Ironias da história e dos impérios
Paulo Roberto de Almeida
Os EUA salvaram a França e a Grã-Bretanha duas vezes, na primeira metade do século XX, de serem derrotadas pelo militarismo prussiano. Seu império é um dos mais recentes, surgindo no final do século XIX, se espraiando a partir de 1917, e se consolidando em toda a sua preeminência a partir de 1945.
Na segunda metade do século XX, eles salvaram a Europa e metade do mundo da tirania bolchevique. Bem-feito! George Kennan disse como deveria ser feito.
Depois fizeram muitas bobagens, na Ásia, no Oriente Médio, na África e na América Latina, sobretudo no Vietnã, Camboja, no Iraque, pois impérios estabelecidos costumam ser brutais e paranoicos. Mas George Kennan não teve nada a ver com essas besteiras, e sim o tal complexo industrial-militar, de que falou Eisenhower, e dirigentes políticos ineptos e arrogantes.
Agora, no século XXI, pensam que estão salvando o Ocidente e o mundo do “comunismo” chinês. Pensam torto!
O mais alucinante é pensar que alguns dos mais brilhantes acadêmicos das grandes universidades foram contaminados pela paranoia (natural) dos generais do Pentágono e desandaram a proclamar a fantasmagoria irracional da tal “armadilha de Tucídides”, uma leitura completamente errada do grande historiador das guerras do Peloponeso.
Nisto se enganam terrivelmente. Os chineses, sob a condução dos novos mandarins de Deng, só queriam ficar ricos, depois de terem amargado misérias durante milhares de anos. Em segundo e mais importante lugar, não querem mais ser humilhados pelas arrogantes potências ocidentais e pelos militaristas japoneses, como foram desde o século XIX até meados do XX, justamente.
Agora, sob a condução de um imperador impaciente, querem apenas “pacificar” e consolidar o seu império INTERNO, no Tibet, no Xinjiang, em Hong Kong (de maneira brutal) e na província rebelde de Taiwan (talvez aqui, se ocorrer a unificação forçada, de maneira catastrófica).
Mas nada disso tem a ver com espalhar o “comunismo” no mundo, ou impor sua ditadura modernizante sobre outros povos. Eles só querem ficar ricos e respeitados, e o fazem da maneira como sempre fizeram em 4 mil anos de história: impondo a ordem e garantindo que os negócios se façam.
A China, hoje, é simplesmente a maior economia de mercado do mundo, com um governo autoritário que acredita estar fazendo o melhor possível para o seu povo, e de certa forma está. Mas sua concepção de organização política e social não tem nada a ver com princípios e valores do Ocidente iluminista e moderno, respeitador das liberdades democráticas e dos direitos humanos.
A “ordem” chinesa obedece a outros parâmetros, que não são universais (como o Ocidente pretende que a sua ordem seja), mas que vale para o seu próprio universo imperial.
Impérios são muito mais permanentes e presentes, na história da Humanidade, do que Estados nacionais, que só têm, em seu formato moderno, 400 ou 500 anos de existência, e agora de maneira mais formal, com a criação da ONU, essa “grande geringonça” (le grand machin, como dizia o general De Gaulle).
Assim como, besteiras à parte, o império britânico foi uma força modernizadora no século XIX — e Marx concordava com essa visão —, assim como o império americano foi uma força pacificadora, progressista e libertária no século XX, o império chinês deveria ser uma força de ordem e de prosperidade tecnológica no século XXI, se os americanos não atrapalharem com a sua paranoia e a defesa idealista e ingênua das “liberdades”.
Sim, o império chinês não tem muito a ver com democracia e liberdades: isso nunca fez parte de sua história, mas talvez o povo chinês também seja conquistado por essas poderosas ideias em algum momento do futuro previsível.
O “Ocidente” — atualmente um falso conceito, pois todo o mundo é, agora, “ocidental”, inclusive a China, o Irã, cada qual à sua maneira — precisa entender que democracia e liberdades não são artigos de exportação; podem ser ideias importáveis, mas pelos próprios povos.
Impérios impõem a ordem, mas a questão dos valores demora mais tempo. Os romanos acabaram romanizando gauleses, balcânicos, “ibéricos” e alguns outros povos, inclusive alguns ostrogodos, mas não o suficiente. Os chineses até conseguiram sinicizar mongóis e manchus. Os otomanos fizeram menos, pois não tinham as qualidades de alguns povos conquistados. Os conquistadores árabes eram mais rústicos do que os sofisticados persas, por exemplo, e certamente os europeus era muito primitivos em relação aos chineses, quando começaram a fazer o caminho inverso ao das rotas da seda.
Assim é a história, que, nas palavras do historiador Lawrence Stone, é um velho carro de bois, com suas rodas desajustadas e desengonçadas, avançando lentamente por uma estrada esburacada e enlameada.
Impérios não são a pior coisa na história da Humanidade; a coisa mais terrível é quando psicopatas tirânicos querem construir o “seu” império, mas esses são episódios mais raros, assim como são os Estados nacionais militaristas e expansionistas.
O século XXI continuará a ser americano e ocidental pelas conquistas civilizatórias já alcançadas, pela sofisticação social e cultural europeia e também será “chinês”, pela prosperidade dentro da ordem, com aportes brasileiros na música, na mistura racial e na sensibilidade, mas isso se os malucos — nacionalistas idiotas e intolerantes em matéria de religião, política e futebol — não atrapalharem, o que de vez em quando acontece.
Gente como Putin, Trump e o nosso idiota do Bozo são mais perturbadores do que realmente destruidores de uma ordem política, econômica e social (as democracias liberais de mercado) que é mais resiliente e expansiva do que comumente se pensa.
A Humanidade avança, aos trancos e barrancos, como dizia Darcy Ribeiro. De vez em quando, um idiota, cercado por outros idiotas, vem perturbar, mas a maioria é sensata para retomar o caminho de um progresso lento, mas seguro.
Como dizia Mario de Andrade, pouco depois da Semana de Arte Moderna, cem anos atrás, “progredir, progredimos um pouquinho, pois o progresso também é uma fatalidade”.
Com meu otimismo fatal, me despeço dos que tiveram a paciência de ler todo este escrito, feito na cama, no celular, numa manhã chuvosa.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 11/01/2022