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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Ironias da história e dos impérios - Paulo Roberto de Almeida

 Ironias da história e dos impérios 

Paulo Roberto de Almeida

Os EUA salvaram a França e a Grã-Bretanha duas vezes, na primeira metade do século XX, de serem derrotadas pelo militarismo prussiano. Seu império é um dos mais recentes, surgindo no final do século XIX, se espraiando a partir de 1917, e se consolidando em toda a sua preeminência a partir de 1945.

Na segunda metade do século XX, eles salvaram a Europa e metade do mundo da tirania bolchevique. Bem-feito! George Kennan disse como deveria ser feito.

Depois fizeram muitas bobagens, na Ásia, no Oriente Médio, na África e na América Latina, sobretudo no Vietnã, Camboja, no Iraque, pois impérios estabelecidos costumam ser brutais e paranoicos. Mas George Kennan não teve nada a ver com essas besteiras, e sim o tal complexo industrial-militar, de que falou Eisenhower, e dirigentes políticos ineptos e arrogantes.

Agora, no século XXI, pensam que estão salvando o Ocidente e o mundo do “comunismo” chinês. Pensam torto!

O mais alucinante é pensar que alguns dos mais brilhantes acadêmicos das grandes universidades foram contaminados pela paranoia (natural) dos generais do Pentágono e desandaram a proclamar a fantasmagoria irracional da tal “armadilha de Tucídides”, uma leitura completamente errada do grande historiador das guerras do Peloponeso.

Nisto se enganam terrivelmente. Os chineses, sob a condução dos novos mandarins de Deng, só queriam ficar ricos, depois de terem amargado misérias durante milhares de anos. Em segundo e mais importante lugar, não querem mais ser humilhados pelas arrogantes potências ocidentais e pelos militaristas japoneses, como foram desde o século XIX até meados do XX, justamente.

Agora, sob a condução de um imperador impaciente, querem apenas “pacificar” e consolidar o seu império INTERNO, no Tibet, no Xinjiang, em Hong Kong (de maneira brutal) e na província rebelde de Taiwan (talvez aqui, se ocorrer a unificação forçada, de maneira catastrófica). 

Mas nada disso tem a ver com espalhar o “comunismo” no mundo, ou impor sua ditadura modernizante sobre outros povos. Eles só querem ficar ricos e respeitados, e o fazem da maneira como sempre fizeram em 4 mil anos de história: impondo a ordem e garantindo que os negócios se façam.

A China, hoje, é simplesmente a maior economia de mercado do mundo, com um governo autoritário que acredita estar fazendo o melhor possível para o seu povo, e de certa forma está. Mas sua concepção de organização política e social não tem nada a ver com princípios e valores do Ocidente iluminista e moderno, respeitador das liberdades democráticas e dos direitos humanos. 

A “ordem” chinesa obedece a outros parâmetros, que não são universais (como o Ocidente pretende que a sua ordem seja), mas que vale para o seu próprio universo imperial.

Impérios são muito mais permanentes e presentes, na história da Humanidade, do que Estados nacionais, que só têm, em seu formato moderno, 400 ou 500 anos de existência, e agora de maneira mais formal, com a criação da ONU, essa “grande geringonça” (le grand machin, como dizia o general De Gaulle).

Assim como, besteiras à parte, o império britânico foi uma força modernizadora no século XIX — e Marx concordava com essa visão —, assim como o império americano foi uma força pacificadora, progressista e libertária no século XX, o império chinês deveria ser uma força de ordem e de prosperidade tecnológica no século XXI, se os americanos não atrapalharem com a sua paranoia e a defesa idealista e ingênua das “liberdades”. 

Sim, o império chinês não tem muito a ver com democracia e liberdades: isso nunca fez parte de sua história, mas talvez o povo chinês também seja conquistado por essas poderosas ideias em algum momento do futuro previsível.

O “Ocidente” — atualmente um falso conceito, pois todo o mundo é, agora, “ocidental”, inclusive a China, o Irã, cada qual à sua maneira — precisa entender que democracia e liberdades não são artigos de exportação; podem ser ideias importáveis, mas pelos próprios povos. 

Impérios impõem a ordem, mas a questão dos valores demora mais tempo. Os romanos acabaram romanizando gauleses, balcânicos, “ibéricos” e alguns outros povos, inclusive alguns ostrogodos, mas não o suficiente. Os chineses até conseguiram sinicizar mongóis e manchus. Os otomanos fizeram menos, pois não tinham as qualidades de alguns povos conquistados. Os conquistadores árabes eram mais rústicos do que os sofisticados persas, por exemplo, e certamente os europeus era muito primitivos em relação aos chineses, quando começaram a fazer o caminho inverso ao das rotas da seda.

Assim é a história, que, nas palavras do historiador Lawrence Stone, é um velho carro de bois, com suas rodas desajustadas e desengonçadas, avançando lentamente por uma estrada esburacada e enlameada.

Impérios não são a pior coisa na história da Humanidade; a coisa mais terrível é quando psicopatas tirânicos querem construir o “seu” império, mas esses são episódios mais raros, assim como são os Estados nacionais militaristas e expansionistas. 

O século XXI continuará a ser americano e ocidental pelas conquistas civilizatórias já alcançadas, pela sofisticação social e cultural europeia e também será “chinês”, pela prosperidade dentro da ordem, com aportes brasileiros na música, na mistura racial e na sensibilidade, mas isso se os malucos — nacionalistas idiotas e intolerantes em matéria de religião, política e futebol — não atrapalharem, o que de vez em quando acontece. 

Gente como Putin, Trump e o nosso idiota do Bozo são mais perturbadores do que realmente destruidores de uma ordem política, econômica e social (as democracias liberais de mercado) que é mais resiliente e expansiva do que comumente se pensa. 

A Humanidade avança, aos trancos e barrancos, como dizia Darcy Ribeiro. De vez em quando, um idiota, cercado por outros idiotas, vem perturbar, mas a maioria é sensata para retomar o caminho de um progresso lento, mas seguro. 

Como dizia Mario de Andrade, pouco depois da Semana de Arte Moderna, cem anos atrás, “progredir, progredimos um pouquinho, pois o progresso também é uma fatalidade”.

Com meu otimismo fatal, me despeço dos que tiveram a paciência de ler todo este escrito, feito na cama, no celular, numa manhã chuvosa.

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 11/01/2022

O programa da Cátedra José Bonifácio da USP para 2022 - Rubens Ricupero

Ideias preliminares sobre a Cátedra José Bonifácio -USP

2021-2022


Rubens Ricupero


         O próximo período da Cátedra José Bonifácio coincide com o Bicentenário da Independência do Brasil. O patrono da cátedra foi a figura principal da independência, ao lado de Dom Pedro I. A dupla circunstância do aniversário nacional e do papel central nele desempenhado pelo Patrono da Independência quase que impõem de forma natural que a reflexão sobre o Bicentenário ocupe espaço central nos estudos e pesquisas da cadeira neste ano.

         José Bonifácio se destaca como figura original, quase única, entre os fundadores de nações nas Américas durante a era da independência. Não foi chefe militar, nem era jurista primordialmente. Homem de ciência num país sem ciência, universitário em terra sem educação superior, educado nas melhores universidades e centros científicos europeus, aplicou seu espírito científico a imaginar o que poderia vir a ser a nação cuja existência apenas começava naquele momento. Propôs ideias para resolver praticamente todos os desafios principais do país: a escravidão, o tráfico de escravos, a situação dos indígenas, o acesso à terra, o crédito, o desenvolvimento das minas e da indústria, a educação, a imigração. 

         A mais importante biógrafa moderna do Patriarca, a Professora da USP, Míriam Dolhnikoff, elaborou um livro intitulado Projetos para o Brasil José Bonifácio de Andrada e Silva (São Paulo: Companhia das Letras, 1998), que reúne e organiza todos esses projetos para criar um país moderno e aberto ao futuro. Em fins de 1990, poucas semanas antes de sua morte, José Guilherme Merquior havia feito uma conferência em Paris sobre os grandes projetos históricos de Brasil-nação. O primeiro consistia no que chamava de “Projeto Andrada”, resumido em executivo forte, imigração para substituir a escravatura e crédito do Banco do Brasil para desenvolver o país. 

         Os projetos que o Patriarca sonhou para a nação poderiam servir-nos de inspiração na hora de planejar as atividades da Cátedra JB nos próximos meses. Não para levar avante um programa de estudos históricos sobre a Independência, o que já foi feito de forma magnífica e recente por pesquisadores da USP por meio, sobretudo, do projeto temático Brasil: Formação do Estado e da Nação. Sob coordenação e liderança do professor da USP, István Jancsó, falecido em 2010, o projeto reuniu 22 pesquisadores de dez universidades. Resultou na publicação da obra: István Jancsó (organizador), Brasil: Formação do Estado e da Nação. (São Paulo: Hucitec, Unijuí, FAPESP, 2003).  

         Levando em conta o estudo histórico já realizado, os projetos de Brasil-nação nos fornecem inspiração sobretudo porque, na maioria dos casos, se não na totalidade, os mesmos problemas ou suas sequelas continuam a interpelar os brasileiros na véspera do terceiro século da existência do país independente. Um centenário na vida da nação se presta sempre a duas perguntas inevitáveis: o que se fez? O que falta fazer? As grandes exposições universais do passado se compraziam em inventários exaustivos, balanços que mereceriam o nome de “museus de tudo”: as artes, as invenções, os produtos da indústria, da agricultura, das minas. Nosso propósito, mais realista, se concentraria em partir da situação atual em alguns setores-chaves, poucos e decisivos, como base para reflexão sobre o futuro.

         De fato, o programa da Cátedra se voltaria resolutamente para a frente, para responder, acima de tudo, à questão relativa ao que faltou e falta fazer. A ênfase necessariamente recairá no Brasil, pois é do Bicentenário do país que vamos nos ocupar. Nossa Independência, longe de ter sido fenômeno isolado, constituiu o capítulo brasileiro de um processo global: o fim do Antigo Regime, as revoluções atlânticas, as guerras napoleônicas. Tais causas produziram consequências análogas do México à Argentina, englobando praticamente toda a Ibero-América. A dimensão comparativa com os demais países do nosso entorno geográfico e existencial não poderia, portanto, faltar no programa, o que o insere claramente na característica central da cadeira, o estudo da realidade ibero-americana. 

         Com diferença de poucos anos, os países latino-americanos comemoraram ou ainda devem comemorar seus bicentenários de independência. A Argentina, o mais próximo pela contiguidade e importância, ostenta até dois bicentenários, o da Revolução de 25 de maio de 1810 que derrubou o vice-rei espanhol e instituiu a primeira Junta de Governo e o de 9 de julho de 1816, quando o Congresso de Tucumán proclamou a independência das Províncias do Rio da Prata. Ao escrever sobre o Bicentenário de 2010, o historiador argentino Luís Alberto Romero procurou comparar esse segundo aniversário com o primeiro (1910), no artigo La Argentina en el espejo de los Centenarios, (Nuevo MundoMundos Nuevos, 2010, publicado também em forma mais resumida e com alterações como El espejolejano del primer Centenario, Revista Ñ, Clarín, 26/5/2010). 

         Os dois escritos de Romero podem nos ajudar na necessária reflexão coletiva que deveremos fazer ao longo dos próximos meses sobre o nosso Bicentenário. Não tanto no conteúdo da análise e sim na metodologia, na forma de abordar a questão, tomando de empréstimo, entre outros aspectos, a comparação entre o primeiro e o segundo centenário, o panorama ao fim de cada um dos dois séculos de existência independente. Ele partiu das duas questões incontornáveis, que chama de uma pergunta e um desafio: o que fizemos? O que podemos fazer? Sua resposta é que se deve buscar um objetivo duplo: dar um balançono que se fez ou deixou de fazer e propor um programa para o futuro, para o que falta fazer ou corrigir. 

Tendo de escolher entre um mundo de coisas realizadas em duzentos anos, Romero viu-se obrigado a deixar de lado elementos importantes como a economia e a sociedade. Preferiu concentrar a atenção em três questões: o Estado, a República e a Nação. Esclareço que não proponho reproduzir em relação ao Brasil no programa da cátedra o balanço e o programa que o intelectual portenho levou a efeito sobre a Argentina. Ele escreveu, com efeito, no momento em que se completava, em 25 de maio de 2010, um dos Bicentenários argentinos. 

Em nosso caso, enfrentamos situação bastante diferente. Em primeiro lugar, na cronologia, já que o bicentenário brasileiro em tese se completa apenas em 7 de setembro de 2022, portanto além da data do encerramento do programa. Outra diferença reside na coincidência, no mesmo ano, entre o Bicentenário do Brasil e eleições que decidirão sobre o futuro de governo que representa uma “ruptura de civilização” no curso dos 200 anos da história do país independente. Não seria, assim, possível dispor de balanço definitivo desse período e muito menos de programa de futuro antes de saber o que nos reservam as eleições. Em termos de fato, se não de cronologia, o segundo século brasileiro só termina depois das eleições de 2/30 de outubro de 2022.

Por essas razões, proponho a esta altura somente um roteiro e um método para o exercício de reflexão que deveremos empreender como forma ideal de viver o Bicentenário. “Viver”, não “lembrar”, “recordar”, pois uma coisa é trazer à memória acontecimentos passados e acabados, a assinatura do Tratado de Petrópolis, a batalha do Riachuelo. Outra, bem diversa, é evocar um processo vivo em pleno andamento, inacabado, que necessita de nossa ação para que se tente imprimir-lhe sentido de criação do futuro. 

Neste caso, temos de viver o processo de dentro, como operários de uma construção em curso. Quanto mais agora que teremos pela frente um bicentenário coincidente com campanha eleitoral decisiva. Dessa campanha deveria fazer parte a discussão de nosso passado e a proposta de razões para crer que o futuro será superior ao presente e melhor do que foi o passado. Longe da posição do analista de fora, somos autores, sujeitos de um processo que se confunde com nosso próprio destino. 

É obrigação de cada um fazer com que a comemoração do Bicentenário supere em muito a do Centenário de 1922 em qualidade e, acima de tudo, em participação universal, sem exclusões, de todos os setores da população que nunca tiveram voz. Quem sabe assim o terceiro século do Brasil será capaz de resgatar a dívida deixada pelos dois primeiros: dar sentido ao mosaico formado pelos incontáveis fragmentos partidos da memória, permitir a cada participante do povo brasileiro uma vida de trabalho digno, igualdade e realização cultural.


Rubens Ricupero

São Paulo, 15 de novembro de 2021


segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Embaixador Rubens Ricupero será o novo titular da Cátedra José Bonifácio - Jornal da USP (Nov 2021)

Jornal da USP, 18/11/2021 

https://jornal.usp.br/institucional/embaixador-rubens-ricupero-sera-o-nono-titular-da-catedra-jose-bonifacio/

(Da esq. p/ dir.) O assessor da Reitoria, Gerson Damiani; 
o professor Pedro Dallari; o embaixador Rubens Ricupero 
e o reitor Vahan Agopyan – 
Foto: Marcos Santos/USP Imagens



 





O diplomata e ex-ministro da Fazenda, Rubens Ricupero, será o próximo titular da Cátedra José Bonifácio. O convite foi oficializado pelo reitor Vahan Agopyan ontem, dia 17 de novembro, em uma reunião que contou com a presença do coordenador do Centro Ibero-Americano (Ciba), Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari, e do assessor da Reitoria, Gerson Damiani.

Ricupero substituirá o atual titular da Cátedra, o economista colombiano José Antonio Ocampo Gaviria, que encerra as atividades em dezembro, com o lançamento do livro Governança internacional e desenvolvimento, que reúne os trabalhos desenvolvidos pelos pesquisadores da Cátedra entre os anos de 2020 e 2021. (Os sete volumes da coleção Cátedra José Bonifácio já publicados estão disponíveis gratuitamente, em versão digital, no Portal de Livros Abertos da Edusp.)

“Para 2022, a opção do reitor e do comitê que define as personalidades que ocuparão a Cátedra era escolher uma grande personalidade brasileira, já que este é o ano do Bicentenário da Independência do Brasil e a Cátedra leva o nome do patrono da Independência, José Bonifácio”, explica Dallari.

Inspirando-se nas ideias e projetos de José Bonifácio para o Brasil, a Cátedra deverá refletir sobre os dois séculos do Brasil independente, considerando os acertos e erros para elaborar propostas para o futuro.

“Proponho um roteiro e um método para o exercício de reflexão que deveremos empreender como forma ideal de viver o Bicentenário. ‘Viver’, não ‘lembrar’, ‘recordar’, pois uma coisa é trazer à memória acontecimentos passados e acabados – a assinatura do Tratado de Petrópolis, a batalha do Riachuelo; outra, bem diversa, é evocar um processo vivo em pleno andamento, inacabado, que necessita de nossa ação para que se tente imprimir-lhe sentido de criação do futuro. Quanto mais agora, que teremos pela frente um bicentenário coincidente com campanha eleitoral decisiva. Longe da posição do analista de fora, somos autores, sujeitos de um processo que se confunde com nosso próprio destino”, explica Ricupero.

O futuro catedrático também ressalta que a independência do Brasil não foi um fenômeno isolado, mas fez parte de um processo global que envolveu praticamente toda a Ibero-América; portanto, as reflexões não se restringem ao Bicentenário brasileiro e abrangem toda a região.

Uma vida dedicada ao Brasil

Jurista, diplomata, ministro de Estado e professor universitário, Rubens Ricupero formou-se na Faculdade de Direito da USP, em 1959, e concluiu o curso preparatório do Instituto Rio Branco, do Itamaraty, em 1960, iniciando sua carreira diplomática.

Em mais de quatro décadas de serviço diplomático, foi embaixador do Brasil em Washington e Roma, representante do Brasil junto à ONU em Genebra, chefe da delegação brasileira da Rodada Uruguai do GATT e secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD).

Rubens Ricupero será o nono titular da Cátedra José Bonifácio – 
Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Também ocupou diversos cargos no governo federal. Foi assessor dos presidentes Tancredo Neves e José Sarney, subchefe da Casa Civil e ministro da Fazenda, sendo um dos responsáveis pela implantação do Plano Real, em 1994. Também atuou na implantação do Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal, definindo como prioridades o desenvolvimento sustentável da Amazônia, a preservação da Mata Atlântica e a criação de parques e reservas ecológicos.

Atualmente é diretor da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), presidente do Conselho Editorial da Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), presidente honorário da Japan House e do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial.

A Cátedra José Bonifácio

Criada em 2013, a Cátedra José Bonifácio é uma iniciativa do Centro Ibero-Americano (Ciba), núcleo ligado à Pró-Reitoria de Pesquisa e ao Instituto de Relações Internacionais (IRI), que, com apoio financeiro do Banco Santander, convida uma personalidade do mundo ibero-americano para ministrar atividades acadêmicas na Universidade durante um ano letivo.

Os catedráticos desenvolvem estudos na temática referente à sua especialidade, liderando com um grupo de pesquisadores da USP de diversas áreas, previamente selecionados. No final do período, para encerrar os trabalhos, os pesquisadores produzem uma coletânea de artigos que são reunidos em um livro publicado pela Edusp. Também são realizadas conferências abertas à comunidade e, até mesmo, específicas para docentes e discentes.

Ricupero é o nono ocupante da cátedra, que já teve como titulares o ex-presidente do Chile, Ricardo Lagos (2013); o secretário-geral da Secretaria-Geral Ibero-Americana, Enrique Iglesias (2014); a escritora Nélida Piñon (2015); o ex-primeiro-ministro da Espanha, Felipe González Márquez (2016); a embaixadora do México no Brasil, Beatriz Paredes (2017); a ex-presidente da Costa Rica, Laura Chinchilla (2018); o economista Enrique García (2019-2020); e o também economista José Antonio Ocampo (2020-2021).


Sem prestígio internacional, Brasil enfrenta erosão da democracia - Cristiane Noberto (Correio Braziliense)

 Sem prestígio internacional, Brasil enfrenta erosão da democracia


Para especialistas, imagem do Brasil no exterior se degradou porque falta percepção do governo sobre quem é o Brasil no cenário internacional e como são as relações com os outros países

Cristiane Noberto
Correio Braziliense, 10/01/2022 06:00

O ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo cunhou um nome ao Brasil que colou como chiclete na imagem internacional. "Que sejamos pária", disse o diplomata ao falar sobre o papel do país no mundo. Ao mitigar políticas ambientais e deteriorar a democracia nos últimos três anos, o solo tupiniquim se colocou à margem da sociedade internacional.

A questão, no entanto, vai além da fala de um embaixador. O presidente Jair Bolsonaro (PL) se tornou um chefe de Estado contestado pela comunidade internacional. Bolsonaro se utiliza de dados sem comprovação ou equivocados sobre a Amazônia — o que preocupa a maioria dos chefes de Estado. Desde sua primeira aparição para o mundo no Fórum Econômico Mundial, ocorrida em Davos, na Suíça, em janeiro de 2019, já parecia um "estranho no ninho".

Para Alexandre Uehara, doutor em ciência política e coordenador do centro brasileiro de negócios internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), o Brasil chegou a situação de pária porque falta percepção do governo sobre quem é o Brasil no cenário internacional e como são as relações com os outros países. De acordo com o especialista, a percepção do Executivo é "muito presunçosa". "Como se o Brasil fosse um país totalmente independente e que pudesse viver sem as relações com os demais países", afirmou.

Uehara aponta que não se pode ignorar a dependência do Brasil frente às outras nações. "Apesar de ser considerado um país pujante, ainda é uma economia fechada. O governo considera que pode fazer o que desejar sem prestar contas à comunidade internacional, o que não é verdade, isso terá consequências nas relações com os demais países", disse.

Chave
Além de implodir a democracia brasileira, Bolsonaro se afasta da principal política de alinhamento internacional com o Brasil: o meio ambiente. A falta de conhecimento e apresentação de dados imprecisos sobre a Amazônia pelo presidente brasileiro são um soco no estômago do Brasil na comunidade internacional. Além disso, o país deixou importantes acordos como o de Paris e do Pacto Global das Migrações.

"O Brasil nunca protestou. Medidas não foram tomadas para proteger, ou praticar política antidumping. Daí vieram uma série de medidas ilegais. Ele começou a passar um trator em cima das entidades. Demitiu o diretor do Inpe porque os dados da Amazônia estavam "errados", além de desmantelar as organizações ambientais. Bolsonaro já estava grifado no mundo por sua postura ambiental", avalia Paulo Roberto Almeida, diplomata e ex-presidente do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri).

O afastamento das questões ambientais também preocupa o legislativo. De acordo com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), a imagem desgastada do Brasil no exterior é resultado, em primeiro lugar, da má gestão do meio ambiente brasileiro e as consequências são graves. "Há projetos importantes como a lei de licenciamento ambiental, da grilagem e a do agrotóxico. Essas pautas deverão ser debatidas independente do governo para o ano que se inicia", afirmou ao Correio.

O líder da Frente Parlamentar Ambientalista, deputado Rodrigo Agostinho (PSB- SP), afirma que o colegiado acompanha mais de mil projetos ambientais. "Existem 5 propostas que chamam a atenção internacional: a lei de licenciamento ambiental e a lei da grilagem que estão no Senado, as propostas que acabam com terras indígenas, a legislação de mineração e a lei do veneno. Uma parte será aprovada e a última esperança será o Judiciário. O preço será caro pois teremos muita retaliação comercial. A Europa já está tirando produtos brasileiros das prateleiras", frisou.

Economia internacional
A deterioração do PIB também é um ponto no qual o atual governo chama a atenção da comunidade internacional. No índice de liberdade econômica do think-thank Heritage Foundation Freedom of the World, que mede 12 liberdades - de direitos de propriedade e liberdade financeira - em 184 países, o Brasil pontuou 53.4 e ficou atrás da média global dos 48 países mais pobres da África Subsaariana, que pontuou 55.7. É a primeira vez desde 1996 que isso acontece.

No comércio exterior, o país fica cada vez mais aquém. Com a China, principal parceiro comercial, esta é a pior relação dos últimos anos. Segundo Alexandre Uehara, o Brasil se coloca como imprescindível para a China, o que não é verdade. "O Brasil hoje depende muito mais da China do que o oposto", disse. Segundo o especialista, as relações do Brasil com a Ásia ainda é tímida. "O que falta ao Brasil, é olhar com mais cuidado para os países asiáticos de uma forma geral, dado que o mundo percebe a região como o futuro. O Brasil precisa de planejamento", avaliou.

Cidadão prejudicado
A situação afeta a vida do cidadão comum. Paulo Roberto destaca que o impacto da falta de articulação internacional é "muito grave para os brasileiros". De acordo com o ex-embaixador, "há impactos no comércio, na gestão sanitária e no Orçamento Público. Mandaram o Exército fazer toneladas de cloroquina, desperdiçando dinheiro. Há impacto no programa interno, erosão da democracia, ataque a instituições. No plano da credibilidade humana é um pária de direito e de fato. Na questão comercial, toda vez que ele (Bolsonaro) falava, o real caía e o dólar subia.

O custo dessa reconstrução de credibilidade ainda é incerto. Para Alcides Costa Vaz, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, é possível, mas demandará um grande esforço. "Há no seio da comunidade internacional o reconhecimento de que as atuais posições do Brasil não são condizentes com aquelas tradicionalmente perseguiu. Antes de mais nada é necessário uma mudança no comando da política externa, resgatando as suas posições tradicionais, procurando reinserir o país nos principais fóruns de negociação multilateral a uma agenda global.

https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/01/4976377-sem-prestigio-internacional-brasil-enfrenta-erosao-da-democracia.html

domingo, 9 de janeiro de 2022

"Paulo Roberto, o embaixador ombudsman" - Sérgio Abreu e Lima Florêncio (2022)


 Meu grande amigo e colega de carreira, o embaixador Sérgio Abreu e Lima Florêncio, que fez inúmeros postos na sua longa trajetória no Itamaraty, dos mais fascinantes (Genebra, Nova York) aos mais desafiadores (o Irã da revolução dos aiatolás), brilhante intelectual, está publicando seu livro de "memórias amenas", na quais ele recorda um pouco de tudo, do seu início da vida estudantil ao mais diferentes episódios na carreira. No início de 2021 ele fez um texto sobre este escrevinhador, no seguimento de uma homenagem que fez em sua residência de Brasília, em meados do ano anterior, chamando diversos colegas da Casa, o que muito me sensibilizou. 

Ele encontrou uma designação para mim na qual eu ainda não havia pensado: Ombudsman. Talvez seja o caso. De minha parte, costumo me descrever como um contrarianista, um cético sadio ou até um anarco-diplomata, mas aceito com prazer a nova "profissão", ao mesmo tempo em que aproveito para agradecer a enorme distinção que ele me faz. 
Afinal de contas, não é todo dia, aliás acho que nunca, que sou objeto de um capítulo em livro de amigos (ou inimigos, os quais também devo ter). Recebo, com humildade, todos os tipos de críticas, que sempre nos ajudam a melhorar; elogios são mais bem-vindos ainda.  

Transcrevo aqui o seu texto, um dos capítulos de seu livro, que deverá ser publicado proximamente. Ao final, transcrevo o belo prefácio do embaixador Rubens Ricupero.

Paulo Roberto de Almeida

 

 

2.2 PAULO ROBERTO, O EMBAIXADOR OMBUDSMAN 

 

In: Sergio Abreu e Lima Florêncio: Diplomacia, Revolução e Afetos: de Vila Isabel a Teerã (Curitiba: Editora Appris, 2022; p. 57-58)

  

Toda instituição de excelência necessita, com certa regularidade, fazer autocrítica. Entretanto, entre seus integrantes, poucos são aqueles com vocação ou capacidade para exercer essa difícil função. 

O Itamaraty tem o privilégio de contar, em seus quadros, com um diplomata com esse perfil. Tem nas veias o sangue da contestação intelectual, o fascínio pelo debate de ideias e o respeito ao contraditório. Pessoas com essas virtudes têm, em geral, um percurso profissional marcado por incompreensão, crítica e injustiça. Esse é o caso de Paulo Roberto de Almeida. 

Personifica a inteligência contestatária que, apesar dos pesares, a instituição teve a sabedoria de preservar. Entretanto, essa vertente iluminista foi esquecida ao longo de uma década e meia e, nos últimos dois anos, sepultada da forma mais devastadora e abjeta. 

Conheci Paulo no início do Mercosul, ele assessor do Rubens Barbosa, e eu, Chefe da primeira Divisão do Mercosul, junto a talentosos jovens diplomatas, como Eduardo Saboia, João Mendes, Haroldo Ribeiro e Raphael Azeredo. Já naquele tempo era visível sua obstinação pelo conhecimento multidisciplinar, pela pesquisa, pela rebeldia esclarecida, pela irreverência intelectual, pela destruição criadora shumpeteriana que estimula seus neurônios.

Sempre admirei essa essência anímica do Paulo – essa junguiana “chama da alma”. Diversas vezes o aconselhei a arrefecer a chama, mas jamais extingui-la. Na verdade, meu receio maior não residia na sua essência anímica, mas nos Bombeiros de Farenheit 451, sempre prestes a inverter a direção das labaredas. 

Paulo deu relevante contribuição para a política externa do período de Fernando Henrique, em especial no momento-chave da criação do Mercosul. Soube reconhecer os méritos da diplomacia de Lula, ao mesmo tempo em que se revelou crítico contundente dos graves excessos e desvios, particularmente comprometedores na gestão ineficaz e equivocada de Dilma. 

Pela crítica corajosa à influência negativa do PT sobre a diplomacia brasileira, foi vítima de prolongada e injusta marginalização que estacionou sua carreira. Apenas no governo Temer, com o Chanceler Aloysio Nunes, teve o reconhecimento merecido, mas adiado de forma injustificável por uma década e meia. Foi então nomeado Diretor do IPRI – Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais. Ali estava o homem certo no lugar certo. Teve desempenho brilhante e altamente dinâmico. 

Nessa época, os jovens diplomatas que, junto comigo, conheceram Paulo nos chamados tempos heróicos do Mercosul, haviam então galgado posições de direção e souberam fazer justiça a esse batalhador da nossa política externa. Além disso, Embaixadores de grande prestígio, como Rubens Ricúpero e Rubens Barbosa (seu chefe durante anos), defenderam Paulo e se empenharam por sua promoção a Embaixador. Foi nesse momento que organizei encontro em nossa casa para celebrar o tão adiado reconhecimento do mérito. Disse então que não estávamos festejando a promoção do Paulo, porque era o Itamaraty que estava sendo promovido. Promovido pelo resgate da justiça. 

Com a eleição de Bolsonaro, a política externa brasileira perdeu prin­cípios, valores e paradigmas que marcaram sua história. Nas áreas de meio ambiente, direitos humanos, multilateralismo, relações bilaterais, o Brasil tem hoje a diplomacia do delírio, da submissão e do prejuízo ao interesse nacional. É uma tragédia a gestão do Chanceler Ernesto Araújo. 

Paulo, uma das primeiras vítimas desse desvario, foi logo afastado da direção do IPRI. O motivo, de tão ridículo, vale aqui ser lembrado – autorizou a publicação de entrevistas de FHC, Rubens Ricupero e do próprio [EA] nos Cadernos de Política Exterior da Funag. 

Nesse momento sombrio, Paulo tem sido o mais obstinado e contundente crítico da desastrosa política externa. Ele personifica o Ombudsman de uma instituição dilapidada em seus alicerces pela irresponsabilidade do Presidente e do Chanceler.

 

Brasília, 30 de janeiro de 2021.


 

Prefácio

 

In: Sergio Abreu e Lima Florêncio: Diplomacia, Revolução e Afetos: de Vila Isabel a Teerã (Curitiba: Editora Appris, 2022; p. 11-13)

 

Se o livro de Sérgio Florêncio fosse uma composição musical, não seria uma sinfonia, mas sim um ciclo de canções ou de peças de piano como as de Robert Schuman, ligadas por um fio comum. Isto é, em lugar de uma peça única cheia de som e de fúria para orquestra grandiosa, o que nos oferece o livro é a escala humana intimista, em surdina, da música de câmara, um conjunto de breves textos alados, transpirando graça, leveza, humor e harmonia, durando dois ou três minutos no máximo, como as Cenas de Infância ou o Carnaval de Schumann.

Sérgio Florêncio inovou em dois gêneros, o da crônica e o da autobiografia, ou melhor, combinou ambos escrevendo uma autobiografia em crônicas. Esse enfoque lhe permitiu subverter o critério cronológico da autobiografia, com agilidade de cineasta que salta décadas para a frente e para trás no tempo, sem perder a unidade da narrativa. Começa não em Vila Isabel, como se poderia pensar erroneamente pelo título, mas sim por Teerã. Termina por uma das mais belas evocações que já li da figura de um pai ternamente amado, num texto ao mesmo tempo pungente e de humor malicioso.

Inverter a ordem cronológica e começar pelo meio, que é mais ou menos onde se situa a experiência do posto no Irã, foi um acerto por dar oportunidade de abrir o livro com o pico de intensidade histórica. O período passado em Teerã converteu o narrador na principal testemunha brasileira dos princípios tumultuados da Revolução Iraniana, condição privilegiada pelo seu significado muito além daquele instante. Testemunha inteligente, sensível à complexidade de um movimento surpreendente, que inauguraria uma teocracia justamente no país do Oriente Médio que se empenhara mais sistematicamente em ocidentalizar e modernizar suas estruturas.

Até nossos dias, transcorridos mais de 40 anos, a revolução contra o último Xá desafia a compreensão da imensa maioria dos analistas ocidentais. Desde o início, todos ou quase todos subestimaram as profundas raízes populares da revolução. Jovem diplomata, Sérgio Florêncio esteve entre os raros que percebeu a intensidade da reação da população iraniana a uma ocidentalização artificial, alienada em relação às tradições de uma antiga cultura, imposta de cima para baixo por regime corrupto, submisso a interesses estrangeiros.

A cegueira do preconceito que impede até diplomatas experimentados de reconhecerem as mudanças históricas se revela com força no diálogo de Sérgio com seu chefe. Representante da velha escola diplomática elitista, conservador próximo ao monarca e aos ocidentais, o embaixador descreve com nojo os populares que se haviam atravessado em seu caminho numa das manifestações que anunciavam o levante:

“Eu vi um bando de maltrapilhos, sujos, gritando como animais. Eram como ratos fugindo da sarjeta [...]”.

E a resposta do jovem secretário: “Eles querem construir um país digno, justo e livre”.

Nesse conflito de visões irreconciliáveis, a história daria razão ao diplomata mais moço, capaz de perceber por intuição e empatia a autenticidade do movimento. Mais tarde, Sérgio Florêncio analisaria a Revolução Iraniana num texto exemplar incluído como apêndice, intitulado “Imagens e Raio X de uma revolução”. Em contraste com as versões superficiais predominantes nos Estados Unidos e países ocidentais, a penetração crítica da análise nos faz entender por que a Revolução de 1979 teve capacidade de resistir a tudo: isolamento, boicotes, sanções, guerra desencadeada pelo ditador iraquiano Saddam Hussein.

Tratou-se, como indica o apêndice, de 

 

[...] um movimento popular de bases mais amplas e heterogêneas, que contou com o apoio dos mais expressivos segmentos da sociedade iraniana [...] produziu transformações talvez duradouras no país, alterou o equilíbrio regional e vem exercendo forte impacto sobre movimentos radicais de contestação, de inspiração político-religiosa, em numerosos países islâmicos.

 

Com a mesma agudeza que demonstrara ao reconhecer a força original da revolução, Florêncio registra desapaixonadamente sua inexorável transformação em sistema teocrático cruel e repressivo. Evoca mais uma vez o terrível destino das revoluções que devoram os próprios filhos, destruindo os que tinham sonhado edificar um país mais livre, humano, respeitador dos direitos humanos e da dignidade das pessoas.

A história da Revolução Iraniana, da mesma forma que a do golpe que, bem mais tarde, vai testemunhar no Equador, é transmitida ao leitor por meio de textos envolventes, que combinam a capacidade de análise sociológica com os relatos de vida de pessoas de carne e osso carregadas pelo turbilhão dos acontecimentos.

O embate de ideias, de posições contrastantes, encarna-se em seres com nomes e histórias: Majid, o amigo iraniano de Ottawa reencontrado em Teerã como opositor ao regime, preso pela polícia do Xá, em seguida, novamente detido e torturado pela repressão teocrática; Hadi, o cozinheiro da embaixada, antigo guerrilheiro afegão, que insiste em alimentar o recém-nascido filho de Sérgio com mamadeira de chá; o motorista Jafa, que, ao volante da Mercedes com a bandeira do Brasil, trafega a toda velocidade na contramão de ruas estreitas.

O nascimento de Thiago, chamado de Filho da Revolução, em meio à caótica fase revolucionária inicial, é contado com verve de romancista. No meio da noite, na cidade transtornada, Sérgio é obrigado a escalar o portão de ferro do hospital, saltar o muro, para acordar o porteiro adormecido com golpes contra a vidraça. O motorista Jafa ensina como primeiras palavras ao pequeno Thiago o grito da revolução iraniana: Allah Akbar! Khomeini Rahbah, “Deus é grande e Khomeini é nosso líder!”.

O livro todo alterna continuamente as crônicas da infância em Vila Isabel, as proezas de menino no futebol, a variada e colorida galeria de tios, primos, parentes, vizinhos de rua, com os estudos, as viagens, as peripécias da vida nos diversos postos. Sempre saborosas, as histórias fazem rir, outras vezes emocionam. A nota que predomina do começo ao fim é o amor da família e dos pais, de Sonia, com quem casou, dos filhos, netos, amigos, companheiros de trabalho humildes. Nada de pretensão, de esnobismo diplomático, de tristezas inúteis.

Simples, direto, despojado, o estilo cativa pelo encadeamento quase cinematográfico das cenas rápidas, não deixando cair nunca a narrativa nem enfraquecer o interesse do leitor. Sente-se em todas as linhas o som genuíno da voz de Sérgio, sua personalidade se expressa sem disfarces ou artifícios. Nem traços de vaidade, egocentrismo ou esnobismo. Nenhum exagero, nada de grandiloquência ou drama, uma vida limpa, íntegra, de amor e trabalho, devoção ao Brasil, às causas justas.

Acima de tudo, o que sobressai é a ilimitada capacidade de afeto, palavra do título que resume a essência dessa vocação notável de contador de histórias, muito mais histórias de afetos que de revolução. Aqui e ali uma ponta de nostalgia, de saudades dos que se foram, jamais amargura, ressentimento contra ninguém.

E, iluminando as páginas, a alegria, a ternura pela gente simples, a sensibilidade para o talento e a luta do povo humilde, o humor desentranhado das situações mais inesperadas. Nada melhor, nessa hora de abatimento e desânimo, que esta reafirmação implícita de fé na força do espírito brasileiro para fazer renascer a esperança e a alegria de nosso povo.

 

São Paulo, 15 de junho de 2021.

Rubens Ricupero

 

História virtual do Brasil: um exercício intelectual - Paulo Roberto de Almeida (2007)

 Um exercício intelectual, consolidado em 2007, do qual transcrevo apenas as duas primeiras partes. Para a íntegra, remeto a este link na plataforma Academia.edu: 

https://www.academia.edu/5913637/1841_Hist%C3%B3ria_virtual_do_Brasil_um_exerc%C3%ADcio_intelectual_2007_

Paulo Roberto de Almeida


História virtual do Brasil: um exercício intelectual

 

Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org)

Brasília, 1841, 29 novembro 2007, 16 p. Consolidação, em arquivo único, de ensaio de história virtual do Brasil, com base nos trabalhos 1063, 1064 e 1075, feitos em Washington, em 18 e 21 de junho de 2003 e em 7 de julho de 2003.

 

Primeira Parte

Questões metodológicas relativas à história virtual

 

Parece trivial, e sem maiores consequências práticas, fazer conjecturas em direção do passado, já que a linha contínua do tempo não nos permite operar qualquer mudança no curso efetivo da história, com a ajuda de alguma máquina do tempo imaginária. Especular é, contudo, possível em direção do passado, sendo em todo caso menos perigoso do que fazê-lo no presente e ainda menos arriscado do que “contra” o futuro. Um famoso historiador europeu, Johan Huizinga, chegou mesmo a afirmar que o historiador deveria se colocar de um ponto de vista que o permitisse considerar fatos conhecidos como podendo conduzir a resultados diferentes: e se os persas tivessem vencido em Salamina? e se Napoleão tivesse fracassado em seu 18 Brumário? 

Assim, é possível selecionar alguns dos turning points da história para realizar exercícios controlados de imaginação, que não são, todavia, completamente arbitrários ou puramente aleatórios. Uma das boas regras da história virtual, já explorada por historiadores fecundos como Niall Ferguson, é a de que o novo curso estabelecido deve ser “plausível” ou “possível”, isto é, seus desenvolvimentos poderiam estar inscritos na lógica histórica do momento imediatamente antecedente. De fato, o próprio Ferguson responde à questão de saber quem se importa com desenvolvimentos que nunca ocorreram. Diz ele que, nós mesmos, na vida cotidiana, estamos sempre nos colocando questões “contrafactuais”: por que eu não obedeci aos limites de velocidade? por que ter aceitado aquele último copo? quanto eu teria ganho se tivesse apostado naquele número? [1]

Nos imaginamos, assim, acertando no milhar, escolhendo uma outra profissão ou simplesmente evitando alguns erros cometidos no passado. Um outro famoso historiador, Thomas Carlyle, via a história como um eterno caos, que o historiador deveria avaliar cientificamente. As consequências alternativas poderiam, para ele, levar a resultados totalmente aleatórios, ou divergentes do curso real da história, um pouco como na atual alegoria do bater de asas da borboleta sugerido pela teoria do caos. Seria mesmo assim?

O argumento a favor da história virtual consiste em seu poder de despertar uma certa curiosidade pela própria trama da história real, ao sugerir desenvolvimentos diversos do que aqueles que efetivamente ocorreram e que, segundo o curso sugerido, poderiam ter provocado outras consequências, algumas até decisivas do ponto de vista do curso ulterior. Mas a história virtual não é o reino do arbítrio, e sim uma construção cuidadosa sobre as vias alternativas da vida humana, explorando fatores contingentes do processo histórico, onde os homens podem, sim, fazer uma grande diferença, ao contrário da aparente rigidez do determinismo histórico. Desse ponto de vista, a história virtual possui virtudes eminentemente didáticas, pois que ela permite isolar o que é únicoespecial ou peculiar num determinado evento ou processo histórico, ao imaginar que esse fator ou essa ação particular poderiam ter deslanchado um curso totalmente inesperado (do ponto de vista do que efetivamente se passou), mas que estaria inteiramente inserido na lógica e na trama do curso precedente. 

Aos que recusam a utilidade da história virtual pode-se observar que ela está de certa forma contemplada numa vertente mais séria, e quantitativamente embasada, da disciplina, identificada, por exemplo, com a chamada “cliometria”, na qual argumentos contrafactuais são mobilizados para determinar o peso de determinados fatores ou processos históricos. Um dos mais conhecidos utilizadores desse tipo de exercício é, obviamente, o prêmio Nobel americano Robert William Fogel que, numa obra famosa (Railroads and American Economic Growth: Essays in Econometric History, 1964), tenta isolar o papel das ferrovias no desenvolvimento econômico dos Estados Unidos. [2]

Assim, o que teria acontecido com o Brasil – que talvez não fosse nem “Brasil” – se a linha divisória de Tordesilhas, por desatenção dos portugueses ou resistência dos negociadores espanhóis, tivesse ficado lá mesmo onde a tinha colocado a bula do papa Alexandre VI, no meio do oceano? Teriam as Américas permanecido uniformemente espanholas, contentando-se os portugueses com seus domínios apenas africanos? O mais provável é que incursões de conquistadores concorrentes – franceses, holandeses, ingleses, entre outros – tivessem “esquartejado” bem mais cedo o hemisfério ocidental entre reinos e impérios mercantis europeus.

Muitos outros eventos ou processos podem ser sugeridos nessa linha da “história alternativa”. Cursos diferentes para episódios conhecidos devem, contudo, guardar conexão com o desenvolvimento possível ou com o curso efetivo de cada um deles. É o que se poderia chamar de plausibilidade histórica, o que significa que o curso sugerido não pode ser nem “anacrônico”, nem totalmente arbitrário, no sentido em que a alternativa selecionada poderia ter sido efetivamente “oferecida” aos, ou considerada pelos homens que tomaram tal ou tal decisão em momentos por vezes dramáticos para seus países ou para si mesmos. 

A ideia da contingência na história, uma das bases da história factual, milita, assim, contra o determinismo histórico, muitas vezes exemplificado pela famosa frase de Marx na abertura do seu 18 Brumário de Luís Napoleão, segundo a qual os homens fazem sua própria história, mas o fazem em condições determinadas por forças que estão fora do controle desses mesmos homens.

Resumindo, ideias virtuais também podem constituir uma “boa” matéria prima para a história real, desde que ela se faça em condições aceitáveis de causalidade e de encadeamento das ações humanas. Afinal, o Rubicão, Waterloo, a batalha da Inglaterra, Stalingrado, poderiam, sim, ter conhecido outros desfechos e ter apresentado outras consequências. A relação (sempre ambígua) entre a liberdade e a necessidade nunca está determinada previamente e é isso, justamente, que constitui um dos fascínios da história. 

 

 

Segunda Parte

Momentos decisivos da história do Brasil

 

Os eventos selecionados abaixo, construídos sem outro cuidado de pesquisa histórica que não o desfilar de datas ao fio da memória, constituem exemplos relevantes dos principais “tijolos construtores” de uma história virtual do Brasil. São eles, em todo caso, que oferecem oportunidades significativa de “distorção” do processo histórico, tal como ele efetivamente ocorreu, em direção de outras possibilidades e alternativas de desenvolvimento do itinerário conhecido, que poderiam ser considerados como possíveis ou plausíveis. Vários outros elementos – e não apenas eventos singulares – poderiam ser considerados como passíveis de “inflexão criativa” no registro dos fatos, tais como processos de mais longa duração, que de toda forma se prestam aos critérios de “opções factíveis” ou de fatores contingentes, em função dos quais o desenrolar do processo, no caso do Brasil, poderia ter assumido contornos absolutamente inéditos em relação aos dados registrados nos anais e crônicas da história oficial. 

 

1494: Tordesilhas (do contrário o Brasil não teria sido português)

1500: Descoberta (mas o Brasil não era ainda Brasil)

1640-1654: Expulsão dos holandeses do Nordeste

1750: Tratado de Madri (e seus sucedâneos, El Pardo e Santo Ildefonso)

1759: Expulsão dos jesuítas do Brasil por decreto de Pombal

1763: Transferência da sede do Vice-Reino para o Rio de Janeiro

1792-98: Derrota da inconfidência e decreto de proibição de teares

1808: Abertura dos portos: fim do exclusivo colonial

1810: Tratado de 1810 de Portugal com a Inglaterra: rigidez tarifária

1817: Revolução Pernambucana: primeiro desafio à unidade nacional

1822: Independência (sem abolição da escravatura)

1828: Perda da Cisplatina e nova composição no Prata

1831: Abdicação de D. Pedro I e experiência “republicana” das Regências

1935-45: Farroupilha no Sul: segundo desafio à unidade nacional

1842: Esmagamento da revolução liberal: consolidação conservadora

1844: Nova tarifa e início do experimento protecionista comercial

1850: Lei de Terras inviabiliza a divisão da grande propriedade rural

1854: Início das ferrovias no Brasil: começo da modernização

1865: O Império se descobre frágil com o ataque de Solano Lopez (Tríplice Aliança)

1888: Abolição da escravidão (sem incorporação dos escravos à economia e à sociedade)

1889: Adoção do regime republicano (federalismo na prática, até exagerado)

1891: Constituição republicana (consolida autonomia dos estados, revertida em 1937)

1898: Funding loan e primeira experiência de ajuste fiscal: limites da dívida externa

1902-1912: Configuração das fronteiras nacionais: obra de Rio Branco

1910: Derrota de Rui Barbosa: sistema político de oligarquias-positivistas-militaristas

1922: Início do ciclo tenentista de reforma política brasileira

1930: Revolução “liberal”: fim do regime puramente oligárquico

1931: Suspensão da conversibilidade e início dos controles de capitais (até hoje)

1934: Constituinte corporativa e atração do fascismo

1937: Golpe autoritário: nova centralização e construção do Estado moderno

1938: Derrota do integralismo-fascismo na conquista do Estado

1941: Escolha certa no momento da ofensiva militar nazifascista: com os EUA

1944: Brasil vai à guerra e participa de Bretton Woods

1947: TIAR e doutrina da Guerra Fria: adesão à esfera de influência americana

1947-48: Conferência de Havana: sistema multilateral de comércio

1952: Acordo militar com os EUA: só seria terminado em 1977

1955: Primeiras experiências de liberalização cambial

1957: Industrialização e construção de Brasília: interiorização do desenvolvimento

1961: Golpe e parlamentarismo: ciclo de crises político-militares encerra a era Vargas

1964: República “sindical” é derrotada pelo Exército a serviço da burguesia

1968: Brasil recusa o TNP: autonomia nuclear e projeto próprio termina em 1996

1969: Golpe dentro do golpe: o mergulho na ditadura

1973 e 1979: Duas crises do petróleo: grande impacto econômico e na dívida externa

1975: Acordo Nuclear Brasil-RFA: oposição dos EUA

1979: Começo da transição para a democracia, sob crise econômica constante

1982: crise da dívida externa culmina em 1987, com moratória

1985: Fim do regime militar: início da “quinta” república (Constituição de 1988)

1988: Tratado de Integração com a Argentina (em 1991, Mercosul quadripartite)

1992: Brasil aceita Tlatelolco plenamente e faz “impeachment” do presidente

1994: Plano Real de Estabilização Econômica: vencido o ciclo de ajustes fracassados

1999: Desvalorização e regime de flutuação cambial: consequências para o Mercosul

2002: Vitória do Partido dos Trabalhadores nas eleições presidenciais: grande mudança?

 

 (...)



[1] Ver Niall Ferguson, “Introduction, Virtual History: Towards a ‘chaotic’ theory of the past” in Niall Ferguson (ed.), Virtual History: Alternatives and Counterfactuals (New York: Basic Books, 1997), pp. 1-90, cf. p. 2.

[2] Cf. R. W. Fogel, “The New Economic History: its findings and methods” in Fritz Stern (ed.), The Varieties of History: From Voltaire to the Present (New York: Vintage Books, 1973), pp. 456-473.


Para a íntegra, remeto a este link na plataforma Academia.edu: 

https://www.academia.edu/5913637/1841_Hist%C3%B3ria_virtual_do_Brasil_um_exerc%C3%ADcio_intelectual_2007_


A desgovernança no Brasil atual - Tomas Guggenheim

 Peço licença a meu amigo e colega Tomas Guggenheim para transcrever sua pequena síntese sobre as fontes institucionais e políticas de nossa desgovernança atual:

O quadro descrito é desanimador. Em outros tempos, o eleitor, mesmo desprezando a classe política, tinha fé no seu candidato a presidente, confiando em que ele tinha o poder de melhorar de algum modo a sua situação, mas parece que agora a escolha, para boa parte dos eleitores, seria apenas a do "menor dos males".

Pelo que vimos nos últimos muitos anos, é provável que nenhum presidente tenha condições adequadas para executar um programa de governo coerente e fazer reformas significativas, dado que o Poder Executivo se fragilizou frente ao Legislativo e este, fracionado em múltiplos partidos, precisa ser cooptado a cada votação, independente do mérito das iniciativas. E o STF, num comportamento inusitado nas demais democracias, interfere constantemente na governança, como se também fosse uma instituição eleita por voto direto.
Boa parte da responsabilidade por essa situação é da Constituição de 1988, que, entre outros equívocos, não limitou o número de partidos, nem regulamentou o seu funcionamento, e não limitou o direito de intervenção do judiciário na política. 
O "check and balances" está desequilibrado, o que ficou mais transparente depois que parte dos congressistas deixou de ser cooptada pela corrupção e - como resultado da lavajato - o poder dos ministros do STF aumentou com a submissão dos políticos enrascados nos processos penais e com a falta de sustentação parlamentar dos presidentes. Nesse contexto, a qualificação do titular do Executivo pode ser um fator agravante ou atenuante da boa governança, mas não decisivo, dada a atual limitação de seus poderes.
No artigo em anexo um acadêmico americano refere-se às atuais dificuldades de governar nas democracias ocidentais e de manter a adesão da sociedade às formas democráticas tradicionais devido a um fator "estrutural" que descreve como o "fracionamento" que ocorre no sistema político. E disso o Brasil tampouco é poupado.  

"The political fragmentation that now characterizes nearly all Western democracies reflects deep dissatisfaction with the ability of traditional parties and governments to deliver effective policies. Yet perversely, this fragmentation makes it all the more difficult for governments to do so. Mr. Biden is right: Democracies must figure out how to overcome the forces of fragmentation to show they once again can deliver effective government".