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terça-feira, 5 de janeiro de 2021

O ano Merquior (8): Os primeiros 30 anos de intensa produtividade intelectual - Paulo Roberto de Almeida

 Transcrevo apenas a parte inicial de um ensaio meu sobre a obra intelectual de José Guilherme Merquior nos primeiros trinta anos de seu ativismo literário e cultural. Perdemos os trinta anos seguintes...

Paulo Roberto de Almeida

José Guilherme Merquior: o esgrimista liberal

 

Paulo Roberto de Almeida

Incluído como posfácio à nova edição do livro de José Guilherme Merquior: Foucault, ou o niilismo de cátedra (São Paulo: É Realizações, 2021; tradução de Donaldson M. Garschagen; prefácio de Andrea Almeida Campos; posfácios de João Cezar Castro Rocha e Paulo Roberto de Almeida: ISBN: )


 

 

A caracterização de Merquior como “esgrimista liberal” foi atribuída pelo grande intelectual mexicano Enrique Krauze ao embaixador brasileiro pouco depois de seu precoce falecimento, em janeiro de 1991. José Mario Pereira, o editor da Topbooks que, à exceção do “último”, sobre o Liberalismo antigo e moderno, publicou os derradeiros livros do intelectual, diplomata e acadêmico (nessa ordem), transcreveu um trecho da homenagem do historiador mexicano no comovente ensaio que Pereira preparou sobre o “fenômeno Merquior” para a coletânea organizada por Alberto da Costa e Silva: O Itamaraty na Cultura Brasileira (Brasília: Instituto Rio Branco, 2001; pp. 360-378): 

Sua maior contribuição à diplomacia brasileira no México não ocorreu nos corredores das chancelarias ou através de relatórios e telex, mas na tertúlia de sua casa, com gente de cultura deste país. (...) A embaixada do Brasil se converteu em lugar de reunião para grupos diferentes e até opostos de nossa vida literária. Lá se esqueciam por momentos as pequenas e grandes mesquinhezas e se falava de livros e ideias e de livros de ideias. Merquior convidava gregos e troianos, escrevia em nossas revistas e procurava ligar-nos com publicações homólogas em seu Brasil. (...) Merquior cumpriu um papel relevante: foi uma instância de clareza, serenidade e amplitude de alternativas no diálogo de ambos os governos. (Krauze, artigo publicado na revista Vuelta, janeiro de 1992; in: Pereira, op. cit., p. 365)

 

Tal postura também foi seguida por Merquior em todos os demais postos nos quais serviu e estudou – Paris, Londres, Montevidéu, Paris novamente –, como verdadeiro representante da cultura brasileira no exterior, um elo de ligação entre aderentes a ideologias opostas – marxistas e liberais, por exemplo – e também uma ponte entre intelectuais dos diferentes países pelos quais circulou, e nos quais tinha livros publicados (alguns foram escritos primeiro em inglês, depois traduzidos e publicados no Brasil). Tal acolhimento à diversidade de opiniões e de posições políticas diversas foi uma marca de toda a sua trajetória intelectual, um pouco errática em seu início como crítico literário, “até desaguar nos anos oitenta, na prosa quarentona de um liberal neo-iluminista”, como ele mesmo escreveu nas páginas introdutórias de seu livro Crítica (1964-1989), também reproduzido no ensaio de seu editor brasileiro (Pereira, p. 363). 

A caracterização de Merquior como “esgrimista liberal” foi também retomada pelo embaixador Rubens Ricupero na contribuição que ele ofereceu ao pequeno livro que o chanceler Celso Lafer e colegas diplomatas decidiram organizar um ano depois de sua morte, ocorrida em janeiro de 1991. Registrando, por um lado, a universalidade do seu pensamento e, por outro, o profundo vínculo de Merquior com as coisas do Brasil e da região, o ex-ministro da Fazenda e ex-diretor da Unctad escreve as seguintes palavras:  

O cosmopolitismo da formação universitária, a familiaridade que adquiriu no frequentar os grandes mestres europeus dos anos 60 e 70, nunca enfraqueceram em Merquior as raízes brasileiras e latino-americanas de sua cultura. (Rubens Ricupero, “A diplomacia da inteligência”, in: Lafer et alii, José Guilherme Merquior, diplomata. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1993, pp. 15-20; cf. p. 16)

 

Ricupero relembra ainda que em seu último livro, preparado para publicação quando ele já se encontrava devastado pela doença, Merquior tinha incluído o argentino Sarmiento entre os pensadores liberais criadores do liberalismo, antigo e moderno (p. 16). Refletindo, logo em seguida, sobre como grandes intelectuais brasileiros se vincularam à diplomacia, ou como a atividade diplomática influenciou a produção intelectual de vários deles, Ricupero discorre sobre grandes nomes de estadistas e homens de pensamento do passado, muitos dos quais se encontrariam na obra que, sob a direção sucessiva dos chanceleres Luiz Felipe Lampreia e Celso Lafer, seria publicada em 2001, dez anos depois do falecimento de Merquior. Ele escreve notadamente esta observação pertinente sobre o dilema de muitos deles, entre o dever de ofício e o prazer da escrita: 

Haveria, assim, nessa tipologia do diplomata-homem de cultura, dois extremos: o dos que sacrificaram, como Guimarães Rosa, a carreira à obra literária [pois que o grande escritor das Gerais passou anos e anos na modesta Divisão de Fronteiras, recusando postos no exterior] e o dos que, como o Barão [do Rio Branco] renunciaram à obra em favor de uma ação que os absorveu e consumiu a vida. Entre esses dois polos, a posição de Merquior era inequívoca: seu desejo era coroar uma brilhante carreira de crítico e pensador com uma atitude renovadora na política interna e externa do país, unificando pensamento e ação. (p. 18)

 

 

Uma produção intelectual extraordinariamente rica, diversificada, densa

 Sua produção literária e ensaística, em pouco mais de três décadas de ativismo intelectual, é propriamente espantosa, medida unicamente pelo que foi publicado em vida, uma série imensa de obras densas e abundantemente recheadas de notas remissivas e referências bibliográficas – desde o primeiro livro, em 1963, até os dois últimos, em 1991, que ele não chegou a ver, escrito e publicado originalmente em inglês, sobre o marxismo e o liberalismo –, aos quais caberia agregar materiais inéditos e complementares, que vêm sendo selecionados pela família e pelos novos editores, coletados em edições post-mortem. Uma peculiaridade formal, mas que revela o extremo cuidado que Merquior emprestava à sua atividade de grande scholar – numa era em que as edições brasileiras, mesmo de livros acadêmicos, raramente eram acompanhadas de índices finais –, era o fato de todos os seus livros finalizavam, invariavelmente, com completíssimas referências bibliográficas e extensos índices onomásticos, também reveladores de seu respeito pela conferência dos pares e dos interessados em suas fontes de estudo e material de leitura.

Sua produção se divide, basicamente, de um lado, em obras de crítica literária, artística e estética e, de outro, em trabalhos de sociologia, de política e de cultura, em geral. Este ensaio vai dedicar-se essencialmente a esta segunda categoria, embora tenha sido na primeira na qual ele se distinguiu precocemente, primeiro nas páginas dos suplementos literários dos periódicos do Rio de Janeiro desde o final dos anos 1950, depois em livros contendo esses ensaios coletados, a partir de meados da década seguinte, recolhendo a admiração unânime, tanto de experimentados críticos literários, quanto de autores de poemas e romances, aqui compreendendo igualmente escritores estrangeiros. O próprio Merquior, ávido leitor de todos os críticos literários mais importante do mundo, os considerava “uma espécie hoje quase extinta”, como registrou no primeiro capítulo de As Ideias e as Formas (1981, p. 16).

Vale registrar, por importante, que mesmo os livros de crítica literária e de análise de temas culturais sempre foram permeados de reflexões que ultrapassam essas fronteiras estritas, e desaguam, invariavelmente, em questões da modernidade, do pensamento político do momento, de tendências acadêmicas que interessam ao grande público (Foucault, Althusser, o estruturalismo, os marxistas ocidentais, etc.) ou penetram na discussão de problemas brasileiros e mundiais. Como pioneiro e ativo participante nos debates políticos e culturais no Brasil, vários de seus livros foram compostos por artigos divulgados nos grandes jornais de circulação nacional, por vezes ensaios mais longos publicados em obscuras revistas acadêmicas, mas que se inseriam, precisamente, no diálogo constante mantido com outros luminares da cultura nacional ou até com “desafetos” eventuais, não assim considerados por ele. Cabe igualmente observar que alguns dos representantes da “cultura de esquerda” incidiram em acusações vilmente desonestas, pretendendo transformá-lo num “empregado da ditadura militar”, quando esta ainda não tinha acabado, ou logo após o início da redemocratização, quando ele forneceu alguns bons textos sobre questões brasileiras ao presidente Sarney, ou sobre o “liberalismo social” ao presidente Collor.

Na primeira vertente de sua imensa produção podem ser situados: Poesia do Brasil (antologia com Manuel Bandeira, 1963); Razão do poema: ensaios de crítica e estética (1965); A astúcia da mimese: ensaios sobre lírica (1972); Formalismo e tradição moderna: o problema da arte na crise da cultura (1974); Verso Universo em Drummond (originalmente em francês, 1975); L’Esthétique de Lévi-Strauss (1977; em português: 2013); De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira (1977); O fantasma romântico e outros ensaios (1980); As Ideias e as Formas(1981); O elixir do apocalipse (1983). 

Numa faixa de transição para textos de feitura mais propriamente sociológica, ainda no terreno da crítica cultural e filosófica, podem ser situados: Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin: ensaio crítico sobre a escola neo-hegeliana de Frankfurt (1969); Saudades do Carnaval: introdução à crise da cultura (1972); O estruturalismo dos pobres e outras questões (1975); The Veil and the Mask: essays on culture and ideology (1979; em português: 1997); Michel Foucault ou o niilismo da cátedra (apresentado como um “antipanegírico”; original em inglês e no Brasil: 1985; em francês: 1986); From Prague to Paris: a critique of structuralist and poststructuralist thought (1986; em português: 1991). 

A partir de sua tese de doutoramento, defendida em 1978, na London School of Economics, sob a direção de Ernest Gellner, sua produção intelectual se dirigiu mais especificamente aos grandes temas da política e da sociedade: Rousseau and Weber: two studies in the theory of legitimacy (1980); A natureza do processo (1982); O argumento liberal (1983); Western Marxism (1986; em português: 1986, 2018); Algumas reflexões sobre os liberalismos contemporâneos (1986-1991); Liberalism, old and new (1991; também em português, já no âmbito de seu espólio, administrado pela família; em espanhol: 1996). Após sua morte, intelectuais e diplomatas amigos – Celso Lafer, Rubens Ricupero, Marcos Azambuja, Luiz Felipe de Seixas Corrêa e Gelson Fonseca – organizaram a já referida obra em sua homenagem: José Guilherme Merquior, diplomata (1993), pequeno volume de menos de 80 páginas no qual consta o discurso que Merquior proferiu como orador na formatura de sua turma no Instituto Rio Branco, em 1963, bem como seu texto sobre a questão da legitimidade na política internacional, tema da tese apresentada na qualidade de conselheiro aspirante à promoção a ministro de segunda classe, no primeiro Curso de Altos Estudos do IRBr, em 1978 (quando ele não estava formalmente obrigado a fazê-lo). 

Finalmente, em 1996, seu orientador na LSE, Ernest Gellner, organizou, com a colaboração de César Cansino, um volume de ensaios em sua homenagem: Liberalism in modern times: essays in honour of José G. Merquior (Oxford University Press), contendo inclusive uma contribuição de Norberto Bobbio (publicado em espanhol, sob o título de Liberalismo, fin de siglo; Universidad de Almeria, 1998). Vários de seus livros mais importantes – antes distribuídos por diferentes editoras – passaram a ser publicados no Brasil, mediante arranjos familiares, pela editora É Realizações.

Como a segunda vertente de Merquior, na qualidade de pensador da política e das relações internacionais, é a que mais interessa ao exame de suas ideias e análises vinculadas à política moderna e ao mundo contemporâneo, o restante deste ensaio será focado nos temas do marxismo, do liberalismo e da cultura política da modernidade, nos quais sua superior inteligência brilhou pelos insights e pela disposição à polêmica, como evidenciado pelo apodo que lhe atribuiu Enrique Krause, o “esgrimista liberal”.

(...)

Paulo Roberto de Almeida


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