segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Onde foram parar todos aqueles antiglobalizadores? - Paulo Roberto de Almeida

Todo ano, como vocês sabem, coincidindo aproximadamente com a realização do Fórum Econômico Mundial, aquele capitalista, de Davos (a "montanha mágica", de Thomas Mann), os antiglobalizadores -- que adoram se chamar de altermundialistas, abusando do termo, pois nunca conseguiram demonstrar como, ou de que seria feito, esse outro mundo -- organizavam ruidosos contra-encontros, sob a rubrica do Fórum Social Mundial Eles pretendiam defender todas as boas causas, acusando os capitalistas de Davos de estarem do lado de todas as causas perversas.
Bem, estou sentido a falta deles, pois parece que desistiram de se reunir, o que é realmente uma pena, pois discursos e argumentos, para serem válidos e amplamente aceitos por todos devem sempre passar pelo critério popperiano da falsificabilidade, ou seja, o teste da realidade, da contradição, do contra-argumento.
O que será agora dos capitalistas de Davos se eles não tem opositores dignos desse nome?
Mas, também acho que os altermundialistas precisam aperfeiçoar seus argumentos, pois eles são bem fraquinhos, contraditórios, sem embasamento na realidade, enfim, irracionais.
Em homenagem a eles, mas sentindo sua falta -- pois eles me obrigavam a contra-argumentar a cada ano, vou postar aqui a última grande contra-argumentação que fiz contra essa simpática tribo de irracionais, mais exatamente na passagem de 2008 a 2009, quando eles ainda tinha algo a dizer (mesmo de forma totalmente irracional).
O texto foi publicado como aqui descrito, e segue transcrito mais abaixo.
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 3/02/2014

1966. “Fórum Surreal Mundial: Pequena visita aos desvarios dos antiglobalizadores”, Brasília, 22 dezembro 2008, 17 p. Consolidação das críticas às idéias surreais do FSM. Publicado em Mundorama, divulgação científica em relações internacionais (27.12.2008; link: http://mundorama.net/2008/12/27/271220081129/). Publicado em Meridiano 47 (n. 101; 27 Dezembro 2008; link: http://mundorama.net/2008/12/31/boletim-meridiano-47-no-101-dezembro2008/); Republicado em Espaço da Sophia (Tomazina – PR, ISSN: 1981-318X, Ano 2, n. 22, p. 1-20, janeiro de 2009). Dividido em duas partes e publicado em Via Política; Reciclando velhas idéias (12.01.2009); Pequena visita aos desvarios dos antiglobalizadores (19.01.2009). Relação de Publicados 886, 887. Academia.edu (https://www.academia.edu/attachments/32900639/download_file).

Fórum Surreal Mundial: Pequena visita aos desvarios dos antiglobalizadores, por Paulo Roberto de Almeida


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1. Globalizados contra a globalização: reação freudiana?

Os participantes do próximo conclave do Fórum Social Mundial, a realizar-se em Belém, de 27 de janeiro a 1° de fevereiro de 2009, podem congratular-se por serem os mais globalizados do planeta: eles desfrutam, provavelmente, de 100% de inclusão digital por meio da internet (sem considerar celulares e outros gadgets do mundo moderno), ou seja, fazem uma utilização plena das possibilidades abertas pela atual sociedade da informação. Todo o processo de informação preliminar sobre o FSM, de convocação e de mobilização preventivas, assim como o registro simultâneo e instantaneamente disseminado de suas ruidosas reuniões, colocadas (escusado dizer) sob o signo da anti-globalização, todo ele terá sido assegurado e efetivamente realizado 100% online, isto é, sob o signo do mundo virtual, que é praticamente um sinônimo da globalização.
E, no entanto, os alegres participantes do piquenique anual da antiglobalização se reunirão para, entre outros objetivos, conspurcar, atacar e combater os próprios mecanismos que possibilitaram, viabilizaram e permitiram todas essas facilidades de informação, de comunicação e de interação recíproca. Não é contraditório? Aliás, não parece completamente estapafúrdia essa revolta irracional contra os seus meios de expressão? Eu – como não pretendo usufruir de minha cota permitida de ilogismo e de irracionalidade  – respondo imediatamente que SIM.
Sim, me parece totalmente ilógico e contraditório que pessoas normalmente constituídas, bem informadas, geralmente alfabetizadas (inclusive até o nível universitário) e (que se acredita serem) cidadãos razoáveis no contexto do mundo em que vivemos – ou seja, estudantes e trabalhadores honestos, cumpridores de seus deveres cívicos, promotores de um mundo melhor, ativos na defesa do meio ambiente e dos direitos humanos – consigam revoltar-se contra aquilo mesmo que lhes permite serem exatamente o que são: cidadãos bem informados, participantes, defensores de um mundo melhor para si mesmos e para todos os habitantes do planeta. Em vista disso, apenas posso sorrir ante a perspectiva de ver tantos jovens (e alguns velhos também) reunirem-se para combater a globalização capitalista, logrando, aliás, pleno sucesso em seus empreendimentos antiglobalizadores, justamente tendo como suporte material tudo o que a globalização capitalista lhes ofereceu de melhor. São uns ingratos, para dizer o mínimo. Eu acho que eles também são ingênuos, provavelmente equivocados em suas concepções e intenções e, talvez mesmo, um pouquinho desonestos, pois que se eximindo – como não deveria ocorrer na academia e nas organizações mais sérias – de trazer as provas de suas afirmações tão contundentes contra o capitalismo e a globalização. Deixamos esses aspectos de lado, por enquanto, pois voltaremos a eles no momento oportuno. 
Podemos perdoar a inconseqüência política e cultural desses jovens – que parece ser o simples resultado da ignorância e ingenuidade típicas da juventude, ou seja, daquilo que os franceses chamam de naïveté; mas certamente não o tremendo equívoco em que incorrem os mais velhos, que induzem esses jovens a protestar contra o mesmo sistema que lhes permitiu tanta eficiência comunicativa, tanta modernidade organizativa, tanta interação virtual para, finalmente, empreenderem iniciativas ruidosas e totalmente inconseqüentes contra a própria base material de seu tremendo sucesso globalizado. Os jovens antiglobalizadores constituem o mais vibrante exemplo e sustentáculo daquilo mesmo que pretendem combater: a globalização capitalista (forçosamente assimétrica).
Digo equívoco, porque quero acreditar que esses velhos órfãos da globalização, esses escolhos do anticapitalismo militante, esses falidos profetas de um socialismo ultrapassado, hoje quase surrealista – entre os quais podemos identificar vários acadêmicos de sucesso, todos eles monotonicamente adeptos do pensamento único do altermundialismo, de origem francesa – não sofram de um mal bem mais grave e infinitamente mais prejudicial aos mais jovens, que eu chamaria de desonestidade intelectual. Consiste em desonestidade intelectual o ato de acusar a globalização capitalista de (quase) todos os males do planeta, quando na verdade é a falta de globalização capitalista que provoca os próprios males que os mais jovens dizem pretender combater. Para ser direto, eu sequer preciso provar a desonestidade intelectual desses que proclamam as misérias do capitalismo: basta olhar ao redor de si, ou consultar as tabelas estatísticas de qualquer organismo internacional, para ver onde estão os melhores indicadores de bem estar e de liberdade política e individual, e comparar o quadro com os países que não são, justamente, capitalistas e globalizados.
Mas examinemos a questão com um pouco mais de detalhe, por meio dos argumentos dos antiglobalizadores e altermundialistas (esta última designação é a preferida dos próprios interessados; mas como eles ainda não conseguiram dizer do que seria feito o outro mundo possível, prefiro chamá-los pelo nome que melhor os identifica). De certa forma, eles já nos facilitaram a tarefa, ao enunciar seus argumentos em dois conjuntos de “teses”, que contêm aquilo que pensam sobre o mundo, seus problemas (os do mundo) e as suas propostas (as deles) para salvar esse mesmo mundo do capitalismo perverso e da globalização assimétrica.

2. Objetivos reciclados nos últimos três anos: falta de idéias?

O primeiro conjunto é formado por uma espécie de decálogo que eles vêm digerindo há algum tempo e que são definidos como os “objetivos de ação para o evento de 2009″. Ora, isso revela preguiça intelectual dos antiglobalizadores, posto que esses objetivos não são novos, tendo sido elaborados anteriormente, mas apenas em número de nove objetivos, por ocasião de reunião do Conselho Internacional do FSM, realizada em Parma, Itália, de 10 a 12 de outubro de 2006. Na época, esses nove objetivos se destinavam a servir como documento preparatório ao FSM de 2007, realizado em Nairobi, no Quênia, nos dias 21 a 24 de janeiro de 2007. Eles foram objeto de meus comentários (mas também podem ser lidos por inteiro) em texto já publicado sob o título: “Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos”, in Meridiano 47 (n. 78, janeiro de 2007, p. 7-14; link:http://boletim.meridiano47.googlepages.com/Meridiano78.pdf).
Para poupar trabalho aos mais preguiçosos, ou aos membros do MSI – movimento dos sem internet -, reproduzo novamente aqui abaixo as propostas dos antiglobalizadores. Permito-me, todavia, convidar os interessados a ler os meus comentários a cada um deles no trabalho acima indicado. Aqui estão os nove objetivos de 2006-2007:
1. Pela construção de um mundo de paz, justiça, ética e respeito pelas espiritualidades diversas, livre de armas, especialmente as nucleares;
2. Pela libertação do mundo do domínio do capital, das multinacionais, da dominação imperialista patriarcal, colonial e neo-colonial e de sistemas desiguais de comércio, com cancelamento da dívida dos países empobrecidos;
3. Pelo acesso universal e sustentável aos bens comuns da humanidade e da natureza, pela preservação de nosso planeta e seus recursos, especialmente da água, das florestas e fontes renováveis de energia;
4. Pela democratização e descolonização do conhecimento, da cultura e da comunicação, pela criação de um sistema compartilhado de conhecimento e saberes, com o desmantelamento dos Direitos de Propriedade Intelectual;
5. Pela dignidade, diversidade, garantia da igualdade de gênero, raça, etnia, geração, orientação sexual e eliminação de todas as formas de discriminação e castas (discriminação baseada na descendência);
6. Pela garantia (ao longo da vida de todas as pessoas) dos direitos econômicos, sociais, humanos, culturais e ambientais, especialmente os direitos à saúde, educação, habitação, emprego, trabalho digno, comunicação e alimentação (com garantia de segurança e soberania alimentar);
7. Pela construção de uma ordem mundial baseada na soberania, na autodeterminação e nos direitos dos povos, inclusive das minorias e dos migrantes;
8. Pela construção de uma economia centrada em todos os povos, democratizada, emancipatória, sustentável e solidária, com comércio ético e justo;
9. Pela ampliação e construção de estruturas e instituições políticas e econômicas – locais, nacionais e globais – realmente democráticas, com a participação da população nas decisões e controle dos assuntos e recursos públicos.
Pois bem: confirmando o torpor mental dos antiglobalizadores – ou a sua completa falta de novas idéias, mesmo desinteressantes -, esses nove objetivos são reproduzidos ipsis litteris num post que li no site do FSM, sob o título de “Rumo a Belém”; são apresentados como “Os 10 objetivos de ação para o Fórum Social Mundial 2009″. Claro, está faltando um, que eles prepararam em consulta aos seus membros, e que vai reproduzido aqui abaixo, imediatamente seguido de meus comentários, com o que ficamos todos quites: você, leitor, que conhece agora todos os dez objetivos de ação do FSM para seu piquenique de Belém, e eu, que termino assim meus comentários a esses objetivos vagos e ingênuos. Digo isto, confesso desde logo, sem qualquer preconceito contra os objetivos dos antiglobalizadores, pois que as suas propostas são realmente vagas, o que não as impede se serem, também, equivocadas  e nocivas – em sua maior parte – para o mundo de bem estar geral para cuja construção eles pretendem contribuir.

3. Pelo menos um objetivo novo: alguma grande contribuição intelectual?

Como não podia deixar de ser, o único objetivo novo formulado para o encontro de Belém tem a ver – nada mais apropriado – com a realidade amazônica e aqui vai ele:
10. Pela defesa da natureza (amazônica e outros ecossistemas) como fonte de vida para o Planeta Terra e aos povos originários do mundo (indígenas, afrodescendentes, tribais, ribeirinhos) que exigem seus territórios, línguas, culturas, identidades, justiça ambiental, espiritualidade e bom viver.
A primeira coisa que se pode afirmar, em relação a este objetivo, é que ele está mal redigido, continua vago e indefinido sobre o que se deve fazer para alcançar todos os elementos nele inscritos e revela, mais uma vez, preguiça mental, pois que contém, inequivocamente, uma grande dose de conservadorismo social e econômico, o que é surpreendente para pessoas e grupos que se pretendem progressistas e avançados. O que pode significar “defesa” sem que se defina, exatamente, onde estão os perigos? O conceito de defesa sempre implica uma ação contra algo ou alguém que ameaça a sua segurança ou a própria vida. Mas isto não está claro no objetivo acima. Que a natureza seja fonte de vida é algo totalmente tautológico, como sabem os adeptos da lógica formal ou aqueles que lidam com a biologia elementar. Não existe, aliás, outra fonte de vida (salvo para os criacionistas).
A segunda coisa que se pode dizer é que o Português dos antiglobalizadores anda tão estropiado quanto a floresta amazônica, pois não é possível admitir que esse “aos” seja o equivalente funcional de “para os”, referindo-se aqui aos “povos originários do mundo”. Fonte de vida “aos” povos originários? Recomendo uma revisão estilística antes de publicar oficialmente esse décimo e último objetivo.
Mas indo à substância da matéria, parece-me que os antiglobalizadores têm se mostrado tremendamente preconceituosos contra todos os habitantes da Amazônia que não se encaixem em nenhuma das categorias inscritas nesse objetivo, aliás, contra eles mesmos, que virão das grandes metrópoles do Brasil e do mundo e que não são, em sua grande maioria, povos originários. A Amazônia comporta hoje um bocado de gente que não é nem originária, nem indígena, nem afrodescendente, nem tribal, nem ribeirinha, sendo cidadãos emigrados de outras regiões do Brasil e de outros países e que ali vivem e trabalham honestamente. Reivindicar todas aquelas coisas apenas para esses “originários” me parece um tremendo reducionismo étnico ou racial, um pouco como ocorre com esses movimentos racialistas pelos direitos de certas minorias e que pretendem introduzir oficialmente o apartheid no Brasil. Coisa feia, antiglobalizadores!
Mas o quê, mesmo, eles pretendem reivindicar? Está lá, dito claramente assim: “territórios, línguas, culturas, identidades, justiça ambiental, espiritualidade e bom viver”. Território implica a noção de direitos sobre um patrimônio fundiário e isso parece que já está regulado na Constituição e na legislação pertinente, bastando fazer apelo a um advogado ou aos cartórios de registro para assegurar esses direitos. Língua é algo tão vivo que me parece supérfluo ou inócuo reivindicar direitos sobre qualquer uma delas: enquanto existirem povos usando uma língua como instrumento de comunicação ela será preservada; mas é também algo que se transforma com o tempo, acompanhando os destinos de seus detentores. É certo que as línguas indígenas – ou dos “povos originários do mundo” como preferem os antiglobalizadores – vêm sendo submetidas a um duro processo de enxugamento, que corresponde, também, à própria transformação cultural das sociedades originárias, como resultado da pressão terrível sobre elas exercida pela cultura materialmente dominante, que é a do homem urbano (ou talvez capitalista, como prefeririam os antiglobalizadores).
Este é um desafio partilhado por quase todos os “povos originários do mundo” em qualquer canto do planeta, e ele corresponde a forças históricas quase irresistíveis, já que é difícil colocar esses “povos originários” numa redoma e impedi-los de manter contato com outras culturas e civilizações, sobretudo quando estas chegam a eles pela via da invasão territorial ou dos meios de comunicação. Por outro lado, o próprio ato de pretender preservar esses povos originários em seu estado “originário” pode não representar algo progressista ou desejável; ao contrário, pode ser algo regressista ou mesmo reacionário, já que implicando o congelamento desses povos numa das fases evolutivas do seu desenvolvimento cultural – geralmente correspondendo, em linguagem pré-histórica, à era do paleolítico superior -, o que, por outro lado, provocaria muita “injustiça ambiental” e muito “mau viver”, para usar, no sentido inverso, outros dois conceitos dos antiglobalizadores.
Constatemos, em primeiro lugar, que quem está, exatamente, determinando essa defesa contra toda e qualquer mudança nos meios de vida, nas identidades e na cultura não são, para ser mais preciso, os “povos originários do mundo”, mas sim uma tribo de brancos intelectualizados que se reúnem todo ano para proclamar objetivos para o mundo todo, inclusive para os “povos originários do mundo” (que, obviamente, não são eles). Questionemos, em segundo lugar, o direito desses brancos exóticos de traçar uma lista de objetivos para os “povos originários do mundo”, sem que estes tenham se reunido e decidido democraticamente o que pretendem fazer: ficar com suas culturas, línguas e identidades originais, ou integrar-se progressivamente ao chamado mainstream civilizacional, que significa, simplesmente, o Brasil do século XXI, com todas as suas misérias e grandezas, realizações e frustrações, justiças e injustiças. Assim é o mundo, e a nós cabe tomá-lo como ele é, para melhorá-lo progressivamente, em favor de todos, e não apenas dos “povos originários do mundo”.
Deixo de lado, por fim, o objetivo da “justiça ambiental”, posto que ela não está definida positivamente e não deve ser clara em que consiste, mesmo para o mais tarimbado antiglobalizador. Talvez algum jurista altermundialista possa elaborar a respeito, e eu me reservo o direito de comentar sua inovação jurídica posteriormente. Quanto aos termos “espiritualidade e bom viver”, deixo à imaginação dos leitores tentar descobrir o que é isso, exatamente, pois não me parece que mereçam maiores comentários, pela indefinição conceitual ou substantiva. Pergunto, aliás, como “exigir” espiritualidade de alguém?

4. Os “sábios” da antiglobalização: mais bem dotados que os jovens?

Eu mencionei, ao final da primeira seção deste meu texto, dois conjuntos de “teses”, que conteriam aquilo que os antiglobalizadores pensam – verbo sério, este – sobre os problemas do mundo e suas propostas para salvar esse mesmo mundo do capitalismo perverso e da globalização assimétrica. Mas me concentrei, até aqui, nos componentes de apenas um bloco de argumentos altermundialistas. Estes são, de toda forma, os objetivos oficialmente aprovados para o encontro de Belém, e são eles que devem ser considerados no debate atual.
Creio que meus comentários, antes e agora formulados, bastam quanto a esse primeiro bloco de argumentos. Em todo caso, como já escrevi bastante sobre os anti e suas idéias surrealistas, permito-me remeter os interessados no aprofundamento de minhas contestações a essas propostas ingênuas a vários outros trabalhos meus que se encontram livremente disponíveis numa pequena bibliografia pessoal que elaborei a partir dos meus escritos dos últimos anos. Eles não esgotam, obviamente, tudo o que tenho a dizer (e já disse) sobre o processo de globalização e seus descontentes; mas podem dar uma idéia de quão longe da realidade se encontram os antiglobalizadores “originários” (que precisariam ser reciclados ou substituídos por representantes mais inteligentes ou intelectualmente mais preparados). Eis a compilação a que me refiro: “Pequena Bibliografia Pessoal sobre a Globalização (e seus descontentes)”; (no link:http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1964BiblioGlobalizacao.pdf).
Pois bem, como são poucas (e inconsistentes, como vimos) as “idéias” dos antiglobalizadores, vou me permitir ajudá-los neste momento de tensão pré-encontro, retomando – e praticamente “desenterrando” – algumas outras propostas de alguns dos seus mais lídimos representantes, que tinham sido formuladas e apresentadas cerca de quatro anos atrás, mais exatamente no dia 1o. de fevereiro de 2005, sob a forma de um “manifesto” sob o titulo de “Doze Propostas para Outro Mundo Possível” (procurem nos arquivos do FSM, por favor, que eu já perdi o link original). Esse manifesto era apresentado como “produzido por ativistas e intelectuais durante o Fórum Social Mundial com propostas para a construção de um outro mundo”.
Os signatários desse manifesto “para um outro mundo” foram 19 eminentes antiglobalizadores (ou que passam por tal), personalidades que continuam a freqüentar os conclaves do FSM a cada ano e que continuam a pontificar sobre a globalização assimétrica e o capitalismo perverso. São eles: Adolfo Pérez Esquivel; Aminata Traoré; Eduardo Galeano; José Saramago; François Houtart; Armand Matellar; Boaventura de Sousa Santos; Roberto Sávio; Ignácio Ramonet; Ricardo Petrella; Bernard Cassen; Samuel Luis Garcia; Tariq Ali; Frei Betto; Emir Sader; Samir Amin; Atílio Borón; Walden Bello e Immanuel Wallerstein. À época eu não comentei suas doze sugestões, seja por falta de tempo, seja porque eu já tinha feito em julho de 2004 (preventivamente, portanto), um texto “Contra a anti-globalização: contradições, insuficiências e impasses do movimento antiglobalizador”, publicado de forma fragmentada nas Colunas de Relnet , de julho a dezembro de 2004, e depois, de forma parcial, em diversos números do Meridiano 47, de julho de 2004 a maio de 2005 (vide recomendações de leitura, ao final).
No ano seguinte, em janeiro de 2005, o FSM foi realizado, como todos sabem, em Caracas, ocasião na qual eu também perpetrei um texto contendo os “Resultados antecipados do Foro de Caracas: um exercício de futurologia garantida…”, elaborado obviamente antes da realização do jamboree bolivariano e publicado em um dos meus blogs em 15 de janeiro (link: http://paulomre.blogspot.com/2006/01/165-resultados-antecipados-do-foro-de.html). Como eu tinha ficado devendo, portanto, meus comentários às doze propostas dos antiglobalizadores eminentes, eu me permito neste momento completar a lacuna pela transcrição integral dessas propostas, seguidas imediatamente de meus comentários sintéticos, reservando a uma outra ocasião uma elaboração mais sofisticada intelectualmente, à altura da respeitabilidade dos sábios antiglobalizadores (mas que não me parecem melhor dotados do que os jovens que costumam produzir mais transpiração do que inspiração nesses conclaves aborrecidos pela repetição das mesmas idéias surrealistas).
Resumindo suas (poucas) idéias, os sábios propunham o cancelamento da dívida pública dos países do sul, a taxação internacional das transações financeiras e o desmantelamento progressivo dos paraísos fiscais, jurídicos e bancários. Pediam, ainda, a proibição de todo o tipo de patente do conhecimento e seres vivos, assim como da privatização de bens comuns da humanidade, em particular a água. Diziam que estavam se expressando a título estritamente pessoal e que não pretendiam falar em nome do FSM, afirmação que pode ser tomada pelo seu valor face (mas que cabe receber cum grano salis, posto que eles são considerados os maîtres-à-penser do movimento antiglobalizador). Mas como o Fórum tem se notabilizado por uma notável falta de idéias, pode-se considerar que suas propostas representam, sim, propostas do FSM, mesmo que não tenham sido distribuídas oficialmente para discussão no conclave amazônico. Como imagino que vários desses sábios ali comparecerão, permito-me comentar agora suas idéias de 2005, esperando que elas não tenham piorado desde então.

5. Mais uma dúzia de propostas para um outro mundo possível: será possível?

Vejamos o que seria possível dizer, sinteticamente, sobre cada uma das propostas:
1) Anular a dívida pública dos países do Hemisfério Sul, que já foi paga várias vezes e que constitui, para os Estados credores, os estabelecimentos financeiros e as instituições financeiras internacionais, a melhor maneira de submeter a maior parte da humanidade à sua tutela;
A proposta é redundante, chega tarde e traz a marca de uma visão equivocada do que constitui a dívida externa. Desde meados dos anos 1980, pelo menos, os países do G7, os membros do Clube de Paris e os sócios mais influentes das instituições de Bretton Woods vêm aprovando – aprofundando a cada ano – mecanismos de redução negociada e menus de redução unilateral da dívida dos países mais pobres. Dizer que ela já foi paga várias vezes constitui, obviamente, uma visão totalmente política do problema, que não corresponde às condições contratuais. A relação, obviamente, é recíproca e não se tem notícia de países tomadores de crédito que tenham contraído dívidas para se submeter voluntariamente à tutela dos credores. Os juros da dívida pública, inclusive, ostentam os menores níveis do mercado e podem ter aspectos concessionais, como é o caso da relação entre muitos credores e os países mais pobres. A anulação da dívida pública comprometeria um sistema que ocupa um nicho não atendido pelo sistema de mercado de créditos a taxas comerciais.
Os propositores, provavelmente, não têm idéia de como funcionam os diversos mercados de créditos, e o atendimento de sua proposta simplesmente prejudicaria o conjunto dos tomadores públicos, que são todos os países em desenvolvimento que não possuem sistemas de financiamento sofisticados ou abastecidos. Para o Brasil, por exemplo, que é um país ao mesmo tempo tomador e credor, a implementação dessa medida representaria um enorme prejuízo nos negócios empreendidos por empresas brasileiras no exterior, que contam com financiamento público (BNDES ou outro).
2) Aplicar taxas internacionais às transações financeiras (especialmente a Taxa Tobin às transações especulativas de divisas);
Essa iniciativa, especialmente na forma proposta originalmente pelo seu suposto patrono, já foi inclusive renegada pelo economista James Tobin, que deu, involuntariamente, o nome à associação francesa que está na origem do movimento antiglobalizador, a ATTAC (Association pour la Tobin Tax en Appui aux Citoyens). Tobin havia feito a proposta no quadro dos movimentos cambiais erráticos que se seguiram à quebra do sistema de Bretton Woods de taxas estáveis, mas logo constatou sua inaplicabilidade prática, em virtude da impossibilidade de se separar os fluxos de ativos reais voltados para o investimento e a produção, daqueles puramente especulativos. Este é o problema central de toda taxação sobre transações financeiras: ela pune indistintamente movimentos positivos e outros de qualquer natureza, o que introduz, simplesmente, não um fator dissuasivo aos movimentos erráticos – que se realizam de qualquer maneira – mas um custo adicional aos legítimos tomadores de recursos nos mercados de créditos.
O Brasil, decididamente, seria prejudicado pela introdução desse tipo de medida mal concebida e impossível de ser aplicada em bases universais, como aliás já escrevi em um pequeno texto (“Interessa ao Brasil uma taxa sobre os movimentos de capitais?”, Meridiano 47, n. 47, junho 2004, p. 12-15; link:http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-100_files/Meridiano_47.pdf). Considerando-se que existem brasileiros entre os 19 sábios do FSM, se a proposta fosse introduzida, eles estariam, conscientemente ou não, prejudicando a posição do Brasil enquanto tomador de recursos nos mercados financeiros internacionais. Ingenuidade ou simples ignorância?
3) Desmantelar progressivamente todas as formas de paraísos fiscais, jurídicos e bancários, por considerá-los como um refúgio do crime organizado, da corrupção e de todos os tipos de tráficos;
De fato, os paraísos fiscais constituem um problema para governos e empresas e cidadãos honestos, na medida em que eles não apenas subtraem recursos que, de outra forma, poderiam estar integrados aos circuitos normais da vida econômica, como também podem ser utilizados pelo crime organizado e pelos habituais defraudadores das administrações tributárias nacionais. O problema está em que, num sistema de soberanias ilimitadas, cada país está livre para determinar seu sistema tributário e as alíquotas a serem aplicadas às operações financeiras conduzidas em suas jurisdições. Nenhum outro Estado ou organização pode obrigar os paraísos fiscais a incorporar mecanismos ou alíquotas contra sua vontade e interesse nacional (que é, obviamente, o de ganhar alguns trocados – ou milhões – à margem dessas operações fictícias). Eles podem, teoricamente, ser submetidos a sanções por iniciativa dos Estados que se sentirem prejudicados por sua atitude oportunista e desleal no plano fiscal. Mas o fato é que esse tipo de prática vai continuar enquanto Estados predadores pretenderem manter níveis impositivos e mecanismos extratores intrusivos e extorsivos do ponto de vista das empresas e cidadãos; daí a “utilidade” dos paraísos fiscais como válvulas de escape, mesmo para contribuintes honestos na maior parte do tempo.
O desmantelamento sugerido pelos sábios do FSM pode significar alguma iniciativa truculenta da parte dos Estados “normais” da comunidade internacional, o que obviamente apresenta problemas no plano da legalidade internacional e do direito soberano de cada Estado adotar a estrutura tributária que melhor lhe convenha. Aliás, eles querem atuar bem mais sobre os efeitos do que sobre as causas: existem paraísos fiscais para responder a certas “necessidades” econômicas, assim como existem traficantes de drogas para responder à proibição oficial e para atender os “clientes”.
Talvez a solução mais conveniente, ou pelo menos mais racional, esteja numa coordenação fiscal internacional apontando na direção de alíquotas moderadas e mecanismos menos intrusivos do ponto de vista dos agentes econômicos primários. A experiência ensina que medidas truculentas como as sugeridas pelos sábios acabam resultando em mais fraudes fiscais, fuga de capitais e outras práticas nefastas no plano fiscal nacional. Os sábios confirmam, indiretamente, sua visão autoritária, dirigista e estatizante do sistema econômico, o que em todos os lugares levou a distorções e à exportação de riquezas. Eles provavelmente acham que os sistemas ultra-intrusivos e centralizados ao extremo conformam o modelo ideal de governança: a História ensina que o contrário costuma ser o verdadeiro.
4) Cada habitante do planeta deve ter direito a um emprego, à proteção social e à aposentadoria, respeitando a igualdade entre homens e mulheres;
Talvez os sábios pudessem acrescentar também: uma casa, um carro, conta em banco, milhas ilimitadas, vale-refeição, uma visita por ano a Paris e outra a Nova York. Incrível como esse pessoal tem uma capacidade imitativa extraordinária: eles são capazes de imitar o discurso de qualquer político em campanha eleitoral. Como não dizem absolutamente nada sobre como pretendem conceder todas essas bondades e benesses aos felizes habitantes do seu outro mundo possível, podemos ignorar totalmente esta quarta proposta, por inoperante e puramente demagógica.
5) Promover todas as formas de comércio justo, rechaçando as regras de livre comércio da Organização Mundial do Comércio (OMC). Excluir totalmente a educação, a saúde, os serviços sociais e a cultura do terreno de aplicação do Acordo Geral Sobre o Comércio e os Serviços (AGCS) da OMC;
Os sábios estão mal informados: a OMC é tão capaz de impor regras de livre comércio quanto a Igreja é capaz de assegurar a castidade ou a abstinência de seus seguidores. A expressão “todas as formas de comércio justo” é completamente vazia de significado no mundo do comércio real, o que talvez não seja do conhecimento dos sábios, já que eles vivem exclusivamente no âmbito universitário ou das ONGs, sem contato de qualquer tipo com a esfera econômica. Quanto aos temas para os quais eles pedem exclusão dos acordos de liberalização, provavelmente não sabem que vários deles já fazem parte das ofertas ou da situação real de “exploração” de serviços em muitos dos países membros da OMC. No campo da educação, por exemplo, nenhuma regra constitucional poderia impedir as universidades de Harvard ou de Yale de se instalarem no Brasil, se assim o desejassem (o que seria excelente para a competição entre instituições de qualidade), bastando uma autorização do MEC e a conformidade dessas universidades com as regras em vigor no Brasil.
Incrível como mesmo os mais reconhecidos sábios têm horror à competição no mundo da ciência e cultura e preferem manter sistemas fechados e excludentes, o que, por si só, já constitui um insulto à inteligência e à universalidade do conhecimento. Esses sábios deveriam ser coerentes com o que propõem e começar por não aceitar mais nenhum convite das universidades européias ou americanas que os cortejam (talvez indevidamente, ou por excesso de generosidade com figuras “exóticas”).
6) Garantir o direito à soberania e segurança alimentar de cada país, mediante a promoção da agricultura campesina. Isso pressupõe a eliminação total dos subsídios à exportação dos produtos agrícolas, em primeiro lugar por parte dos Estados Unidos e da União Européia. Da mesma maneira, cada país ou conjunto de países deve poder decidir soberanamente sobre a proibição da produção e importação de organismos geneticamente modificados destinados à alimentação;
O que eles propõem é absolutamente contraditório com o que dizem defender. Os EUA não vão retornar à “agricultura campesina”, seja lá o que isso queira dizer, nem os europeus vão renunciar aos gordos subsídios que sustentam artificialmente sua agricultura, em detrimento dos verdadeiros campesinos africanos ou asiáticos. Por outro lado, os subsídios à exportação não são, ao contrário das subvenções internas, os mais importantes nem os mais nocivos a um comércio agrícola verdadeiramente “justo” (para empregar um conceito que eles apreciam). Os sábios também parecem contraditórios com seu apego à ciência, ao rejeitar a priori, sem qualquer fundamento científico, os OGMs ou outras inovações que possam ser introduzidas para melhorar a produtividade agrícola de capitalistas e campesinos e atender à segurança alimentar de todos os povos do planeta. Seu obscurantismo nessa matéria revela preconceito e uma atitude propriamente reacionária em relação aos avanços responsáveis da ciência.
7) Proibir todo tipo de patenteamento do conhecimento e dos seres vivos, assim como toda a privatização de bens comuns da humanidade, em particular a água;
Os sábios não devem conhecer legislação de propriedade intelectual, pois em nenhum país do mundo o conhecimento é patenteável. Seres vivos podem, sim, ser objeto de proteção, por instrumentos adequados, se cumprirem os requisitos fixados na legislação. Tecnologias proprietárias têm sido responsáveis pela maior parte dos novos medicamentos, que salvam a vida das pessoas e melhoram suas vidas. Talvez os sábios pretendam ou possam pessoalmente ficar à margem dessas possibilidades de bem-estar e se abster de usar novos medicamentos.
Quanto aos bens comuns, eles certamente se submetem a alguma regulação, nacional ou multilateral, o que não impede sua exploração em regime de concessão, cujos termos são a rigor estabelecidos com vistas ao bem comum, justamente. Apenas um preconceito contra empresas privadas leva os sábios a excluírem preventivamente essa possibilidade de exploração eficiente, cost-effective, de certos bens comuns. Não se sabe de uma empresa privada que não esteja interessada em ampliar sua clientela, mesmo para “bens comuns”. O que os sábios refletem, implicitamente, é um tremendo preconceito contra o lucro, obviamente, o que totalmente ridículo em pessoas que são supostamente razoavelmente instruídas em matéria econômica (ou não?).
8) Lutar por políticas públicas contra todas as formas de discriminação (sexismo, xenofobia, anti-semitismo e racismo). Reconhecer plenamente os direitos políticos, culturais e ambientais (incluindo o domínio de recursos naturais) dos povos indígenas;
Nada a objetar quanto ao primeiro objetivo. Sérias preocupações quanto ao segundo, posto que esses povos não permanecerão eternamente indígenas, a menos que os sábios pretendam fazer deles objetos de museu, preservados em uma redoma que os impeça de se integrarem às sociedades nacionais. Esses sábios se consideram tutores dos povos indígenas.
9) Tomar medidas urgentes para pôr fim à destruição do meio ambiente e à ameaça de mudanças climáticas graves. Implementar outro modelo de desenvolvimento fundado na sobriedade energética e no controle democrático dos recursos naturais;
Nada a objetar. Os sábios só ficam nos devendo uma descrição mais acurada do que eles entendem por “outro modelo de desenvolvimento”, sem o que fica difícil criticar, mais uma vez, suas “idéias” surreais. Sobriedade energética pode querer dizer muitas coisas, inclusive com novas tecnologias desenvolvidas por empresas privadas, que eles tão zelosamente querem expulsar de todo e qualquer domínio “público”. O controle democrático dos recursos naturais é uma frase generosa, que pode tanto querer dizer parlamentos nacionais, quanto ONGs, mas estas geralmente escapam de qualquer controle democrático, pois são de caráter privado e não costumam prestar contas à sociedade.
10) Exigir o desmantelamento das bases militares estrangeiras e de suas tropas em todos os países, salvo quando estejam sob mandato expresso da Organização das Nações Unidas;
Tremendo autoritarismo, pois existem países que definem sua segurança com base em alianças militares e que preferem delegar certas tarefas a tropas estrangeiras, instaladas em bases nacionais. Japão e Alemanha, por exemplo, não pretendem se nuclearizar e preferem se colocar ao abrigo do guarda-chuva nuclear dos EUA. Os sábios vão exigir que esses dois países deleguem sua segurança a tropas da ONU?
11) Garantir o direito à informação e o direito de informar dos cidadãos mediante legislações que ponham fim à concentração de veículos em grupos de comunicação gigantes;
Os sábios deveriam encaminhar sugestões detalhadas aos órgãos nacionais de regulação audiovisual ou apresentar casos concretos de abuso nas instâncias de defesa da concorrência. Atitude louvável essa, embora a mesma postura não se aplique no caso de entidades puramente estatais, sempre julgadas benéficas por princípio.
12) Reformar e democratizar em profundidade as organizações internacionais, entre elas a Organização das Nações Unidas (ONU), fazendo prevalecer nelas os direitos humanos, econômicos, sociais e culturais, em concordância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Isso implica a incorporação do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e da Organização Mundial do Comércio ao sistema das Nações Unidas. Caso persistam as violações do direito internacional por parte dos Estados Unidos, transferir a sede da ONU de Nova Iorque para outro país, preferencialmente do Sul.
Reformar essas instituições deve fazer permanentemente parte da agenda dos governos responsáveis, já que essas instituições tendem a se converter em dinossauros esclerosados, cuidando unicamente do seu próprio interesse e do seu pessoal. Curiosamente, as instituições de Bretton Woods e a OMC não estão entre as mais mal geridas, bastando constatar que os piores casos de má administração de recursos, excesso de pessoal e desvios de função – quando não duplicação de iniciativas nas mesmas áreas – se encontram bem mais nas organizações da área social e cultural e nas de assistência aos países pobres.
Quanto à segunda sugestão, acredito que poucos delegados do Sul estariam de acordo em retirar a maior parte das organizações internacionais de suas sedes em países do Norte. Mas sempre se pode tomar a iniciativa de consultar os interessados.

Conclusão

Enfim, concluímos por aqui mais este “diálogo” com os antiglobalizadores, na verdade uma iniciativa totalmente unilateral e unidirecional, posto que nunca recebi nenhum comentário dos interessados a respeito de minhas críticas – algo contundentes, reconheço – a suas idéias surrealistas. É da minha natureza exercer o pensamento crítico, como também imagino que deva ser a postura acadêmica dos antiglobalizadores e seus representantes autorizados, em primeiro lugar os sábios.
O que constato, de fato, é que os antiglobalizadores, e seus sábios, adoram o pensamento único, pois que nenhuma entidade, ou personalidade individual, que não concorde com seus princípios algo esquizofrênicos é convidada a falar ou debater em seus conclaves sempre ruidosos e inconclusivos. Deve fazer mais de dez anos que eles nos prometem um outro mundo possível, e na verdade a única coisa que eles conseguem aprovar, como resultado desses encontros, é uma agenda que conseguiria tornar o mundo atual pior do que ele já é. Com efeito, todas as suas recomendações vão a contrário senso das tendências econômicas e científicas contemporâneas, tal como observadas no mundo real; não nesse outro mundo possível de que eles falam, mas do qual não conseguem entregar a receita.
Eu espero, no que me concerne, que este pequeno manual das irrealidades dos antiglobalizadores possa contribuir para que eles reflitam sobre a realidade do mundo concreto, não daquele imaginado por eles e que pouco tem a ver com as relações sociais, políticas e econômicas efetivamente existentes na maior parte dos países. O que deveriam fazer os antiglobalizadores (mas o que eles provavelmente não farão) seria aproveitar o Fórum Social Mundial de 2009, em Belém, para fazer um balanço honesto dos seus dez anos de pregações surrealistas e tirar as lições de por que suas receitas e recomendações – com exceção, obviamente, das mais óbvias, relativas a direitos humanos e sustentabilidade ecológica – não vêm sendo implementadas por praticamente nenhum governo do planeta, mesmo aqueles supostamente mais comprometidos com as suas causas.
Pode-se, a rigor, estabelecer um benchmark com base em suas recomendações – tal como examinadas neste trabalho e em textos anteriores – e verificar em que medida os governos aparentemente mais comprometidos com os princípios e causas do FSM implementam, de fato, as medidas preconizadas pelos antiglobalizadores. O primeiro teste é, evidentemente, o da própria globalização. Ninguém há de recusar a realidade, por exemplo, de que Cuba e Coréia do Norte são países pouco globalizados – junto com outros, como Síria e Iran, que também controlam a internet e a imprensa -, comparativamente com Costa Rica e Coréia do Sul, e isso poderia servir de benchmark para um balanço do bem estar social, dos direitos à livre informação e de todas as demais liberdades individuais ou coletivas em todos esses países. O contraste seria tão flagrante que eu não tenho nenhuma dúvida quanto ao resultado desse teste.
Em face desse tipo de realidade, eu me pergunto o que é que os sábios e seus seguidores da antiglobalização aprovarão em Belém. Talvez uma repetição maquiada das teses aqui examinadas. Creio que teremos mais do mesmo (até o próximo Fórum Surreal Mundial), posto que eles sairão convencidos de que suas propostas podem funcionar na prática. Ainda não se viu nada disso, mas eles não perdem a esperança.
Imagino que os mais jovens o façam por ingenuidade ou ignorância das coisas do mundo. Imagino também que os mais velhos – sindicalistas, professores e outros últimos crentes na verdade revelada – o façam por autismo político e incapacidade de enfrentar a realidade. Quanto aos sábios, que teoricamente podem dispor de todo o conhecimento acumulado desde sempre nas academias e centros de pesquisa, acredito que eles continuam a repetir as mesmas idéias surrealistas e os mesmos equívocos na área econômica, não por acreditarem em seus argumentos, mas apenas para disporem de uma tribuna fácil para suas perorações inúteis. Isto não constitui apenas uma forma de auto-engano; mas se trata, provavelmente, de desonestidade intelectual, o que é imperdoável a cidadãos escolarizados além do terceiro ciclo. Enfim, ninguém gosta de desmantelar seus sonhos e utopias. Acho que os sábios também não…

Algumas recomendações de leitura:

Paulo Roberto de Almeida é Doutor em ciências sociais, diplomata de carreira, professor no Mestrado em Direito do Centro Universitário de Brasília – Uniceub (pralmeida@mac.com). Os argumentos aqui apresentados correspondem única e exclusivamente às posições pessoais do autor, não tendo qualquer relação com as entidades a que ele se encontra vinculado.

A crise financeira e a crise do marxismo: qual a mais grave? - Paulo Roberto de Almeida

Em 2008 fui solicitado por um reporter de jornal a comentar sobre o eventual ressurgimento de Marx em face da crise financeira então em curso. Aproveitei minhas respostas a suas perguntas para compor o trabalho que segue abaixo. Acredito que ele ainda tem validade, daí colocar neste blog, a despeito de o texto original estar disponível no meu site pessoal (link: www.pralmeida.org/05DocsPRA/1945MarxCrise.pdf).
Paulo Roberto de Almeida 
Hartford, 2/02/2014

As crises do capitalismo e a crise do marxismo: qual a mais grave?

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 18 de novembro de 2008

 “Quando ouço falar em crise do capitalismo, saco logo o meu Marx...”
A explosão da crise financeira mundial, iniciada no coração do capitalismo, agora disseminando-se rapidamente na periferia, trouxe pelo menos um benefício aos críticos do sistema: ela os fez acreditar no “ressurgimento” de Marx. Alguns ingênuos até chegam a acreditar no fim do capitalismo, pelo menos em sua modalidade “laissez faire”, mas isso depende do grau de adesão ou de fidelidade à doutrina. Os mais “true believers” emergem de seu anterior estado catatônico com um sorriso nos lábios e um ar de: “Eu não disse?”. Os mais realistas apenas se contentam em sacar o seu Marx na estante para ir buscar alguma frase do genial pensador que os contente na feliz certeza de que tudo estava previsto em algum texto de 150 anos atrás.
O certo mesmo é que a nova agitação febril em torno das idéias do filósofo de Trier e suas “previsões” quanto à natureza inevitável das crises sob o capitalismo deve animar alguns negócios com títulos que andavam desprezados nas bolsas de ações. A crer em certas matérias de imprensa, vem ocorrendo um surto de vendas de algumas obras do mestre, entre elas esse monumento gótico que se chama Das Kapital. As entrevistas se multiplicam com personagens quase caricatas – como Hobsbawm e seu marxismo esclerosado – que confirmam a intuição fenomenal do exilado de Londres em apontar as contradições inelutáveis do “modo de produção burguês”. Até mesmo a circunspecta revista francesa de crítica literária Le Magazine Littéraire convidou os suspeitos habituais da marxolatria gálica para editar um número especial que pretende explicar “les raisons d’une renaissance” (n. 479, outubro de 2008), mas o resultado é tão risível (para não dizer patético) que nem vale o trabalho da tradução.
Fui envolvido involuntariamente nesse retorno às fontes, como agora passo a relatar. Tendo escrito uma resenha irônico-depreciativa sobre uma compilação de medíocres textos de cultores dessa igreja, e sido posteriormente atacado por todos eles com furibundas invectivas dirigidas à minha pessoa, sem que eles sequer tivessem conseguido dizer qualquer coisa inteligente sobre o livro em questão – informo aos interessados que resumi o “debate” cômico neste ensaio: “Manifesto Comunista, ou quase...:  dedicado a “marquissistas” à beira de um ataque de nervos (a propósito de uma simples resenha)”, in Espaço Acadêmico (nr. 85, junho de 2008; link: http://www.espacoacademico.com.br/085/85pra.htm); Via Política (08.06.2008; link: http://www.viapolitica.com.br/artigo_view.php?id_artigo=68) – fui agora questionado por um repórter que, ao preparar uma matéria sobre a eclosão da crise, indagou-me se esta não me tinha feito, de algum modo, rever minhas posições sobre a “total contornabilidade” de Marx. Respondi-lhe que de modo algum.

A alquimia marxiana e o ouro dos tolos
Pretender ver em Marx um “intérprete” das crises financeiras e dos ciclos econômicos do capitalismo contemporâneo seria o equivalente de colocar um alquimista para trabalhar com a química moderna, ou fazer apelo aos médicos do século XVIII, com suas ventosas e aparelhos para “limpar o sangue” dos doentes, para tratar enfermos da atualidade. Marx permanece um autor e um filósofo do século XIX, que refletiu sobre o capitalismo do início da Revolução industrial com base em leituras de autores clássicos (entre eles Adam Smith e David Ricardo, um pouco do John Stuart Mill) e em informações disponíveis naquela conjuntura, de capitalismo industrial ainda incipiente e de práticas bancárias e financeiras típicas de um sistema ainda em seu nascedouro, extremamente limitadas em comparação com os padrões do início deste século XXI.
Esse fascínio com Marx, como profeta da derrocada do capitalismo, diz mais, aliás, sobre o estado psicológico “carente” dos proponentes desse tipo de argumento do que sobre a situação real do capitalismo contemporâneo: pessoas que assim argumentam precisam confirmar seus preconceitos – obviamente negativos – contra o capitalismo, e Marx ainda é o mais conhecido dos seus detratores. Os últimos crentes da doutrina marxiana – mas muitos deles sao meros “marquissistas” – pretendem encontrar em Marx explicações para a crise. E quais seriam estas explicações?
As crises do capitalismo de que Marx tratou, ou que ele julgou tratar, eram, tipicamente, crises de “superprodução”, ou que ele considerava como tal, ou seja, acumulação de produtos de um lado, em quantidades sempre crescentes, em face da miséria também crescente da massa trabalhadora, que não teria condições de absorver essa produção ampliada, deslanchando, assim, uma crise de superprodução. Ou seja, segundo Marx, o próprio sistema capitalista produziria, de forma recorrente, essas crises de superprodução – demanda insuficiente – que serviriam para eliminar os excessos (tanto de produtos como de meios de produção), até encontrar uma nova situação de equilíbrio, mais adiante, com recomposição dos estoques. Esse tipo de análise é muito precária, para não dizer extremamente primitiva para pretender explicar as crises periódicas – mas a prazos irregulares – do capitalismo, que por ser um sistema extremamente dinâmico é, também, inerentemente instável, gerando de maneira absolutamente natural desequilíbrios e excessos que são corrigidos pelos mercados (com alguma intervenção dos governos, de maior ou menor intensidade segundo as orientações políticas das forças que ocupam o poder momentaneamente).
Marx também tratou da moeda e do dinheiro, mas suas análises, típicas de um cidadão educado na escola do lastro-ouro, seriam risíveis se colocadas na perspectiva das atuais crises financeiras e bancárias. Desse ponto de vista, ele continua (aliás, permanece desde o próprio século XIX) totalmente contornável para tratar das crises atuais. Alguns desses “marquissistas” redivivos chegam até a desencavar o volume III do Capital para dele extrair o conceito de “capital fictício”, que seria aquele derivado da “financeirização” – outro conceito cultuado nesses meios – do capital acumulado no setor real e transformado em títulos de crédito e ações que já não guardariam mais correspondência com a economia física.
Os críticos do “capital fictício” – que voltaram a vender esse conceito gótico como se fosse um verdadeiro “ouro dos tolos” – parecem não se dar conta de que a valorização dos títulos no mercado segue apenas a velha lei da oferta e da procura e que o reencontro com a realidade dos números da economia real se dá cada vez que um novo comprador entra no mercado para adquirir um ativo supervalorizado: como ele supostamente não é um emissor primário de dinheiro, o mais provável é que retire dinheiro de sua poupança privada – ou “acumulação primitiva”, se os marquissistas preferirem – para tornar-se o feliz proprietário de um ativo hipervalorizado. O choque se dará na próxima queda brusca dos títulos, cortando a fumaça da valorização, mas limpando, ao mesmo tempo, uma parte da riqueza real de alguém.
Mas isso acontece todos os dias: marquissistas de academia, por exemplo, continuam a comprar as ações Marx, por um preço superior ao seu valor real. Eles já não compram ações Lênin, Stalin, Mao ou Pol-pot: elas foram hiperdesvalorizadas pelo desprezo votado a elas pela maior parte dos “gramscianos” que freqüentam nossas academias. Espera-se apenas que eles estejam bem servidos com o seu Marx...

Inexplicável: marquissistas são antiglobalizadores, contra Marx...
A maior parte dos marquissistas bate cartão de ponto nos ruidosos encontros dos antiglobalizadores. (Parênteses: eu sei que eles preferem chamar a si mesmos de “altermundialistas”, mas como até agora não souberam dizer de que seria feito esse outro mundo possível, prefiro designá-los pelo que eles são, efetivamente.). Isso é tanto mais surpreendente que Marx era um globalizador por excelência. O Manifesto Comunista (1848) constitui um hino em louvor ao papel modernizador da burguesia e do capitalismo na abertura de novos campos e territórios à exploração do capital e na derrubada de sistemas econômicos esclerosados ou defasados, como eram não apenas os da periferia colonizada, mas também os de muitos países europeus em sua época. Marx apoiaria totalmente o mundo da globalização capitalista contemporânea, que ele consideraria necessária para acelerar o caminho em direção ao socialismo (de forma totalmente equivocada, portanto). Se ele tivesse de escolher, estaria sentado com os capitalistas de Davos, não com os românticos do Foro Social Mundial, que ele consideraria como irremediáveis socialistas utópicos e sonhadores incuráveis.
A comunidade surrealista que é hoje colocada no campo da anti-globalização é, na verdade, um conjunto heteróclito de viúvas do marxismo e do socialismo, de órfãos da globalização, de acadêmicos absolutamente perdidos em face do renovado vigor revelado pelo capitalismo, enfim, uma assemblagem de pessoas incapazes de sequer compreender o funcionamento dos mercados financeiros, e do mundo da produção de modo geral, quanto mais de interpretar esse mundo de forma adequada ou correta. Esses pretensos acadêmicos “marxistas”, que eu chamaria mais apropriadamente de “marquissistas de opereta”, não têm a mais leve idéia de como funcionam os circuitos financeiros, mas se permitem emitir opiniões e julgamentos sobre a “morte do capitalismo” como se estivesse preparando o seu enterro.
Daí essa agitação e essa alegria incontida, cada vez que o sistema produz uma dessas crises recorrentes: eles “precisam” desses cenários para confortá-los em suas opiniões equivocadas de que o capitalismo marcha a caminho de sua auto-destruição. Eles ficam radiantes cada vez que um banco quebra ou uma empresa é fechada; para eles, é como se estivesse chegando o dia do julgamento final. Nisso eles têm companhia: o próprio Marx acreditava que o sistema capitalista produziria, um dia, uma crise geral de tais proporções que representaria sua derrocada final, no que ele se enganou redondamente (mas isso todo mundo já sabe). Sistemas dinâmicos produzem crises; sistemas estáticos, sem riscos, como o socialismo, produzem estagnação e esclerose. Não é preciso dizer o que ocorreu ao longo do tempo...

Reescrevendo Lênin: a globalização seria a última etapa do capitalismo?
O conceito de “última etapa” só existe para quem é milenarista, salvacionista, quem espera a vinda do redentor ou o dia do juízo final. Não existe isso em história, social ou natural. O sistema está sempre caminhando em direção a novas formas e modalidades, incorporando novos elementos estruturais ou conjunturais, tirando lições de experiências passadas – mas para isso é preciso ser minimamente inteligente, não exibir preconceitos, como certos “marquissistas” brasileiros – ou seja, em contínua adaptação e evolução sistêmica (o que não quer dizer para formas moralmente mais elevadas ou socialmente mais justas, mas estas são outras questões).
Marx acreditava, de fato, que o capitalismo seria superado por um “modo de produção superior”, que para ele era o socialismo. Isso é pura poesia, ou alienação marxista, no sentido de acreditar que a história é predeterminada ou tem leis de ferro que a levam numa direção previamente definida (claro: por algum cérebro genial que alguns acreditam fosse o de Marx). Não é preciso dizer que ele foi inteiramente desmentido pelos laboratórios da história.
Lênin também acreditava, como outros marxistas de sua época, que o capitalismo, em sua fase monopolista, chegaria necessariamente à fase imperialista, para ele a etapa superior – e supostamente final – do capitalismo. Outro poeta sonhador. Lênin era talvez um gênio em política, mas uma nulidade em economia.
A globalização transcende o capitalismo, o feudalismo ou até o pretenso socialismo que existiu durante algumas décadas em alguns países. Trata-se de um processo impessoal, indeterminado, incontrolável, de integração dos mercados e de internacionalização da produção. Ela existe desde os tempos dos fenícios e dos romanos, foi parcialmente interrompida com as invasões bárbaras e a fragmentação dos reinos e impérios existentes durante a Idade Média, foi retomada com Colombo e Vasco da Gama, impulsionada por conquistadores, piratas, missionários, capitalistas e legionários, parcialmente interrompida por setenta anos de experimento socialista (totalmente fracassado, não é preciso insistir e tripudiar com os órfãos) e retomado a partir da implosão final do socialismo na União Soviética e do início das reformas na China (ainda formalmente socialista, na verdade autocrática-capitalista).
A perspectiva marxista da globalização era inteiramente dominada pela visão do capitalismo como modo de produção dominador, o que está longe de ser verdade, pois se trata, apenas, de uma das muitas formas da economia de mercado. Os marxistas não conseguem ver que a globalização transcende o capitalismo e a própria economia de mercado, embora se desenvolva basicamente através da integração dos mercados. Por exemplo, blogueiros na internet, atualmente, são parte integrante da globalização, sem necessariamente vincular-se a um mercado determinado.

A crise financeira seria a “ressurreição” de Marx e a superação do capitalismo?
Assim como não se pode antever a superação do capitalismo, difícil prever qualquer “ressurreição” de Marx, pelo menos não para os que lidam com o capital e os mercados financeiros. Ele certamente nunca morreu e está mais vivo do que nunca em certos meios acadêmicos, mas o problema é que, justamente, esses meios ignoram por completo como funcionam os meios financeiros, e ficam dando lições sobre o “capital fictício” como se este fosse um um funcionário do Banco Central.
O que existe é uma necessidade psicológica de certos acadêmicos frustrados com o fim do socialismo de desenterrar um cadáver sempre recuperado em momentos de incertezas quanto aos destinos do capitalismo e de colocá-lo a serviço de suas causas sempre derrotadas. Como eles não têm a mínima capacidade de pensar com suas próprias cabeças, vão buscar duas ou três frases impactantes do filósofo barbudo para rechear algum artiguinho cheio de bobagens sobre os sobressaltos de Wall Street. Eles se escondem atrás de Marx para não revelar que não compreendem patavina do que está ocorrendo com os mercados.
Pode-se considerar que são simples saudosos de explicações simplistas sobre o funcionamento dos mercados financeiros e do capitalismo, ou então que são pessoas completamente esquizofrênicas, que não conseguem encontrar explicações mais plausíveis para as turbulências atuais dos mercados financeiros e que se refugiam, então, em mitos e crendices gerados pela sua própria incapacidade de compreender a realidade. Tenho plena consciência que as obras de Marx estão vendendo muito bem atualmente, o que me suscita um único comentário, ou talvez dois: (a) é ótimo para editores e livreiros que isso esteja ocorrendo, pois eles vão poder fazer uma “mais-valia” extra com a crendice de pessoas ingênuas ou mal-informadas; (b) fica pior, em contrapartida, para os crentes e desavisados, que vão comprar um produto que teria, supostamente, a “explicação mágica” das turbulências atuais do capitalismo e que, obviamente, não vai servir para nada.
A estes, eu faria apenas uma recomendação, aliás já feita para nossos “marquissistas de opereta”: melhor usar o dinheiro para comprar uma boa pizza e assim movimentar negócios capitalistas no seu bairro...

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Venezuela: o caos total do socialismo do seculo XXI

Uma herança em jogoOmar Lugo, de Caracas
Valor Econômico, 31/01/2014 

Venezuela, o mais recente laboratório do socialismo ortodoxo no mundo, sofre hoje fortes transformações econômicas e sociais, radicalizadas em nome da "revolução chavista", que neste domingo completa 15 anos em meio a uma severa escassez de dólares. A distorcida economia é o território sobre o qual o governo civil-militar de Nicolás Maduro, herdeiro do "líder supremo" Hugo Chávez, desdobra suas forças para consolidar um processo que exibe alguns resultados sociais e muitos danos colaterais, como a elevada criminalidade, a escassez de bens básicos e a queda da produção local.

O objetivo oficial é tornar irreversível o sistema socialista em implantação, soterrar o capitalismo, fortalecer o Estado, unir as Forças Armadas e organizações populares e projetar o país como potência regional. Tudo está no marco do "Plan de la Patria", testamento do presidente Hugo Chávez, decretado por Maduro como manual obrigatório para os próximos anos.

A radicalização ocorre em um contexto de mais inflação, empresas com baixo uso de capacidade e reduzida produção da PDVSA, a deficitária petroleira estatal que sustenta os programas sociais do governo com petrodólares nunca suficientes.

Depois de ganhar a eleição de 1998, na esteira de uma onda de descontentamento popular contra os partidos tradicionais, Chávez assumiu a Presidência em fevereiro de 1999. De imediato, instaurou um processo para modificar a Constituição e iniciou profundas mudanças políticas e sociais na estrutura do Estado venezuelano, até a declaração de um regime socialista, em 2004. "É possível definir a situação atual de muitas maneiras, mas, em última instância, é uma crise de caixa, de dólares em espécie", disse ao Valor um economista, especialista em petróleo, que preferiu não ser identificado.

Depois de vários anos de gastos públicos sem controle, no ano passado o governo se financiou deixando de pagar em moeda estrangeira empresas privadas, companhias aéreas, importadores e contratistas da PDVSA. Segundo o informe financeiro da empresa, sua dívida com fornecedores privados era de US$ 16,7 bilhões no fim de 2012. Agora, diversos credores estão cobrando suas faturas. Só por importações já ingressadas no país, autorizadas, mas não reconhecidas, o governo deixou de entregar a empresas locais cerca de US$ 9,5 bilhões, calcula Jorge Roig, presidente da associação privada Fedecámaras, a Fiesp da Venezuela. São dívidas com atrasos de até 300 dias. Há o risco de que fornecedores fechem linhas de crédito e que a falta de produtos se agrave, disse também Roig.

Somados os compromissos não honrados com companhias aéreas e os valores devidos por expropriações e repatriação de capitais, a dívida com o setor privado é de cerca de US$ 50 bilhões, segundo Roig. O governo propôs pagar com combustível e títulos da dívida pública os US$ 3,6 bilhões que deve às empresas aéreas, mas a proposta não é atrativa, explicou uma fonte.

O país que se orgulha de possuir as maiores reservas de petróleo do mundo, suficientes para 800 anos de exportações ao ritmo atual, tem entradas decrescentes de divisas. "Estamos exportando menos petróleo, inclusive para os Estados Unidos, nosso mercado mais rentável", observa o especialista em questões do petróleo.

Dados da Agência Internacional de Energia (AIE) e do Departamento de Energia dos Estados Unidos indicam que a produção real da PDVSA é de 2,4 milhões de barris por dia, bem abaixo dos 3,6 milhões de barris de 1996. O mercado local consome 800 mil barris, o que deixa apenas 1,6 milhões de barris para exportações, incluindo 800 mil aos Estados Unidos, que pagam em moeda forte. O restante das vendas vai para China, Índia e parceiros do Caribe, com descontos, ou para pagar créditos.

O ingresso real das exportações de petróleo e derivados previsto para este ano é de cerca de US$ 40 bilhões. Desse montante, é preciso descontar pagamentos de dívida financeira da PDVSA no exterior e importações de 200 mil barris por dia em naftas e gasolinas compradas a US$ 120 o barril, para serem vendidas no país pelo ridículo preço de US$ 2,1 o barril. "Isso deixa uma cifra de US$ 25 bilhões de exportações de petróleo e derivados, uma fração do que eram há 5 ou 15 anos, para pagar as importações e os juros da dívida externa", explicou o economista.

Em uma economia importadora, isso se reflete nas filas diárias de clientes nas portas dos supermercados de todo o país. As pessoas buscam principalmente farinha de milho e de trigo, óleo, frango, margarina, leite, açúcar, papel higiênico, guardanapos. Esses produtos, de preços e nível de produção controlados pelo Estado há uma década, desaparecem das prateleiras com espantosa velocidade e vão parar no mercado negro, em que o preço se multiplica em favelas, ruas comerciais e países vizinhos.

O próprio presidente da Assembleia Nacional, Diosdado Cabello, afirmou recentemente que 30% dos alimentos importados "são contrabandeados para a Colômbia". De acordo com o Banco Central, em dezembro a escassez foi a mais alta em seis anos e, em média, chegou a 22% em produtos básicos (de cada 100 produtos procurados, o consumidor não encontra 22). Mas também faltam baterias e peças de reposição para carros e máquinas, papel para imprimir jornais, matérias-primas, alguns remédios, equipamentos de laboratórios médicos, eletrônicos e de computação, fraldas e detergentes.

Paradoxalmente, nas lojas há variedades de uísque escocês e champanhes. É fácil encontrar azeite de oliva, biscoitos e macarrão italiano, queijos uruguaios, carnes e cosméticos do Brasil, vinhos do Chile, Argentina e do Mediterrâneo, e - quando aparecem - leite de Portugal e Equador e papel higiênico dos Estados Unidos.

Quando se espalha a notícia da chegada dos produtos controlados às lojas, aparecem longas filas. Alguns esperam horas para comprar por um preço cinco vezes menor ao oferecido pelos vendedores ambulantes ou pequenas lojas. Os mercados são interditados pela polícia ou militares, até acabar a mercadoria regulada.

Em uma das filas, diante de um supermercado no bairro caraquenho de Chacao, um jovem pedreiro, que se identifica apenas pelo prenome Carlos, diz que a economia vale a pena. Ele costuma se dirigir, todo dia, a uma grande construção, nas proximidades, em busca de emprego como carpinteiro, e aproveita para entrar na fila pela comida. "O emprego está difícil e a construção paga muito bem. Aí tem gente que leva um ano inteiro esperando ser chamado para trabalhar", diz. Os números oficiais, no entanto, são de um desemprego de apenas 5,6% em dezembro.

"Outro dia, eu, minha mulher e meus dois filhos passamos cerca de sete horas diante da [loja] Makro para poder comprar oito quilos de leite", comenta Carlos, enquanto espera pelo óleo e pela farinha, usada para preparar arepas, o alimento básico dos venezuelanos.

O governo atribui a escassez à "estocagem doméstica" e economistas culpam a baixa produção interna, enquanto muitas donas de casa só querem garantir os produtos básicos para seus filhos, já que não sabem quando será a próxima vez que vão encontrá-los.

Outro trabalhador faz contas: com o que gastou em quatro quilos de farinha e dois litros de óleo de milho controlados, só teria conseguido comprar um quilo de farinha com os vendedores ambulantes. "As pessoas vão se cansar, isto vai se transformar em uma bomba- relógio", resmungava, depois de conseguir cota de alimentos controlados.

Sua observação coincide com a de um analista político da Universidade Central da Venezuela, Luis Salamanca, especialista em temas sociais. "Uma bomba-relógio sociopolítica está sendo alimentada com esse pesadelo que é a Venezuela de hoje em dia. Todas as classes sociais vivem reféns de uma comoção descontrolada, gerada pela irresponsabilidade de um governo que há 15 anos atua supostamente em nome do povo" afirma.

"A megacrise atual colocou em evidência o altíssimo nível de dependência que temos da renda do petróleo. A sociedade está dominada por uma criminalidade desatada e pela incerteza de uma economia que está caindo aos pedaços", diz.

O ataque à criminalidade é a mais recente oferta de Maduro, que se viu estimulado pelo assassinato, no princípio de janeiro, da atriz Mónica Spear, miss Venezuela de 1994, assassinada, com seu marido, por assaltantes numa rodovia. Com mais de 24 mil assassinatos por ano, o país está entre os mais perigosos do mundo em tempos de paz, segundo o Fórum Penal Venezuelano e o Observatório da Violência. O governo nega esses dados.

Até os opositores reconhecem a capacidade do chavismo para capitalizar desvantagens e "dar a volta por cima", mobilizando seus seguidores. Desta vez, Maduro tirou a bola da oposição no meio do campo da luta contra a "insegurança" e anunciou que lançará um "plano nacional de pacificação" no dia 8.

Dias atrás, Maduro convocou encontros "de convivência familiar" em praças e avenidas do país, com festas e brincadeiras para crianças, em mais um dia que serviu como outra homenagem a Chávez e ao socialismo. "Basta de violência, fruto dos antivalores acumulados. Basta de uma sociedade capitalista de consumo. Façamos a paz!", proclamou.

"A imprensa burguesa faz festa com os crimes, ao anunciá-los no necrotério, nos noticiários, nas primeiras páginas e nas novelas. Há todo um modelo anticultural no aspecto da violência que vivemos hoje e que foi imposto nos últimos 40 anos", afirmou o presidente. O ministro do interior, general Miguel Rodríguez Torres, disse ao Valor que as convocações para a paz são um primeiro passo antes do plano de pacificação. "Se todo o povo se une, em quatro ou cinco anos a Venezuela pode ser um território de paz."

Os críticos observam que não haverá progresso enquanto as prisões estiverem sob o poder dos próprios criminosos e não do Estado, em um negócio milionário que abarca militares e policiais corruptos. Rodríguez Torres afirma que o governo "está trabalhando para recuperar o controle das prisões" e espera acrescentar "quatro ou cinco" neste ano. "Já há 17 sob regime rígido do Estado. Isso é um avanço, ainda que faltem outras 16. "Cada prisão é um comando de operações de crimes, de extorsões e sequestros", admite. O ministro também informa que estão fazendo ensaios para bloquear as comunicações nas prisões. "Não podemos continuar permitindo que, usando a tecnologia celular, coordenem operações de quadrilhas organizadas por eles."
AP / APEm ato antiviolência, mulher exibe foto de Mónica Spear, miss Venezuela de 1994, com o marido, assassinados no início do mês: país está entre os mais perigosos do mundo em tempos de paz, segundo ONGs

Entre caminhões de som que emitiam discursos e músicas, castelos infláveis e militares em roupa esportiva, caminhavam as aposentadas Alba Carmona e Josefa León. São voluntárias do Movimento pela Paz e pela Vida, convocado por Maduro. "Temos criminalidade em todos os lugares do mundo e aqui sempre foi assim, tem sido assim toda a vida", diz Alba, antes de admitir que o governo deve "ter mão dura e colocar as coisas nos eixos".

"Há muita gente que paga para sair da prisão. O dinheiro compra tudo. Há impunidade, não vamos tapar o sol com a peneira", disse, ao ratificar sua fidelidade chavista "até que o mar se seque". Ela reconhece que as filas e a escassez, junto com a criminalidade, estão entre os principais problemas "do processo". Nega, porém, que exista possibilidade de uma explosão social. "Quando eu era criança, usávamos papel de jornal", diz. "Isso não cai. A cada dia isso tem mais vida, mais força, mais vigor, mais gente."

Pouco adiante, Melissa Ramírez, de 17 anos, se diverte com amigos. "A violência é algo que deveria parar. A adolescência está perdendo muito, há muitas mortes", disse.

O Estado assistencialista alimenta enormes expectativas em uma população socialmente dividida e muito politizada. Alguns chavistas críticos temem que as conquistas destes 15 anos estejam em risco, como a redução da pobreza, que, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), caiu para 23,9%, e a indigência a 9,7%, em 2013, o melhor resultado na América Latina.

O salário mínimo, considerado pelo governo "entre os mais altos do mundo", equivale a US$ 520 por mês, com a cotação oficial, mas a US$ 297 com a nova cotação de 11 bolívares. Se esse valor é calculado no câmbio paralelo, compram-se apenas US$ 52.

Esse mesmo salário também é pago a 2,75 milhões de pensionistas e aposentados, dos setores público e privado, que se comparam a apenas 380 mil beneficiários que em 1998 recebiam somente 60% do mínimo. "Aumentar o número de pensionistas permitiu avançar na erradicação da pobreza", disse o deputado da situação Oswaldo Vera ao jornal oficial "Correo del Orinoco".

Para financiar milionárias campanhas eleitorais - em que o chavismo mobiliza seus fiéis seguidores usando bens do Estado e distribuindo presentes - e sustentar o investimento social, o governo imprime dinheiro sem lastro, o que elevou a moeda em circulação em 70% somente no último ano.

Enquanto isso, as reservas internacionais do Banco Central estavam em US$ 20,5 bilhões em janeiro, a menor cifra nos últimos dez anos. A avalanche de liquidez e a limitação de dólares oficiais ajudaram a elevar o dólar no mercado negro a até mais de dez vezes a taxa oficial de 6,30 bolívares.

Do controle de câmbio surgiu um negócio da China para pessoas que viajavam para o exterior e aproveitavam a cota pessoal de até US$ 3 mil anuais permitida pelo governo para compras com cartões de crédito. A quantia era sacada em dinheiro vivo e, quando essas pessoas voltavam ao país, vendiam os dólares no mercado negro. A viagem saia de graça, além de possibilitar enormes lucros.

Na semana passada, o governo respondeu com um novo decreto, estabelecendo um sistema cambial diferenciado que levou o câmbio para viagens internacionais a uma taxa de 11 bolívares por dólar, o que frustrou milhares de viajantes. As remessas familiares, importações não básicas e pagamentos a empresas de seguros no exterior também passaram à nova taxa. A taxa de 6,30 bolívares por dólar fica para importações essenciais, que, segundo o governo, cobrirão 80% das necessidades do país, incluindo bens de produção.

Rafael Ramírez, vice-presidente da Área Econômica, ministro de Energia e presidente da PDVSA, diz que essas são decisões necessárias para equilibrar a administração de divisas e enfrentar "a guerra econômica" com foco na nova ordem que se aspira construir no país "em sua transição ao socialismo".

O deputado da situação Jesús Faria afirma que "estão garantidos maior fluxo de moeda estrangeira, maior rigor na destinação e a revalorização do bolívar", porque até agora "a taxa de câmbio de referência" na economia é a do mercado negro, que traz muitos malefícios ao país", segundo a agência de notícias AVN.
Meridith Kohut/Bloomberg / Meridith Kohut/BloombergRodríguez Torres: convocações para a paz

A distorção é tão grande, que um carro de luxo custa tanto quanto uma casa em uma pequena cidade, a carne brasileira é mais barata que a nacional e um tanque de gasolina de 40 litros custa US$ 0,50 no câmbio oficial ou US$ 0,05 no paralelo. O dólar paralelo marca os preços relativos em toda a economia. Por isso, para alguns analistas, a nova taxa, de 11 bolívares por dólar, continua sendo "uma boa compra", considerando-se a inflação do país e a de seus principais parceiros no exterior.

Com as passagens áreas já vendidas para todo o ano de 2014, no caso de muitos destinos, os preços se multiplicaram por até 12 e mudam a cada dia, informou o portal Trabber.com.ve. "A crise das companhias aéreas na Venezuela está tendo um impacto muito forte. A instabilidade cambial, os cancelamentos de voos e a não venda de passagens está gerando uma inflação descomunal nas passagens", lê-se naquele portal, enquanto nas redes sociais chovem testemunhos de passageiros à deriva no exterior, ou aqueles que não podem sair do país por falta de dinheiro ou de passagens.

Publicar essas taxas não oficiais tem sido considerado até agora uma espécie de delito desestabilizador, potencialmente punido com prisão. Mas até no aeroporto e em locais públicos do centro de Caracas, na frente de agentes do Estado, pregoeiros compram e vendem moedas estrangeiras. Tornou-se comum a negociação de dólares e euros via transferências bancárias, a taxas determinadas por portais da internet proibidos pelo governo.

Enquanto isso, o governo prepara uma reforma na "lei de ilícitos cambiais", que ressuscitará um mercado alternativo com bônus de dívida pública em moedas estrangeiras, com o estabelecimento de uma terceira taxa de câmbio. Mas economistas duvidam que o câmbio negro caia enquanto o Estado for o principal ofertante. A inflação ajuda a sobrevalorizar a moeda e nutre a demanda por divisas. Também pressiona o déficit fiscal, calculado em 16% do PIB pelo Barclays Bank.

"Um preço artificialmente baixo do dólar oficial e a enorme quantidade de bolívares no sistema faz com que a demanda seja infinita. É uma centrífuga. Deter isso é o pior pesadelo da política macroeconômica", diz o economista Orlando Ochoa.

Os críticos dizem que modelos como esse são insustentáveis e provocam mais desvalorizações e inflação, a menos que se fortaleçam as finanças públicas com medidas impopulares, como o aumento da gasolina, cujos preços estão congelados há quase 18 anos. A dívida pública "já ronda os US$ 175 bilhões (quase 60% do PIB). Nos 11 meses de Maduro no governo, essa é a terceira desvalorização que o bolívar sofre: de 4,30 a 6 bolívares por dólar, e agora a 11 bolívares por dólar. A Venezuela compra tudo no exterior. Por isso, o preço das coisas se multiplica por três", afirmou o deputado Julio Borges, da oposição, em entrevista coletiva.

O Banco Central é mais otimista e afirma que a inflação perdeu velocidade, passando de 5,1% em outubro para 4,8% em novembro e 2,2% em dezembro. Atribui a alta de 56,2% anual (o dobro de 2012) aos ataques especulativos, "que atentam contra a estabilidade nacional", e ao uso indevido das divisas oficiais.

A doença e a morte de Chávez foram aproveitadas pela oposição e por alguns empresários "para intensificar artificialmente a deterioração das variáveis econômicas. Foram conjugadas tensão política e desestabilização econômica em prejuízo do povo", afirmou o Banco Central em comunicado recente.

Mas, segundo analistas, na realidade, a "hiperliderança de Chávez" desencadeou a atual crise. Em meio à doença do "chefe supremo", as campanhas eleitorais, a acirrada eleição que levou Maduro ao poder em abril de 2013 e o gasto público desmesurado, seus ministros pararam ou atrasaram decisões cruciais para a economia e a entrega de moedas estrangeiras ficou paralisada. Isso trancou o sistema industrial e comercial e gerou mais escassez, disparou a inflação e o dólar paralelo, ao qual muitas empresas importadoras passaram a recorrer.

Outros especialistas projetam mais inflação e escassez e um clima ainda pior para os negócios privados. Com a desvalorização, foi promulgada uma nova "lei de preços e custos justos", que limita os lucros anualmente a 30% em toda a economia e aplicará duras penas aos "especuladores".

Com essa lei, "todos os bens e serviços necessários ao desenvolvimento de atividades de produção, fabricação, importação, estocagem, transporte, distribuição e comercialização de bens e prestação de serviços são declarados de utilidade pública e interesse social", observa Angel Alayón, diretor do portal Prodavinci. "Como consequência, todos os ativos na Venezuela estão em uma condição de pré-expropriação (ou pré-confisco)."
AP / APFuneral de Chávez: todos "vivem reféns de uma comoção descontrolada, gerada pela irresponsabilidade de um governo que há 15 anos atua supostamente em nome do povo", diz analista político

O clima de negócios na Venezuela já estava entre os piores do mundo antes do acirramento dos controles, em novembro e dezembro de 2013, quando Maduro enviou seus ministros, acompanhados de militares e policiais armados, para ocupar comércios e fábricas com a ordem de baixar os preços de todos os produtos. Com o início do ano, grandes lojas continuam com as vitrines vazias em shoppings e muitas fábricas ainda não começaram a trabalhar.

O índice anual Doing Business, da Corporação Financeira Internacional, classifica a Venezuela em 181.o lugar entre 189 países com as piores condições de investimentos no mundo, seguida por um grupo de oito conflituosos países africanos, como Sudão do Sul, Líbia e Chade. O país de Chávez ocupa o 182º lugar em proteção aos investidores e o 187º em carga de impostos.

Segundo o Banco Mundial, a economia crescerá menos que no resto da América Latina, com 0,5% do PIB, em 2014, enquanto o Fundo Monetário Internacional projeta um preço do petróleo estagnado em US$ 103 para 2014, e em US$ 98 para 2015, contra US$ 104 em 2013. Vêm do petróleo US$ 96 de cada US$ 100 que entram no país.

Este é um ano de trégua eleitoral na Venezuela, antes que o Congresso seja renovado, em 2015, em uma eleição política e estrategicamente mais importante que as próprias presidenciais do ano passado. Em um país sem divisão real de poderes, Maduro governa via decreto e o Tribunal Supremo de Justiça acaba de abrir o ano judicial com o grito de guerra oficial: "Chávez vive, a luta continua". Organismos como o Tribunal de Contas, o Conselho Nacional Eleitoral e a Promotoria estão submetidos ao presidencialismo do Executivo.

Nesse cenário, o risco de perder a hegemonia no Poder Legislativo - que deve ratificar indicações dos demais poderes - poderia significar para o chavismo comprometer "a irreversibilidade" da chamada revolução bolivariana.

Por isso, neste ano, a economia e a segurança pública são as principais arenas de batalha entre o governo e opositores. A margem de manobra eleitoral permitiria ao governo, por exemplo, atrever-se a aumentar o preço da gasolina, cujo subsídio, já antes das duas últimas desvalorizações, fazia o Estado perder US$ 9,8 bilhões por ano, ou mais de 3% do PIB, segundo os economistas Douglas Barrios e José Ramón Morales, da Universidade de Harvard.

"Estimativas atualizadas mais rigorosas posicionam o subsídio aos combustíveis para transporte em torno de US$ 15 bilhões anuais. E vai a US$ 30 bilhões, caso os combustíveis sejam para geração termoelétrica", diz Morales. Em 2012, "o subsídio equivalia a nove vezes o que se destina à segurança pública em um país com a duvidosa honra de ter uma das mais violentas cidades no mundo", apontam suas pesquisas.

Defensores dos direitos humanos, como o advogado Rafael Narvaez, calculam que apenas 2% dos 150 mil homicídios cometidos na Venezuela entre 1999 e 2012 foram resolvidos. A impunidade, à qual se atribui na Venezuela o auge da delinquência e da corrupção com o dinheiro público, vem à mente quando o governo responde com chamados de paz a uma guerra de baixa intensidade.

"A impunidade tem pernas curtas, acaba", diz, sentado em uma cadeira de rodas, Tomas Sifontes, de 41 anos, durante a cerimônia pela paz no fim de semana. Sua história é a de muitos outros do grupo de pessoas com necessidades especiais que o acompanham: são vítimas da violência, baleados em algum obscuro episódio. Sifontes trabalhava como segurança particular de vendedores ambulantes e lojistas em Petare, conjunto de favelas em Caracas, que, com 500 mil habitantes, deixa pálida a carioca Rocinha.

Em uma madrugada de 2007, um grupo disparou contra ele pelas costas, o que o lesionou na medula espinal. Eram inimigos de Sifontes, que os havia impedido de realizar um roubo em uma das lojas. No mesmo dia, um de seus funcionários foi assassinado. Do grupo de agressores, nenhum está vivo. "Foram sendo mortos", conta em uma ilustração da espiral de violência no país de quase 30 milhões de habitantes.

"Uma das piores decisões que fiz na vida foi comprar uma arma de fogo", disse, depois de relatar sua vida de cadeirante, suas terapias em Cuba e o trabalho social que desenvolve em um grupo de deficientes, apoiados pelo governo chavista.

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Imprensa continua a se impressionar com palavras: Brics (mas nada alem de letras...)

‘O Brasil tem que redescobrir as reformas’, diz criador do termo Bric
O’Neill nega crise em emergentes e diz que Brasil se distrai com Copa e Olimpíadas
Economista sugere ajustes no país para incentivar investimentos do setor privado
LUCIANNE CARNEIRO 02.02.24-O GLOBO.

O economista Jim O'Neill, criador do termo Bricacrônimo Bric Thomas Lee / Bloomberg/14-10-2014
RIO - Economista que criou o termo Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) em 2001, Jim O’Neill afirma que problemas de emergentes são específicos, o Brasil deve observar o México e “redescobrir as reformas”.
— O Brasil usa muito o Estado para garantir o crescimento da economia: o Estado precisa sair do caminho — diz ele, que defende reformas para incentivar o setor privado a investir.
Sobre a turbulência em mercados emergentes nos últimos dias, O’Neill defende que não há crise e os problemas são específicos de alguns países.
Como vê a atual turbulência nos países emergentes?
Não está muito claro porque os mercados ficaram tão instáveis. E o mais importante: muito do que tem sido escrito não está correto. No momento em quefalamos, dois dos melhores mercados no mundo, Jacarta, na Indonésia, e Shenzhen, na China, estão subindo. Não sei porque alguns falam de uma crise nos emergentes: é uma coisa muito específica de alguns lugares. Para mim, a grande surpresa este ano é a performance desapontadora do mercado de ações americano, quando tantos estavam confiantes. E vemos evidência de que os dados de atividade americana estão desapontando levemente. Talvez o mercado tenha subido tanto que já não é mais tão barato ou os últimos indicadores econômicos tenham sido levemente desapontadores.
Como divide hoje os emergentes?
Não acredito que se pode falar de todos os emergentes como um só. É por isso que criei a expressão Bric. A China é hoje maior que a Alemanha, França e Itália combinadas. Como se pode falar dos emergentes como uma coisa só? O Brasil tem suas questões, mas na minha opinião o México está mostrando alguns aspectos promissores. A Nigéria terá seu PIB (soma dos bens e serviços produzidos no país) recalculado em uma ou duas semanas e o crescimento será 6% maior. Há problemas na América Latina, com algumas políticas loucas na Argentina. Tivemos problemas na Índia, mas acho que já foram ultrapassados. Temos problemas na Turquia e na Ucrânia. Mas também temos problemas na França e na Itália.
O senhor tem falado do potencial do Mints(México, Indonésia, Nigéria e Turquia). O que vê?
Estou particularmente otimista a curto prazo com o México e a Nigéria. Com o aumento dos salários na China, o México se tornou o local com custo mais baixo de produção dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) e passa por sérias reformas estruturais. Na Nigéria, veremos revisão nos dados do PIB que apontarão que já é a maior economia da África. A Turquia e a Indonésia são os países com os quais estou animado a médio e longo prazo, embora haja questões de curto prazo. Ambos têm déficit em contas correntes muito elevados, especialmente a Turquia, que também precisa resolver questões políticas.
O México parece ter ofuscado o Brasil em Davos. Como vê o Brasil hoje?
Não me preocuparia com Davos, mas é claro que é uma reflexão precisa do clima dos investidores. O Brasil deve pensar sobre o que o México está fazendo, o Brasil tem que redescobrir as reformas. O país tem estado muito distraído com a organização da Copa do Mundo e das Olimpíadas. O Brasil usa muito o Estado para garantir o crescimento da economia: o Estado precisa sair do caminho. São muito gastos e muito uso do BNDES. É preciso incentivar o setor privado a investir.
E como fazer isso?
São necessárias reformas e redução de taxas de juros. É preciso tornar o Brasil mais competitivo. Para acelerar o crescimento, o Brasil precisa investimento mais forte do setor privado.
Brics ainda é uma realidade?
Claro. Um crescimento desapontador por dois anos não é nada para o contexto do Brics. Até o fim de 2016, o Brics ainda podem ser maiores que os Estados Unidos. São os chamados ciclos econômicos. Se considerarmos o avanço econômico nesta década, embora o crescimento brasileiro tenha sido abaixo, a expansão foi maior do que nos três primeiros anos da última década. O Brasil segue por ciclos erráticos.
Como vê a China?
Estou realmente impressionado com a China. Imaginava que o crescimento médio nessa década seria de 7,5% e a China já cresceu 8,2% em média nesses primeiros três anos. A economia chega a US$ 9,2 trilhões A China cria um novo Brasil a cada dois anos. O crescimento está desacelerando, mas por ação deliberada do governo. Eles não tentam ignorar os desafios, mas sim lidar com eles.

Totalitarios em pensamento - Demetrio Magnoli

Tarso Genro, um stalinista vulgar, tentando enganar a militância ignara.
Paulo Roberto de Almeida 

O Graal de Tarso Genro

O Santo Graal dos comunistas foi a URSS e seu sistema de “repúblicas populares”. As insurreições na Hungria (1956), na Tchecoslováquia (1968) e na Polônia (1980) secaram o poço do encantamento. A queda do Muro de Berlim e a implosão da URSS quebraram o cálice sagrado. No último quarto de século, desorientados, os filhos do “socialismo real” empreendem a busca por um novo Graal. Como tantos outros, Tarso Genro encontrou-o na China (em “Uma perspectiva de esquerda para o Quinto Lugar”, artigo escrito numa língua estranha, longinquamente aparentada com o português). As suas elucubrações teóricas não têm interesse intelectual, mas merecem um exame político.
O governador do Rio Grande do Sul enxerga na experiência recente da China uma inspiração para a marcha do Brasil rumo ao estatuto de potência mundial. O que a China tem de especial? Um “sujeito político (Partido-Estado)” que “cria o mercado e suas relações”, num processo em que “estas relações novas recriam o sujeito (Partido-Estado), que será permanentemente outro”. É isso, explica-nos, que falta ao Brasil: um ente de poder capaz de reinventar a sociedade e guiar o povo até o futuro.
Décadas atrás, um tanto tristonhos, incontáveis socialistas deploravam o poder totalitário do Partido Comunista da URSS, mas o justificavam como um mal necessário pois, no fim das contas, aquele era o motor político da economia socialista. Genro, pelo contrário, não apela ao socialismo (uma “fantasia histórica”) para justificar o poder absoluto do Partido-Estado: basta-lhe um horizonte “chinês” de crescimento econômico e progresso social. E a democracia? A China triunfa graças a um “regime político não democrático para os nossos olhos”, ensina o líder petista, reproduzindo os argumentos oficiais do Partido Comunista Chinês, que justifica a tirania pela invocação ritual da cultura e da tradição.
Democracia é o regime no qual governantes não podem tudo –e aí está o problema do Brasil, na opinião dele
A democracia é o regime no qual os governantes não podem tudo –e aí está o problema do Brasil, na opinião de Genro. Na sua descrição, o “mercado” malvado sabota a redução dos juros, a abominável “grande imprensa” bloqueia o aumento do IPTU e os demoníacos “cronistas no neoliberalismo abrigados na grande mídia” manipulam a opinião pública. A expressão política de opiniões conflitantes e interesses divergentes que nos acostumamos a chamar de democracia representa, aos olhos de Genro, uma intolerável balbúrdia. É preciso, para libertar a “utopia concreta presa com âncoras pesadas no fundo real da sociedade capitalista”, instaurar uma ordem nova na qual o sujeito da História (o “Partido-Estado”) possa conduzir a nação até o futuro redentor.
O “levantar âncoras”, propõe Genro, encontra-se na convocação de “uma nova Assembleia Nacional Constituinte no bojo de um amplo movimento político inspirado pelas jornadas de junho”, mas “com partidos à frente”. Esqueça, por um momento, que as “jornadas de junho” não seriam as “jornadas de junho” se tivessem “partidos à frente”. Nosso pequeno, mas esperançoso, pretendente a Duce sonha com uma “marcha sobre Brasília” liderada pelo partido que exerce o poder.
“Penso que as esquerdas no país devem abordar programaticamente estas novas exigências para o futuro, já neste processo eleitoral”. Genro sabe perfeitamente que sua “utopia concreta” terá impacto nulo sobre a campanha de Dilma, que continuará focada em firmar alianças com o PMDB, o PP e o PSD, renovar os compromissos com as altas finanças e reforçar a parceria com os “movimentos sociais” estatizados. O vinho de seu cálice sagrado destina-se, exclusivamente, ao consumo interno do PT e de sua área de influência militante: é um antídoto ideológico contra as imprecações lançadas por correntes esquerdistas inquietas com o “giro à direita” do lulismo. Mas serve, ainda, para iluminar o lado escuro da alma do partido que nos governa.


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Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...