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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Casa Stefan Zweig lança o “Dicionário dos Refugiados do Nazifascismo no Brasil” - Euler de França Belém

 Euler de França Belém 

Casa Stefan Zweig lança o “Dicionário dos Refugiados do Nazifascismo no Brasil”

Livro cita Ziembinski, Edoardo de Guarnieri, Georges Bernanos, Otto Maria Carpeaux, Frans Krajcberg, Ida Gomes, Berta Loran, Fayga Ostrower, Fritz Oliven, Stefan Zweig

Leitores brasileiros “escalaram” o romance “A Montanha Mágica”, do escritor alemão Thomas Mann (filho de uma brasileira), aprenderam a pensar sobre os tempos modernos com “Massa e Poder”, do filósofo e escritor búlgaro (de expressão alemã) Elias Canetti graças à perícia do tradutor alemão Herbert Moritz Caro e ficaram bem-informados sobre a literatura transnacional devido a competência e ao enciclopedismo do austríaco Otto Maria Carpeaux. O húngaro Paulo Rónai trouxe para o deleite patropi a literatura da Hungria, de outros países e, inclusive, a obra completa do escritor francês Honoré de Balzac. O alemão Anatol Rosenfeld se tornou um crítico notável e um guia cultural seguro, dada sua formação filosófica e literária rigorosa. Stefan Zweig, ao se mudar para o Brasil, notou que se tratava do “país do futuro”. Ante o temer da expansão nazista, se matou no país do fascista Plínio Salgado, em 1942, aos 60 anos. Vários judeus contribuíram para robustecer as artes e a ciência no Brasil.

Stefan Zweig e Lotte, sua mulher: ambos se mataram no Brasil | Foto: Reprodução

Há um livro valioso que conta a história dos que fugiram da serpente nazista para o Brasil, a partir de 1933, quando Adolf Hitler, um austríaco, assumiu o comando da Alemanha, e, surpreendentemente, pela via legal. Trata-se de “Exílio e Literatura — Escritores de Fala Alemã Durante a Época do Nazismo” (Edusp, 291 páginas, tradução de Karola Zimber), de Izabela Maria Furtado Kestler.

Otto Maria Carpeaux: uma ponte da cultura universal que muito beneficiou o leitor brasileiro | Foto: Reprodução

Agora surge um livro que, aparentemente, será igualmente valioso (e mais amplo): “Dicionário dos Refugiados do Nazifascismo no Brasil” (Casa Stefan Zweig, 832 páginas), edição de Israel Beloch, com o apoio de Fábio Koifman, Kristina Michaelis e mais de dez pesquisadores.

Paulo Rónai: judeu, perseguido pelo nazismo, veio para o Brasil | Foto: Reprodução

O livro conta a história de 300 pessoas que, para escapar do nazifascismo, fugiram para o Brasil e aqui se destacaram em vários setores.

Ida Gomes: atriz

A obra lista, entre outros, Fayga Ostrower, Fritz Oliven, Stefan Zweig, Nydia Lícia (atriz), Ida Gomes (Ida Szafran, atriz), Berta Loran (atriz), Edoardo de Guarnieri (músico, pai de Gianfrancesco Guarnieri — este chegou ao Brasil com 2 anos de idade e se tornou ator e diretor), Louis Jouvet, Ziembinski (Zbigniew Marian), Georges Bernanos, Otto Maria Carpeaux, Anatol Rosenfeld, Herbert Caro, Frans Krajcberg, Paulo Rónai.

Herbert Caro: tradutor de Thomas Mann e Elias Canetti | Foto: Reprodução

A obra nasce como referência incontornável. Porque, se havia informação dispersa, agora há informações concentradas sobre os refugiados.

Berta Loran: atriz | Foto: Reprodução

O livro, que já está à venda nas livrarias — por 118 reais —, pode abrir as portas para outras obras sobre o tema. Porque, a rigor, muito mais de 300 judeus — e não judeus — fugiram para o Brasil para escapar do totalitarismo nazista.

terça-feira, 8 de junho de 2021

O Império que queria ser único no mundo, e eterno - Kevin Gallagher, entrevista (O Globo)

‘Os EUA gostam de culpar outros países por seus problemas’, diz especialista americano sobre disputa com China

Kevin Gallagher, que participa nesta segunda de debate na UFRJ, diz que seu país precisa aumentar investimento interno em vez de tentar impedir ascensão chinesa e aponta como a rivalidade entre as duas potências pode prejudicar o Brasil

André Duchiade

O Globo, 07/06/2021 - 04:30

Diretor do Centro de Políticas de Desenvolvimento Global da Universidade de Boston, Kevin Gallagher ocupa uma posição cada vez mais rara: americano com especialização na China, ao mesmo tempo em que é um defensor do sistema multilateral e das instituições democráticas, também se mantém crítico da postura de seu país em relação a Pequim. Com experiência em desenvolvimento econômico, política comercial, política ambiental internacional e América Latina, ele considera o comportamento agressivo americano como arriscado do ponto de vista da economia global. Aproveitando a sua participação nesta segunda, às 10h, em um painel ao lado de André Lara Resende e Mariana Mazzucato, dentro da conferência Amanhãs Desejáveis, organizada pela UFRJ, Gallagher conversou com o GLOBO sobre os riscos que a rivalidade entre os países podem acarretar, inclusive para o Brasil.

Em vistas das mobilizações nacionais contra a pandemia, a crise provocada pela Covid-19 também é, em larga medida, uma crise relacionada à dívida. Como o senhor avalia a resposta global para alívio das dívidas até agora?

Se você for um dos países mais pobres do mundo, não é tão ruim. Por outro lado, os países de renda média foram abandonados pelo sistema global. O esquema do G-20 para a iniciativa de suspensão do serviço da dívida exclui todos os países de renda média, e a maior parte da dívida está nestes países. Se você está no Brasil, na Colômbia ou na África do Sul, a única coisa que pode fazer é recorrer ao FMI. E não preciso dizer a ninguém do Brasil como isso não é lá muito bom, para dizer o mínimo.

Quais podem ser as consequências desse abandono?

Não quero dizer nada de ruim sobre os países pobres. Mas, quando os países de renda média têm crises, há maior chance de elas se tornarem sistêmicas. Há algumas décadas, quando o Brasil teve uma crise, ela foi para a Argentina. Depois pode se espalhar para a Rússia, e se mover pelo mundo. Enquanto, com todo o respeito ao Haiti, mas, se houver uma crise financeira lá, ela não sairá do país. E eu acho que o sistema multilateral abandonou os países de renda média. Em parte, por causa da rivalidade entre EUA e China — porque, obviamente, seria necessário conceder alguns benefícios e criar algumas políticas que favoreceriam a China, e há um eleitorado que não quer isso.

Apesar da competição entre Washington e Pequim, Biden com frequência afirma que os EUA estão prontos para cooperar com a China, sobretudo contra a mudança climática. Como avalia essa cooperação até agora?

Em relação ao governo Trump, foi uma mudança significativa. Com Trump, qualquer coisa que a China fizesse era terrível, enquanto o governo Biden percebe que há algumas coisas nas quais as duas maiores economias do mundo precisam cooperar. No entanto, o Gabinete de Biden tem muitas cabeças, e há uma batalha interna. Só alguns setores do governo entendem que áreas como crises financeiras, comércio, mudança climática,  e a pandemia exigem que trabalhem juntos. E é muito cedo para fazer uma avaliação definitiva. De concreto, não há nada que possa apontar, exceto para uma espécie de grupo de trabalho sobre as mudanças climáticas que será montado. Espero que seja um sinal de cooperação.

Em quem o senhor pensa quando diz que há setores dispostos a cooperar? O primeiro encontro entre os chefes das diplomacias foi um desastre marcado por trocas de insultos.

Sim, a cúpula do Alasca foi embaraçosa, em função do excesso de arrogância da parte dos americanos. Você não pode simplesmente abandonar o sistema multilateral por quatro anos e depois voltar e pensar que pode simplesmente dizer a outros países o que fazer. Penso em John Kerry, o enviado especial para mudança climática. O Departamento de Estado está menos comprometido [com a cooperação]. O grande problema a ser observado é como o escritório do representante de Comércio dos Estados Unidos vai reagir. Ainda não houve novas medidas, há um momento de paz no conflito comercial EUA-China. Mas também não houve nenhuma resolução. E isso afeta um país como o Brasil de maneira direta e imediata.

Como?

As exportações brasileiras para a China, como aço e minério de ferro, viram produtos que são vendidos para os EUA. Portanto, nesse nível, se a guerra comercial não diminuir, isso pode ter um impacto negativo sobre o Brasil. Mas, por outro lado, o Brasil se beneficiou um pouco porque os Estados Unidos já foram o maior exportador de soja para a China, e o Brasil conseguiu pegar um pouco delas para si. Mas esses são os impactos diretos. Quando os Estados Unidos e a China estão em um grande conflito comercial na comunidade de investimento global, todos ficam nervosos, e isso realmente perturba os mercados financeiros, o que pode levar à fuga de capitais. Fora isso, há esse projeto de lei do senador Bob Menendez, apelidado de “a Lei da Guerra Fria”. Com ele, um aumento de capital para o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) só seria aprovado se os países começassem a considerar a redução de seus financiamentos da China

Quais seriam os efeitos de tal medida?

De acordo com estimativas de meu centro, nas últimas duas décadas, os bancos de desenvolvimento chineses forneceram mais financiamento para os países latino-americanos, especialmente o Brasil, do que o BID. Ou seja,  poderia acarretar em uma perda líquida nos fluxos financeiros.

Como especialista em China americano, como o senhor vê este conflito?

Eu não minimizo algumas das coisas que a China tem feito. Penso que Xi Jinping consolidou seu regime de maneira autoritária, e não apoio o que tem sido feito em Hong Kong ou contra os uigures. Mas não é esta a razão pela qual há tanta desigualdade e populismo nos Estados Unidos. Isto acontece porque os Estados Unidos não têm investido em seu próprio povo. E os Estados Unidos sempre gostam de culpar outros países por seus problemas. Não deveria ser nenhuma surpresa se a China tem investido 40% do PIB em sua economia por 40 anos, enquanto os Estados Unidos não o fazem, que o país que investe se saia melhor. Não se pode culpar a China por os Estados Unidos não terem investido em si. Agora temos uma competição,  e ela se dá da pior maneira. Em vez de tentarmos nos tornar competitivos, buscamos bloquear a China do resto do mundo. Isso é perigoso para a economia global.

https://oglobo.globo.com/mundo/os-eua-gostam-de-culpar-outros-paises-por-seus-problemas-diz-especialista-americano-sobre-disputa-com-china-25048798


Depois do desgoverno bolsolavista no Itamaraty, agora a politicagem da indústria religiosa da IURD? - Lucas Valença e Jamil Chade (UOL)

 Quando se pensava que o Itamaraty, depois de 2 anos e 3 meses de desgoverno completo sob os pés do chanceler acidental, estava finalmente livre da politicagem de baixa qualidade protagonizada pelos aploprados bolsonaristas, eis que de repente, não mais que de repente, surge uma BOMBA deste tipo:


Universal tenta emplacar Crivella como embaixador na África do Sul
Lucas Valença e Jamil Chade
Do UOL, em Brasília e em Genebra

07/06/2021 14h46Atualizada em 07/06/2021 14h46

Em um encontro recente com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), líderes religiosos ligados à Igreja Universal do Reino de Deus sugeriram o nome do ex-prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella para a embaixada do Brasil na África do Sul. Os religiosos enfrentam há meses problemas no continente, em especial em Angola, que tem denunciado pastores brasileiros por lavagem de dinheiro.

No dia 27 de maio um telefonema vindo da cúpula do Ministério das Relações Exteriores sinalizou que o político carioca, que é sobrinho do bispo Edir Macedo, poderá ser indicado para assumir a função no exterior, segundo disseram ao UOL fontes próximas ao líder da igreja e ao ex-prefeito.

A indicação de Crivella a um país africano é entendida por um religioso ligado a Macedo como necessária para resolver o conflito que a Universal vem enfrentando desde o fim de 2019 no continente. À época mais de 300 pastores angolanos se posicionaram contra a direção da igreja no Brasil, o que motivou uma série de denúncias contra membros brasileiros da Universal no país africano.

No entanto, líderes da Universal avaliam que, caso nada seja feito, a igreja poderá perder algo em torno de 50 pastores com influência no continente.

Na avaliação dos envolvidos na negociação, a ida do político a uma embaixada importante como a da capital da África do Sul, Pretória, facilitaria o contato e o monitoramento da igreja com relação à situação não só em Angola, mas em outros países do continente, mesmo não estando necessariamente no país do conflito.

Crise e irritação de Edir Macedo

A perda de espaço da igreja na África tem irritado Edir Macedo, líder e fundador da Universal, que vem pedindo ao governo de Jair Bolsonaro para que negocie uma solução diplomática eficaz.

Integrantes ligados ao bispo se reuniram com Bolsonaro no fim de maio, em um encontro que não consta na agenda oficial, e chegaram a ameaçar romper o apoio ao governo.

Eles, então, sugeriram o nome de Crivella ao cargo diplomático, segundo relatou ao UOL um dos religiosos presentes na ocasião.

Apoio em 2022

A pressão dos bispos pela embaixada obrigou o governo a se mexer. O Planalto quer manter o apoio integral da Igreja para as eleições de 2022.

Nos bastidores, a avaliação de articuladores próximos a Macedo é que Crivella possui "bom trânsito" na África, construído ainda durante os governos petistas, quando o ex-prefeito era um bispo missionário da Universal e ministro da Pesca (na gestão de Dilma Rousseff).

Mas uma eventual nomeação romperia uma longa tradição do Itamaraty de ocupar seus postos no exterior com pessoas da carreira diplomática.

A escolha, se vingar, ainda dependeria de uma sabatina no Senado. Mas a proposta fez eclodir uma verdadeira revolta dentro do Itamaraty. Quadros do ministério se mostram inconformados com o uso do serviço diplomático para atender a interesses privados.

Para completar, em Pretória, o Brasil é representado por Sérgio Danese, um dos embaixadores mais conceituados no Itamaraty. Retirá-lo para dar lugar a Crivella seria ainda um sinal de que o governo abriria mão do profissionalismo da diplomacia nacional.

Oficialmente, a Igreja Universal do Reino de Deus diz que "não tem qualquer relação com o assunto", de acordo com nota enviada ao UOL.

O ex-prefeito Marcelo Crivella foi procurado, mas não atendeu a reportagem. O UOL também procurou o Ministério das Relações Exteriores, que também não respondeu aos questionamentos até a publicação deste texto.

https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/06/07/lideres-da-universal-tentam-emplacar-crivella-como-embaixador-na-africa.htm

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Nacionalismo, passado e presente - Paulo Roberto de Almeida (BOCA, Boletim de Conjuntura)

 

OLETIM DE CONJUNTURA (BOCA): http://ioles.com.br/boca
PUBLICADO: 1o Lote de textos da edição de JUNHO de 2021!

NACIONALISMO, PASSADO E PRESENTE

Paulo Roberto de Almeida

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Paulo Roberto de Almeida

Resumo

O presente ensaio traz digressões sobre o fenômeno do nacionalismo, no contexto mundial e nas suas manifestações brasileiras. O sentimento nacionalismo costuma vir associado a posturas agressivas, restritivas, protecionistas. No caso brasileiro, sob o governo brasileiro, adotou a forma subserviente da submissão a uma potência estrangeira.

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Como Citar
ALMEIDA, P. R. de. NACIONALISMO, PASSADO E PRESENTE. Boletim de Conjuntura (BOCA), Boa Vista, v. 6, n. 18, p. 35–39, 2021. DOI: 10.5281/zenodo.4891020. Disponível em: https://revista.ioles.com.br/boca/index.php/revista/article/view/352. Acesso em: 8 jun. 2021.

Nacionalismo, passado e presente

 

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.compralmeida@me.com)

 

 

Jorge Luis Borges: “O patriotismo é a menos perspicaz das paixões”

Filósofo Sêneca (Roma): “Pátria é qualquer lugar onde se está bem”

 

 

O nacionalismo emerge paralelamente à formação e consolidação dos Estados nacionais contemporâneos, entre os séculos XVI e XIX, quando ele irrompe de forma mais determinante, nas guerras napoleônicas, por exemplo, quando a França revolucionária, do regime republicano do Terror, é invadida por potências estrangeiras, monarquias absolutistas que queriam restabelecer o poder dos Bourbons, derrocado pelo Diretório. As forças nacionais do povo francês conseguem derrotar essas monarquias e provocam uma mudança radical no cenário político europeu.

Mais adiante serão os movimentos nacionalistas na Itália e na Alemanha que levarão esses povos, divididos entre numerosas soberanias locais ou estrangeiras, a se constituírem como Estados independentes e unificados, ambos simultaneamente, em torno de 1870. A Alemanha de Bismarck representa um triunfo da força montante do nacionalismo, capaz de impor uma terrível derrota à França, que sinaliza a derrocada do Império de Napoleão Terceiro e o início da Terceira República, sempre animada do desejo de revanche contra a Alemanha e voltada para conquistar o território perdido da Alsácia-Lorena, na margem esquerda do rio Reno. O nacionalismo balcânico, contra a dominação do Império Austro-Húngaro, é também a força que vai precipitar a Grande Guerra, que provocou a maior devastação até então conhecida na história das guerras: milhões de mortos. 

A partir do século XX se observa a consolidação das identidades nacionais, e portanto dos nacionalismos, mas também, em diversos continentes, dos separatismos, inclusive excludentes, muitas vezes acompanhado de terrorismo contra o poder central, ou outras etnias ou povos do mesmo Estado. Foi o caso, por exemplo, das diversas etnias dos Balcãs, que terminaram por fragmentar, fracionar, proclamar as autonomias locais, eliminando aquela federação que já tinha sido uma monarquia e, depois da Segunda Guerra Mundial, uma república socialista. 

A América Latina também conheceu o mesmo fenômeno, aliás desde as independências nas primeiras décadas do século XIX, quando as particularidades locais, elites empenhadas no estabelecimento de um poder oligárquico de setores dominantes, sempre diferentes de um canto a outro dos quatro grandes vice-reinados do império espanhol das Américas acabaram resultando na formação de uma dúzia de Estados nacionais, geralmente sob o domínio de caudilhos militares ou grandes latifundiários. O Brasil, em função da transplantação da corte portuguesa que fugiu da invasão napoleônica em 1807, logrou preservar sua unidade, não sem diversas tentativas separatistas ou revoltas regionais na transição do primeiro para o segundo reinado do novo Estado independente. 

O Brasil da primeira metade do século XIX não era, justamente, uma unidade nacional bem configura, inclusive porque as dificuldades de comunicações entre as diferentes partes do território da maior colônia portuguesa faziam com que as diversas regiões se vinculassem diretamente com a metrópole do que com o vice-reinado estabelecido no Rio de Janeiro. A centralização da monarquia unitária vai ser realizada basicamente no Segundo Reinado mas o sentimento de identidade nacional tinha sido paradoxalmente impulsionado pela tentativa de recolonização da parte americana do Reino Unido pelas Cortes de Lisboa, o que acabou precipitando a independência. O legado português dos tratados desiguais de 1810, prorrogados na independência, mas atenuados pela Assembleia Geral do Primeiro Reinado, acabou reforçando o nascente nacionalismo, primeiro contra a arrogância do império britânico, depois contra o estrangeiro de modo geral.

A República vai consolidar esse nacionalismo, o que é evidenciado na recuperação da figura mítica de Tiradentes, transformado em herói nacional, ademais dos primeiros projetos de construção de uma economia nacional, representados pelo nacionalismo tarifário ainda mais reforçado no regime republicano e pela Lei do Similar Nacional. Mas é a partir dos anos 1930, especificamente com o Estado Novo, que preside verdadeiramente a uma nova centralização do sistema político, que tinha sido excessivamente federalizado na primeira constituição republicana. As bandeiras estaduais são queimadas simbolicamente pelo ditador e começa uma era de exaltação nacionalista até excessiva. 

O regime militar de 1964 também reforça esse sentimento, representado pelo dístico até agressivo durante a fase de protestos contra a ditadura: “Brasil, ame-o ou deixe-o!”. O Brasil é nacionalista como muitos outros países o são, mas certo complexo de inferioridade, o chamado sentimento de “vira-lata”, derivado da consciência do atraso do país, do Jeca Tatu, da incultura e do analfabetismo, das doenças endêmicas, da falta de indústria, acaba se transferindo para outras manifestações de nacionalismo, no esporte, na música, em certa rejeição do estrangeiro. Somos dependentes do capital estrangeiro, sempre fomos, desde a independência, mas assim como amamos o capital estrangeiro, detestamos o capitalista estrangeiro, aquele que vem com certa superioridade sobre os produtos nacionais e, pecado mortal, transfere seus lucros para o exterior. Sempre nos revoltamos contra a exploração estrangeira, o que se manifestou num forte nacionalismo constitucional, desde os anos 1930, diversas leis excluindo os estrangeiros da exploração de recursos nacionais e nos serviços de mídia e de telecomunicações, em leis de limitação da remessa de lucros ao exterior. 

Ser chamado de entreguista, desde os anos 1950, representava quase ser crucificado em praça pública: o diplomata e economista Roberto Campos, que se manifestava publicamente pelos investimentos diretos estrangeiros na economia nacional, teve seu nome mudado depreciativamente para Bob Fields, e sempre foi desprezado pelos chamados economistas desenvolvimentistas, assim como pelas esquerdas de forma geral. Já com a redemocratização de 1985, a Constituição de 1988 consagrou vários aspectos desse nacionalismo meio ingênuo e bastante irracional, assim como diversos monopólios estatais que tiveram depois de serem limitados por emendas constitucionais liberalizantes. 

Em certos casos, o nacionalismo exacerbado acaba caindo no chamado chauvinismo, ou seja, na exaltação do que é nacional, independentemente de sua qualidade ou caráter benéfico para a sociedade; em outros ele acaba resvalando para o separatismo, pouco pronunciado no Brasil – com maior grau talvez no extremo sul –, mas extremamente frequente na Europa, seja na Espanha, seja nos já mencionados Balcãs ou em outras formações da Europa central e oriental (ainda vista na separação da Tchecoslováquia, por exemplo). Novamente há o risco de cair no terrorismo, como visto no país basco ou mesmo no fenômeno supremacista branco, nos Estados Unidos, dirigido tanto contra os negros, como contra imigrantes asiáticos, latinos e outros exóticos. Na Europa, o anti-islamismo se reforçou no período recente, com as imigrações maciças de africanos ou médio-orientais e asiáticos, e até repercutiu no terreno político, com o fortalecimento de partidos políticos de direita, não raramente xenófobos. 

De forma geral, o sentimento nacionalista pode ter estado associado a sentimentos agressivos, expansionistas e militaristas, que levaram o continente europeu, mas também várias regiões africanas e asiáticas a guerras civis ou a conflitos interestatais. O remédio contra esses sentimentos é a educação democrática, que valoriza o indivíduo, as liberdades e que aceita as diferenças de quaisquer tipos. Mesmo em suas formas não violentas, o nacionalismo pode ser excludente e acaba sendo, como no fenômeno ideológico da alt-right americana, anti-globalista e anti-multilateralista, o que é simplesmente ridículo e contra-producente, tendo em conta a intensa interdependência criada pela globalização. Esse fenômeno, bem visível no governo Trump, acabou por reforçar o nacionalismo chinês, o que é deplorável, se considerarmos que os dois grandes países são as verdadeiras locomotivas da economia mundial, que poderiam impulsionar enormemente o desenvolvimento dos países mais pobres se estimulassem plenamente suas complementaridades recíprocas e a atuação conjunta em projetos de cooperação ao desenvolvimento. 

O nacionalismo brasileiro não parece derivar de fenômenos similares ocorridos em outros países, embora alguns dos movimentos nacionalistas possam ter sido parcialmente influenciados por fenômenos ou movimentos que também estavam em curso em outras sociedades contemporaneamente. Refiro-me, por exemplo, ao futurismo italiano, do início do século XX, que se manifestou como modernismo em outras sociedades, e que acabou influenciando os “modernistas” brasileiros que organizaram a Semana de Arte Moderna em fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de S. Paulo: a despeito de muitos desses intelectuais terem referências dos movimentos modernistas europeus, eles pertenciam indiscutivelmente a uma vertente nacionalista. Outra tendência nacionalista que se desenvolve inclusive com base na caminhada europeia para o fascismo é, no caso do Brasil, o integralismo, descrito em certa literatura historiográfica brasileira (Hélgio Trindade, por exemplo) como o “fascismo brasileiro”, ou pertencente à mesma família europeia. Na verdade, o integralismo de Plinio Salgado era profundamente nacionalista, partindo até de grito de saudação: “Anauê”!

O regime Vargas, em especial a partir do Estado Novo, se apresentou como basicamente nacionalista, o que também foi uma característica do regime militar de 1964. Ambos os nacionalismos tinham raízes totalmente nacionais, e não respondiam a impulsos ou a manifestações internacionais importadas. Diferente é o caso do “regime” Bolsonaro– o conceito de regime foi usado pelo Departamento de Estado, para referir-se ao governo Bolsonaro, e sabemos que essa noção de regime tem conotações essencialmente negativas, do ponto de vista americano, usado para as ditaduras em geral – que pretendeu se afirmar como nacional e nacionalista, defensor da soberania, mas buscou seguir a chamada alt-right, ou seja, os ultraconservadores americanos; na verdade, ele alienou completamente a soberania nacional brasileira numa adesão aos interesses nacionais dos Estados Unidos, especialmente numa submissão abjeta ao presidente Trump.

Uma das peculiaridades da direita conservadora americana é a rejeição de qualquer aspecto multilateralista na política externa, uma rejeição de princípio, ideológica, à ONU e quaisquer de suas agências, o que também foi importado pelos bolsonaristas. Numa postura completamente sem sentido para uma diplomacia que sempre se apoiou no multilateralismo, o bolsonarismo diplomático começou a propagar o monstro metafísico do globalismo, uma das maiores bobagens que diplomatas poderiam defender, algo tão absurdo que deve encher de vergonha os diplomatas profissionais; no entanto, foi o que foi defendido desde antes de assumir um cargo no governo o ex-chanceler, não por acreditar nessa estupidez, mas apenas para se conformar ao padrão inferior de ignorância e de ideologia de seus chefes eventuais. Num certo sentido não se trata sequer de conservadorismo, uma vez que conservadores instruídos, como os britânicos, por exemplo, não seriam capazes de defender equívocos monumentais. O que está por trás das posições dos “novos nacionalistas” é apenas ignorância e reacionarismo. 

Parte dessa ignorância pode estar ligado ao fundamentalismo religioso de seitas evangélicas, que não só rejeitam o darwinismo, como fazem ativa propaganda contra a teoria da seleção natural, base incontornável da pesquisa científica em disciplinas biológicas e afins. Junto com o fundamentalismo religioso vem a intolerância, que pretende ter nessas crenças a única explicação possível para os fenômenos naturais, desprezando o imenso acúmulo das descobertas e experiências científicas ao longo dos séculos, e rejeitando qualquer explicação alternativa. O desprezo pela ciência pode redundar em imensas perdas sociais, coletivas, como pode ocorrer, por exemplo, em campanhas antivacinais, podendo levar crianças e aderentes a essas crendices à morte. 

As duas correntes situadas à direita e à esquerda do espectro político tendem a ser nacionalistas e estatizantes, duas posturas igualmente nefastas ao crescimento econômico, ao desenvolvimento e à prosperidade social dos países. O Brasil, independentemente de ter tido alguns poucos governos de esquerda (menos frequentes por razões óbvias), quanto de direita (os mais “assíduos” na ocupação do poder), sempre foi basicamente nacionalista, fervorosamente nacionalista. O nacionalismo de esquerda – que pode, na vertente econômica, ser também partilhado pela direita – tende a ser mais rudimentar, ao favorecer o protecionismo comercial, as restrições ao investimento estrangeiro, bloqueando, com isso, um ritmo mais pronunciado de crescimento e de empregos de qualidade para a população. O nacionalismo de direita, por sua vez, costuma ser mais agressivo, culturalmente tosco, geralmente reacionário e frequentemente ignorante. Pode também ser racista, mas é distintamente xenófobo, como vários exemplos europeus o demonstram. Ambos os nacionalismos são patéticos e nefastos no plano econômico e até na dimensão civilizatória, quando se tornam excludentes e especialmente estúpidos em sua introversão ignorante e limitadora. Tanto a Europa dominada por governos de direita, quanto o finado governo Trump nos Estados Unidos constituem eloquentes exemplos desse tipo de deformação.

 

Um outro aspecto ainda mais devastador para a competitividade do Brasil, em prejuízo da criação de riqueza, é um tipo de nacionalismo que reduz as possibilidade de interações econômicas com diferentes parceiros no mundo, por razões mais de ordem ideológica do que prática. É o que ocorreu com a política comercial de Trump em relação à China, e que contaminou igualmente os dirigentes brasileiros identificados com o bolsonarismo, uma mistura de ignorância com preconceitos ideológicos. Instrumental nesse tipo de atitude foi o chamado guru presidencial, um anticomunista obsessivo, sem qualquer conhecimento em política ou economia internacional. O Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer para se desvencilhar de ideias erradas e de preconceitos equivocados.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3920, 30 de maio de 2021

Boletim de Conjuntura (BOCA; 2 junho 2021, Boa Vista, v. 6, n. 18, p. 35–39, 2021. DOI: 10.5281/zenodo.4891020; link: https://revista.ioles.com.br/boca/index.php/revista/article/view/352), da Editora Ioles (http://revista.ioles.com.br/boca/). Relação de Publicados n. 1404.


IV Fórum Mackenzie de Liberdade Econômica - Instituto Mises Brasil

 Publicada Seleção de artigos do IV Fórum Mackenzie de Liberdade Econômica

Com muita satisfação anunciamos a publicação dos artigos selecionados do IV Fórum Mackenzie de Liberdade Economica. A publicação dos artigos é resultado de uma importante parceria entre o Centro Mackenzie de Liberdade Econômica e o Instituto Mises Brasil, na disseminação das ideias liberias na academia. 

O Fórum Mackenzie de Liberdade Econômica é um fórum anual de economia, com abordagem multidisciplinar. Sua primeira edição ocorreu em 2017 e desde então tem acontecido todos os anos.

Em 2020 o mundo foi surpreendido por uma das maiores pandemias da história da humanidade. Inicialmente diversos questionamentos foram realizados a respeito das melhores formas de enfrentar este delicado momento que afeta todos os setores da vida humana. Com intuito de justamente debater questões que permeiam a atual crise causada pela COVID-19, o o Centro Mackenzie de Liberdade Econômica promoveu a quarta edição de seu fórum anual nos dias 03 e 04 de novembro de 2020. Nesse ano a temática foi "A crise da COVID-19 como um desafio para o liberalismo".

Confira abaixo os artigos selecionados:

IV Fórum Mackenzie de Liberdade Econômica



Visite nosso site para ler o comunicado completo .
MISES: Interdisciplinary Journal of Philosophy, Law and Economics
CEP: 04542-001

Semana 56 e derradeira do Cronista Misterioso do Itamaraty: um ano de desabusadas crônicas antibolsolavistas

[Nota PRA: Acabou-se o que era doce (por vezes amargo): nosso cronista misterioso, o Batman do Itamaraty, aquele que se chamava pelo estranho nome de Ereto da Brocha, e se classificava como Ombudsman (foi mais do que isso) se despede de seus inúmeros leitores, a maior parte diplomatas, que se sentiram vingados pelas suas ferinas diatribes contra aquele que já ganhou o galardão de "PIOR CHANCELER" de toda a história do Itamaraty (impossível que tenha havido alguém tão ruim no passado, improvável que um idiota semelhante se apresente novamente (ainda que o Brasil tenha o péssimo costume de nos surpreender para tudo o que é ruim).

Vamos dar adeus a nosso impoluto guerreiro de capa e espada (neste caso uma pluma acerada, embora o mais provável seja um computador anódino), nosso vingador mascarado, nunca revelado e até hoje procurado incessantemente pelos esbirros da ABIN, daquele escritório ridículo que é feito para a segurança de um energúmeno, cercado de novos bárbaros, que não conseguiram ainda se vingar do nosso Pimpinela Escarlate, nosso Arsène Lupin, nosso Zorro (sem o Tonto), um Lone Ranger dos bons, que nos divertiu durante um ano inteiro, e que sempre li defasado e perdido numa cronologia não explícita.

Mixed feelings nesta despedida: por um lado, aliviado que o objeto obscuro e medíocre destas crônicas desabusadas já não forneça matéria-prima gratuita para os lances mais ousados do cronista misterioso; por outro lado, preocupado em que ainda tenhamos motivos para requisitar os serviços do nosso Chapolim diplomático.

Adieu Batman, o que posso prometer é que farei um volume sintético com todas as suas crônicas, coisa para ficar na memória dos viventes e dos infelizes diplomatas destes tempos ainda mais infelizes, pois é preciso registrar para as futuras gerações que nem todos foram passivos e indiferentes; a chama da resistência aliviou nossas agruras de dois anos e três meses de recuerdos miseráveis.

Paulo Roberto de Almeida, um resistente de primeira hora.


 56 O fim (Semana 56 - a derradeira)

 

Nestas 56 semanas, pouco mais de um ano completo, pelas quais submeti você, companheiro leitor, às minhas 61 lamúrias e ressentimentos (56 semanais e mais 5 desaforos adicionais), tive a honra de receber elogios de irmãs e irmãos diplomatas e o escárnio de parasitas da casa de Rio Branco. Juntos, leitora e leitor, reclamamos, choramigamos, rimos e lamentamos. Pusemos uma pedra, ainda que pequeníssima, no sapato, quiçá ferradura, de Ernesto. É pouco, mas acalenta a alma.

 

Só posso agradecer aos que me acompanharam até aqui e pedir perdão pelas por vezes porcas linhas que escrevi. É nesse tom que digo, é chegada a hora de parar. É chegada a minha hora de repousar e lamentar os amigos que perdi nesta pandemia. É chegada a hora de relegar Ernesto e sua corja à lata de lixo da história. É chegada a hora de abraçar a esperança de que nosso povo não reeleja Bolsonaro. É chegada a hora de propor ao invés de reclamar. 

 

Sei que alguns jovens, bravas e bravos colegas, têm preparado uma série de propostas interessantes para uma política externa pós-Bolsonaro e, por esta razão, não adentrarei nessas questões, já que os jovens sabem melhor como lidar com elas. Farei apenas três sugestões, quiçá três conselhos, mais ao sabor da tradição do Itamaraty, que, embora singelos, acredito indispensáveis para a reconstrução que se faz imprescindível. A eles.

 

1 - Parece óbvio, mas devemos cumprir os Princípios de Relações Internacionais elencados no artigo 4º de nossa carta magna. Os 10 princípios neste artigo elencados foram defenestrados por Ernesto e devem ser recuperados com a força da lei.

 

2 -  Não deve mais haver a possibilidade de que o Chanceler de turno tome decisões evidentemente deletérias ao interesse nacional. Assim, deve tornar-se regra que as posições tomadas na política externa tenham embasamento em estudos substantivos realizados por diplomatas especializados em cada tema e coordenados por uma análise holística das áreas geográficas (novamente uma obviedade, mas que vem sendo desrespeitada). Para isso, será necessário abandonar a ideia do “craque” do Itamaraty que mata tudo o peito e que, com tacadas de suposto “brilhantismo” e pouquíssimo trabalho, tem epifanias geniais, pois isso, meus caros amigos, não existe. Será necessário criar áreas analítica de inteligência comercial, social, política e etc… Embasadas, sempre, por aálises estatísticas, qualitativas e qualitativas. Além do fim do “craquismo”, incompatível com o mundo atual, aproximações moralísticas a governos (como ao trumpismo) e a ideologias (como o olavismo) não podem mais serem aceitas como premissas válidas para a elaboração de políticas.

 

3 - O prefeito do palácio, nosso calado SG, mostrou que não podemos mais contar com a sabedoria do Chanceler da vez para garantir o bom funcionamento desses dois pilares que sustentam nossa casa. Me parece que é chegada a hora de mudarmos. Devemos aprender com alguns dos outros órgãos da República e propor tanto mandato determinado quanto ampla votação da casa para a formação de lista tríplice para o cargo de SG. Trata-se de um cargo técnico que exige confiança da casa e que deve ter a força para contornar possíveis ingerências estapafúrdias dos governos. Obviamente o Chanceler é um cargo político e deve continuar de livre indicação da presidência, mas o SG deveria ter mandato fixo (quiçá dois anos com possível recondução para mais dois) e ser escolhido por meio de lista tríplice elaborada por meio de votação da casa.

 

É assim que me despeço, companheiro leitor, com os parcos e óbvios conselhos de um velho. 

 

Adeus e ao futuro.

 

Ministro Ereto da Brocha, OMBUDSMAN

 

domingo, 6 de junho de 2021

José Guilherme Merquior, o esgrimista liberal - Mano Ferreira (FSP)

Celebrar os 80 anos de Merquior é uma aposta contra o reacionarismo

'Esgrimista liberal', intelectual esboçou projeto de Brasil cuja atualidade permanece impressionante

Folha de S. Paulo, 5.jun.2021 

Mano Ferreira

Jornalista, é cofundador e diretor de Comunicação do Livres

[RESUMO] Resgate da obra de José Guilherme Merquior, que teria completado 80 anos em abril, é um passo fundamental para colocar a reflexão liberal à altura dos desafios sociais do Brasil e uma aposta na razão contra o obscurantismo diante da marcha de insensatez que o país vive.

“Se um gênio de um nada faz um tudo, certamente você tem um gênio.” Assim começa a carta enviada em 22 de janeiro de 1969 por Claude Lévi-Strauss, um dos mais importantes antropólogos do século 20, ao brasileiro José Guilherme Merquior.

A correspondência entre ambos havia começado com reflexões de Merquior sobre a obra do francês, de quem foi aluno no Collège de France. As ideias ali referidas seriam a base do livro “A Estética de Lévi-Strauss”, publicado em 1975.

Não foi um elogio isolado. Ralf Dahrendorf, então presidente da London School of Economics, dizia não saber por que Merquior cursava o doutorado em sociologia na instituição, “pois tem mais a ensinar do que a aprender”. Raymond Aron o chamava de “o garoto que leu tudo”. E, para Nelson Rodrigues, ele teria 900 anos, porque só assim seria possível ter lido tanto.

José Guilherme Merquior em Paris, em 1976 - Acervo pessoal

Da crítica literária ao debate político, Merquior colocou seu vasto repertório a serviço do conhecimento, não do diletantismo, e guiou sua produção pela busca da excelência —até ter sua história precocemente interrompida, aos 49 anos, por um câncer.

Apesar de ter obtido em vida repercussão nacional e reconhecimento internacional como poucos intelectuais brasileiros, os 80 anos de nascimento do crítico cultural, diplomata e sociólogo José Guilherme Merquior, completados em 22 de abril, teriam passado inteiramente despercebidos não fosse uma bela homenagem organizada pelo Livres, com liderança acadêmica de Elena Landau, reunindo depoimentos de Celso Lafer, ex-chanceler e professor emérito da USP, Persio Arida, ex-presidente do Banco Central e formulador do Plano Real, Marcílio Marques Moreira e Rubens Ricupero, embaixadores e ex-ministros da Fazenda, além do cientista político Bolívar Lamounier e dos embaixadores Gelson Fonseca, Marcos Azambuja e Paulo Roberto de Almeida.

O quase esquecimento do maior pensador liberal brasileiro do final do século 20, em meio a um governo que já teve a pretensão de se reivindicar como liberal, é um sintoma contundente. Revela não apenas a farsa bolsonarista, mas a dificuldade da sociedade civil de valorizar obras que elevam nossa racionalidade e cultura, tarefa ainda mais relevante diante da marcha de insensatez que vivemos.

Quais seriam as razões desse quase silêncio? Na opinião de Kaio Felipe, doutor em sociologia pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) com tese sobre o pensador, há pelo menos três: 1) um veto ideológico, por suas críticas ao marxismo predominante em nossas humanidades; 2) um veto político, pela autoria do discurso de posse do presidente Collor, mesmo sem papel orgânico no governo; 3) a falta de discípulos.

Sem medo de polêmicas, José Guilherme não abria mão de rigor e honestidade intelectual. Reconhecia virtudes do interlocutor sem economizar na denúncia dos equívocos. Na imagem do mexicano Enrique Krauze, Merquior era um esgrimista liberal. Seu duelo intelectual buscava o ponto preciso a ser tocado. Com essa postura, examinou o formalismo, o estruturalismo, o marxismo, a psicanálise, o pensamento de Foucault e o próprio liberalismo. Uma lucidez que faz falta.

Por outro lado, os embates com nomes influentes na academia certamente não ajudaram a recepção de sua obra. O caso mais emblemático envolveu a filósofa Marilena Chaui. Merquior localizou citações não atribuídas do francês Claude Lefort no livro “Cultura e Democracia”. Chauí não negou, nem poderia —Merquior tinha razão. A professora respondeu que compartilhava com Lefort muito mais que ideias e até seus pensamentos seriam formulados em conjunto. Como reação, boa parte da USP aderiu a um abaixo-assinado condenando a atitude de... José Guilherme.

Retrato de José Guilherme Merquior - Paulo Cerciari/Folhapress

Era um esgrimista lutando contra um exército, praticamente a sós sob bombardeio. Faltava um ecossistema intelectual minimamente maduro em torno dos valores que orientavam seu pensamento —a família dos liberalismos.

Nesse sentido, somos um país curioso. Produzimos grandes liberais, como Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e Afonso Arinos. Implementamos, ao menos em parte, algumas agendas liberais, a exemplo do Plano Real, das privatizações e da focalização da assistência social. Não fomos capazes, contudo, de articular vozes políticas consistentes em defesa desse legado. Se nem políticas públicas de sucesso foram devidamente defendidas, imagine então o legado de um erudito.

Esse cenário começa a mudar com uma geração que descobriu autores liberais na internet e se conectou por afinidade intelectual pelas redes sociais. Assim, multiplicaram-se grupos de estudo e logo cresceram os interessados em defender essas ideias no debate público, em sua maioria jovens, sem herança ou oligarquias, liberais por inteiro, com preocupações não restritas à economia.

Nesse contexto, o resgate de Merquior surge como exigência de aprofundamento. Precisamos de uma reflexão liberal à altura dos desafios sociais do Brasil, ainda mais agravados pela pandemia.

A propósito, o que dizer da vulgaridade dos que proclamam uma noção de liberdade tão abstrata e irreal do suposto “direito a contaminar”, contra a vacinação e o uso de máscaras? Lembram certos tipos que, no século 19, defendiam a escravidão como um direito de propriedade. Falta-lhes a lição básica de Joaquim Nabuco: o “amor da liberdade alheia, único meio de não ser a sua própria liberdade uma doação gratuita do destino”.

Longe da caricatura, Merquior defende um liberalismo que, “se entendido apropriadamente, resiste a qualquer vilificação”. Para favorecer a melhor compreensão, seu livro “O Liberalismo: Antigo e Moderno” reconstrói o percurso da tradição liberal. Valorizando a necessária pluralidade contra as tentações dogmáticas, a obra destaca a amplitude temática do liberalismo contra as recorrentes tentativas de redução de sua complexidade ao liberismo, expressão de Benedetto Croce para designar seus aspectos puramente econômicos.

Aproveitando o melhor da tradição liberal, José Guilherme esboçou um projeto de Brasil cuja atualidade permanece impressionante. Um país em que cada pessoa seja livre para escolher, onde a autonomia fale mais alto que as determinações da loteria do destino. Um ideal de liberdade individual democratizada, que nem ignore os graves problemas sociais nem romantize os velhos vícios estatais.

Nessa construção, combater o estatismo patrimonialista não significa recair em “estadofobia”, mas defender uma refuncionalização do Estado. Ele deve deixar de ser produtor —tarefa em que o mercado é imbatível— para se concentrar na condição de promotor de oportunidades e “protetor das imensas camadas da população brasileira ainda sem teto, sem alimentação apropriada, sem escola e sem acesso à justiça”.

Além de reconhecer sua contribuição intelectual, celebrar os 80 anos de José Guilherme Merquior é uma inspiração para o futuro e também uma aposta na razão contra o obscurantismo, na modernidade contra o reacionarismo, na excelência contra a mediocridade —uma aposta no Brasil, em busca da nossa melhor versão.

USP promove ciclo sobre Merquior

A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP vai realizar uma série de debates online em homenagem a José Guilherme Merquior. Os eventos acontecem nos dias 17/6, às 15h30 e 18h30, e 18/6, às 15h e 18h30. Participarão pesquisadores que investigam a obra de Merquior, como João Cezar de Castro Rocha, Kaio Felipe, Ricardo Musse e Andrea Almeida Campos. Os debates serão transmitidos ao vivo pelo canal da FFLCH no YouTube.