição algo tardia na história sugere que na época arcaica da legitimidade, na utilização efetiva de ideologias de justificação, a teoria veio raramente antes dos quase sempre símbolos esquisitos — o que contrasta nitidamente com a prática moderna de dar primazia à teoria e relegar o simbolismo para as paragens inferiores da superstição — o pensamento irracional

O primado do rito e do símbolo se conformava perfeitamente com a mentalidade "gnoseológica" do homem tradicional. A perspectiva deste ultima era constitucionalmente antropomórfica, modelava até a natureza à semelhança do homem, concebia todo o cosmos como uma "ordem" teleológica. Acima de tudo, a ideia de conhecimento não possuía padrão elevado de seletividade cognitiva, nem se esforçava por separar o fato de sua avaliação. A suposição valia tanto quanto a investigação crítica; a dúvida nunca cedeu ao método. É altamente instrutivo observar que, enquanto o mundo pré-moderno sofreu muitos e sérios abalos teológicos e eclesiásticos, nunca experimentou uma crise de fé, como tal.

A era do arcaico foi um período seminal na história da linguagem da legitimidade. O próprio vocábulo "legitimidade" foi cunhado na Idade Média, e o seu significado se estabilizou como "direito para governar" ("entitlement to rule"); "legitimado", segundo aplicado a pessoas ao invés de a atos ou normas, foi também invenção medieval, com toda probabilidade estimulada tanto pela longa familiaridade com representantes de poderes soberanos, imperiais e papais distantes, como pela já notada tendência para personalizar o poder, confundir governo e governante.

Não obstante, para fins de comparação histórica, o cerne do problema é que a legitimidade arcaica conheceu a bondade e a maldade do detentor do poder — mas não teve condições de fazer-lhe uma avaliação em termos de eficiência. Pode ser até que (se dermos razões a Francis Oakley, na sua crítica de Walter Ullmann) o pensamento político medieval se preo

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cupasse tanto com as causas finais quanto com as origens do poder. Contudo não existem dúvidas sobre quais eram essas causas finais: tudo girava em torno da qualidade moral do governo, e não havia preocupação em discernir qualquer compreensão distinta da potencialidade do poder. É bastante significativo que, mesmo quando o pensamento medieval abandonou o seu tegumento teológico, na teoria política abertamente secular de Marsilius de Pádua, simplesmente livrou-se das causas finais ao invés de secularizá-las. O estado de Marsilius é completamente sem finalidade, sua única função é ser, como na acepção de Hobbes, uma condição de ordem em contraposição à violência destrutiva. Exemplo ainda mais eloquente, a própria utopia, no período arcaico, era coerentemente estática. A República de Platão, a Cidade do Sol de Campanella, A Ilha de More, eram todos universos imutáveis, resguardados tanto do progresso quanto do conflito. Até a utopia científica de Bacon ainda concebia o conhecimento como um corpo finito. O pensamento arcaico voltava-se para o passado até mesmo quando sonhava com o futuro.

Os simbólicos de legitimidade arcaicos não implicavam, e muito menos postulavam, a eficiência do poder em qualquer sentido vigoroso, porque o seu contexto social de subdesenvolvimento, hierarquia e valores extramundanos não convidavam a uma crença duradoura no domínio do homem sobre a natureza e a sociedade. Logo que o capitalismo e o estado alcançaram a maioridade, o ambiente ideológico legitimizou essa supremacia terrena (na linguagem do asceticismo puritano), e a visão cristã-clássica foi solapada pelo avanço da ciência e da filosofia moderna, o que significou o fim do desrespeito arcaico pela legitimidade da "performance".

Em muitos aspectos, a idade do barroco, o "longo" século dezessete, como os historiadores o chamam agora, foi um manancial como o de Janus: exacerbou os impulsos arcaicos na sua apoteose do reinado de direito divino, e suas revoluções fundamentalistas reanimaram a chama religiosa; contudo, na arte assim como na política, um novo espírito voluntarista apareceu na mentalidade europeia, um novo sentimento imperioso de poder e soberania, que transcendia de muito os meios e as maneiras do regime tradicional. Em particular, auxiliada pela recepção do Direito Romano, estabeleceu-se uma nova correlação entre o mandatário e as normas jurídicas. Como disse acertadamente Gianfranco Poggi, o direito se transformou de "moldura" do regime em um "instrumento" para governar. Eventualmente, a velha composição, impessoalidade da lei cum personalização do regime, foi invertida: na França dos Bourbon, assim como mais tarde

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na Prússia dos Hohenzollern, a lei passou a ser concebida como criação da Coroa, enquanto o sistema monárquico tornou-se mais e mais despersonalizado. De certo modo, é um fato auspicioso que ninguém tenha podido provar que Luís XIV dissera mesmo "L'État c'est moi", uma vez que o sentido profundo da legitimidade absolutista era claramente oposto, e a expressão verbal correta do famoso epítome deveria ter sido "Je suis l'État". Mas isso não vem ao caso: pois quando esse evento ocorreu, o "archic" já se encontrava no processo de tornar-se "archaic — como vítima dos tempos modernos. 


III. O impulso "telic"

Quando Louis de Jaucourt declarou, em seu artigo sobre o verbete "soberania" para a Encyclopédie, que o fim do poder soberano é a felicidade dos governados, e que quando esse objetivo não é perseguido o governo perde sua legitimidade, a censura real riscou a frase do texto. No entanto, a opinião expressa por Jaucourt apenas ecoava o sentimento generalizado que predominava do meio para o fim do século dezoito — o mesmo sentimento que levou seu amigo Diderot a definir o conceito de autoridade como um direito, quando pertencente ao povo, e um título de poder, quando transferido ao soberano, dependendo sua legitimação dos fins que são visados pelo soberano. Em sua ânsia por fazer exigências sobre os soberanos, os filósofos muitas vezes davam pouco valor às questões da origem da autoridade; costumavam definir a tirania como o abuso, ao invés de a usurpação, do poder. A contribuição de Rousseau à idéia do contrato social foi bem típica a esse respeito. No que concerne à lógica do argumento por ele desenvolvido para os "contractarians", em nada melhorou o pensamento de Hobbes; tudo que fez foi mostrar que o problema central era o fim a que se destinava o contrato social, e que tal fim era a liberdade e, como precondição, a igualdade.

Houve, naturalmente, muito desacordo quando se precisou chegar à definição dos fins e dos meios concretos da lei e do governo; basta mencionar a polêmica feroz sobre o princípio do despotismo esclarecido. Mas o panorama geral é bastante claro. Ele indica a primeira grande mudança na história da ideologia da legitimidade: o aparecimento de uma preocupação determinante pelas finalidades do governo, o que, em última análise, significa uma demanda por resultados nas atividades governamentais — e como tal, algo muito afastado do julgamento estritamente baseado na conduta dos regentes, implícito na preocupação tradicional, ética, com as causas finais do governo. É por esta razão que, procurando desenvolver

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a sugestão de Leonard Krieger, proponho para esta nova abordagem do conceito de legitimidade a denominação telic. Assumindo a forma do tema "porsuit of happiness" (busca da felicidade), telicity representou de fato a mentalidade dos ideais de legitimidade na era das reformas esclarecidas e das "revoluções democráticas" (R .R . Palmer) — o mundo do despotismo esclarecido, o constitucionalismo americano, a revolução francesa e o lançamento do industrialismo.

Pode-se alegar que, se quisermos distinguir o telic do archic, precisaremos então considerar o fato de que o século dezoito tinha toda a propensão, era quase devotado, à ideia de origem. O deísmo, o bom selvagem e, bem assim, todo um conjunto de temas pré-românticos parecem árquicos da cabeça aos pés, mas tudo isso não passa de ilusão de ótica. O significado intrínseco de todo esse material aparentemente árquico era "genesic": o primitivismo e o amor da natureza não foram concebidos de maneira alguma como reconhecimento da autoridade do passado; antes, eles eram invocados com o fim de demolir o que havia de absurdo e desumano nas instituições tradicionais. Desta vez, o mito da origem passou a olhar para a frente, já não para trás. O arché tinha se tornado um tetos.

A raiz do movimento télico no sentido de justificar o poder reside no que Peter Gay denominou "the recovery of nerve": o sentimento novo e expansivo de domínio sobre a natureza e a sociedade, experimentado pelas elites ocidentais, a esperança reencontrada na vida e numa confiança do esforço humano, que apareceram com o crescimento da população, o comércio e a prosperidade, no século do iluminismo.

Reagindo contra interpretações idealistas do iluminismo, contra os Cassirer e os Carl Becker, Gay insiste no sentido de que o que animava todo o movimento era um paganismo moderno. E assim foi — mas devemos enfatizar tanto a palavra "moderno" quanto "paganismo". E o principal elemento moderno dessa visão esclarecida residia na sua crença da perfectibilidade — uma crença que, na sua tendência materialista, sua difusão científica, suas características tecnocráticas — em suma, uma nova "engineering approach to the human condition" (uma nova concepção baseada na técnica para equacionar problemas humanos), (ver Benjamin Schwartz) — era intrinsecamente diferente da calma e contemplativa antropolatria do humanismo renascentista. O comentário de aprovação de Voltaire sobre Beccaria — "Nous cherchons dans ce siè,cle à tout perfectionner" — é válido como lema contrário a todo universo de opinião. Não foi por acaso que as utopias esclarecidas — ver o testemunho de Condor

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cet — assumiram qualidade extremamente dinâmica. O século acolhia a mudança como o veículo do progresso.

Marxistas vulgares imaginaram muitas vezes que esse veio técnico-mecânico (engenharia) era a própria alma da burguesia no seu período heroico: o limiar do capitalismo industrial. É uma pena que a história não lhes tenha dado razão, e tenha deixado o único país que efetivamente se encaminhava para a revolução industrial naquele período, a Inglaterra, à margem de um iluminismo respeitavelmente organizado!... É melhor concordar com Franco Venturi: o iluminismo aconteceu precisamente onde o pacto, mais ainda a colisão, entre um mundo atrasado e outro moderno se deu de maneira mais conspícua e abrupta: na França, na Escócia, e em muitas partes da Itália e da Alemanha. Em resumo, foi uma flor de transição, não para o industrialismo (o qual, como um todo, só apareceu muito mais tarde) mas para os tempos modernos, com a incubação (muitas vezes retardada) do industrialismo. Daí o seu inequívoco gosto exagerado pela reforma; pois o iluminismo foi sem dúvida, acima de tudo, o "setecentos riformatore" (título de Venturi) — a época da reformulação institucional generalizada.

A grande vantagem desta interpretação é que ela nos permite chegar mais próximo da política. Afinal de contas, os filósofos eram animais altamente politizados, e talvez devêssemos tomar com maior seriedade a sugestão de Tocqueville de que eles se tornaram subversivos por puro despeito pelo desemprego político a que foram relegados — um caso típico de privação das aspirações. Se tratarmos o iluminismo como fenômeno político e não como ideias sem organicidade, isso nos ajudará a melhor determinar nosso tipo de mudança na ideologia da legitimidade.

Para começar, o impulso télico não poderia jamais ter ocorrido se já ilão existisse o estado moderno. Através de todo o século dezessete e do século dezoito, o estado moderno como tal já tinha realizado feitos muito extraordinários, importando em verdadeiros achados conceituais para a compreensão do poder. Mas, atenção: as exigências télicas sobre o poder são, antes de tudo, expressões de uma cultura política do "cidadão" em potencial, um ambiente político de há muito acostumado a um estado ativo (até o despotismo esclarecido tinha, pelo menos como requisito implícito, uma cultura política do "súdito" — na qual os governados estavam bem conscientes da existência e da força de um poder constituído). Ainda mais, o estado moderno era, ele próprio, uma verdadeira máquina télica. Não fora ele de fato conspicuamente desenhado (contrastando com a cria

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ção orgânica das estruturas de poder anteriores?) Não era ainda um mecanismo altamente teleológico, permanentemente impondo-se objetivos e deveres? Quão diferente da plácida existência das formas árquicas de governo!

Contudo, parece de extrema importância não imputarmos tudo isso à ação do estado reformador. O impulso télico, o desejo de perfectibilidade devem pelo menos tanto à nova e estimulante experiência do desenvolvimento do mercado (muito embora ainda estivessem sempre presentes os grilhões dos mercantilistas a criar impedimento). Se permitem que me aproprie de mais dois vocábulos gregos: a qualidade télica ("telicity") era atributo tanto de cosmos como de taxis, de uma ordem espontânea assim como de uma ordem tramada. Abençoava tanto a maneira de ser de Liiput como a de Blefuscu: a estrada do comércio e o caminho da política. Pois o que absorvia o espírito télico era muito mais o poder maravilhosamente demonstrativo da visão mendevilleana do mundo: vícios secretos, benefícios públicos. De certo modo, a principal realização de Adam Smith foi o fato de ter ele dado conteúdo descritivo a esse sentimento entranhado na linguagem econômica, numa teoria da divisão do trabalho.

A "divisão do trabalho" foi, com efeito, a chave de tudo. O mundo télico gozava, ou aspirava sinceramente ao gozo da independência pessoal dentro da dependência (mútua) objetiva, para utilizar a fórmula adequada de Marx no seu "Gundrisse". Eram passados os dias das grandes propriedades autossuficientes e da servidão do trabalhador ao proprietário da terra. E com o crescimento da independência, declinou a autoridade do passado. A legitimação de fundo racional-legal, profanamente jurística e inquisidora, fez sua aparição. Solapada pelo crescente secularismo das elites, as justificações transcendentais das ordens temporais cedeu seu lugar à "legitimação interna" ("inside legitimation" de Gellner). Até o direito natural (uma sobrevivência racionalizada do antropomorfismo árquico) foi tornado positivo, embora de início apenas no paraíso télico que eram os Estados Unidos da América.

A independência pessoal, conquistada ou como aspiração, revelou um aspecto interno muito significativo. Leslie Fiedler escreveu sobre a revolução psíquica do século dezoito. O aumento da liberdade individual é, sem dúvida, um tema da maior importância no princípio da história cultural moderna; e é no século dezoito que o fato assume nova intensidade e uma presença ponderável. A chamada cultura "Bildung" do classicismo de Weimar, ultrapassando até o seu "passado titânico", enalteceu suas

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 expressões literárias mais elevadas. Por fim, entretanto, toda a arte neoclássica respira o mesmo ar; toda ela se banha, por assim dizer, na moralidade da personalidade. O magnânimo neoclássico, em sua origem um libelo contra o estilo rococó e o devasso hedonismo, logo torna-se íntimo adepto do culto da sublimação e da adoração dos gênios — equivalentes temporais dos motivos anagógicos na devoção tradicional. Daí a moralidade exaltada dos maiores neoclássicos da última fase, o que na realidade deturpou a graça e e          o comedimento desse estilo: reflitamos sobre a falta de decoro na obra de Goya, ou sobre o esforço extenuado e a tensão e eloqüência da forma de sonata de Beethoven.

O ponto a reter é que, assim como o utilitarismo persistente da época, o   mito do "eu" impôs sua presença no julgamento que se fazia do poder e da norma. O chamamento puritano nunca pôs em dúvida diretamente a ordem social; o "eu" do homem prometéico o fez. Isso em muito ajudou a preparar o caminho a ser trilhado pela consciência burguesa do dever para o correto. Até esse grau, a "Schnõne Seele" poética do classicismo germânico convergiu involuntariamente para o tipo de indivíduo pedestre, possessivo de que fala Locke. Ambos foram levados, pela preocupação de autodeterminação, a aferir a autoridade pela responsabilidade desta, pela resposta que dava às necessidades humanas.

Ao contrário do árquico, a telicidade ainda tem futuro. Como foi nascida do encontro entre o mundo atrasado e o moderno, muito antes da era do industrialismo e da política de classes, não nos deve surpreender o fato de que o temperamento télico está ainda muito presente hoje em dia nas regiões modernizadas do Terceiro Mundo, especialmente naquelas — como em muitas regiões da África negra — onde persiste o esforço de organização do estado, a estrutura social não alcançou o estágio de classe propriamente dita (principalmente porque a oferta de 'terra foi abundante até muito tarde, seu controle feito sob a forma de corporação, de tal modo que as antigas relações entre proprietário e arrendatário nunca fo¬ram praticados). Porém, antes de considerar o padrão geral dos modos de legitimidade de hoje, a nível mundial, devemos descrever nosso segundo tipo de mudança fundamental — a mudança do télico em outra direção.


IV."0 impulso tectônico".

Os valores tectônicos ("telic") foram vítimas do triunfo da telicidade. A modernização, estimulada pelas demandas télicas, trouxe o colapso da maneira tectônica de justificar o poder e as normas legais e culturais. 

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Com o estabelecimento da sociedade burguesa e iniciada a transição para a sociedade industrial, a ênfase principal da retórica da justificação desloca-se dos meios para uma necessidade imperiosa de ordem. O progresso, essa grande invenção do século dezoito, permanece firme — mas agora identificado com, ou subordinado ao cântico ordeiro ("chante"). A máxima de Augusto Comte "O progresso é o crescimento da ordem", envolve a perspectiva da burguesia pós-revolucionária, assim como mais tarde a do fortalecimento do socialismo de estado. Historiadores de arte desde Wõlfflin empregam com frequência o termo "tectônico" para denotar um tipo de composição, a forma fechada que tem por base linhas simétricas. Não me ocorre expressão mais apropriada do que esta para o símbolo do movimento pós-télico na linguagem da legitimidade. O matiz dominante no simbolismo de justificação veio a ser uma espécie de "holism of order" — ordem sagrada das escrituras ("order writ large").

Na raiz psicológica do habitat histórico da esclarecida Europa tectônica, vamos encontrar um crescimento notável do sentimento individualista. A contrapartida desse sentimento na era vitoriana parece ter sido aquilo que Simmel chamou “individualismo de diferenças", uma tendência social profunda correlacionada com a competição num contexto favorável de divisão do trabalho. O enorme desenvolvimento na diferenciação estrutural — tema de Spencer e Durkheim — constituiu de fato um aspecto central no nascente mundo industrial. Por esta razão, a indústria, mola mestra da diferenciação estrutural, era vista por gente do quilate de Henri de Saint-Simon como o berço de uma nova sociedade "orgânica", tão solidamente fundamentada na ciência e tecnologia como o "tinha" sido a Idade Média na fé. Saint-Simon estava sem dúvida substancialmente enganada tanto numa coisa como na outra, tanto no tocante à modernidade quanto ao passado medieval. No entanto sua utopia moderada parece-nos menos fantasiosa do que as de seus seguidores espirituais, Comte e Durkheim, os quais muito se esforçaram por descobrir "credos" sucedâneos mantenedores da ordem. A religião da humanidade de Comte, o corporativismo de Durkheim são sonhos vãos e pensamentos desiderativos nascidos da cegueira de ambos face a um aspecto essencial da sociedade industrial — o fato de que sua estabilidade não provém de qualquer consenso que tenha por base compromisso com valores substantivos (em oposição a valores formais), mas derivam dos benefícios tangíveis das trocas e do progresso material.

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O único valor que serviu de argamassa unindo as sociedades industrias nascentes foi o nacionalismo. Daí a persistente apropriação tectônica das ideias nacionais. De qualquer forma, as culturas nacionais constituíram pré-condição do industrialismo, uma vez que somente elas poderiam, com propriedade, ter socializado o homem, fornecendo-lhe conhecimentos básicos inerentes ao funcionamento da ordem industrial. Conforme mostrou Gellner, na obra "Thought and Change", estados soberanos, antigos e modernos, se utilizaram do nacionalismo desta maneira; eles sabiam que o declínio do papel da estrutura tradicional deixava apenas a cultura e a cidadania, e a cidadania "como cultura", como o baluarte principal da identidade social. No "piccolo mondo" das sociedades de outrora, ser homem "era" o papel do homem: porém na sociedade industrial, ele precisava "carregar" consigo sua identidade — e numa situação tal, somente sua cultura poderia fornecer-lhe essa identidade.

Quando a industrialização começou a espalhar-se por toda a Europa ocidental e a América angio-saxônica, o Ocidente possuía dois conceitos principais de povo e nação: o conceito francês e o alemão. Aquele salientava a identidade entre a nação e a vontade política consciente de seu povo; este definia um povo por critérios objetivos tais como língua e cultura, completamente desvinculados do exercício de direitos políticos. De um modo geral, a lógica do industrialismo privilegiou o conceito alemão de nação, em detrimento do francês. Enquanto a ideia francesa de nacionalidade era nitidamente tectônica ("telic") na origem e conteúdo, a concepção germânica era pelo menos tão tectônica quanto teutônica... Ela punha a unidade acima da finalidade e responsabilidade dos complexos poder-e-norma.

O impulso tectônico foi uma reação ambivalente à,. difusão do industrialismo, aceitando-o e, ao mesmo tempo, sempre tentando contê-lo. Nada exemplifica melhor este ponto do que o papel do estado. O liberalismo clássico por duas vezes o deturpou. Frequentemente enganou-se tomando o estado por um Leviatã, quando na verdade a sociedade civil já dominava a situação; falou então da própria sociedade civil como se esta pudesse prescindir do estado, ou reduzir-lhe a ação ao papel de simples vigilante. Na realidade, a verdade sociológica profunda é que foi precisamente o Ocidente liberal que testemunhou desrespeitosa e duradoura usurpação do estado no papel de agente normativo, sua quase completa absorção da esfera normativa (o liberalismo clássico via o estado numa perspectiva demasiado política; o equilíbrio só seria restabelecido com

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 uma perspectiva mais inteiramente jurídico-política). Sem dúvida o estado servia à camada da sociedade civil que mantinha a hegemonia do poder; mas num sentido significativo, também a sustentava. Hegel, que foi o primeiro a pensar na "sociedade civil" em termos não-políticos, e insistiu em colocar o estado alto, acima dela, prenunciou dessa forma a nossa própria experiência liberal moderna de autonomia e atividade estatal.

Para Hegel, o ordem era cheia de contradições. Nisso também foi ele o maior dos ideólogos tectônicos, porquanto o impulso tectônico foi primeiro e acima de tudo uma resposta a uma sociedade emaranhada em contradições. Vejamos sua moral: a regra áurea de conduta tinha por base o utilitarismo, mas da variedade "ascética". Entretanto, o cerne do utilitarismo, a escolha de valores através da experiência, era em grande parte abafado por uma modalidade de ética puritana não sectária. Como disse tão astutamente G. M. Young, para a mentalidade vitoriana, o progresso, como a salvação, tinha que aparecer "como a retribuição da virtude". Caracteristicamente, a mística do chamamento era muito mais "socializada" do que verdadeiramente destituída de atributos sagrados: ver a respeito Middlemarch, para uma ilustração excelente do ponto. Vejamos ainda sua estética: os traços dominantes eram a surpreendente "indisposição" que se sentia entre a arte e a cultura burguesa. Esse mal-estar foi primeiramente denunciado pela revolta romântica, que por sua vez era um modelo de ambiguidade, no sentido de que agia como um "Gemeinschaftlust" desenfreadamente individualizado. Pouco depois apareceu o kitsch: uma arte pomposa do sublime falsificado, através da qual (segundo Hermann Brock) a burguesia europeia, secretamente escravizada por uma herança de prazeres aristocráticos e grandeza, cedia a uma verdadeira "hunger for décor" — enquanto, ao mesmo tempo, reprimia na aparência os amenos valores da aristocracia, numa triste pretensão de muita seriedade. O inconformismo da arte era agravado ainda pela negação meio consciente e teimosa desse mal-estar. Assim, a era que tudo fez para unificar tanto a moral como a sociedade, a civilização obcecada pela ordem, mostrou-se incompreensivelmente incapaz de desenvolver um estilo arquitetônico próprio. O ecletismo histórico, a acumulação de "neo"- estilos na arquitetura vitoriana, veio desmentir o impulso tectônico. Mas essa negação no nível da forma e numa arte tão central encontraria sua parelha nefasta, no lado do conteúdo, no animus antidecoroso que se nota em muita arte pós-romântica, desde Baudelaire a Manet e de Dostoievsky a Ibsen e Strindberg. E a contradição não ficou só nisso. Muitas dessas "fobias burguesas" ("bourgeoisophobos" na expressão de

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Flaubert) provinham de pessoas escravas inconscientes da moral que combatiam, do espírito de submissão puritana, ou sua base metafísica, a ânsia do sagrado. Destarte, os românticos exaltavam a estética do fragmento, embora nunca deixassem de almejar ao Todo: foram verdadeiros gnósticos modernos, heréticos apaixonados ("hierófilos"). Por outro lado, seus sucessores e antagonistas, os grandes escritores e artistas pós-românticos, praticavam a arte como um culto, tão asceticamente uma como o outro. O esteticismo radical (cf. Mallarmé) era um assunto esotérico (soteriológico?) terrivelmente solene, praticado de maneira tão consciente como qualquer comércio de filisteu.

Mais tarde, na história da cultura burguesa, a rebelião modernista desbancou o asceticismo dos estetas vitorianos e ousou equiparar a arte ao divertimento. Dir-se-ia uma derrota tectônica. Nem tanto — porquanto os modernistas de "avant-garde", que nisso se mostraram verdadeiros herdeiros da busca da totalidade tão conspícua na sensibilidade "decadente" do fim do século passado e começo deste, com efeito trouxeram à luz "a stealthy authoritarian cast of mind in their very way of handling the artwork and dealing with its recipients" (isso pode parecer acusação estranha, mas ela foi defendida convincentemente e de maneira independente pelo menos por dois críticos, Hans Sedlmayr e John Bailey). A obscuridade intencional da arte "experimental", a insistência numas "visões unificadoras", impingidas ao público de forma irresistível, eram características tectônicas residuais que sobreviveram à queda do asceticismo estético.

Acima de tudo, a legitimidade tectônica foi alimentada pela estrutura de classe. A burguesia vitoriana não possuía a visibilidade de uma propriedade, mas representava ainda muito o status do grupo, uma casta sociocultural e política tanto quanto uma classe econômica. Com algumas importantes qualificações, algo basicamente semelhante se aplica, na atualidade, à burocracia dominante do socialismo de estado. Significativamente, tanto a burguesia como a "nova classe" comunista do século dezenove e início do século vinte patrocinaram e impuseram a estética moral puritana — inegavelmente duas manifestações tectônicas.

O marxismo, nascido da fusão do radicalismo antifilisteu com o socialismo francês e a filosofia histórica de Hegel, tornou-se eventualmente uma ideologia de poder tectônica utilizada com caráter ascético por autonomeados intelectuais da pequena-burguesia devotados à forma primitiva de acumulação de capital e rápida industrialização. Não é de admirar que seja em tais sociedades que se vão encontrar, na atualidade, as duas ca

 

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madas desprotegidas do mundo vitoriano: um proletariado sem direitos e uma minoria intelectual discordante. É muita ironia que a supressão do mercado levada a cabo pelos leninistas, por causa do capitalismo, tenha resultado na perpetuação de algumas das características principais da forma clássica de dominação burguesa.

Karl Polanyi acreditava que o fascismo era, no fundo, principalmente uma reação contra os efeitos distorcivos da sociedade de mercado. Uma outra maneira de encarar a maior monstruosidade política de nosso tempo (e uma maneira de ver menos condenatória do mercado) consistiria em ver o fascismo como o sistema político da vingança dos tectônicos. O fascismo pôs a violência a serviço do impulso tectônico para solucionar as contradições morais e sociais da sociedade burguesa. Contudo, assim como os leninistas, ele só pôde triunfar onde essas contradições tinham sido compostas e agravadas pela sobrevivência de elementos importantes de um estágio pré-capitalista, tanto na estrutura social como política. Aqui jaz a vingança dos tectônicos sobre os infelizes e canhestros processos de transição télica. Formas mais equilibradas e moderadas de tectonicidade fizeram cair a casca exterior que revestia a mania de ordem, permitindo que aos poucos e gentilmente assumisse formas mais flexíveis e menos autoritárias de legitimidade.


V . "Legitimidade tópica"

É desnecessário dizer que as mudanças e desvios que vimos descrevendo estão longe de constituir interrupções ou cortes definitivos. Como foi sugerido anteriormente, muito da redefinição télica de legitimidade foi incorporado no grande modelo novo de justificação que se lhe seguiu, o tectônico, e o impulso télico por sua vez também não anulou inteiramente as formas ("archic") primitivas de legitimação, que sobreviveram em mais de um domínio vital (p. ex., a família). Similarmente, muito do conteúdo e procedimento do espírito tectônico ainda permanece vivo em cada um de nós. Com efeito, os princípios orientadores das instituições jurídico-políticas das sociedades do estado do bem-estar social dos dias de hoje permanecem moldados por uma ordem jurídico-racional, parte télica, parte tectônica. Assim, se o tectônico é superado, o último tipo de mudança trouxe consigo, como as anteriores, uma considerável superposição de tipos.

Não obstante, há quem afirme que, nas sociedades industrialmente avançadas, a legitimidade está definitivamente em decadência, não em

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processo de renovação. "Inumeráveis" formas de legitimidade argumenta-se, a legitimidade formal, do tipo jurídico-racional de Weber, estão morrendo nas mãos do feudalismo industrial, enquanto grupos de pressão com poderes políticos influentes lutam ou fazem concessão, enquanto são negligenciados benignamente pelo estado liberal e seu universalismo antiquado e abstrato.

Contudo há talvez base para argüir-se que está emergindo um novo modelo de justificação de norma e poder. Sem necessariamente anular a validade da racionalidade formal, e por vezes pressupondo sua operação, uma nova "forma mentis" aos poucos parece ganhar aceitação, se não o reconhecimento. O âmago de seu significado é a ênfase na legitimidade "local", sendo esta a razão por que lhe pusemos o qualificativo de "tópica". A chave para essa espécie possivelmente nova de ideologia da legitimidade é a preocupação com a intensidade de direito e valor. Nem a autoridade do passado nem alguma grande finalidade projetada sobre o poder e a norma nem efetivamente qualquer obsessão abrangente com a ordem aparece como fator dominante aqui — somente o sofisma virtuoso, por assim dizer, a insistência generalizada em méritos particulares, merecimentos específicos, direitos detalhados. Reivindicações políticas e sociais particularistas de movimentos profissionais, étnicos, regionais ou de época; as políticas de princípios de organizações de objetivos unidirecionais; a moral da autenticidade dentro da permissividade e da arte sem a estética global (p.ex., a arquitetura pós-moderna) — tais são exemplos conspícuos de legitimidade tópica no cenário contemporâneo.

O cenário histórico do sentido de topicalidade como nova expressão idiomática da legitimidade é a sociedade de consumo, cujo advento re¬3ultou do mais longo período, agora interrompido, de prosperidade na era industrial. Neste contexto, o padrão de legitimidade tende curiosamente a inverter a tendência do cristianismo medieval. Então, o que importava era o princípio de unidade, a subordinação da política à moral e da moral à fé — em suma, a legitimação "compacta". Agora, prevalece exatamente o oposto, dado que a experiência da legitimidade tende crescentemente a ser "centrífuga", e relacionar-se com princípios subjacentes de caráter .penas muito geral, formal.

É claro que isso, por sua vez, está correlacionado com a evolução da mudança sociocultural no industrialismo de elevada tecnologia. A falecida Margaret Mead costumava falar da cultura "pós-formativa": a saber, uma cultura na qual muito do saber provém dos jovens e onde a velhice se 

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revela em verdade inexperiente. Mesmo sem dar importância exagerada a tais efeitos pós-formativos, poder-se-ia argüir que a cultura sem ambição da época de hoje abre muito espaço para o que tentarei chamar de impulsos "meta-sociais" no simbolismo de justificação: formas egocêntricas de conduta não tão antissocial como trans-social.

Quando o consumo afluente de massa apenas começava fora da economia norte-americana, passou-se a descrever o gênio do homem contemporâneo como dispersivo, com emanações em forma de radar. Ou, numa linguagem mais lírica, passou-se a realçar sua alma multiforme, sua capacidade negativa como especialista em artifícios ligeiros de identificação e crença. Penetrando talvez mais profundamente do que as imagens que vimos de apresentar, por demais modeladas na burguesia suburbana ou na bem amparada juventude radical da década dos sessenta, há indícios sutis de que o homem moderno vive idealmente numa cultura hedonista, complacente e sem pecado, marcadamente indulgente em prol de "expressive remissions from failed controls" (Philip Rieff).

A questão se resume a saber se o herói auto-suficiente da cultura pós-puritana, "o homem psicológico" no dizer de Rieff, é predominantemente temperado ou imoderado, um asceta (Rieff) ou um místico (Roland Robertson).

O homem remissivo médio penetra mais na intensidade dos sentimentos do que em sua qualidade moral. Num certo sentido, a ética que lhe convém é a "moral experimental" do imoralismo radical na tradição francesa, de Gide e Bataille às enroscadas "machines désirantes" dos pós-freudianos Fourier e Gilles Deleuze. O que preocupava Herbert Marcuse era a probabilidade de que as festivas absolvições de hoje fossem apenas "dessublimações repressivas"; mas o perigo real parece residir alhures, na ameaça constante de que assumam paranoicos dentre os remissivos em perspectiva.

Muitos dos sociólogos dos processos modernos de legitimação concordam em que existe uma contradição flagrante entre diversas formas de cultura contemporânea e a racionalidade instrumental de sua base técnico-econômica. Jürgen Habermas julga que o capitalismo mais recente se previne contra as crises de motivação "uncoupling" (desengatando) o sistema cultural e libertando-o dos constrangimentos da racionalidade funcional. Daniel Bell sustenta que nossa cultura autodidata é uma "antinomia" vis-à-vis os valores funcionalistas da sociedade industrial — 

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daí ter ele celebrado o advento de uma ordem pós-industrial libertada do "modismo economizador" e do "hedonismo burguês" por uma nova "ética comunal". 

Ernest Gellner é mais cético. Concorda em que a cultura moderna não trilha ao mesmo tempo o caminho da racionalização e o do desencanto. Numerosas subculturas de reencantamento tendem a florescer assim. O ócio e a permissividade dão fácil guarida a muitas formas de vida antitécnicas, emocionais, sensuais, frequentemente estáticas e intelectualmente indisciplinadas — à revolta romântica que, no ver de Gilberto Freyre, é parcela e quinhão do horizonte cultural além do moderno. No entanto, ele também observa que essas subculturas românticas são "irônicas", porquanto implementadas inconscientemente de tal maneira que a base racionalizada do todo é afirmada, ao invés de negada, pelas próprias superestruturas que nominalmente contradizem a racionalização. Participantes, até mesmo entusiastas, da cultura irônica não hesitam, quando defrontados com assuntos sérios como a produção de riqueza ou a proteção da saúde. Então, subitamente esquecem o misticismo e o êxtase e se dirigem, como qualquer mortal, a bancos e hospitais considerados razoáveis.

Devemos ter cuidado de não superestimar o peso social da cultura irônica. Entretanto, isso não nos impede de reconhecer que seu florescimento abriga algum risco real para o futuro da legitimidade em seu temperamento liberal. A intercalação de "contraculturas" nas opiniões políticas radicais pode revelar-se muito danosa para a democracia (a menos que se decida dissolver a dimensão política da democracia num mal compreendido superlativo do seu significado social). O que Henry James escreveu sobre a princesa Casamassima — que o seu comportamento radical, afinal de contas, "destinava-se mais a minorar seus próprios problemas do que a aliviar os dos outros" — traz-me à mente, de forma irresistível, muitos radicais da atualidade. É sem dúvida uma forma perversa de remissão. Em sua forma extrema, tende a legitimar o terrorismo — a maldosa topicalidade da violência ao invés da justificação da razão.

A liberdade contemporânea, em sua plenitude, é um luxo tópico que repousa sobre as realizações télicas do passado mundo dos ricos. Nesse sentido, altas formas de liberdade pressupõem liberdade de privações, e nenhuma aversão neoliberal pela "liberdade positiva" pode obscurecer este fato. Qualquer que seja a extensão e profundidade da crise da legiti

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midade compensatória na presente fase de recessão, nenhuma parcela de inquietação ideológica (ou angústia ecológica — "Angst") deveria obscurecer, em nossas mentes, o conhecimento daquelas pré-condições, especialmente quando a liberdade condiciona a liberdade. A fragilidade das legitimidades tópicas, num mundo rodeado pela multiplicidade de surgimentos télicos e de elites tectônicas que se auto afirmam, é impossível de minimizar, muito menos de ocultar, Por esta razão a legitimidade, em sua configuração geral, se encontra num estado de fluxo — e assim, com toda probabilidade, permanecerá no horizonte que se aproxima da passagem do século.

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LAFER, Celso. A LEGITIMIDADE NA PERSPECTIVA HISTÓRICA (Comentário). Encontros Internacionais da UnB: Alternativas Políticas, Econômicas e Sociais Até o final do Século. Editora Universidade de Brasília, p. 319-325. Brasília, 1980.

A LEGITIMIDADE NA PERSPECTIVA HISTÓRICA 

(Comentário)

Celso Lafer

Universidade de São Paulo

— I —

José Guilherme Merquior coloca como um dos pressupostos do seu trabalho a existência de uma importante relação entre a dimensão jurídico-política da legitimidade e os códigos de conduta e padrões de gosto, vendo nesta relação a dimensão cultural da legitimidade.

Acho extremamente válida esta colocação, que não reduz a reflexão sobre a legitimidade à legalidade ou à efetividade do poder. Em verdade, se se encarar a legitimidade apenas como a legalidade da norma, acaba-se num positivismo jurídico pobre analiticamente, pois o problema não é precisar e individuar a legalidade, mas sim os fundamentos de uma legalidade. É por essa razão que, no limite, o positivismo se sustenta ou se esboroa em termos de eficácia. Por outro lado, os que examinam o tema apenas à luz da eficácia concluem que legítimo é o poder que é efetivo em relação aos seus destinatários. Neste sentido, a ótica da eficácia é a ótica do realismo político — e é por isso que tem tanta aplicação no plano internacional. (1) Não há dúvida de que a eficácia é uma condição de fato da existência da legitimidade, mas a legitimidade nela não se exaure, posto que a realidade revela, mas não esgota, os valores que exprime. (2)

Bastaria, neste sentido, ponderar como, mesmo no plano internacional, tão sensível à dimensão do realismo, o problema da legitimidade não se resolve em termos de efetividade. De fato, quanto a este aspecto, convém apontar que a legitimidade é um conjunto de valores que dizem respeito não apenas à ordem interna e à estabilidade de uma comunidade estatal, mas também à ordem e à estabilidade no plano internacional, pois os critérios e as formas de legitimidade sempre ultrapassam os limites nacionais. (3).

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Existe, na legitimidade, uma dimensão de confiança que vai além da efetividade, que é apenas uma condição de fato. No plano internacional, a dialética da legitimidade como relação entre o interno e o externo pode ser examinada através da experiência de Napoleão I, que obteve uma legitimidade interna, mas alcançou apenas efetividade externa. E foi a legitimidade externa, através do respeito ao princípio dinástico, que ele tentou, sem sucesso, obter com o casamento com Maria Luísa. Também Napoleão III tinha legitimidade interna — o império é a ordem — porém a sua legitimidade externa era insatisfatória, pois o seu regime não correspondia ao padrão das monarquias constitucionais da época. E foi na procura da legitimidade externa que o império se converteu num defensor do princípio das nacionalidades.

É evidente — para traduzir o problema em termos contemporâneos e fazer uma remissão ao tema dos novos Estados e do nacionalismo, mencionados por Merquior em seu texto — que, sem a experiência do regime constitucional britânico ou do regime socialista soviético, nem a legitimidade liberal democrática, nem a legitimidade socialista poderiam afirmar-se no plano internacional. É por isso que se pode dizer que a legitimidade internacional se forma graças à extensão, semirreal e semi-ideal, de uma legitimidade interna. Os regimes dos novos países extraem, bem ou mal, a sua legitimidade de uma imitação dos regimes que gozam de uma legitimidade dominante no plano internacional, (4) adicionando a este ingrediente o nacionalismo.

Estas observações permitem concluir que a legitimidade é uma dimensão de civilização, incompreensível fora do quadro da civilização a que pertence. (5) Daí o acerto de José Guilherme Merquior em realçar a dimensão histórica do tema através da elaboração. — na tradição weberiana — de diversas modalidades de legitimidade.

Antes de suscitar alguns pontos específicos sobre estas modalidades, importa dizer que a proposta de Merquior tem, também, uma dimensão analítica geral, que cumpre ressaltar desde o início nestes comentários.

Hume dizia — nos primeiros princípios de governo — que é sobre a opinião que todo governo, do mais despótico ao mais livre, se fundamenta, o mesmo asseverando Madison em O Federalista. (6) Isto, em síntese, quer dizer que a legitimidade é algo que é concedido ao governo pelos governados, pois a legitimação não deriva dos meios e modos pelos quais os grupos ou pessoas adquirem, mantêm ou empregam o poder,

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mas sim do modo pelo qual poder, enquanto recurso político, é gerado no âmbito de uma comunidade política.

O poder é um recurso gerado — como lembra Habermas na sua interpretação de Hannah Arendt — pelo agir conjunto, isto é, pela capacidade da cidadania de uma comunidade política de concordar com um curso comum de ação. (7) Num processo de legitimação existem os legitimados (o sistema de governo e de poder) e os legitimantes. A legitimação é fruto de um processo de interação entre o sistema de governo e de poder e os legitimantes, que são os governados. Ela resulta de uma série de valores delineados como modelos de vida, bem como da competência do sistema de poder e de governo de se revelar compatível com esses modelos. (8)

Esta compatibilidade é necessária, pois se o poder, na sua origem, teria como finalidade defender os homens dos males da anarquia e da guerra, sempre existe, no entanto, no exercício do poder, um elemento de medo por parte dos governados. A legitimidade, segundo Ferrero, é a ponte que se insere entre o medo e o poder para tornar a vida em sociedade menos aterradora. (9) Esta ponte é dada pela cultura e pelos valores, pelo jogo dos signos de uma época, que se exprimem nos códigos de conduta e nos padrões de gosto. Daí a pertinência da colocação de Merquior e a razão pela qual entendo que o tema da legitimidade é o tema certo para assinalar a sua travessia, da critica e da literatura para a ciência política.

— II —

Merquior elabora, no seu texto, os conceitos de um modo árquico, télico, tectónico e tópico de legitimidade. O que me proponho a fazer agora nestes comentários é suscitar alguns pontos quanto à elaboração conceituai destes modos e as razões da passagem de um para outro, tendo como objetivo provocar a reflexão de Merquior para alguns assuntos que reputo importantes no próprio contexto de sua proposta teórica.

O conceito de um modo árquico de legitimidade corresponderia a uma reelaboração daquilo que Weber denominou de legitimidade tradicional. O termo árquico se justificaria etimologicamente, pois arché significa tanto autoridade, quanto começo. As minhas primeiras observações quanto a esta elaboração são as seguintes: os gregos não se preocuparam tanto com a origem do poder, mas sobretudo com o seu bom ou mau uso. Foram os romanos aqueles que realmente se preocuparam com a origem do poder, buscando-a no conceito de fundação. Como apontou Hannah Arendt, ao glosar o texto de Cícero, se o poder residia no povo,

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à autoridade estava no Senado, que zelava pela fundação de Roma e pela continuidade dos feitos e acontecimentos que aumentavam o sentido de começo da comunidade política.

Na Idade Média, o catolicismo retomou esta tradição romana, pois a autoridade estava nas mãos do Papa, que representava Deus na Terra e, como dizia São Paulo, "Omnis potestas a Deo".

Em outras palavras, a dimensão romana requer realce na elaboração do modo árquico de legitimidade, pois, até etimologicamente, auctoritas vem de augere, aumentar, acrescentar, e o que o jogo dos signos discutidos por Merquior confirma é o significado universal deste momento originário de começo c fundação, sacralizado por urna retórica da origem. (1o)

Concordo com Merquior que o modo árquico negligencia o desempenho como critério de legitimação, e é por isso que, com razão, ele aponta que o direito, num contexto árquico, é quadro de referência e não instrumento de governo.

Valeria a pena, no entanto, ponderar — e esta é a segunda série de observações quanto ao modo árquico — que a transformação do direito de quadro de referência em instrumento de poder coincide com o aparecimento do Estado moderno e com o fenômeno dele decorrente de estatização do direito. A estatalidade do direito e a sua conexão com o conceito de soberania, de razão-de-Estado, etc., prende-se, a meu ver, ao surgimento, sobretudo com Hobbes, da razão utilitária, que dá início ao tema do desempenho.

Dizia Hobbes: "For reason, in this sense, is nothing but reckoning (that is adding and substracting) of the consequences...

Isto quer dizer que os ditames da reta razão não são mais reveladores da ordem universal posta por Deus, mas provêm de um cálculo de utilidade, que tem que levar em conta os resultados. (12)

Diria, portanto, que a dissolução do modo árquico de legitimidade, proveniente da preocupação com o desempenho, está ligada ao novo conceito de razão — a razão utilitária, introduzida por Hobbes.

— III —

Merquior, ao discutir o modo télico de legitimidade (o termo se explica porque indica direção e finalidade), realça as notas de perfectibilidade e de busca de felicidade. Penso que, nesta elaboração, seria importante assinalar como o contratualismo, somado à ideia de soberania 

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popular, trouxe a relevância do consenso na fundamentação da legitimidade. De fato, na tradição romana, consenso era o consensos gentium —a convergência da opinião entre duas ou mais pessoas. Na Idade Média significava acordo.

Apesar disso, na teoria clássica, sempre foi bem nítida a distinção entre consenso e legitimidade. Legitimidade era o título do soberano (por exemplo: o direito divino). Consenso era a adesão à gestão do soberano. (13)

Não é bem isso o que vai caracterizar o contratualismo moderno, que buscou resolver um problema diferente, oriundo do individualismo, a saber: como é que o direito, que existe para servir a liberdade dos indivíduos, pode também vinculá-los através do poder de império do Estado?

A relação autoridade-liberdade, no contratualismo, é teoricamente resolvida por meio da "auto-obrigação" dos governados. O contrato social celebrado entre os membros da sociedade faz da obrigação jurídico-política uma auto-obrigação; com isso, a heteronomia se converte em autonomia e o direito público se resolve nos princípios do direito privado, pois a relação autoridade-liberdade fundamenta-se "a parte subjecti" no eu dos governados.

Existe também uma relação, que convém explicitar no modo télico, entre o consenso como critério de legitimidade e o empirismo como atitude epistemológica, posto que o empirismo exige algo externo aos governantes para validar uma gestão governamental. Este algo externo é o consenso dos governados.

Ora, é precisamente a dificuldade na obtenção do consenso que traz o modo tectônico, que é o terceiro tipo elaborado por Merquior.

— IV —

O modo tectônico teria como característica a forma fechada, baseada em linhas simétricas, que busca transmitir a necessidade de ordem. Quanto a este modo, permitir-me-ia observar o seguinte:

Autoridade, como lembra Deutsch, é a prioridade na transmissão de informações e a legitimidade da mensagem difundida. (5) Existem duas grandes ideologias de legitimidade, segundo Sérgio Cotta, que transmitem o tema da ordem. A primeira é a ideia de legitimidade racional, cujo argumento central assim pode ser formulado: se é verdade que a legitimidade decorre da crença na capacidade de um regime de assegurar o 

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bem comum da comunidade, o regime verdadeiramente legítimo é aquele que melhor garante a realização efetiva e objetiva deste fim. Vale dizer, o regime que atribui o poder àqueles que, por definição, são capazes de compreender, de ciência certa e não apenas com base na opinião e na prudência, o que é o bem comum. É isto que fundamenta os filósofos-reis de Platão, os déspotas esclarecidos da Ilustração, os sábios de Comte, os tecnocratas da sociedade industrial.

A segunda é a idéia da legitimidade histórica. Esta ideia, no modo árquico, se traduzia na sacralização da tradição, na autoridade do passado e de sua duração. Em termos modernos, ela se volta para o futuro, para o sentido e a direção da história. Trata-se de uma crença fundada na expectativa de que os acontecimentos futuros têm uma direção para a qual a história (passada e presente) daria uma prefiguração certa e unívoca. O poder seria legítimo na medida em que é confiado às categorias ou classes que têm o "senso" da história, garantindo-lhes a direção. São exemplos deste tipo de legitimidade: o positivismo de Comte, com a lei dos três estágios, e o marxismo, nas suas diversas variantes, que atribui ao proletariado à condução do processo histórico.

Tanto a ideia de legitimidade racional, quanto a de legitimidade histórica são dinâmicas e, portanto, télicas, mas são de uma dinâmica fechada e exclusivista, portanto, tectónica: a primeira pelo racionalismo da pretensão objetiva, a segunda pelo privilégio atribuído a um grupo na direção da história, privilégio que nega a capacidade de invenção e a variedade de possibilidades de expressão do existente. (16)

— V —

Daí a relevância de um quarto modo de legitimidade, que Merquior denomina de tópico, no sentido de local, realçando as dimensões centrifugas da legitimidade no mundo contemporâneo. Acho muito ÇPeunda esta elaboração, que é, no entanto, apenas esboçada no texto, e é por essa razão que, no momento, nada teria a observar. Diria, apenas, para concluir, que é no espírito da legitimidade tópica que propus topica¬mente estes reparos à sugestiva reflexão teórica de J. Guilherme Merquior sobre a legitimidade numa perspectiva histórica.

NOTAS

(1)       Cf. CARLO• BARBÉ, Appunti per una Teoria della Legitimazione, Turim : Giappichelli, 1973, pp. 19-23.

(2)       Cf. MIGUEL REALE, Filosofia do Direito (8a ed., revista) , S. Paulo: Saraiva, 1978, vol. I, p. 207. 

 

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(3)       Cf. SÉRGIO COTTA, "Êlements d'une Phénomenologie de la Légitimité" in L'Idée de Légitimité         Annales de Philosophie Politique-7, Paris: PUF, 1967, pp. 71-72.

(4)       Cf. SÉRGIO COTTA, op. cit., in loc. cit., pp. 78-81; HENRY A. KISSINGER, A World Restored, N. York: Grosset and Dunlap, 1964.

(5) Cf. RAYMOND POLIN, "Analyse Philosophique de l'Idée de Légitimité" in L'Idée de Légitimité — Annales de Philosophie Politique-7, cit., p. 26.

(6)       DAVID HUME, Essays, Moral, Political and Literary, Edinburgo, Bell and Bradfute, 1825, vol. I, p. 27; HAMILTON-MADISON-GAY, The Federalist Papers (ed. de Clinton Rossiter), N. York: Mentor Books, 1961, n° 49, p. 314.

(7)       JUERGEN HABERMAS, "Hannah Arendt's Communications Concept of Power" in Social Research, vol. 44, n9 1 (primavera de 1977); Cf. CELSO LAFER, Hannah Arendt Pensamento, Persuasão e Poder, Rio: Paz e 

Terra, 1979.

(8)       CARLO BARBÉ, Appunti per una Teoria delia Legittimazione, cit., p. 42.

(9)       JEAN-JACQUES CHEVALIER, "La Légitimité selon G. Ferrem" in L'Idée de Légitimité — Annales de Philosophie Politique-7, cit., p. 211.

(10)     HANNAH ARENDT, Between Past and Future, N. York: Viking Press, 1968 — Cap. III, pp. 91-141; cf. também CELSO LAFER, Hannah Arendt —Pensamento, Persuasão e Poder, cit., passim.

(11)     THOMAS HOBBERS, Leviathan (ed. de C. B. Macpherson), Harmonds¬worth, Middlesex, 1968, Parte I, cap. IV, p. 111.

(12)     NORBERTO BOBBIO, Da Hobbes a Marx (2a ed.) Napoles: Morano, 1971, pp. 54-55; CELSO LAFER, Hobbes, o Direito e o Estado Moderno, S. Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, 1980.

(13)     CARLO BARBÉ, Appunti per una Teoria della Legittimazione, cit., p. 45.

(14)     GUSTAV RADBRUCH, Filosofia do Direito (4a ed., trad. de L. Cabral de Moncada), vol. II, Coimbra: Armênio Amado Editor, 1961, pp. 45 e seguintes.

(15)     CARL "Nature de Ia Légitimité et Usages des Symboles Natio- 

naux de Légitimité comine Technique Auxiliaire du Contrôle des Armements" in L'Idée de Légitimité — Annales de Philosophie Politique-7, cit., p. 134.

(16)     SÉRGIO COTIA, "Élements d'une Phénomenologie de la Légitimité" in L'Idée de Légitimité — Annales de Philosophie Politique-7, cit., pp. 82-85.

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