Diplomacia de Lula 3: la nave va..., mas para onde?
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)
Artigo para a revista Crusoé, 14 fevereiro 2023. Publicado sob o título: “A mesma coisa, tudo de novo”, Revista Crusoé (17/02/2023; link: https://crusoe.uol.com.br/edicoes/251/a-mesma-coisa-tudo-de-novo/).
Relação de Originais n. 4320; Publicados n. 1493.
Lula em seu discurso de posse, em 1º de janeiro
A grande prioridade da política externa durante o meu governo será a construção de uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos e de justiça social.
Para isso é essencial uma ação decidida de revitalização do Mercosul, enfraquecido pelas crises de cada um de seus membros e por visões muitas vezes estreitas e egoístas do significado da integração.
O Mercosul, assim como a integração da América do Sul em seu conjunto, é sobretudo um projeto político. Mas esse projeto repousa em alicerces econômico-comerciais que precisam ser urgentemente reparados e reforçados.
Cuidaremos também das dimensões social, cultural e científico-tecnológica do processo de integração. Estimularemos empreendimentos conjuntos e fomentaremos um vivo intercâmbio intelectual e artístico entre os países sul-americanos.
Apoiaremos os arranjos institucionais necessários, para que possa florescer uma verdadeira identidade do Mercosul e da América do Sul. Vários dos nossos vizinhos vivem hoje situações difíceis.
Contribuiremos, desde que chamados e na medida de nossas possibilidades, para encontrar soluções pacíficas para tais crises, com base no diálogo, nos preceitos democráticos e nas normas constitucionais de cada país.
O mesmo empenho de cooperação concreta e de diálogos substantivos teremos com todos os países da América Latina.
Procuraremos ter com os Estados Unidos da América uma parceria madura, com base no interesse recíproco e no respeito mútuo. Trataremos de fortalecer o entendimento e a cooperação com a União Europeia e os seus Estados-Membros, bem como com outros importantes países desenvolvidos, a exemplo do Japão.
Aprofundaremos as relações com grandes nações em desenvolvimento: a China, a Índia, a Rússia, a África do Sul, entre outros.
Reafirmamos os laços profundos que nos unem a todo o continente africano e a nossa disposição de contribuir ativamente para que ele desenvolva as suas enormes potencialidades.
Visamos não só a explorar os benefícios potenciais de um maior intercâmbio econômico e de uma presença maior do Brasil no mercado internacional, mas também a estimular os incipientes elementos de multipolaridade da vida internacional contemporânea.
A democratização das relações internacionais sem hegemonias de qualquer espécie é tão importante para o futuro da humanidade quanto a consolidação e o desenvolvimento da democracia no interior de cada Estado.
Vamos valorizar as organizações multilaterais, em especial as Nações Unidas, a quem cabe a primazia na preservação da paz e da segurança internacionais.
As resoluções do Conselho de Segurança devem ser fielmente cumpridas. Crises internacionais... devem ser resolvidas por meios pacíficos e pela negociação.
Defenderemos um Conselho de Segurança reformado, representativo da realidade contemporânea com países desenvolvidos e em desenvolvimento das várias regiões do mundo entre os seus membros permanentes.
Enfrentaremos os desafios da hora atual como o terrorismo e o crime organizado, valendo-nos da cooperação internacional e com base nos princípios do multilateralismo e do direito internacional.
Apoiaremos os esforços para tornar a ONU e suas agências instrumentos ágeis e eficazes da promoção do desenvolvimento social e econômico do combate à pobreza, às desigualdades e a todas as formas de discriminação, na defesa dos direitos humanos e na preservação do meio ambiente.
Tudo bem, com esses grandes objetivos ambiciosos do governo Lula na política externa? Não? Mas, espera aí: esse foi efetivamente o discurso de posse de Lula em 1º. de janeiro, mas em 2003, não o de 2023! Que coisa! Parecia tudo tão certinho, tão dentro do espírito e da letra da “diplomacia altiva e ativa”, como a classificou diversas vezes o chanceler designado, agora apenas assessor de assuntos internacionais na presidência.
Vinte anos depois, o que poderia ser dito dos grandes objetivos do governo Lula em matéria de política externa, e quais foram os seus resultados práticos, nestas duas décadas de intensa presença do Brasil e de Lula no cenário internacional?
Vamos então, para sermos honestos, verificar o que de verdade disse Lula em 1º. de janeiro de 2023:
Os olhos do mundo estiveram voltados para o Brasil nestas eleições. O mundo espera que o Brasil volte a ser um líder no enfrentamento à crise climática e um exemplo de país social e ambientalmente responsável, capaz de promover o crescimento econômico com distribuição de renda, combater a fome e a pobreza, dentro do processo democrático.
Nosso protagonismo se concretizará pela retomada da integração sul-americana, a partir do Mercosul, da revitalização da Unasul e demais instâncias de articulação soberana da região. Sobre esta base poderemos reconstruir o diálogo altivo e ativo com os Estados Unidos, a Comunidade Europeia, a China, os países do Oriente e outros atores globais; fortalecendo os Brics, a cooperação com os países da África e rompendo o isolamento a que o país foi relegado.
Tudo se encaixa nos mesmos objetivos fixados vinte anos atrás, pois não? Com exceção das referências à Unasul e aos Brics, naquele 1º. de janeiro inexistentes, e à Comunidade Europeia (que já tinha virado União Europeia desde 1993), todo o resto é perfeitamente compatível com as ambições grandiosas da “ativa e altiva”, não é mesmo?
Que coincidência! Como diriam franceses e americanos, déjà vu all over again, isto é, a mesma coisa, tudo de novo! Mas o que resultou, de fato, de todo aquele programa de reforma e de reforço do Mercosul, de integração da América do Sul e da América Latina, de reforma da Carta da ONU e da recomposição do seu Conselho de Segurança? Como andou a cooperação com os países da África, do Oriente Médio e da Ásia?
Nem tudo foi perdido, ao que parece: em 2009, a China já tinha suplantado os Estados Unidos ao assumir o primeiro lugar no comércio exterior do Brasil, e atualmente, ela sozinha faz o dobro dos intercâmbios mantidos com os dois parceiros seguintes, os Estados Unidos e a União Europeia, justamente, sendo que a Ásia Pacífico, em nossos dias, ocupa lugar preeminente no comércio internacional do Brasil. Mas também é um fato que foi o agronegócio sozinho que alcançou esses resultados, pois que não existem acordos de livre comércio, do Brasil ou do Mercosul, com aqueles países, e é também verdade que todas as vendas estão baseadas essencialmente em commodities, cujos preços e volumes exportados não dependem em nada do governo, qualquer governo, pois que todos os movimentos dependem totalmente da dinâmica dos mercados, das ambições ricardianas dos empresários do agronegócio e das tradings, não do ativismo da diplomacia ou das iniciativas de tecnocratas governamentais.
E quanto ao reforço do Mercosul, da integração sul-americana e da união da América Latina? O bloco e toda a região nunca estiveram tão fragmentados e desunidos quanto hoje, e vários países buscaram suas próprias soluções, alguns a caminho da Ásia Pacífico, justamente, outros ingressando na OCDE, esse “clube de países ricos”, como ainda agora os petistas se referem depreciativamente a esse excelente foro de consulta e de coordenação das melhores práticas em políticas econômicas, macro e setoriais, baseado em Paris, e que, nos últimos vinte anos, passou de duas dúzias de membros a quase o dobro desse total. O próprio Brasil, mas não os petistas da “ativa e altiva”, buscou integrar-se ao foro, objetivo que parece permanecer em banho-maria atualmente, como aliás foi o caso durante os 13 anos e meio dos mandatos lulopetistas no comando do país.
E no que se refere ao grande objetivo de uma associação comercial entre o Mercosul e a União Europeia, que já era o objetivo fixado em meados dos anos 1990, quando também havia o projeto americano de uma Área de Livre Comércio das Américas, tal como proposto pelo presidente Bill Clinton na cúpula de Miami, em dezembro de 1994? Está certo que na primeira gestão de Celso Amorim, como chanceler, no governo Itamar Franco, o Brasil já propunha uma Alcsa, também uma área de livre comércio, mas que seria exclusivamente sul-americana, objetivo que parece ter sido desprezado por todos os parceiros da região. Recorde-se, também, que a associação do Mercosul à UE permaneceu vinte anos no banho-maria, justamente, depois que os três grandes concorrentes na liderança sul-americana – Hugo Chávez da Venezuela, Nestor Kirchner da Argentina, e o próprio Lula – se encarregaram de implodir a Alca na cúpula de Mar del Plata, em 2005, como orgulhosamente o reconheceram tanto Lula quanto Amorim. Foi só depois, sob a administração “neoliberal” de Michel Temer que o projeto de ingresso na OCDE e as negociações com a UE foram ultimados, a ponto de o famoso acordo inter-regional ter sido assinado nos primeiros seis meses do governo dito ultraliberal de Bolsonaro, projetos não bem acolhidos pelos petistas de volta ao poder (pois que não sabem se, um e outro, colocarão em risco a outrora poderosa indústria brasileira).
O que resultou, por outro lado, do ativismo dos megaencontros entre dirigentes da América do Sul e seus contrapartes da África e do Oriente Médio e do norte da África, os países africanos e árabes, tão afanosamente cortejados pela “ativa e altiva”, essa grande diplomacia que partia de uma entidade perfeitamente fantasmagórica, o tal de Sul Global? Parece que a era da “nova geografia do comércio internacional”, orgulhosamente anunciada por Celso Amorim naqueles anos, tardou a se realizar. Na verdade, ela se realizou plenamente, mas foi bem mais a “nova geografia” do comércio de manufaturados exportados pela Ásia Pacífico, com a China na cabeça, na direção dos mercados desenvolvidos do Norte Global, pois que o Mercosul e os latino-americanos continuaram exportando commodities para todos os mercados, inclusive para os desprezados hegemônicos, as potências coloniais do passado, e imperialistas do presente.
Quanto ao grandioso objetivo de reformar a Carta da ONU, de fazer parte de um Conselho de Segurança ampliado e de caminhar no sentido da criação de uma “nova ordem global”, baseada na “multipolaridade” do famoso Sul Global (que, curiosamente, englobaria as duas grandes autocracias do Brics), parece que ele fez chabu, depois que os companheiros preservaram a “neutralidade” ativamente pró-Putin que já vinha do desastroso, e muito pouco diplomático, governo anterior. Esse “Ocidente”, também desprezado pelos lulopetistas, pois que supostamente comprometido com os arrogantes projetos unilateralistas da Otan, não se mostra disposto a reduzir seu apoio defensivo à Ucrânia, descartando completamente esse bizarro “clube da paz” que o grande líder dos emergentes pretendia formar para “dialogar” com Putin, um dos companheiros de Lula na criação original do Bric, entre 2006 e 2009.
O grupo foi ampliado em 2011 para Brics, pelas mãos da China, que parece mais interessada em fazê-lo ainda maior (com Argentina, Egito, Argélia, México, Indonésia como possíveis novos membros), a ponto de convertê-lo em entidade concorrente à neoliberal e ocidental OCDE. O Brasil de Lula 3 vai aceitar a transformação do bloco em instrumento dos interesses nacionais da China, e também da Rússia, que precisa desesperadamente do apoio do maior número possível de “neutros”, para compensar as ativas maiorias que, na ONU (CSNU, AGNU e Conselho de Direitos Humanos), condenaram sua execrável guerra de agressão ao pacífico país vizinho? Já na última resolução da Assembleia das Nações Unidas, em novembro de 2022, declarando a Rússia culpada pela guerra e decidindo que ela deveria pagar reparações à Ucrânia, apenas 94 países votaram a favor da resolução, com 14 votos contrários e 73 abstenções, o maior número nesta última categoria, desde as resoluções anteriores, claramente de condenação à guerra de agressão de Putin.
Para onde irá a “nave” da nova-velha diplomacia do Brasil de Lula 3, na defesa da paz e da segurança internacional, da integração regional, da “nova ordem mundial”? Aguardemos os próximos capítulos, pois ainda faltam a viagem à China e a cúpula do Brics...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4320: 14 fevereiro 2023, 5 p.