Nacionalismo, passado e presente
Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org; http://diplomatizzando.blogspot.com; pralmeida@me.com)
Jorge Luis Borges: “O patriotismo é a menos perspicaz das paixões”
Filósofo Sêneca (Roma): “Pátria é qualquer lugar onde se está bem”
O nacionalismo emerge paralelamente à formação e consolidação dos Estados nacionais contemporâneos, entre os séculos XVI e XIX, quando ele irrompe de forma mais determinante, nas guerras napoleônicas, por exemplo, quando a França revolucionária, do regime republicano do Terror, é invadida por potências estrangeiras, monarquias absolutistas que queriam restabelecer o poder dos Bourbons, derrocado pelo Diretório. As forças nacionais do povo francês conseguem derrotar essas monarquias e provocam uma mudança radical no cenário político europeu.
Mais adiante serão os movimentos nacionalistas na Itália e na Alemanha que levarão esses povos, divididos entre numerosas soberanias locais ou estrangeiras, a se constituírem como Estados independentes e unificados, ambos simultaneamente, em torno de 1870. A Alemanha de Bismarck representa um triunfo da força montante do nacionalismo, capaz de impor uma terrível derrota à França, que sinaliza a derrocada do Império de Napoleão Terceiro e o início da Terceira República, sempre animada do desejo de revanche contra a Alemanha e voltada para conquistar o território perdido da Alsácia-Lorena, na margem esquerda do rio Reno. O nacionalismo balcânico, contra a dominação do Império Austro-Húngaro, é também a força que vai precipitar a Grande Guerra, que provocou a maior devastação até então conhecida na história das guerras: milhões de mortos.
A partir do século XX se observa a consolidação das identidades nacionais, e portanto dos nacionalismos, mas também, em diversos continentes, dos separatismos, inclusive excludentes, muitas vezes acompanhado de terrorismo contra o poder central, ou outras etnias ou povos do mesmo Estado. Foi o caso, por exemplo, das diversas etnias dos Balcãs, que terminaram por fragmentar, fracionar, proclamar as autonomias locais, eliminando aquela federação que já tinha sido uma monarquia e, depois da Segunda Guerra Mundial, uma república socialista.
A América Latina também conheceu o mesmo fenômeno, aliás desde as independências nas primeiras décadas do século XIX, quando as particularidades locais, elites empenhadas no estabelecimento de um poder oligárquico de setores dominantes, sempre diferentes de um canto a outro dos quatro grandes vice-reinados do império espanhol das Américas acabaram resultando na formação de uma dúzia de Estados nacionais, geralmente sob o domínio de caudilhos militares ou grandes latifundiários. O Brasil, em função da transplantação da corte portuguesa que fugiu da invasão napoleônica em 1807, logrou preservar sua unidade, não sem diversas tentativas separatistas ou revoltas regionais na transição do primeiro para o segundo reinado do novo Estado independente.
O Brasil da primeira metade do século XIX não era, justamente, uma unidade nacional bem configura, inclusive porque as dificuldades de comunicações entre as diferentes partes do território da maior colônia portuguesa faziam com que as diversas regiões se vinculassem diretamente com a metrópole do que com o vice-reinado estabelecido no Rio de Janeiro. A centralização da monarquia unitária vai ser realizada basicamente no Segundo Reinado mas o sentimento de identidade nacional tinha sido paradoxalmente impulsionado pela tentativa de recolonização da parte americana do Reino Unido pelas Cortes de Lisboa, o que acabou precipitando a independência. O legado português dos tratados desiguais de 1810, prorrogados na independência, mas atenuados pela Assembleia Geral do Primeiro Reinado, acabou reforçando o nascente nacionalismo, primeiro contra a arrogância do império britânico, depois contra o estrangeiro de modo geral.
A República vai consolidar esse nacionalismo, o que é evidenciado na recuperação da figura mítica de Tiradentes, transformado em herói nacional, ademais dos primeiros projetos de construção de uma economia nacional, representados pelo nacionalismo tarifário ainda mais reforçado no regime republicano e pela Lei do Similar Nacional. Mas é a partir dos anos 1930, especificamente com o Estado Novo, que preside verdadeiramente a uma nova centralização do sistema político, que tinha sido excessivamente federalizado na primeira constituição republicana. As bandeiras estaduais são queimadas simbolicamente pelo ditador e começa uma era de exaltação nacionalista até excessiva.
O regime militar de 1964 também reforça esse sentimento, representado pelo dístico até agressivo durante a fase de protestos contra a ditadura: “Brasil, ame-o ou deixe-o!”. O Brasil é nacionalista como muitos outros países o são, mas certo complexo de inferioridade, o chamado sentimento de “vira-lata”, derivado da consciência do atraso do país, do Jeca Tatu, da incultura e do analfabetismo, das doenças endêmicas, da falta de indústria, acaba se transferindo para outras manifestações de nacionalismo, no esporte, na música, em certa rejeição do estrangeiro. Somos dependentes do capital estrangeiro, sempre fomos, desde a independência, mas assim como amamos o capital estrangeiro, detestamos o capitalista estrangeiro, aquele que vem com certa superioridade sobre os produtos nacionais e, pecado mortal, transfere seus lucros para o exterior. Sempre nos revoltamos contra a exploração estrangeira, o que se manifestou num forte nacionalismo constitucional, desde os anos 1930, diversas leis excluindo os estrangeiros da exploração de recursos nacionais e nos serviços de mídia e de telecomunicações, em leis de limitação da remessa de lucros ao exterior.
Ser chamado de entreguista, desde os anos 1950, representava quase ser crucificado em praça pública: o diplomata e economista Roberto Campos, que se manifestava publicamente pelos investimentos diretos estrangeiros na economia nacional, teve seu nome mudado depreciativamente para Bob Fields, e sempre foi desprezado pelos chamados economistas desenvolvimentistas, assim como pelas esquerdas de forma geral. Já com a redemocratização de 1985, a Constituição de 1988 consagrou vários aspectos desse nacionalismo meio ingênuo e bastante irracional, assim como diversos monopólios estatais que tiveram depois de serem limitados por emendas constitucionais liberalizantes.
Em certos casos, o nacionalismo exacerbado acaba caindo no chamado chauvinismo, ou seja, na exaltação do que é nacional, independentemente de sua qualidade ou caráter benéfico para a sociedade; em outros ele acaba resvalando para o separatismo, pouco pronunciado no Brasil – com maior grau talvez no extremo sul –, mas extremamente frequente na Europa, seja na Espanha, seja nos já mencionados Balcãs ou em outras formações da Europa central e oriental (ainda vista na separação da Tchecoslováquia, por exemplo). Novamente há o risco de cair no terrorismo, como visto no país basco ou mesmo no fenômeno supremacista branco, nos Estados Unidos, dirigido tanto contra os negros, como contra imigrantes asiáticos, latinos e outros exóticos. Na Europa, o anti-islamismo se reforçou no período recente, com as imigrações maciças de africanos ou médio-orientais e asiáticos, e até repercutiu no terreno político, com o fortalecimento de partidos políticos de direita, não raramente xenófobos.
De forma geral, o sentimento nacionalista pode ter estado associado a sentimentos agressivos, expansionistas e militaristas, que levaram o continente europeu, mas também várias regiões africanas e asiáticas a guerras civis ou a conflitos interestatais. O remédio contra esses sentimentos é a educação democrática, que valoriza o indivíduo, as liberdades e que aceita as diferenças de quaisquer tipos. Mesmo em suas formas não violentas, o nacionalismo pode ser excludente e acaba sendo, como no fenômeno ideológico da alt-right americana, anti-globalista e anti-multilateralista, o que é simplesmente ridículo e contra-producente, tendo em conta a intensa interdependência criada pela globalização. Esse fenômeno, bem visível no governo Trump, acabou por reforçar o nacionalismo chinês, o que é deplorável, se considerarmos que os dois grandes países são as verdadeiras locomotivas da economia mundial, que poderiam impulsionar enormemente o desenvolvimento dos países mais pobres se estimulassem plenamente suas complementaridades recíprocas e a atuação conjunta em projetos de cooperação ao desenvolvimento.
O nacionalismo brasileiro não parece derivar de fenômenos similares ocorridos em outros países, embora alguns dos movimentos nacionalistas possam ter sido parcialmente influenciados por fenômenos ou movimentos que também estavam em curso em outras sociedades contemporaneamente. Refiro-me, por exemplo, ao futurismo italiano, do início do século XX, que se manifestou como modernismo em outras sociedades, e que acabou influenciando os “modernistas” brasileiros que organizaram a Semana de Arte Moderna em fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de S. Paulo: a despeito de muitos desses intelectuais terem referências dos movimentos modernistas europeus, eles pertenciam indiscutivelmente a uma vertente nacionalista. Outra tendência nacionalista que se desenvolve inclusive com base na caminhada europeia para o fascismo é, no caso do Brasil, o integralismo, descrito em certa literatura historiográfica brasileira (Hélgio Trindade, por exemplo) como o “fascismo brasileiro”, ou pertencente à mesma família europeia. Na verdade, o integralismo de Plinio Salgado era profundamente nacionalista, partindo até de grito de saudação: “Anauê”!
O regime Vargas, em especial a partir do Estado Novo, se apresentou como basicamente nacionalista, o que também foi uma característica do regime militar de 1964. Ambos os nacionalismos tinham raízes totalmente nacionais, e não respondiam a impulsos ou a manifestações internacionais importadas. Diferente é o caso do “regime” Bolsonaro– o conceito de regime foi usado pelo Departamento de Estado, para referir-se ao governo Bolsonaro, e sabemos que essa noção de regime tem conotações essencialmente negativas, do ponto de vista americano, usado para as ditaduras em geral – que pretendeu se afirmar como nacional e nacionalista, defensor da soberania, mas buscou seguir a chamada alt-right, ou seja, os ultraconservadores americanos; na verdade, ele alienou completamente a soberania nacional brasileira numa adesão aos interesses nacionais dos Estados Unidos, especialmente numa submissão abjeta ao presidente Trump.
Uma das peculiaridades da direita conservadora americana é a rejeição de qualquer aspecto multilateralista na política externa, uma rejeição de princípio, ideológica, à ONU e quaisquer de suas agências, o que também foi importado pelos bolsonaristas. Numa postura completamente sem sentido para uma diplomacia que sempre se apoiou no multilateralismo, o bolsonarismo diplomático começou a propagar o monstro metafísico do globalismo, uma das maiores bobagens que diplomatas poderiam defender, algo tão absurdo que deve encher de vergonha os diplomatas profissionais; no entanto, foi o que foi defendido desde antes de assumir um cargo no governo o ex-chanceler, não por acreditar nessa estupidez, mas apenas para se conformar ao padrão inferior de ignorância e de ideologia de seus chefes eventuais. Num certo sentido não se trata sequer de conservadorismo, uma vez que conservadores instruídos, como os britânicos, por exemplo, não seriam capazes de defender equívocos monumentais. O que está por trás das posições dos “novos nacionalistas” é apenas ignorância e reacionarismo.
Parte dessa ignorância pode estar ligado ao fundamentalismo religioso de seitas evangélicas, que não só rejeitam o darwinismo, como fazem ativa propaganda contra a teoria da seleção natural, base incontornável da pesquisa científica em disciplinas biológicas e afins. Junto com o fundamentalismo religioso vem a intolerância, que pretende ter nessas crenças a única explicação possível para os fenômenos naturais, desprezando o imenso acúmulo das descobertas e experiências científicas ao longo dos séculos, e rejeitando qualquer explicação alternativa. O desprezo pela ciência pode redundar em imensas perdas sociais, coletivas, como pode ocorrer, por exemplo, em campanhas antivacinais, podendo levar crianças e aderentes a essas crendices à morte.
As duas correntes situadas à direita e à esquerda do espectro político tendem a ser nacionalistas e estatizantes, duas posturas igualmente nefastas ao crescimento econômico, ao desenvolvimento e à prosperidade social dos países. O Brasil, independentemente de ter tido alguns poucos governos de esquerda (menos frequentes por razões óbvias), quanto de direita (os mais “assíduos” na ocupação do poder), sempre foi basicamente nacionalista, fervorosamente nacionalista. O nacionalismo de esquerda – que pode, na vertente econômica, ser também partilhado pela direita – tende a ser mais rudimentar, ao favorecer o protecionismo comercial, as restrições ao investimento estrangeiro, bloqueando, com isso, um ritmo mais pronunciado de crescimento e de empregos de qualidade para a população. O nacionalismo de direita, por sua vez, costuma ser mais agressivo, culturalmente tosco, geralmente reacionário e frequentemente ignorante. Pode também ser racista, mas é distintamente xenófobo, como vários exemplos europeus o demonstram. Ambos os nacionalismos são patéticos e nefastos no plano econômico e até na dimensão civilizatória, quando se tornam excludentes e especialmente estúpidos em sua introversão ignorante e limitadora. Tanto a Europa dominada por governos de direita, quanto o finado governo Trump nos Estados Unidos constituem eloquentes exemplos desse tipo de deformação.
Um outro aspecto ainda mais devastador para a competitividade do Brasil, em prejuízo da criação de riqueza, é um tipo de nacionalismo que reduz as possibilidade de interações econômicas com diferentes parceiros no mundo, por razões mais de ordem ideológica do que prática. É o que ocorreu com a política comercial de Trump em relação à China, e que contaminou igualmente os dirigentes brasileiros identificados com o bolsonarismo, uma mistura de ignorância com preconceitos ideológicos. Instrumental nesse tipo de atitude foi o chamado guru presidencial, um anticomunista obsessivo, sem qualquer conhecimento em política ou economia internacional. O Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer para se desvencilhar de ideias erradas e de preconceitos equivocados.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3920, 30 de maio de 2021
Boletim de Conjuntura (BOCA; 2 junho 2021, Boa Vista, v. 6, n. 18, p. 35–39, 2021. DOI: 10.5281/zenodo.4891020; link: https://revista.ioles.com.br/boca/index.php/revista/article/view/352), da Editora Ioles (http://revista.ioles.com.br/boca/). Relação de Publicados n. 1404.