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sábado, 28 de novembro de 2020

Brasil-Japão: 125 anos do Tratado de Amizade: exposições e guias culturais da Japan House de SP

 

O importante Tratado de Amizade Brasil-Japão completa 125 anos em 2020 e, para marcar a integração da comunidade japonesa que imigrou para o Brasil, a Japan House São Paulo promove a ação “Caminhos Brasil | Japão” no dia 06/dez, domingo, a partir das 10h.

Com duração de cerca de 1h30, a caminhada contará com 6 diferentes percursos pela cidade de São Paulo que celebram os temas ArtesAtualidades, Cultura, Esportes,Gastronomia e Memórias Brasil e Japão


*O evento será transmitido ao vivo no site da JHSP e o público, de casa, poderá escolher qual caminho quer acompanhar de maneira online.
Conheça os personagens e os convidados de cada trajeto:

Rota Artes:

Mauro Sousa, filho do cartunista Mauricio de Sousa e diretor da Mauricio de Sousa Produções, será o personagem do trajeto Artes e será acompanhado pelos artistas ZezãoGabriel Ribeiro (Gabs) e Catarina Gushiken

Partindo do Pavilhão Japonês no Parque do Ibirapuera, passam pelo Monumento em Homenagem aos Pioneiros da Imigração Japonesa, local que representa a história da imigração, do começo com a agricultura e o café consolidando a grande parceria e amizade dos dois países, pelo Hotel Unique, com a exuberante arquitetura de Ruy Ohtake, com design incapaz de passar despercebido e pela Galeria Joh Mabe, onde serão recebidos por Yugo Mabe Junior e chegarão à JHSP 5,3km depois.

Rota Esportes:

O percurso esportivo tem início no Jardim Japonês localizado no Parque da Aclimação. Ao longo de 4,2 km, o nosso guia é Pedro Henrique Gonçalves da Silva, mais conhecido como Pepê Gonçalves, canoísta olímpico de slalom, um dos atletas de maior destaque do Brasil, classificado para representar o país nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Para conversar sobre a contribuição da imigração japonesa para o esporte brasileiro, juntam-se a Pepê o jornalista Marcelo Duarte e os atletas Fernando KurodaThais MakinoRogério Saito e Patricia Hamamoto. O trajeto em direção à JHSP passa pelo Instituto Fukuda, onde o grupo encontra Ricardo Fukuda, coordenador artístico da instituição, e a Associação Kumamoto Kenjin do Brasil, que promove a cultura da província de Kumamoto em nosso país.

Rota Atualidades:

O jornalista Ricardo Cruz é o personagem do trajeto Atualidades e encontra pelo caminho Rafael Gushiken, com quem conversa sobre diferentes temas atuais do Japão. Partindo do Fundação Mokiti Okada, onde conversam com o presidente da instituição, Marco Antonio Baptista Resende, e o especialista em cultura japonesa, Erisson Thompson. Em seguida, rumam para a Associação Hokkaido, passando pela Escola de Educação Infantil Multicultural Brasil Japão Mutsumi Youtien, que ensina japonês desde o berçário, e encontram as anfitriãs Saniy Onishi e Yuka Shimizu. Antes de alcançar a JHSP, eles realizam uma última parada na Associação Ishikawa-Ken, dedicada à promoção da cultura da província de Ishikawa, completando o percurso de 4 km.

Rota Gastronomia:

Em celebração à riqueza e à diversidade da gastronomia japonesa, este trajeto de 4,2 km é encabeçado por Telma Shiraishi, chef do restaurante Aizomê, e Hideki Uehara, fundador do GoHanGo e cozinheiro do Tamashii Ramen. Telma e Hideki iniciam o caminho na Rua Conde de Sarzedas – conhecida também como Rua dos Japoneses – como forma de celebrar o local que desde 1912, quando passou a ser ocupada por novos moradores vindos do Japão, significa esperança por dias melhores para os imigrantes. A primeira parada do trajeto será na Associação Okinawa Kenjin do Brasil e, de lá, Telma e Hideki seguem para a feira da Praça da Liberdade, onde conversam sobre a história da relação entre Brasil e Japão pelo ponto de vista das comidas e bebidas, sobre pastelarias, izakayas, mercados e restaurantes. Ao longo do caminho rumo à JHSP, eles encontram personalidades do universo gastrônomico, como Yoshi Higuchi, do izakaya Kintaro, Cesar Yukio, chef pâtissier e referência em confeitaria contemporânea japonesa, conhecida como Yogashi, e o chef e sumotori Taka Higuchi.

Rota Cultura:

Eric Klug, presidente da Japan House São Paulo, é o nosso guia no trajeto que celebra a contribuição cultural da imigração japonesa e os 129 anos da Avenida Paulista, principal corredor cultural da cidade de São Paulo. Ele inicia sua caminhada no Instituto Moreira Salles, onde é recebido pelo superintendente-executivo Marcelo Araújo, passando em seguida pelo Hotel Blue Tree, onde encontra a presidente do grupo, Chieko Aoki, e pelo Museu de Arte de São Paulo, o MASP. No caminho, Eric encontra Toshio Ichikawa, presidente do Kenren, a Federação das Associações de Províncias do Japão no Brasil, que o acompanha em parte do trajeto, em direção ao Centro Cultural Fiesp/Sesi. O caminho inclui ainda a escultura Tomie Ohtake, momento em que conversam com Akira Kusunoki, cônsul geral adjunto do Consulado Geral do Japão em São Paulo, além do Itaú Cultural e do SESC Avenida Paulista, onde encontram-se com Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves, gerente de relações internacional da instituição. Eric passa ainda pela Casa das Rosas, antes de completar o percurso de 2,6 km até a JHSP.

Rota Memórias Brasil e Japão:

O nosso guia na caminhada de 3,7 km que tem início no bairro da Liberdade, berço da Imigração Japonesa no Brasil, é Claudio Kurita, diretor de operações, eventos e institucional da JHSP. Na Liberdade, Kurita parte da sede do Jornal Nikkey Shimbun, importante veículo de comunicação da comunidade nipo-brasileira. Ao longo de seis paradas, Kurita revisita suas memórias familiares e recebe como convidados Hayao HirataPedro Yuri Tani Souza e Seiko Tani. O caminho, então, continua pelo Largo da Pólvora, pelo Nikkey Palace, pela sede do Bunkyo (Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social), onde o grupo é recebido por Renato Ishikawa, presidente da instituição, seguindo pelo Templo SotoZen, pelo Yamaguchi Kenjin e pelo Hiroshima Kenjinkai do Brasil, até a chegada à JHSP.

Ao todo, as 6 rotas somam 24 quilômetros de importantes histórias, memórias e celebrações, que permanecerão como legado para a cidade de São Paulo e disponíveis, posteriormente, para todos que tiverem interesse em percorrer os roteiros e aprender ainda mais sobre a centenária união nipo-brasileira. 

Quando: 06/dez, domingo, a partir de 10h
Onde: assista, ao vivo, aqui

Siga nossas redes sociais para acompanhar todas as novidades sobre o evento Caminhos Brasil | Japão:

domingo, 30 de agosto de 2020

Cultura e barbárie no Terceiro Reich - José Cabrita Saraiva

Cultura e barbárie no Terceiro Reich

José Cabrita Saraiva
jose.c.saraiva@sol.pt

https://sol.sapo.pt/artigo/706956

Quando o Presidente Paul von Hindenburg apontou Hitler como chanceler, a 30 de janeiro de 1933, de imediato o aparelho nazi pôs em marcha um plano para imprimir os seus preceitos e valores em todas as dimensões da vida alemã. «As revoluções nunca se limitaram à esfera puramente política», defenderia Joseph Goebbels, o infame ministro da Propaganda, em novembro desse ano. «Estendem-se a todas as áreas da existência social humana. A economia e a cultura, a academia e as artes, não estão ao abrigo do seu impacto».
Não por acaso, algumas das primeiras medidas postas em prática visaram aquilo a que os nacional-socialistas chamavam ‘bolchevismo cultural’. Por um lado, porque o novo poder acreditava que estas criações transmitiam valores errados ao povo alemão, e assim inquinavam a pureza da alma germânica; por outro lado, porque era aí que se concentravam, além de judeus ou de bolchevistas propriamente ditos, muitos pacifistas, socialistas e figuras independentes, que jamais se identificariam com o novo regime.
Logo em 1933 foi levada a cabo uma «purga enorme dos artistas judeus, abstratos, semiabstratos e de esquerda, aliás, de quase todos os artistas alemães com fama internacional», escreve Richard J. Evans em O Terceiro Reich no Poder, recentemente editado em Portugal pelas Edições 70. Artistas como Oscar Kokoschka, Vassily Kandinsky ou Paul Klee, com as suas distorções e o seu compromisso com a liberdade, eram encarados como uma influência perniciosa para a sociedade.
Hitler e Goebbels tinham as suas próprias conceções acerca da vida cultural e não iam permitir que um grupo de «charlatães» e «incompetentes» – como o Führer chamava aos artistas que não lhe agradavam – comprometessem os seus objetivos. Com um misto de dura repressão e generosos incentivos, foi promovida uma estratégia concertada que atingiu os jornais, a rádio, o cinema, a música e a literatura, as artes plásticas, os museus e galerias. Na segunda parte – ‘A Mobilização do Espírito’ – deste segundo volume da sua trilogia, hoje considerada a grande obra de referência sobre o nazismo, Evans faz uma síntese magistral da vida cultural e espiritual na Alemanha no tempo de Hitler.
‘Uma guerra de limpeza implacável’
A dimensão estética do movimento nazi foi notória desde o início, com a sua aposta em símbolos impactantes, como a suástica, e os seus impressionantes desfiles noturnos à luz dos archotes. Com a chegada ao poder, esse aspeto acentuou-se e foi afinado. Heinrich Himmler, por exemplo, quando tinha sob a sua alçada toda a Polícia alemã, definiu ao pormenor como deviam ser as fardas dos guardas.
Hitler tinha especiais pretensões a esse nível. Afinal, ele próprio se dedicara à pintura durante a juventude – e há mesmo quem o veja como um artista frustrado, o que não andará longe da verdade. Depois de lhe ser recusado o ingresso na Academia de Belas Artes de Viena, sobreviveu, no limiar da miséria, como pintor de postais e de pequenos quadros de paisagens naturais ou edifícios antigos, que, embora não convençam os críticos, revelam alguém não completamente destituído de dotes.
Não será abusivo supor que o fracasso como artista lhe suscitou um inultrapassável ressentimento contra esta classe. Logo no famoso discurso do Grande Comício de Nuremberga, em setembro de 1933, «Hitler proclama que era chegada a altura de uma nova arte, de uma arte alemã», nota Richard J. Evans. Infelizmente, ao contrário da maioria dos políticos, Hitler cumpriu muitas das suas promessas, e tinha ao seu serviço uma máquina terrivelmente eficaz para as levar a cabo.
A célebre exposição de ‘arte degenerada’ (‘Entartete Kunst’), que abriu portas a 19 de julho de 1937 em Munique, foi o culminar de um processo de perseguição e difamação da arte moderna que conhecera muitos episódios anteriores. Diretores de museus e de galerias afetos ao partido nazi já haviam organizado mostras semelhantes, mas de menor dimensão e mediatismo, com títulos agressivos como ‘Câmara dos Horrores Artísticos’ ou ‘Espelhos da Decadência na Arte’.
Em Munique, as cerca de 650 obras confiscadas para o efeito foram selecionadas por diferentes motivos: umas por serem «borrões» mal executados; outras por terem sido criadas por artistas judeus; outras sob a acusação de serem pornográficas; outras ainda por atentarem contra Deus. Mas, no fundo, talvez o que mais incomodasse os responsáveis nazis fosse a forma como os artistas se estavam nas tintas para a tradição, desrespeitavam as convenções e desafiavam a autoridade. Por outras palavras, jogavam pelas suas próprias regras.
Hitler visitou a exposição antes de esta abrir ao público e emitiu uma opinião muito clara. Num discurso que teve lugar na véspera da inauguração declarou: «Travaremos uma guerra de limpeza implacável contra os últimos elementos de subversão da nossa cultura […]. No que nos diz respeito, estes pré-históricos e antediluvianos da Idade da Pedra e estes gagos da arte podem regressar às suas cavernas ancestrais para lá continuarem com os seus rabiscos».
A publicidade, ainda que negativa, teve efeitos espetaculares. «O aviso de que as crianças e adolescentes não podiam entrar porque as obras eram demasiado chocantes acrescentou um elemento de excitação que atraiu o público», nota Evans. A exposição de arte degenerada saldou-se por um sucesso estrondoso, com mais de dois milhões de visitantes em Munique e perto de três milhões quando a digressão que se seguiu chegou ao fim.
Uns queriam ver a ‘arte proibida’ porque a apreciavam e sabiam que tão cedo não teriam outra oportunidade para ver reunidas obras de mestres como Paul Klee, Henri Matisse ou Pablo Picasso; outros queriam apenas mostrar o seu desprezo pelos subversivos. Alguns chegaram a enviar telegramas para o Ministério da Propaganda a mostrar a sua indignação. Evans transcreve um desses comentários: «Os pintores deviam ter sido amarrados ao lado dos seus quadros para que todos os alemães lhes cuspissem na cara». Qualquer semelhança com a Revolução Cultural chinesa, que ocorreria três décadas depois, não será mera coincidência.
‘Vocês estão todos malucos’
Paralelamente à dos artistas proscritos, foi organizada uma outra exposição, para mostrar aqueles que mereciam ser apreciados. O título dizia tudo – Grande Exposição de Arte Alemã. Com pinturas e esculturas que veiculavam os valores ortodoxos defendidos pelo Estado, era o equivalente do que representava o Salon de Paris na França dos séculos XVII, XVIII e XIX.
Alguns artistas eram generosamente recompensados, como Arno Breker, o escultor favorito de Hitler, autor das duas enormes estátuas que ladeavam a entrada da chancelaria, e de monumentos espalhados por todo o território alemão. Outros viam as suas obras serem confiscadas, ridicularizadas ou mesmo queimadas em grandes piras que faziam lembrar as queimas de livros.
Mas a grande paixão de Hitler, que realmente o arrebatava, era a arquitetura. Talvez mais ainda do que um pintor frustrado, o Führer seria um arquiteto frustrado, como aliás confidenciou a Albert Speer, o arquiteto com quem passava horas e horas a discutir os seus planos megalómanos para Berlim – tão ambiciosos, de resto, que a transformariam numa nova cidade, Germania. «Todas as grandes eras encontram a expressão conclusiva dos seus valores nos seus edifícios», defendia.
«Em Munique, foram lançados os alicerces de uma gigantesca estação de comboios central destinada a ser a maior estrutura de aço do mundo, com uma cúpula mais alta do que os campanários gémeos do marco arquitetónico da cidade, a Frauenkirche», escreve Evans. «Outras cidades também seriam transformadas em enormes afirmações pétreas do poder e da permanência do Terceiro Reich. Hamburgo seria ornamentada com um arranha-céus – a nova sede regional do Partido Nazi – mais alto do que o Empire State Building em Nova York e encimado por uma enorme suástica de néon que serviria de farol para a navegação». A nova chancelaria tinha uma galeria que Hitler dizia com orgulho ter o dobro do comprimento da Sala dos Espelhos, em Versalhes. Por essas e por outras, quando Speer mostrou os novos projetos ao seu pai, este comentou: «Vocês estão todos malucos». Possivelmente não sabia como estava perto da verdade.
‘Algo positivamente inumano’
Para levar a cabo os planos do seu líder – que previa que as obras tivessem mudado a face de Berlim já na década de 50 – a Alemanha precisava de recursos que o seu território não poderia fornecer. Os sonhos megalómanos de Hitler acicataram a sede de conquistas do Terceiro Reich, mergulhando a Europa numa explosão de violência e destruição. A energia libertada pela eleição de Hitler acabaria por revelar-se fatídica a vários níveis.
No final do conflito, em 1945, a Alemanha ver-se-ia reduzida a escombros. Em cidades como Dresden ou Colónia pérolas da arquitetura do passado foram obliteradas pelos bombardeamentos dos Aliados. E os grandes edifícios públicos de Berlim não tiveram melhor sorte. As esculturas colossais de Arno Breker, que deviam transmitir virtudes viris de força, coragem e combatividade, acabaram derrubadas com facilidade. A arquitetura sólida da chancelaria nada poderia contra o poder do Exército Vermelho. Os projetos de Speer para a capital Germania, como a sua torre mais alta que o Empire State Building, não passariam nunca de um devaneio destinado a sobreviver apenas na escala miniatural de maquetes. E, ironia maior, acabariam por ser os soviéticos a ajudar a reconstruir muitos edifícios históricos transformados pelo excesso de ambição de Hitler em ruínas fumegantes.
No final, as políticas nacional-socialistas para a cultura não apenas tinham afunilado e mutilado a vida espiritual da Alemanha, como aquilo que pretendiam ser uma arte mais pura, edificante e elevada se desmoronou com estrondo.
Mas o Terceiro Reich, que tanta importância atribuía à dimensão estética, revelaria uma face ainda mais horrenda: a dos campos de concentração, onde milhões de seres humanos foram progressivamente explorados até se tornarem pouco mais do que almas penadas de pele e osso, e na maior parte dos casos literalmente reduzidos a cinzas nos crematórios.
Ainda hoje é estranho como estas imagens de puro horror não se tornaram insuportáveis para a sensibilidade de Hitler, o arquiteto frustrado que se dedicara à pintura na juventude; de Goering, que gostava de se rodear de belos objetos confiscados no seu pavilhão de caça; de Goebbels, que ficava chocado com a arte degenerada mas não com o sofrimento alheio; e de Heinrich Himmler, o arquiteto da Solução Final, que tivera uma educação esmerada da classe média culta.
William Shirer, um correspondente norte-americano (e autor do clássico The Rise and Fall of the Third Reich) que presenciou o Grande Comício de Nuremberga em 1934, a que assistiram 700 mil apoiantes, ficou «um pouco chocado com os rostos em especial das mulheres olhavam para ele como se fosse um messias, com as caras transformadas em algo positivamente inumano». No fundo, assim haveria de revelar-se o verdadeiro rosto do Terceiro Reich quando lhe caiu a máscara: distorcido, chocante e inumano.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Espanha: sua importancia para o Brasil - Seminario na Funag, 31/08, 9h30-12h00

Seminário com a participação de:
Embaixador Sérgio Eduardo Moreira Lima, presidente da Funag: Abertura
Embaixador Seixas Corrêa: Brasil-Espanha nos tempos da União Ibérica (1580-1640)
Prof. José Carlos Brandi Aleixo: Anchieta e a influência dos jesuitas na educação
Vamireh Chacon: Ortega y Gasset e o pensamento espanhol no Brasil
Embaixador da Espanha Manuel de la Camara Hermoso: Relações Brasil-Espanha: atualidade e perspectivas
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segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Jose Guilherme Merquior: uma entrevista de 1981 sobre cultura, academia e coisas afins

Agradeço ao colega de academia e de lista no Facebook Alexandre Hage, a transcrição desta entrevista, que não tenho certeza de ter lido na época (provavelmente não, pois eu me encontrava no exterior, intensamente ocupado com bebê recente, e uma tese renascida, e não tinha acesso a muito material do Brasil, numa época em que internet ainda não existia).
Como foi ele quem a postou, na lista "Comunidade de Internacionalistas", e reincide no "crime" dois anos depois de uma postagem inicial, cabe começar pela sua introdução necessária, como abaixo.
 Paulo Roberto de Almeida

Alexandre Hage
October 12 at 12:14am

Esta postagem não é de RI, conforme sugere as regras da comunidade. Mas se trata de uma entrevista em que o autor versa a respeito daquilo que na qual se produz os estudos de relações internacionais, a universidade e a esfera da cultura. Por isso, a conveniência de exibi-la aqui.

JOSE GUILHERME MERQUIOR: MAIS UMA VEZ

Mais uma vez porque eu havia posto aqui esta providencial entrevista do diplomata, feita em 1981, há uns dois anos. Muitas pessoas solicitaram minha amizade virtual (algumas devem ter me excluído, não as culpo). Por isso, a conveniência de reapresenta-la aos interessados.

Em tempo de grande dificuldade com as instituições que deveriam chamar para si a responsabilidade sobre uma ideia de país acredito que é crível botar aqui mais uma vez o que pensava Merquior sobre uma série de coisas: o papel da universidade que já estava em situação complicada em 1981, como ele fez questão de comentar; certo desprezo pela cultura que hoje se denomina elitista; por outro lado o apego às vezes demagógico e incauto a posturas desqualificadas de cultura que boa parte dos intelectuais endossa. Tudo isso que estava em gestação há trinta anos hoje já é o pantagruel de nossos tempos.

http://perspectivaonline.com.br/2015/06/03/merquior/
    Entrevista com José Guilherme Merquior em 1981
perspectivaonline.com.br
Entrevista de José Guilherme Merquior, concedida à revista VEJA em 1981. Original aqui. Quarta-feira...


Ciências Humanas

Entrevista com José Guilherme Merquior em 1981


Entrevista de José Guilherme Merquior, concedida à revista VEJA em 1981.
Original aqui.
Quarta-feira passada, jantando com autoridades brasileiras na Granja do Ipê, residência oficial do chefe do Gabinete Civil da Presidência da República, o ex-secretário do Estado americano Henry Kissinger foi saudado pelo ministro João Leitão de Abreu num discurso encastoado com finas citações de Platão e Aristóteles. Como Platão e Aristóteles não costumam freqüentar banquetes em Brasília, sua presença foi logo identificada como sinal da chegada ao governo de José Guilherme Merquior – diplomata de carreira, crítico literário e ensaísta com treze livros publicados que, em agosto, Leitão importou da embaixada brasileira em Montevidéu para compor sua equipe no Palácio do Planalto. Ali, uma das incumbências de Merquior é melhorar os discursos do governo.
O conselheiro Merquior, carioca de 40 anos, é um personagem um tanto exótico na paisagem cultural brasileira – e isso não só por ter passado boa parte de sua carreira em postos tranqüilos e refinados, ideais para buquineiros, na Europa. Sua maior singularidade é ter um temperamento polêmico numa terra em que a crítica literária só costuma ser implacável com best-sellers estrangeiros. Seu novo livro, “As Idéias e as Formas”, uma coleção dos artigos que escreveu para jornais nos últimos três anos, lançado este mês pela Editora Nova Fronteira, é um bom exemplo: lança farpas contra marxistas e liberais, a psicanálise, modismos culturais e os costumes da intelectualidade brasileira – que, a seu ver, está formando uma república das letras de vocação despótica.
Ainda ficaram fora do livro dois momentos extremos de sua contundência: a crítica em que acusa a professora paulista Marilena Chauí de plagiar o filósofo francês Claude Lefort e um ruidoso debate, pelos jornais, com o jornalista Paulo Francis, cujo romance “Cabeça de Papel” Merquior anunciou como treino para uma futura autobiografia intitulada “Cabeça de Vento”. Outro bom exemplo da desenvoltura com que Merquior fala de seus temas preferidos é esta entrevista concedida a VEJA na semana passada.

VEJA – Há um ano, o crítico Eduardo Portella deixou o Ministério da Educação convencido de que este governo não é lugar para intelectuais. O senhor acha que é?
MERQUIOR – Eu acho é que esse assunto merece ser tratado de forma desmitificadora. Cada vez que é discutido de maneira extremista, unilateralizada, o resultado é que se cria um mito. Na França, por exemplo, Régis Debray escreveu há dois anos um livro dizendo que intelectual, quando serve ao poder, é sempre como áulico ou absolutista. Mas veio o governo socialista de François Mitterrand e Debray está no Palácio Eliseu. A meu ver, uma atitude intelectualmente séria é não tratar com categorias maniqueístas: não se pode sacralizar a pureza do intelectual nem demonizar o poder do Estado, que não é um mal em si.
VEJA – Não há no Brasil uma desconfiança recíproca entre o Estado e os intelectuais?
MERQUIOR – É impressionante o número de intelectuais brasileiros que está dentro do Estado e faz de conta que não vê. O que está dando pretexto a tanta retórica ideológica sobre essa questão é apenas uma concepção vulgar de Estado, que só vê seu ramo executivo. Ora, essa não é uma concepção correta, nem jurídica, nem historicamente, nem para o Direito, nem para as ciências sociais. O Estado não é só o governo. Fica muito engraçado ver tantos intelectuais encastelados em posições universitárias, comportando-se como vestais críticas do poder do Estado. Estão fazendo tudo isso dentro do Estado e não sabem.
VEJA – O senhor antipatiza com a sociedade civil?
MERQUIOR – Antipatizo com o mito da sociedade civil, que me parece ter duas origens. Uma, brota da esquerda. Até 1970, certamente durante todos os anos 60. O pensamento marxista ou marxistizante na América Latina, preso ao conceito leninista de imperialismo, que era uma espécie de projeção da luta de classes para a política internacional, fez o resgate ideológico do Estado.
VEJA – Resgate ideológico?
MERQUIOR – Isso mesmo. Pela tradição marxista, o Estado sempre foi sinônimo do mal, de instrumento de opressão. Mas, de repente, através da transposição de que eu falava, os marxistas, tomados de fervor nacionalista, passaram a ver o Estado como denominador comum das classes contra a opressão internacional. Isso foi na era leninista. Agora, os marxistas brasileiros estão em plena era de devoção ao pensador italiano Antonio Gramsci, o que num certo sentido implica a volta às matrizes marxistas que sempre viram no Estado um instrumento de opressão. Essa é a origem esquerdista do mito da sociedade civil.
VEJA – Existe a origem direitista?
MERQUIOR – Claro. Os neoliberais brasileiros – que, aliás, andam precisando de correção semântica, pois na verdade são paleoliberais – juntaram-se à esquerda nessa festa de rejeição do Estado. Porque num país como o nosso o Estado é, ou pelo menos deve ser, um promotor de progresso, do equilíbrio social. Mas os paleoliberais rejeitam essa função do Estado e por isso se juntaram aos gramscianos na criação do mito da sociedade civil, chamada a resolver os problemas brasileiros sem a interferência do Estado ou contra ela. Isso é uma bobagem.
VEJA – Mas rendeu muito debate.
MERQUIOR – Uma das características defeituosas do nosso debate intelectual – quando ele ocorre, pois a outra característica é que ele é muito subdesenvolvido e raramente ocorre – é a tendência à imediata ideologização. Os problemas são sempre apresentados de maneira abstrata, principista e apriorista. Portanto, o coeficiente de análise empírica, de exame concreto de realidades verificáveis, é muito pequeno. O inglês Oscar Wilde dizia que os patrões falam de coisas e os criados de pessoas. No debate político e intelectual brasileiro, há muito pouca gente falando de coisas ou pessoas. Fala-se de noções abstratas.
VEJA – Com que resultado?
MERQUIOR – O resultado, em outras palavras, é que se restaurou no Brasil o estilo escolástico de debate. Uma das melhores definições de escolástica como estilo retórico diz que ela era uma maneira precisa de falar de coisas vagas. Para ver como isso funciona na prática, basta acompanhar a discussão sobre democracia: quase ninguém discute os mecanismos reais de representação. E o resultado é que o debate, político e intelectual, ficou muito chato no Brasil, pois a discussão sobre coisas concretas é sempre muito mais remuneradora que a discussão sobre princípios.
VEJA – Qual seria o remédio?
MERQUIOR – Pessoalmente, há muitos anos eu me espanto com a irresponsabilidade de alguns intelectuais que tendem a minimizar, em nome de uma vesga modernice, o problema do ensino básico, da alfabetização, de dotar as pessoas com o instrumental mínimo do pensamento articulado, que é a capacidade de falar e escrever corretamente. Fala-se mal, escreve-se mal, pensa-se mal no Brasil.
VEJA – Quem escreve mal?
MERQUIOR – Os cientistas sociais, os críticos literários, os políticos e, enfim, mas não por último, os escritores.
VEJA – São problemas de estilo?
MERQUIOR – Há problemas de estilo, sim. No caso dos cientistas sociais, por exemplo, existe o problema do jargão, uma certa resistência a escrever em português. Mas, antes disso, na base disso, há uma coisa pior: a dificuldade sintática, a penúria vocabular, a insuficiência gramatical. Aqui estamos falando de escrever errado mesmo.
VEJA – Escrever mal é pecado grave para um cientista social?
MERQUIOR – Até o fim dos anos 40, os cientistas sociais que tinham importância e prestígio no Brasil escreviam admiravelmente bem – gente como Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto Freyre. Eles renovaram o estilo literário das ciências sociais brasileiras, que estava ainda muito preso ao modelo de Euclides da Cunha. Agora, o estilo oficial dos cientistas sociais é o das teses universitárias.
VEJA – O senhor tem má vontade para com teses?
MERQUIOR – Teses não são necessariamente feitas para ser publicadas. Na Inglaterra, que tem excelentes costumes acadêmicos, encontram-se intelectuais notáveis, reputadíssimos, que aos 60 anos, com uma carreira acadêmica plenamente realizada, têm dois ou três livros publicados. Mas são livros de verdade
VEJA – Cite livros malfeitos.
MERQUIOR – Eu lembro “A Ideologia da Cultura Brasileira”, do professor Carlos Guilherme Motta, como um livro bem ruim. Não por ser propriamente mal escrito. Ele não tem distinção literária, mas também não é especialmente mal escrito. Ele é mal pensado, com uma arbitrariedade muito grande. Por exemplo, ao analisar o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Naquela fase, começo dos anos 60, não se pode negar que o ISEB fosse um grupo de intelectuais de esquerda pensando o Brasil com um certo grau de sofisticação filosófica, com leituras existencialistas, orteguianas. Carlos Guilherme Motta tratou esse movimento considerando apenas um artigo para jornal de Hélio Jaguaribe. O livro é bairrista. Tudo gira em torno da Universidade de São Paulo.
VEJA – Outro exemplo.
MERQUIOR – Cito um livro muito rico em informações, único do gênero, de consulta obrigatória, que eu mesmo tenho usado freqüentemente: “A História da Inteligência Brasileira”, de Wilson Martins. É muito mal estruturado. O método de organizar autores por ordem cronológica é um equívoco. O importante é a tendência literária, não a cronologia.
VEJA – Na sua opinião, quem escreve bem no Brasil?
MERQUIOR – O memorialista Pedro Nava escreve magnificamente. Os poetas Armando Freitas Filho e Mauro Gama, também. Há uma recuperação dos padrões de elegância na ensaística mais recente, em cientistas sociais, como Bolívar Lamounier. Estou citando, é claro, as novidades.
VEJA – E entre os escritores de vanguarda, algum nome merece destaque?
MERQUIOR – A vanguarda brasileira anda muito quieta, tão quieta que não a estou notando, ou se dissolveu – e não sou eu quem vai botar luto por isso. A última vanguarda fecunda no Brasil foi a de 1922, a geração modernista.
VEJA – Não está acontecendo nada de novo na cultura brasileira?
MERQUIOR – Literariamente, o único fenômeno que noto é a febre do memorialismo, uma tendência tão forte que já chegou até aos jovens, como o best-seller Fernando Gabeira. Gabeira, aliás, escreve bem. Pelo menos, escreve com graça, que é uma virtude que se exilou da literatura brasileira. Só li dele o primeiro livro, “O Que É Isso, Companheiro?”, mas chego a me perguntar se uma parte do sucesso que vem fazendo não é simplesmente porque escreve com graça.
VEJA – Como é o intelectual brasileiro?
MERQUIOR – No Brasil, há uma intelectualidade, mas não uma intelligentsia. A diferença entre uma coisa e outra é a mesma que distingue o gênero da espécie. A intelligentsia é um tipo de intelectualidade, um tipo cujo modelo histórico foram os intelectuais da Europa oriental no século passado, sobretudo no império czarista. O que a caracteriza é a separação em que os intelectuais vivem em relação à sociedade. São párias, até pela situação de sua renda e seu status. Os intelectuais brasileiros mais radicais não são párias de nossa sociedade, nem pela renda nem pelo status. Se disserem que são, eu respondo com uma gargalhada. Eles se beneficiaram do progresso econômico, subiram socialmente nos últimos anos como o resto da classe média. Por isso, têm uma retórica muito radical. Fingem que são uma intelligentsia. Mas, na prática, se comportam como um setor do salariado, têm impulsos corporativistas.
VEJA – O senhor quer dizer que os intelectuais são muito ciosos de seus interesses de classe?
MERQUIOR – Basta ver a prática da excomunhão em meios universitários, como se cassam mandatos intelectuais no Brasil. O AI-5 intelectual nunca foi revogado. É a classe se organizando em corporação. É típica a maneira como se reage no país à polêmica. Quando um intelectual no Brasil se sente incomodado por um crítico, ele não contra-ataca as idéias do crítico, ataca o próprio crítico. Foi o que aconteceu comigo, na polêmica com a professora Marilena Lefort…
VEJA – Quem?
MERQUIOR – Aliás, Marilena Chauí, que em seu último livro psicografou trechos inteiros do francês Claude Lefort. Quando eu denunciei isso em artigo, as pessoas que vieram em defesa da Marilena procuraram desqualificar minha pessoa, a pretexto de que eu trabalho para o governo. Eu me refiro a Maria Sylvia Carvalho Franco, conhecida patrulheira ideológica paulista. Há exceções, felizmente. Eu também critiquei Carlos Nelson Coutinho, porque não me convenceu sua tentativa de provar que leninismo e democracia são compatíveis. Ele entendeu que se tratava de uma discussão de idéias. Respondeu com seus contra-argumentos marxistas. Quando isso acontece, há polêmica. Do contrário, o que se tem é um bom exemplo do clero intelectual agindo como seita. É uma das características de toda seita é o puritanismo, a intransigência no plano da conduta e o dogmatismo.
VEJA – Aonde esse comportamento pode levar?
MERQUIOR – Está levando a uma grafocracia. Criticam-se muito as várias cracias, mas não a grafocracia, termo cunhado pelo marxista austríaco Karl Renner, depois da II Guerra, para designar essa vocação moderna do intelectual para exercer o poder através do que ensina ou escreve. O mal da grafocracia é que, com ela, o humanismo deixa de ser um movimento intelectual para se transformar numa ideologia, no sentido marxista da palavra, isto é, um sistema que reflete os interesses de uma camada intelectual que se comporta como clero.
VEJA – O filósofo Claude Lévi-Strauss, depois de ensinar na USP, escreveu que no Brasil todos querem ser eruditos, mas não têm a vocação nem o mérito. O senhor se considera um erudito?
MERQUIOR – Como categoria neutra, sem dar à palavra conotações de bem ou mal, admito que em alguns trabalhos realizei um certo esforço de erudição. Mas a minha preocupação com a erudição é instrumental, quero equipar-me com ela para tratar de determinados problemas. Mas essa conversa do erudito que leu o último livro é uma bobagem. Ninguém leu o último livro. Essa época acabou na Renascença, quando as grandes bibliotecas tinham 500 volumes. A minha tem 7 000 volumes e não tem o último livro. Por outro lado, a erudição também vai ganhando um ar pejorativo serve para descartar certas idéias, um certo tipo de pensamento a pretexto de que “são coisas de erudito”. A insinuação é de que existe outro saber, por graça infusa, que dispensa seus iluminados do trabalho de serem eruditos. Basta estar na posição “correta”. Eu gostaria de saber quem dá esse atestado de dispensa.
VEJA – Entre a esquerda e a direita, onde é que o senhor fica?
MERQUIOR – Alguém definiu admiravelmente bem as pessoas de minha posição ideológica. Foi o polonês Leszek Kolakowski, num texto que é uma pérola – “Como ser conservador, liberal e socialista”. No fundo da visão conservadora, existe um elemento muito positivo, que consiste em acreditar que nem todos os males humanos têm causas sociais, sendo portanto elimináveis através de mudanças sociais. Do lado liberal, a idéia básica, também verdadeira, é que a finalidade do Estado é dar segurança, sem esclerosar a sociedade com um sistema demasiado refratário à iniciativa individual. Enfim, o socialismo tem de válida a idéia de que o pessimismo antropológico, por trás da posição conservadora, não deve ter o poder absolutista de evitar as reformas sociais citadas pelo reformismo esclarecido.
VEJA – Trocando em miúdos…
MERQUIOR – …Eu me sinto um pouco um iluminista. Tenho confiança no progresso, acredito no progresso pela racionalidade. Essa crença já foi característica dos socialistas, mas hoje os socialistas mais sofisticados abandonaram seu compromisso histórico com o evolucionismo, direita e esquerda ficaram muito parecidas nesse aspecto: o repúdio aos tempos modernos. Adorno, que se proclamava neomarxista, chamou nossa época de satânica. No século XVIII, quem acreditava no progresso eram os filósofos. Atualmente, intelectual que acredita no progresso é coisa rara. Hoje em dia, quem acredita no progresso, felizmente, são as massas.

quinta-feira, 12 de março de 2015

Armenio Guedes (1918-2015): um comunista honesto (a partir de certo momento)

De todos os comunistas que conheci -- refiro-me, não a todos eles, mas ao pessoal do velho Partidão que tinha certa cultura, e que pelo menos tinha lido Marx e Dostoievski, ou Lênin e Balzac -- e que entrevistei, em pesquisas sobre a história política brasileira nas décadas em que o Partido Comunista Brasileiro ainda era uma força política aparentemente importante, Armênio Guedes foi o único honesto, ou seja, a falar sinceramente sobre os crimes do stalinismo, e sobre as deformações do socialismo.
Eu devo tê-lo entrevistado em Paris, em algum momento do final dos anos 1970 e início dos 1980, quando ainda viviamos em ditadura militar, portanto, e nossa conversa foi muito fluída, muito aberta, e ali conheci um homem culto, inteligente, aberto, ou seja, quase um humanista (se é possível dizer isto de um comunista). Mas registre-se que ele tinha se tornado comunista quase como um air du temps, o Zeitgeist, pois esta era uma escolha que se colocou a muitos jovens idealistas de certa geração, quando o socialismo ainda parecia prometer melhorias na condição de vida de países "semi-coloniais", como o pessoal do Komintern considerava equivocadamente o Brasil. Ele logo percebeu, no degelo pós-Stalin, que aquela coisa não poderia funcionar. Ainda assim permaneceu no Partido pois aquilo representava uma vida de lutas. Não sem críticas, tanto que foi marginalizado pelos velhos dirigentes prestistas e por outros oportunistas.
O texto abaixo, assinado por algum intelectual gramsciano, presta uma homenagem a um dos poucos intelectuais comunistas que colocava a cultura antes da política, embora seu autor, não identificado, ainda mantenha as mesmas ilusões de velhos e novos comunistas quanto às possibilidades de um, qualquer um, socialismo, algo que Armênio Guedes provavelmente já não tinha mais (mas que ele não confessava, provavelmente para não chocar os camaradas).
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 12 de março de 2015

Armênio Guedes (1918-2015)
Gramsci e o Brasil - Março 2015

Faleceu ontem em São Paulo (11/03/2015), aos 97 anos, Armênio Guedes, dirigente histórico do antigo Partido Comunista Brasileiro e presidente de honra da Fundação Astrojildo Pereira. Baiano de Mucugê, criado em Salvador e tendo passado por sua Faculdade de Direito, que abandonou pouco antes de se formar, Armênio participou de uma geração brilhante de políticos e intelectuais democráticos e de esquerda, entre os quais João Falcão, Aydano Couto Ferraz, Jorge Amado, Edson Carneiro, Carlos Marighella e muitos outros.

Tendo aderido ao PCB nos anos 1930, sob a inspiração do antifascismo, Armênio guardou desta experiência original a marca das posições de frente com os adeptos do pensamento liberal, que carregou mesmo nos momentos de maior sectarismo do comunismo brasileiro e internacional. Assim, logo depois do célebre XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, que denunciou os crimes que haviam acompanhado a construção do socialismo de Estado sob a direção de Stalin, Armênio esteve entre os que mais se empenharam, no PCB, por uma profunda revisão de métodos, que atualizasse a teoria e a prática dos comunistas brasileiros.

Não por acaso, Armênio participa da redação do “Manifesto de Março de 1958”, ao lado de outras personalidades com pensamento mais ou menos próximo do seu, como Luiz Carlos Prestes, Giocondo Dias e Jacob Gorender. Este “Manifesto”, ao destacar de modo inovador a importância da “questão democrática”, ao lado da “questão nacional”, assinalou uma mudança de rumos na cultura dos comunistas, em direção à plena assimilação posterior dos métodos da democracia política e sua valorização acima de qualquer ambiguidade.

Se não foi suficiente para impedir açodamentos e equívocos na grande e terrível crise de 1964, o “Manifesto de 1958” forneceu instrumentos para a política de resistência pacífica e legalista do PCB ao regime ditatorial, uma política que teve Armênio como um de seus defensores mais destacados e coerentes. Armênio, então no estado da Guanabara, era a referência para o trabalho tanto com os jovens intelectuais, quanto com a velha “classe política”, que a seu modo se opunha tenazmente ao regime, e as novas lideranças que surgiam no interior do MDB e do movimento democrático em geral. Aqui, seu nome deve ser permanentemente lembrado ao lado de singulares personalidades do comunismo brasileiro, como Luiz Inácio Maranhão Filho, Giocondo Dias, Marco Antônio Tavares Coelho, Salomão Malina, João Massena e outros dirigentes com clara visão política dos problemas e perspectivas postos pela “frente democrática” contra o regime militar.

No início da década de 1970, Armênio teve de se exilar no Chile de Allende, depois de ter sido identificado e abordado por agentes da CIA no Brasil. Neste Chile que buscava um caminho democrático para o socialismo, teve continuidade a trajetória de Armênio, ponto de união entre exilados de diferente formação política e cultural. A sangrenta derrubada de Allende, em 1973, marcou nova parte do percurso de Armênio no exílio, já em linha com os mais arrojados políticos e teóricos que se afastavam da ortodoxia soviética, como é o caso do Partido Comunista Italiano e de dirigentes da estatura de Antonio Gramsci, Palmiro Togliatti e Enrico Berlinguer.

Deste último, aliás, Armênio assimilou plenamente, e até o final de sua vida, a ideia de que a democracia política, antes de ser “burguesa”, como afirmava a ortodoxia, era na verdade um “valor universal”, de que as classes subalternas não podiam mais abrir mão, sob o risco de reproduzirem novas experiências autoritárias ou totalitárias, como as do chamado “socialismo real”.

A derrocada da União Soviética e deste tipo de socialismo encontrou Armênio sereno e firme em suas convicções reformistas. Uma palavra — reformismo — que fez questão de reabilitar em diversas intervenções públicas, afirmando explicitamente, por exemplo, que “[...] a Revolução de Outubro, que por tanto tempo nos serviu de modelo, deve ser considerada a última revolução do século XIX. E a ‘revolução democrática’ dos nossos dias, quer dizer, os modos de se desenvolver a luta revolucionária depois do ‘grande ato metafísico de Outubro’, está rigorosamente por ser inventada”.

A vida luminosa de Armênio Guedes, que acompanhou a parábola da experiência soviética e dos comunistas brasileiros, acaba por se confundir com as esperanças de renovação do pensamento e da prática da esquerda, na perspectiva de uma mudança social que reforce simultaneamente os espaços de liberdade de cada indivíduo e a trama plural de uma comunidade baseada nos valores da solidariedade e da fraternidade. Armênio Guedes continuará a ser um dos pilares desse tipo de concepção e de luta por um socialismo reconciliado com a democracia — algo, como sabemos, rigorosamente a ser inventado, para usar suas próprias palavras.

Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

O fascismo em construcao no Brasil: governo estatiza a cultura

Analiza Congreso de Brasil crear Fondo Nacional de Cultura
NTX, 10/10/2013

México, 9 Oct. (Notimex).- El Congreso de Brasil estudia la posibilidad de contar con un Fondo Nacional de Cultura, a fin de promover, difundir y llevar la cultura a la población de ese país, adelantó hoy aquí Joao Luiz Silva Ferreira, Secretario de Cultura de la ciudad de Sao Paulo y ex Ministro de Cultura de Brasil.

Durante el encuentro “Estímulos a la creación, promoción y difusión artística”, celebrado en la Cámara de Diputados, el funcionario comentó que la idea es suplir o reemplazar la "Ley Rouanet”.

Esta ley, “a la que calificó y crítico de perversa”, define incentivos fiscales para empresas y particulares que quieran financiar proyectos culturales en el país, además de permitir deducir del impuesto sobre la renta hasta 100 por ciento del valor invertido en un proyecto cultural, según su categoría.

De acuerdo con Silva Ferreira, el proyecto de ley, que ya fue aprobado por las comisiones correspondientes en aquella nación, busca convertirse en el principal mecanismo de financiación para la cultura en Brasil.

“Se trata de un fondo moderno que reciba aportes públicos y privados con capacidad de embestir una obra de arte en proceso, como coproductor, y que mantenga el fondo en construcción no sólo en presupuesto público, sino también en los mecanismos económicos que vaya creando el propio proceso”, expuso.

Comentó que con esta ley, la cultura en Brasil “comenzó a ser muy valorizada, como parte de un proyecto de desarrollo del país”.

Al aprobarse esta legislación de incentivos fiscales, se vislumbró al Estado como la solución para el país.

Indicó que la ley tiene 20 años y que durante ese periodo tuvo aciertos y errores. Por ejemplo, “nunca contamos con tantos recursos para la cultura como en esta época (actualmente) y la ley provocó un proceso de distorsión y concentración exagerada”.

“Estamos caminando para sustituirla por otra ley que busque equilibrar la participación del Estado y de la iniciativa privada”, agregó.

A decir de Silva Ferreira, entre las “distorsiones que provocó la ‘Ley Rouanet’ en Brasil destaca que en 20 años sólo 14 por ciento de los brasileños fue una vez al cine y el 92 no frecuentó museos.

Además de que el 93 por ciento no acudió a exposiciones de arte y el 78 no asistió a espectáculos de danza, así como el 92 por ciento de los municipios no contó con cine y teatro.

“En 20 años, la ley no fue capaz de generar una realidad distinta”, señaló el también académico, al tiempo que reiteró que Brasil se encuentra en la transición de un modelo que diversifique las formas de apoyo a la cultura.

Tras la participación del Secretario de Cultura de Sao Paulo, tocó el turno de Christiane Pelchat, delegada general de Québec en México, quien compartió la experiencia de poder recibir apoyos públicos y privados en la gestión cultural.

Luego de dar una introducción sobre aquella ciudad, dijo que la cultura es un medio de desarrollo económico en Quebec, tanto que genera “130 mil empleos”.


Precisó que cada dólar invertido en cultura produce .5 dólares y que, en 15 años, el presupuesto de la cultura se incremento en 183 por ciento.

sábado, 28 de abril de 2012

Diplomacia e cultura: uma relacao sempre ambigua

Sempre atraído pela cultura e por questões intelectuais, recolho na internet o artigo abaixo, por um jornalista que pretende censurar o Itamaraty pela falta de apoio cultural. Não é verdade, mas digamos que a cultura é a primeira a sofrer quando as verbas se fazem curtas. Esse é um fato. Um país, qualquer país, sempre deixa de fazer coisas quando os recursos são escassos, e como esse país não pode deixar de pagar aposentados e pensionistas, até por razões constitucionais, e como ele -- ou eles, pois no caso o país não faz nada, e sim os políticos, que ocupam temporariamente, espera-se, o governo, são os que fazem ou deixar de fazer coisas, ditas estratégicas, ou acessórias -- tampouco deixa de pagar funcionários e manter atividades correntes, onde é que o país em questão vai buscar os recursos que faltam para aquelas atividades essenciais: ora bolas, nas iniciativas que podem, ou não, deixar de sere feitas e que não atingem o coração do funcionamento do Estado. 
Entre essas vítimas, em qualquer lugar, estão sempre as atividades culturais, sendo que aparecem em segundo lugar as tarefas de manutenção: estradas e ruas deixam de ser entretidas, e ficam esburacadas, novos equipamentos deixam de ser comprados (e aí escolas, hospitais e outros órgãos de administração e atendimento precisam continuar trabalhando com computadores velhos, por exemplo), enfim, existe um sem número de atividades que podem -- por vezes devem -- ser cortadas, em nome da economia.
Arte, cultura, lazer, exibicionismo (burguês ou não) sempre convivem com a riqueza, em qualquer tempo e lugar: são os mecenas, os ricaços, ou Estados afluentes que financiam obras de arte e subsídios a esses "reclamões" incuráveis que são os intelectuais (muitos se acham no direito de receber do Estado, sem qualquer compromisso de resultado, apenas porque, supostamente, produzem arte, cultura, entretenimento).
Pois bem, esta longa introdução apenas para dizer que não estou de acordo com o jornalista em questão, a despeito de considerar seu artigo relevante.
E tampouco estou de acordo com a parte final, quando ele aponta uma série de escritores e intelectuais, e pretende que a diplomacia brasileira deve muito a eles.
Duvido e contesto. Esses homens já eram brilhantes quando ingressaram no Itamaraty, ou se tornaram brilhantes concomitantente, ou simultaneamente, talvez até competitivamente, ao seu trabalho como diplomatas, não porque precisassem do Itamaraty para criar as obras que criaram. Se formos examinar sua "ficha de serviço" raramente encontraremos produções diplomáticas estrito senso, e sim produções culturais, acadêmicas ou livres, mas que poderiam ter resultado de qualquer outra atividade que exercessem -- na indústria, na agricultura, nos serviços, na academia, até na vagabundagem de elite -- e não necessariamente como resultado da diplomacia ou do Itamaraty. Muitos, isso é conhecido, adentraram no Itamaraty justamente para se aproveitar do Itamaraty, não para trabalhar para ele: a possibilidade de ganhar bem, sem precisar trabalhar muito -- não é mais o caso hoje, mas era até a República Velha -- de só frequentar ambientes sofisticados nas mais belas capitais do mundo -- tampouco é o caso hoje -- tudo isso fazia com que homens (sim, homens) de boa família se dirigissem ao Itamaraty, não para engrandecer a sua diplomacia e beneficiar o Itamaraty de suas luzes, mas para se beneficiarem a si mesmos, e à sua produção literária.
Que eles possam ter acrescido, e muito, à cultura do Brasil, e enriquecido o prestígio do país no exterior, isso é inegável. Que isso tenha sido em proveito da diplomacia -- estrito senso -- é bem mais duvidoso, e talvez até enganoso.
Em todo caso, devemos saudar os grandes homens da cultura, agradecer o que fizeram pelo nosso enriquecimento intelectual, não reclamar quando o Estado é obrigado a fazer cortes que certamente foram dolorosos (mas alguns são absolutamente necessários, como por exemplo, no caso de muitos aproveitadores medíocres que se apresentam como "produtores culturais", como existem tantos na república dos companheiros - e, por fim, descartar essa concepção simplista que faz de todo intelectual-diplomata, ou de todo diplomata intelectual, um servidor devotado da diplomacia cultural brasileira. As pessoas cuidam, em primeiro lugar, de si mesmas, e isto é simplesmente humano.
Paulo Roberto de Almeida 



Machado de Assis
Machado de Assis

Machado de Assis: Um Instituto que faz falta


Onde está nosso Instituto Machado de Assis (sem diminuir outros escritores)? Não existe. Consta que depende de uma quezília entre o Itamaraty e o Ministério da Cultura, sobre quem seria o pai e a mãe da idéia. Enquanto isso, o Brasil carece de uma política orgânica promotora de sua cultura e de sua língua.

Por Flávio Aguiar, 27 DE ABRIL DE 2012 - 18H00 


Li, entre comovido e entusiasmado, a palestra da presidente Dilma Roussef aos formandos do Instituto Rio Branco, nesta página. Comovido: nossa presidenta, resgatada da nossa história de ditaduras insondáveis, dirige-se ao nosso corpo diplomático. Entusiasmado: ela, vinda desse passado sofrido e sofrível, dirige-se ao futuro da nossa diplomacia.
Mas...
Faltou algo.
A presidente, com toda razão, afirmou que era necessário ter engenheiros, físicos e matemáticos entre os diplomatas. Certeiro. Talvez tenha até esquecido os químicos, os biólogos, e outros cientistas das exatas e das ciências da vida.
Mas e a vida cultural?
A diplomacia brasileira – sou testemunha disso – é das mais brilhantes e reconhecidas internacionalmente, pela formação e pelo desempenho. Mas o esforço da representação internacional pela cultura brasileira ainda deixa a desejar. E eu vivo numa cidade – Berlim – em que a presença cultural da Embaixada Brasileira é amplamente reconhecida e festejada.
Então onde deixa a desejar?
Não vejo um esforço sistemático para promover a cultura brasileira, nem nossa língua, nem nossa já reconhecida presença cultural no mundo.
Em termos de hegemonia internacional, cultura é peça fundamental no jogo de poder e presença. Olhem os Estados Unidos e a China: o primeiro, decadente, a segunda, emergente. Mas há um fator cultural inamovível. Para o bem e para o mal, ninguém quer ser como a China, a não ser os chineses (e com todo o direito); mas os Estados Unidos seguem sendo um modelo de “way of life”. Como eu disse, para o bem e para o mal.
Trocando em miúdos e em graúdos, num mundo em que a Europa afunda em crise – em particular a península Ibérica – olho para ela e fico com inveja dos Institutos Camões e Cervantes.
Onde está nosso Instituto Machado de Assis (sem diminuir outros escritores)? Não existe. Consta que depende de uma quezília entre o Itamaraty e o Ministério da Cultura, sobre quem seria o pai e a mãe da idéia. Enquanto isso, o Brasil carece de uma política orgânica promotora de sua cultura e de sua língua. E num momento em que estudantes pela Europa inteira querem estudar o português do Brasil, cada vez mais.
Tudo bem: louvemos os futuros engenheiros, matemáticos, físicos e vizinhos dessas áreas “exáticas”, que desejadamente se tornarão diplomatas. Mas não esqueçamos do quanto a diplomacia brasileira deve a Martins Pena, Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães, Aluísio Azevedo, Raul Bopp, Erico Verissimo, Guimarães Rosa, Viana Moog e outros e outras.
Não é uma forma de saudosismo.
É também uma forma de pensar o futuro.
Machado de Assis nunca viajou ao exterior. Está na hora dele empreender essa viagem, sob a forma de seu instituto.

*Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim
Fonte: Carta Maior

sábado, 24 de setembro de 2011

Sergio Buarque de Hollanda e as Raizes do Brasil - Elias Thomé Saliba


As complexas Raízes do Brasil

Setenta e cinco anos após a publicação de sua obra mais conhecida, Sérgio Buarque de Hollanda permanece um clássico — no sentido de que ainda não se esgotou o que tem a nos dizer
Por Elias Thomé Saliba*, em Carta Capital
Em bem-humorada crônica de 1929, Mário de Andrade nos conta a respeito do formidável bote de um jacaré comendo um pato, numa lagoa em Belém do Pará. O ligeiro nhoque do animal era comparado àquele conhecimento rápido e imediato do mundo: “Ver pato, saber pato, desejar pato, abocanhar pato, foi tudo uma coisa só”, exclamava o escritor, maravilhado com o poder da verdadeira intuição. No final da crônica, ele lamenta, por contraste, nossa incapacidade de juntar sensação, abstração, vontade e ação, conformando-se com a lentidão do conhecimento humano. Pitoresca, a crônica resumia o dilema da geração de intelectuais e artistas modernistas: repensar o Brasil em todas as suas peculiaridades, definindo-lhe um lugar cultural no contexto dos países civilizados. Mas o caminho para compreender o País seria pela intuição imediata (tão verdadeira quanto o nhoque do jacaré) ou pesquisando pacientemente as fontes de sua cultura e história?
Esse dilema também marcou a primeira fase da trajetória intelectual do historiador Sérgio Buarque de Hollanda, cujo início se atrelou à pesquisa histórica. Até os 25 anos, atuando como jornalista, ele voltou-se, sobretudo, para a crítica literária. Engajado no movimento modernista, o jovem Sérgio Buarque partilhou da mesma inquietação daquela geração de intelectuais, ansiosos por compreender o Brasil. Isto implicava, de qualquer forma, um mergulho na história brasileira, para explicar rapidamente o que era o Brasil e a brasilidade. Publicado em 1936, Raízes do Brasil, o primeiro livro de SBH, integra (ao lado de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr.) o trio clássico de interpretações que, por meio do ensaio sintético, respondem ao anseio de explicar rapidamente o Brasil pela sua história.
As “raízes” do título tiveram na época dois significados. O primeiro era uma referência às estruturas mentais mais profundas que forjaram a história brasileira. O segundo, uma indicação mais sutil, ao fato de que qualquer raiz é feita para ser arrancada. Num estilo eminentemente narrativo que sempre o caracterizou, SBH reconstitui, neste livro, o peso das heranças rurais, nos aspectos sociopolíticos e culturais. As raízes brasileiras germinam no solo profundo da decadência do império português no século XVI, no qual surgem sociedades de economia frágil e capitalismo incipiente, incapazes de gerar uma burguesia modernizadora, apta a impor sua dominação sobre a aristocracia.
Homo brasiliensis: Em lugar da colonização fundada no trato paciente da terra, nas virtudes do trabalho e no esforço comunitário, cria-se aqui uma civilização do ócio e da aventura, que enxerga a terra apenas como um meio de rápida riqueza, sem laços de sociabilidades, os quais, ainda mais entravados pela escravidão, regridem às relações familiares e patriarcais. Surgem daí formas de convívio nas quais predominam a familiaridade, o personalismo e a afetividade, que acabam exportadas para a vida pública e estruturas políticas.
É daí que SBH utiliza a metáfora do homem cordial, que remete, afinal, ao peso das relações familiares. Tal expressão não era um conceito sociológico, referia-se muito mais a certa maneira de ser no tempo. O universo dos afetos domésticos mistura-se com o universo impessoal do Estado. Daí o homo brasiliensis: o inventor de meios e jeitos sutis, sorridente sabotador tinhoso dos obstáculos abstratos e impessoais da lei ou do Estado, que ele contorna através dos contatos pessoais diretos. Daí também uma leitura da história brasileira sensível aos arranjos e conchavos que passam continuamente da esfera privada para a pública, numa mistura quase irreconhecível. As classes dominantes, desde os tempos da colonização, foram moldadas a tradições autoritárias provenientes do absolutismo da Coroa ou de instituições inquisitoriais – almejando apenas o poder imediato e a satisfação de interesses adquiridos.
A prosa do historiador: Essa primeira fase, mais intuitiva e ensaística, da obra de Sérgio Buarque de Hollanda, da qual Raízes do Brasil é exemplar, foi superada quando o historiador, sobretudo após 1946, dedicou-se plenamente às pesquisas históricas e, a partir de 1956, quando se tornou professor da USP. Isto não significa que as questões colocadas no primeiro livro tenham sido abandonadas – pelo contrário, cada um dos temas, apenas indicados em Raízes do Brasil, transformou-se em autêntico programa para novas pesquisas.
SBH possuía um estilo narrativo muito pessoal e sutil de reconstituição e interpretação do passado. Inspirado no filósofo alemão Dilthey, acreditava que a tarefa do historiador era “desocultar” o universal a partir do estudo dos pormenores: as partes é que levariam ao todo e jamais o contrário. Era preciso nos detalhes e hábil em captar com vivacidade pormenores significativos de toda uma época: o dormir em redes, o sentido simbólico dos calçados entre os bandeirantes paulistas, as “veredas de pé posto” que os desbravadores aprenderam com os índios e a facilidade com que os colonos adotaram dos índios as iguarias, os métodos de cura e até o arco e a flecha.
Na sua erudição e memória prodigiosa de historiador, Sérgio parecia já dispor da completa árvore genealógica da figura política, tão logo ela se introduzia na narrativa. No país do compadrio, do familismo e do nepotismo, todas as figuras já aparecem inteiramente nuas, despidas de quaisquer idealismos políticos. Mas na sua prosa de historiador não há nada de estritamente biográfico e analítico: ele está sempre contando uma história e os personagens vão brotando naturalmente como cogumelos.
Também nos seus ensaios sobre a história política do País – notadamente aqueles relacionados à passagem da Monarquia à República – reitera-se um cenário que a narrativa do historiador vai progressivamente desmistificando: no alto, um governo absoluto que não assume sequer a sua fisionomia, mascarando-se nas falsas instituições liberais. No meio, os deputados, conservadores ou liberais, lutando por manter-se nos cargos, “atiravam uns e outros contra a sombra do imperador” recorrendo, quando muito, a um “liberalismo de emergência”. Na imensa base, o vazio político gerado pela completa ausência da sociedade civil: os “figurantes mudos” da história brasileira, manietados pelo escravismo e pela ética do favor – dois graníticos blocos de pedra a emparedar quaisquer possibilidades de organização.
Raízes fincadas: Setenta e cinco anos depois da publicação daquele primeiro livro intuitivo de SBH, teríamos, afinal, arrancado todas essas raízes? Como algumas das passagens do livro ainda iluminam, de forma inesperada, muitos episódios da atualidade brasileira, é provável que parte da resposta seja negativa. O personalismo e uma ética de fundo emocional ainda podem ser notados no cenário atual. A persistência do uso costumeiro de facções familiares e de particularismos dificulta a consolidação do Estado e o domínio das leis gerais. O personalismo exagerado, historicamente derivado do peso das relações familiares e da fraqueza das instituições públicas, ainda continua imperando no Brasil recente. Entra governo, sai governo, acabamos nos surpreendendo com a endêmica incapacidade de tratar a coisa pública de forma impessoal. Continuamos tendo receio da distância provocada pela impessoalidade da lei e das instituições. A síndrome de Santa Terezinha (a santa francesa Teresa de Lisieux, único país no qual ela virou diminutivo) continua vigente, até nos apelidos mais comuns.
“Se quiser entender o passado, o bom historiador terá de se esforçar para uma boa inteligência do tempo presente”, escreveu Sérgio Buarque de Hollanda, em 1950. Sem ser completa, era uma descrição quase perfeita da trajetória intelectual de um historiador que sempre viu o estudo do passado fortemente relacionado ao presente. Com um olhar sempre voltado para a visão de uma sociedade aberta no tempo presente, sua obra pode ser definida como um esforço para reconstituir as tensões entre a tradição e a mudança histórica e um mergulho libertário no passado brasileiro. Nesse sentido, seus livros continuam sendo “clássicos”, pois, afinal, são aqueles que – como na definição de Italo Calvino – “nunca terminaram de dizer o que tinham para dizer”.
Elias Thomé Saliba é Professor do Departamento de História da USP