Rupturas nas relações internacionais no contexto do triumvirato imperial

Será?, ano xiv, n. 684, 7/11/2025

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

As relações internacionais nunca foram um arremedo da famosa paz kantiana, pela simples razão de que o mundo nunca exibiu uma maioria de Estados republicanos, ou seja, governos baseados numa ordem legal fundada em regras aceitas por todos, a partir de regimes constitucionais estáveis, exibindo compromissos aquiescentes aos tratados internacionais. O mais avançado deles, a Carta das Nações Unidas, preservou o sistema oligárquico que é típico da maioria quase absoluta das nações organizadas politicamente, e que foi, no plano mundial, parcialmente controlado, justamente, pelos cinco supostos garantidores da ordem internacional, mas que a violaram mais frequentemente, mediante ações unilaterais de cunho tradicionalmente imperial, isto é, a manutenção de zonas de influência e de dominação econômica, política e militar. Outros compromissos relevantes, como por exemplo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, são solenemente ignorados por Estados, geralmente autoritários, que contornam impunemente seus principais dispositivos.

Não obstante, durante aproximadamente meio século foram poucas as tensões diretas entre as grandes potências durante a primeira Guerra Fria, a exemplo de episódios como o da crise dos mísseis soviéticos em Cuba (1962), a instalação de mísseis balísticos dos dois lados da “Cortina de Ferro” nos anos 1980, a guerra do Vietnã, além dos tratados de limitação de armas de alcance estratégico. Sempre foram mais comuns, justamente, as guerras por procuração, ou ações unilaterais mal calculadas, como a invasão soviética do Afeganistão (1979) ou a de Bush filho guerra contra o regime de Saddam Hussein (2003), que criou um desastre ainda não de todo equacionado no Oriente Médio. No entanto, cabe demarcar alguns episódios que sinalizaram mudanças graduais no equilíbrio entre as grandes potências.

No início dos anos 1970, Kissinger e Nixon alteraram a balança de poder, ao fazer uma aliança tácita com a China de Mao contra o inimigo comum: a União Soviética. A “aliança” perdurou até a incorporação da China de Deng ao sistema multilateral de comércio, via adesão ao Gatt e seu ingresso na OMC, em 2001 (depois de 14 anos de negociações). Os falcões de Washington imaginavam que, com isso, a China evoluiria para um sistema político de tipo liberal. Ao mesmo tempo, eles implementaram contra ela a mesma política de contenção que já tinha sido feita com relação à União Soviética durante a Guerra Fria, de 1947 a 1991. O impossível containment da China teve um lado trágico, que foi o bombardeio americano da embaixada chinesa em Belgrado, no quadro da contenção da Sérvia na sua política repressiva contra o Kossovo, em 1999. A China vinha percebendo que, a despeito de facilitar seu acesso aos organismos multilaterais da ordem liberal, os EUA pretendiam ditar condições, que por acaso se confundiam com a manutenção de sua própria hegemonia.

Foi quando ascendeu na política russa um antigo quadro do KGB, Putin, decidido a restaurar o que afirmou, em discurso na Dieta russa em 2005, ter sido a maior “tragédia geopolítica do século XX”, para ele a “dissolução da União Soviética” Em 2007, estabeleceu sua visão das relações internacionais, em um discurso na conferência sobre segurança de Munique, em torno de uma “nova ordem global multipolar”. China e Rússia já tinham se aproximado no âmbito da Organização de Cooperação de Xangai, criada por iniciativa da China em 2001, para combater o terrorismo, o separatismo e o extremismo na região, compreendendo, inicialmente, a própria China, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Uzbequistão; aderiram mais tarde a Índia e o Paquistão (2017), o Irã (2023) e a Bielorrússia (2024), constituindo, assim, uma das maiores organizações regionais do mundo em termos de área e população. Segundo seus próprios promotores, a OCX busca promover uma governança mundial alternativa e atua como um contrapeso a blocos ocidentais, como a OTAN. Em paralelo pode-se colocar o BRIC (2006-2009), com Brasil, Rússia, Índia e China, que incorporou a África do Sul em 2011, passando a ser BRICS, mais recentemente ampliado para onze membros efetivos e outros nove associados no BRICS+.

Os eventos politicamente mais impactantes no sentido de uma nova turbulência nas relações internacionais foram a invasão por tropas russas de duas províncias setentrionais da Georgia em 2008, e da Transnístria, na Moldova em 2010, assim como a invasão e anexação ilegais da península ucraniana da Crimeia em 2014, o que justamente resultou na expulsão da Rússia do G8 – formado politicamente em 1998 – e na introdução de sanções econômicas e diplomáticas por diversos países ocidentais (mas não pelo Brasil, cabe ressaltar). Pode-se dizer que foi Putin quem começou o desmantelamento do sistema político multilateral do pós-guerra, que teve desenvolvimentos surpreendentes a partir de 2022, quando teve início, em fevereiro, o anúncio da “aliança sem limites” entre a China e a Rússia, seguida, logo depois, pela invasão da Ucrânia por esta última, numa guerra de agressão claramente violadora do principal artigo da Carta da ONU, a guerra de agressão justamente.

Novas e mais duras sanções, conformes à letra e o espírito da Carta da ONU, foram implementadas por grande número de países contra a Rússia, embora o Brasil não as acate, pela justificativa formal de que não são multilaterais (em virtude do veto abusivo pelo membro agressor. De 2008 até o presente, o sistema internacional enfrenta as mais graves rupturas da ordem mundial, chamada desdenhosamente de “ocidental” por parte daqueles que pretendem inaugurar uma mal definida “nova ordem global multilateral”, anunciada por Putin e Xi Jinping, e prontamente aceita pelo presidente Lula (mas não pela diplomacia profissional brasileira, que também não foi responsável, esclareça-se, pelas ampliações sucessivas do BRIC até o atual BRICS+).

Depois dessas rupturas político-militares da ordem internacional, começa uma ruptura paralela da ordem econômica mundial, por iniciativa de Trump 2. Este começa num tom desafiador, que se impõe de modo bem mais amplo do que quando de seu primeiro mandato. O gesto mais espetacular, depois de ensaios caóticos, foi o “Dia da Liberação”, em abril de 2025, quando tem início sua “guerra de agressão tarifária”, consistindo na recusa da secular cláusula de nação mais favorecida e no desmantelamento tentativo do sistema multilateral de comércio, tal como estabelecido a partir de 1947 e institucionalizado em 1994.

Seu unilateralismo agressivo se desdobra igualmente no apoio a Israel, na ofensiva para “liberar” a Faixa de Gaza do Hamas, além do brutal recurso aberto à intimidação militar contra supostos inimigos dos EUA, entre estes o Irã e a Venezuela.  O Irã já foi objeto de um “bombardeio corretivo”, ao passo que a Venezuela está em compasso de espera por algum ataque direto. Para responder ao projeto de uma “nova ordem global multipolar”, vagamente apresentada por seus dois principais contendores, Trump ainda não formalizou qualquer projeto seu, tendente a uma nova ordem global fundada numa “Pax Americana 2.0”.

Não creio que exista qualquer proposta aceitável para a construção de uma nova ordem liberal internacional, quando o que Trump visa, prioritariamente, são os seus próprios negócios e os da sua família. Por outro lado, as ações de Putin e de Xi Jinping podem corresponder a uma “certa ideia” do multilateralismo, mas unicamente do ponto de vista dos interesses nacionais dos dois Estados, que por sinal não especificaram, até o momento, a qual tipo de “nova ordem global multipolar” se refere a proposta feita por ambos, que seria, previsivelmente, modificadora da presente ordem política e econômica internacional.

Em resumo, não existe bola de cristal disponível para saber como vai evoluir a atual desordem internacional, em virtude das várias incertezas e dos imponderáveis que cercam as atitudes dos “fabricantes” de guerra, dos aventureiros expansionistas, dos “contempladores” relativamente impotentes em face dos três grandes – que são as potências médias, incluindo aqui a União Europeia, associados do G7 (Canadá e Japão), certamente a Índia e o Brasil e alguns poucos do tal de Sul Global, inexistente na prática – em face das várias crises e guerras em curso, já presentes na agenda internacional: (a) a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia; (b) a “limpeza” da Faixa de Gaza e o condomínio incerto entre Trump e Netanyahu em torno do futuro de todo o Oriente Próximo; (c) o ainda mais incerto futuro de Taiwan, entre ameaças chinesas e o duvidoso engajamento dos EUA em sua defesa.

Outras aventuras podem se apresentar no que ainda resta do mandato do candidato a imperador mundial (que só deve durar até 2028), talvez em 2027 (que corresponde ao final hipotético do terceiro mandato do novo Imperador do Meio) e não se sabe até quando no caso do neoczar, que não consegue terminar sua Operação Militar Especial, planejada para ser breve. Nada disso entra no multilateralismo, pois tanto a ONU quanto a OMC, assim como o próprio diálogo entre esses dirigentes imperiais, se encontram num estado de paralisia construída precipuamente por eles mesmos, que não possuem nenhuma agenda consensual para fazer funcionar a presente ordem ou qualquer outra que possam acordar entre eles.

Imagino que o vaidoso Trump, em sua ignorante megalomania, adoraria dispor de um retrato similar, se não semelhante, à famosa foto do encontro entre os três grandes em fevereiro de 1945 em Yalta: Churchill, Roosevelt e Stalin, trocando o clichê por ele próprio, ao lado de Putin e Xi. Não creio que este último toparia uma nova conferência a três para dividir o mundo, e os seus assuntos preferenciais, numa paridade totalmente irrealista, na ausência de uma crise terminal da presente ordem mundial.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 5104, 2 outubro 2025, 4 p.