domingo, 21 de junho de 2020

A geopolítica do “vírus chinês” - Marcos de Azambuja (revista Piauí)

A geopolítica do “vírus chinês”

A disputa do século entre Washington e Pequim – e o que o Brasil tem a ver com isso

Marcos Azambuja
Revista Piauí, edição 165, junho de 2020

Mapa atribuído a Zheng He, grande navegador chinês do século XV: ao contrário dos EUA, que não temem agressão do Canadá ou do México, a China tem uma vulnerabilidade geográfica, que lhe traz preocupações reais com vizinhos poderosos, como a Rússia, a Coreia, a Índia e o Japão

O ofício do futuro é ser perigoso.ALFRED NORTH WHITEHEAD


É um lugar comum dizer que a história se faz por caminhos complexos e tortuosos, mas não é menos verdade dizer que ela também gosta e precisa de datas e palavras que sirvam como pontos de referência claros para os contemporâneos e para os que virão depois. São inúmeros, no correr dos séculos, os períodos de sinalização incerta e ambígua, mas uma coisa é praticamente certa: os anos de 2017 a 2020 não estarão nessa lista. Poucas vezes um momento histórico indicou, de maneira tão clara, sua intenção de ser lembrado como uma daquelas encruzilhadas em que as coisas deixam de ser o que eram e uma nova realidade aparece com todas as suas promessas e desafios. No caso, e pelo que se vê até agora, com mais desafios do que promessas.
Os Estados Unidos, nesses quatro anos memoráveis, promoveram a desconstrução da ordem internacional que eles próprios, com algumas interrupções e hesitações, vinham desenhando desde o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918. Enfraqueceram o Tratado do Atlântico Norte, sua principal aliança militar e política com os países da região. Reviram seu apoio ao sistema das Nações Unidas, amplamente construído por mãos norte-americanas, em São Francisco e em Bretton Woods. Saíram da Unesco e do Conselho dos Direitos Humanos, ambos entidades da ONU. Afastaram-se do Acordo de Paris sobre o clima e do acordo de controle nuclear com o Irã. Deixaram o Tratado Transpacífico, um acordo comercial entre países do Oceano Pacífico. Esvaziaram a política de criação de dois Estados em Israel e levaram sua embaixada para Jerusalém, dando reconhecimento formal à cidade como capital israelense. Buscaram aproximação com os regimes fortes da Rússia e da Coreia do Norte. Começaram uma guerra comercial com a China, seu maior parceiro e, depois deles próprios, a mais poderosa economia do mundo. Renegociaram seus tratados com o México e o Canadá que haviam criado a Alca, uma área de livre-comércio da região. Mudaram drasticamente as regras que regulavam o processo migratório para o país, começaram a construir um muro de separação com o México. Finalmente, os Estados Unidos também estão enfrentando agora, como todos nós, a mais agressiva pandemia dos últimos cem anos.
É difícil encontrar nos anais e em tempos de paz um processo de demolição tão abrangente. Como ilustração deste momento, escolho, arbitrariamente, um instante que me parece revelador e que foi capturado pelas implacáveis e onipresentes lentes e câmeras do nosso tempo. O presidente Donald Trump está na Casa Branca, tendo à sua frente um texto que vai ler para a nação. A menção que o texto fazia ao “coronavírus” é riscada e substituída – por sua própria mão – para que o vírus fosse simplesmente rotulado como o “vírus chinês”.
As palavras de Trump foram pronunciadas no dia 19 de março, quando a pandemia chegava devastadora à população norte-americana. A tentativa de associação explícita do vírus com a China destinava-se a fazer com que as duas palavras – “vírus” e “chinês” – ficassem ligadas de maneira indelével na memória coletiva. Como Catão, que exibe no Senado de Roma os figos recém-colhidos para mostrar a proximidade e a ameaça de Cartago, Trump procura transformar o novo coronavírus em arma e argumento contra a China. O mero fato de que, mais de 2 mil anos depois, eu ainda recorde aqui o episódio de Roma, em contexto tão diverso, é prova de como as palavras e os gestos podem ser longamente memoráveis e servem para definir momentos cruciais. Em termos puramente retóricos, a mudança intencional do nome do agente responsável pela pandemia era quase – como pretendia ser – uma declaração de guerra.
As palavras Covid-19 e coronavírus parecem ter sido aceitas de forma agora irreversível, mas, para isso, foi preciso que até mesmo os principais aliados dos Estados Unidos se recusassem a subscrever um importante documento do G7 porque incluía a expressão “vírus de Wuhan”, uma fórmula alternativa, e igualmente agressiva, que Washington desejava e promovia.
O que ajuda a entender a animosidade norte-americana é o fato de que a China, bem antes do tempo imaginado, ultrapassou a sua condição de economia complementar à dos Estados Unidos, que fornecia em condições imbatíveis uma enorme gama de bens e serviços, e passou a se apresentar, cada vez com mais credibilidade, como um poderoso rival no terreno que de fato importa e onde se definirá o controle do futuro – as tecnologias de ponta. A controvérsia não irá embora. Ao contrário, deve se agravar cada vez mais daqui para a frente.
A relação entre a China e os Estados Unidos – eixo central do mundo de hoje e, até agora, indispensável e vantajoso para a economia de ambos – vinha se deteriorando ao longo dos últimos meses, talvez um pouco mais. Mas, até então, o terreno principal do enfrentamento entre os dois gigantes era o das trocas comerciais. No centro das discussões, estavam os problemas ligados à propriedade intelectual e à competição desleal. A pandemia serviu para que se subisse o tom e se ampliasse a desconfiança entre os parceiros, que são, agora e cada vez mais claramente, adversários. Elevou-se neste ano, de maneira inquietante, o patamar do crescente antagonismo. Mas, antes de ir adiante e tratar especificamente disso, devo andar um pouco para trás.
Não encontro melhor caminho do que começar no ano de 1945, quando o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da era atômica inauguram um ciclo que se estende até hoje e que, apesar de importantes rupturas, guarda não poucos traços de coerência e continuidade. É um período marcado pela hegemonia dos Estados Unidos – desafiada até 1989 pela rivalidade militar e ideológica com a então União Soviética –, que se define por três parâmetros: a Guerra Fria, o fim dos impérios coloniais clássicos e o aparecimento na cena internacional de quase 150 novos países independentes, antes colônias, fato que mudou de maneira extraordinária o mapa político do mundo.
É, também, o período em que as armas nucleares excluíram, como opção racional, os enfrentamentos diretos entre Estados detentores dessa tecnologia, ainda que um número importante de conflitos periféricos desafiasse o controle das potências dominantes, interessadas em manter certas áreas sob sua influência. Nesse intervalo, emergem para a vida independente moderna alguns grandes atores, entre eles a Índia, o Paquistão e Israel, além da África do Sul, que se redefine com nova e acrescida legitimidade. E, finalmente, a China sai de um longo período de declínio e fragmentação para, reclamando ser vista como uma única entidade, ocupar seu lugar de direito na vida internacional.
Foi, sobretudo, um extraordinário período de acelerada incorporação científica e tecnológica. Penso que a época que agora está chegando ao fim será lembrada como aquela em que o homem passou, por sua ação ou omissão e pela primeira vez na história, a ter uma influência decisiva na sua própria sobrevivência como espécie. (As inquietações com o clima, com o meio ambiente e com o esgotamento dos recursos naturais, inexistentes ou marginais em 1945, são hoje uma preocupação absolutamente prioritária. A exploração espacial começou, deslanchou e hoje os céus são, literalmente, o limite. O fundo dos mares e dos oceanos oferece uma nova fronteira.)
Neste período, a ordem internacional democrática e liberal emergiu triunfante depois de décadas de desafio e turbulência. Parecia ser uma arquitetura tão estável que alguns até imaginavam que seu advento significava simplesmente o fim da história.
Este é o ciclo que está terminando. Agora, com sobressaltos, num mar de incertezas e enormes indagações, vivemos o que parece ser o nascimento de um outro ciclo no qual o poder dos Estados Unidos – um poder tão dominante que transformou os últimos cem anos no que se pode chamar, apropriadamente, de “século americano” – começa a ser ameaçado por novas formas de governo e de interação social, e pela volta da China ao lugar que o país ocupou, durante milênios, no tabuleiro do poder mundial.
O momento é talvez decisivo para o Ocidente, que terá de enfrentar um desafio direto à sua longa hegemonia, que vinha se estendendo e se consolidando desde que as Grandes Navegações, o Iluminismo e a Revolução Industrial deram à nossa parte do mundo a impressão de que podia exercer um poder duradouro em escala verdadeiramente global. Durante todos esses séculos, o Ocidente foi o centro e o motor da história. As duas grandes guerras do século XX, que chamamos mundiais, foram a culminância explosiva de crises que o Ocidente criou para si mesmo.
Não quero exagerar nem simplificar demais. Não ignoro o desafio que o Japão procurou oferecer na primeira metade do século XX até sua derrota em 1945 e, depois, seu impressionante renascimento. A própria China, humilhada e fragilizada, não chegou a perder formalmente a sua soberania e conseguiu mesmo, por seu incontornável peso, um lugar privilegiado como membro permanente do Conselho de Segurança da então recém-criada Organização das Nações Unidas. Tampouco estou esquecendo o dinamismo dos chamados “tigres asiáticos” a partir da década de 1970, e também tenho presente que a Coreia e o Vietnã deram a medida de como era caro e perigoso, mesmo para países muito poderosos, meter-se em uma guerra terrestre na Ásia. E a hora e a vez da Índia parecem estar perto de chegar.
Nos mares, a história não foi diferente. Ao longo dos séculos, o Mediterrâneo cedeu sua centralidade e influência ao Atlântico e, agora, o imenso Pacífico reclama sua hegemonia. Tudo parece indicar que iremos viver uma fase de menor fervor ideológico e ainda maior dinamismo tecnológico. A ciência vai tão longe e tão depressa que até a ficção científica parece superada por avanços e conquistas reais. Júlio Verne e H. G. Wells, assim como seus muitos sucessores, podem ser vistos hoje apenas como acanhados precursores. O mundo real, em várias frentes, parece ir mesmo além do que hoje pode ser imaginado.
Observo, naturalmente, com olhos brasileiros o que está acontecendo. O status quo é, certamente, mais confortável para nós do que aquele que agora começa a se desenhar. Temos, por ser parte dele, imensas afinidades com o mundo ocidental e nele estamos em casa. Participamos de sua história, de sua cultura e de sua política, e compartilhamos uma mesma tradição que se estende das práticas religiosas ao pensamento econômico.
A globalização aproximou maneiras de ser e fazer virtualmente em todo o mundo e reduziu diferenças, mas, apesar de tudo, ainda é mais fácil para nós pensar e atuar em algum idioma neolatino ou germânico do que em mandarim ou híndi. É bem mais simples nos orientarmos pelas ruas de Barcelona do que de Karachi. É verdade que o inglês é o novo latim, mas basta chegar a Cantão ou Bangcoc para descobrir que a chamada língua franca do nosso tempo é menos falada e entendida do que se supõe.
Teremos que nos acostumar a novos hábitos, aprender e decifrar ideogramas e nos familiarizar com tradições e narrativas que não são aquelas que conhecemos. Durante os muitos séculos em que o Ocidente ditou comportamentos e modas, eram elas, as imensas multidões que moravam do lado errado do Canal de Suez, que deviam fazer o esforço de aprender e copiar os estilos ocidentais, muitas vezes emigrar e vir aqui comer o “trigo alheio”. Agora, seremos nós a fazer o percurso em sentido contrário em busca de mercados, financiamentos e até mesmo empregos.
Tínhamos a impressão – e não era uma impressão falsa – de sermos o centro do mundo. Entre nós, um navio de longo curso era chamado de transatlântico, como se o nosso mar vizinho fosse o único em que se navegasse. Contávamos as horas pelo meridiano de Greenwich e parecia ser da ordem natural das coisas que fosse assim. O metro original, medida de quase todas as coisas, tinha nascido e morava em Paris. Aceitávamos sem surpresas que quase tudo se medisse por nossas réguas e nossos compassos.
Quando fui à China pela primeira vez, nos idos de 1975, os efeitos cumulativos da Revolução Cultural, do Grande Salto para a Frente e do radicalismo feroz da chamada Gangue dos Quatro ainda estavam dolorosamente presentes. O Brasil, ao contrário, vivia então um ciclo de acelerado crescimento econômico e, apesar do regime ditatorial, havia confiança no futuro. Na época, enquanto nós convivíamos com índices de crescimento aproximados aos da China de hoje, a China de então derrapava em taxas modestas e mesmo negativas de crescimento, como as do Brasil de agora. Em menos de cinquenta anos, tudo mudou.
A diferença de fuso horário entre Brasília e Pequim era e continua sendo de onze horas – e comemoro que, em um mundo em grande transformação, pelo menos isso não tenha mudado. Minha primeira noite no histórico Grand Hôtel de Pékin foi, como aconteceu em várias viagens seguintes, insone. Poucas horas antes, tinha cochilado, confesso, em cima de uma indefinível sopa durante um jantar formal interminável em pratos e brindes. Lá pelas sete da manhã, ou talvez um pouco antes, desisti de tentar dormir e fui para a minha janela, que dava para uma daquelas larguíssimas avenidas da capital chinesa. Vi então – e a imagem ficou comigo – uma miríade de bicicletas que rolavam em silêncio, pilotadas por muitas dezenas de milhares de chineses, todos vestidos com o que era virtualmente o uniforme do período maoista, e tive uma impressão, que perdura até agora, da imensidão do universo humano chinês e do seu não menor potencial.
Pequim então era cinza – desde a cor do céu até o tijolo das casas – e ainda se escutava o hino O Oriente É Vermelho, comemorando Mao Tsé-tung e sua obra em termos escandalosamente laudatórios. Na última visita que fiz à China, em 2012, as bicicletas haviam virtualmente desaparecido, o hino estava esquecido e o cinza fora substituído pelas cores reluzentes de uma cidade que parecia ter se reinventado e, magicamente, enriquecido. Do primeiro encontro com a China, lembro ainda que viajar de Cantão a Hong Kong representava muito mais do que atravessar uma fronteira política. Era observar aquela imensa diferença de riqueza e de modo de vida entre dois regimes e duas formas de organização econômica. Na minha visita mais recente, as diferenças eram quase imperceptíveis.
Atribui-se a Napoleão a seguinte frase: “Quando a China despertar, o mundo irá tremer.” Ele teria dito isso durante o exílio na ilha britânica de Santa Helena e, embora concorde com a profecia, desconfio da autenticidade da atribuição. (Eu mesmo tenho ocasionalmente usado o imperador para emprestar prestígio e autoridade a frases de origem duvidosa. Sábios chineses não identificados, bem como obscuros provérbios russos, são outros disfarces aos quais eu e outros tantos temos recorrido para dizer coisas às quais desejamos dar uma aura de profundidade ou um selo de autoridade. Os mortos não costumam reclamar.)
O fascínio do Ocidente com a China não é novidade. O nosso maravilhamento começa por volta de 1298, com a publicação do relato das viagens de Marco Polo. O outro momento decisivo de descoberta e contato ocorre na missão de lorde George Macartney, em 1792, a primeira da história. Com essa iniciativa, a Grã-Bretanha queria abrir a China para os seus produtos – e queria que isso acontecesse logo, por bem ou por mal. O imperador Qianlong disse que a China não precisava daquele comércio, desprezou os presentes que lhe eram oferecidos e não simpatizou com o emissário. O encontro marca também o primeiro choque entre dois impérios: o britânico, que estava em movimento e expansão, e o chinês, que vivia seu declínio. Em dois livros cuja leitura recomendo com entusiasmo, Alain Peyrefitte trata desse episódio crucial.
Com manobras astuciosas e dilatórias no final fadadas ao insucesso, a China procurou resistir ao insaciável apetite do colonialismo e do imperialismo ocidental e, depois, tardiamente, ao imperialismo nipônico. Por isso, foi alvo de ataques de uma violência que excederam mesmo os parâmetros do século XIX e da primeira metade do século XX, uma época especialmente tolerante aos abusos de poder pelas grandes potências. O retalhamento da China em áreas sob virtual jurisdição estrangeira, a ignomínia das guerras do ópio, a ferocidade da Guerra dos Boxers e a barbárie da invasão e ocupação japonesas devem ser vistos como alguns dos momentos mais repugnantes da história moderna. Não quero sugerir aqui que a China tenha sido apenas vítima inocente da violência de terceiros. Muito do que aconteceu na rebelião Taiping, ainda no século XIX, depois no longo enfrentamento entre nacionalistas e comunistas, e durante sua grande revolução, é igualmente terrível e indesculpável.
Como as coisas andam depressa, os novos tempos não têm ainda um nome de aceitação geral e, ao chamá-lo aqui de período pós-americano, tomo emprestada a expressão proposta pelo escritor e colunista Fareed Zakaria para descrever o mundo, como ele hoje se apresenta. Não disponho de outro rótulo melhor. A China, apesar de todo seu impressionante crescimento e projeção, ainda não reúne credenciais para pretender que os novos tempos tenham seu nome. A expressão pós-americano mostra, e isto me parece correto e essencial, que vivemos uma fase de transição que ainda não permite identificar com clareza suas coordenadas principais. Vemos apenas, com nitidez, o que deixou de ser.
Estou convencido de que o mundo, do ponto de vista militar, deverá nos próximos anos continuar com a configuração unipolar que o define. O poder norte-americano não deverá ser desafiado. Os Estados Unidos serão detentores, agora e no futuro previsível, de incontrastáveis meios de dissuasão e pressão. É sempre bom recordar que, além de sua própria e imensa projeção, os Estados Unidos são herdeiros e sucessores de três grandes impérios: o espanhol, o francês e o britânico, e a dispersão de suas bases e postos avançados corresponde, no Pacífico, no Atlântico e no Caribe, às fronteiras da influência desses impérios anteriores. A recente ampliação da presença chinesa em ilhas no Mar da China, espaço que Pequim prepara e virtualmente cria para seu uso estratégico, é coisa que não pode ser negligenciada, mas que, nem de longe, corresponde à profundidade e extensão da rede de instalações que definem o império norte-americano.
Acho que o desafio chinês aos Estados Unidos não deverá ser, até onde a vista alcança, militar e ideológico, como o que aconteceu com a antiga União Soviética. Será essencialmente comercial e tecnológico. O regime soviético nunca teve condições nem vocação para competir com os Estados Unidos em termos econômicos e comerciais, e o seu desafio se fazia em outros terrenos. A China, por seu turno, vai oferecer, isso sim, um desafio talvez insuperável em termos de produtividade e criatividade no campo da indústria, do comércio e dos serviços. Em um vasto espectro de atividades, a China se faz cada vez mais competitiva, prenunciando que as tensões com os Estados Unidos vão continuar a se agravar.
Quero acentuar – e acho importante repetir isso – a vulnerabilidade estratégica e geográfica da China. Os Estados Unidos nunca precisaram construir uma grande muralha e nunca foram invadidos e ocupados, ao contrário do que aconteceu com a China em mais de uma ocasião. Washington não teme uma agressão canadense ou mexicana (excluídas as preocupações migratórias ou policiais), mas a China tem preocupações reais com poderosos vizinhos: a Rússia, a Coreia, a Índia e o Japão. Isso sem falar no Tibete, que é um problema interno de difícil solução ou absorção. O futuro de Taiwan, por sua vez, é sempre um complexo desafio.
O sentimento de autoconfiança da China parece estar preservado no momento, ainda que o foco inicial da grande pandemia atual tenha sido em uma de suas províncias. A resposta chinesa depois de um breve período de procrastinação e mesmo negação da realidade parece ter sido extraordinária, mas só poderia ser feita na escala e na velocidade em que ocorreu em uma sociedade equipada com abundantes recursos e na qual o governo dispõe de instrumentos coercitivos extremamente eficazes – e não hesita em utilizá-los. Não subscrevo as teorias de conspiração que, como sempre acontece nessas circunstâncias, pretendem oferecer cenários dramáticos mas de escassa credibilidade para explicar o que ocorreu. O novo coronavírus causou muito sofrimento e prejuízos para a própria China e não vejo, até agora, provas de que tenha havido algum tipo de maquinação para produzir e liberar o vírus do qual o país foi a primeira vítima.
A cultura chinesa não privilegia a transparência. O conceito seria de difícil definição e talvez mesmo incompreensível para um sistema que cultua o sigilo, a disciplina vertical, o respeito pela autoridade e vê com visceral desconfiança os motivos e intenções do mundo exterior. É sempre útil ter em mente que a China, além de ser um grande país com todos os atributos de um Estado moderno, é, sobretudo, uma velha civilização e tem, de seu longo percurso, uma memória ininterrupta de quase 4 mil anos. A própria natureza e identidade do comunismo da China requer hoje qualificações tão profundas e extensas que chego mesmo a me perguntar se ainda serve de uma maneira rigorosa e abrangente para descrever o que a China de fato é e pretende vir a ser.
Ao longo de muitos anos tenho me colocado sempre a mesma pergunta: A China é ainda um país comunista convivendo com uma economia de mercado, ou é de fato um país capitalista governado por um partido formalmente comunista? No decorrer de décadas de observação, minha resposta tem variado. Desde Mao Tsé-tung, passando pelos anos de ascendência de Zhou Enlai e depois de Deng Xiao-ping, tenho oscilado e a mesma hesitação perdura até este momento em que o controle de Xi Jinping sobre o país parece se reforçar na busca de uma duração muito mais longa para seu mandato. Acabo sempre tendo que me refugiar nas palavras de Deng sobre a irrelevância que tem a cor de um gato desde que saiba apanhar ratos.
Há cerca de 50 milhões de pessoas de etnia chinesa que não vivem na China, nem em Hong Kong, nem em Taiwan. Estão espalhadas em um grande número de países (no Brasil, calcula-se que sejam cerca de 450 mil). Em graus diferentes, esses overseas Chinese, como são chamados, conservam uma importante fidelidade a suas origens. Ser chinês é mais do que pertencer a uma nacionalidade. É, também, ser parte de uma civilização profundamente conservadora, cujos membros se identificam pelo culto aos ancestrais e pelo respeito à família e às tradições. Essa grande diáspora chinesa aconteceu em diversas ondas ao longo de mais de mil anos e em muitas dessas comunidades no exterior, mesmo depois de séculos, seus membros ainda se identificam, no todo ou em parte, como chineses. Estou sugerindo aqui que é muito difícil deixar de ser chinês. Quem viaja pela Ásia e, especialmente, pelo sudeste do continente, pode constatar como a presença chinesa é demograficamente importante e, sobretudo, decisiva na economia e na administração de países como Tailândia, Malásia, Cingapura, Vietnã, Mianmar e até a Coreia.
Poderia ir muito além, já que a dispersão e a influência dos chineses é de fato global. Só nos Estados Unidos, segundo o censo de 2010, eram cerca de 3 milhões de sino-americanos, o que lhes confere um importante papel na construção da tapeçaria de raças e culturas que formam os Estados Unidos. A população acadêmica e universitária chinesa nos Estados Unidos é imensa, e seu prestígio intelectual é significativo. Nos negócios, desde os inumeráveis pequenos restaurantes de esquina até as grandes corporações, a presença chinesa é evidente e incontornável. Nas grandes cidades da China, a reciprocidade é visível, e os McDonald’s e Starbucks estão em todo lugar. Não preciso falar da atuação das grandes empresas. Minha convicção é que o comércio e os negócios, epicentro das atuais disputas, serão também o caminho para uma futura acomodação de interesses.
Não é fácil prever e desenhar um conflito de civilizações entre a China e o Ocidente, como se considera ser possível acontecer com o Islã. Há nos chineses e no mundo ocidental uma plasticidade e um pragmatismo que faz com que seja bem mais fácil encontrar terreno comum para colaboração e entendimento. Acredito, como dizia Montesquieu, que o “doce comércio” irá nos salvar. Não vejo as atuais e possíveis futuras tensões como uma incompatibilidade irremediável de práticas e valores. Na minha avaliação, estamos diante de grandes problemas e dificuldades, mas que são, por sua própria natureza, suscetíveis de serem quantificados e claramente definidos e, assim sendo, negociáveis.
Apesar de importantes hiatos, as relações entre a China e os Estados Unidos têm um fio condutor de busca de respostas pragmáticas, como deve e costuma acontecer entre duas imensas civilizações comerciais. As iniciativas Nixon-Kissinger junto à dupla Mao-Zhou Enlai, conduzidas em momento tão adverso, mostram o caminho que deverá voltar a ser explorado. O espírito de moderação parece estar temporariamente em falta em Washington, mas é da natureza das coisas que deva logo voltar. A China atravessa um perigoso momento de húbris, mas sua própria história é rica em lições que mostram como a excessiva autoconfiança pode preparar desastres um pouco mais adiante.
Não pretendo ter – depois de muitos anos e de longa reflexão – uma posição neutra sobre as relações entre o Brasil e a China. Sempre identifiquei, sem maiores complicações, o que parece ser a natural complementaridade de interesses econômicos entre os dois países. Somos e seremos cada vez mais produtores daquilo que a China precisa. E a China, cada vez mais, pode e parece querer fazer investimentos de grande importância estratégica para o nosso país. Desejo e espero que a relação se diversifique cada vez mais e nossa pauta de exportações possa ir além dos limites da lista atual.
Em anos recentes, e em mais de uma ocasião, visitei a China quase sempre em algum evento ligado aos Brics, o pequeno clube de cachorros grandes onde, para ser sócio, como costumo dizer, tamanho é documento. A China, a Índia e a Rússia se entendem e se desentendem há muito tempo. Nós e a África do Sul somos os new kids on the block, e cabe agora, aos cinco países, de tão díspares destinos, encontrar e definir alguns temas que possam servir como uma agenda comum. Gosto de participar desse exercício e acho que o Brasil deve continuar a ser um país de múltiplos vínculos e associações. Ficaremos desconfortáveis se seguirmos políticas estreitas contando apenas com uns poucos parceiros.
Antes que a diplomacia brasileira tomasse os caminhos erráticos e ingênuos que agora percorre, algumas verdades pareciam ser incontornáveis para nós. Éramos um país destinado a encontrar convergências com muitos – e não com poucos. Éramos naturalmente criadores de amplos consensos – e não parte de alianças sectárias. Usávamos a nosso favor as muitas dimensões da nossa identidade e não excluíamos, a priori, nenhum país ou ideologia idônea do nosso convívio e do nosso diálogo. Parecemos esquecidos de tudo isso.
Temo que o agravamento das tensões e disputas entre os Estados Unidos e a China crie condições que devem nos obrigar a navegar com cuidado em águas que ficarão perigosamente agitadas. Temos que cuidar dos nossos imensos interesses em jogo e agir com racionalidade e lucidez. O falso detetive chinês Charlie Chan, que ficou famoso em filmes de segunda linha nas décadas de 1930-40 e hoje talvez esteja merecidamente esquecido, dizia sempre o seguinte: “O espírito é como um paraquedas. Só funciona bem quando está aberto.” Essa é a recomendação que se deve fazer hoje aos que vêm conduzindo, com tanta imprudência, a política exterior do Brasil.

MARCOS DE AZAMBUJA

Diplomata, foi secretário-geral do Itamaraty e embaixador do Brasil em Buenos Aires e Paris. É coautor de História da Paz, da Contexto

Dani Rodrik: crise global e globalização - Entrevista a El País

Não estou de acordo com tudo o que escreve ou defende Dani Rodrik, considerado um excelente economista, e que agora vai ser premiado com o galardão espanhol Princesa de Astúrias, que vai receber em 16 de outubro em Oviedo, na Galícia.
Não estou de acordo, por exemplo, com esse conceito de hiperglobalização, como se os economistas tivessem o direito de criar um conceito e achar que ele representa a realidade. Isso se chama arrogância intelectual, ou seja, achar que a sua visão da realidade é a mais perfeita, a adequada, a correta, ou a única possível.
Quais são os critérios para achar que a globalização, que é um processo praticamente natural das economias de mercado – mas que pode, sim, ser retrasada ou estimulada por medidas de governos e de entidades internacionais –, estava derivando para isso que ele chama de "hiperglobalização", que seria, supostamente, uma globalização desenfreada, sem controles, sem critério, em face da qual os países, os governos, as empresas apenas poderiam se render, se entregar, sem fazer nada.
Isso não é verdade. As rodadas multilaterais de comércio NUNCA representaram exageros da globalização, ou da liberalização do comércio, que sempre foi limitada pela vontade dos governos, que sempre atuaram por pressão dos lobbies industriais, comerciais, financeiros, de agricultores, etc.
Ele diz não se surpreender em que essa coisa que ele inventou - out of the blue, ou seja do seu cérebro –, a hiperglobalização, esteja vindo abaixo, quando o que existe é uma pandemia, um desses cisnes negros que ninguém poderia prever. Se não houvesse isso, a globalização, seja hiper, seja normal, seja mini, continuaria igual, florescendo em alguns países, sendo reprimida em outros (como o Brasil, por exemplo), que não participa de qualquer cadeia de valor significativa (por protecionismo e stalinismo industrial), por decisão de seus dirigentes e por pressão dos lobbies industriais, mesmo os estrangeiros, que já estão aqui instalados há muito tempo (o setor automotivo, por exemplo, é "industria infante" há pelo menos setenta anos). 
Vejamos o que ele diz: 
"Não voltaremos à era de hiperglobalização dos anos 2000. Haverá mais regionalização no comércio e um uso muito mais ativo de políticas públicas, como a industrialização. E mais tensões em áreas tecnológicas, onde as nações tratarão de construir muros em torno de seus sistemas de inovação. Mas não estamos falando do desmoronamento do comércio global. Não voltaremos para os anos 1930 do século passado."
Ele está descrevendo "REAÇÕES", ou refletindo a realidade, não fazendo obra de economista; essa apregoada "regionalização" do comércio pode ocorrer como pode não ocorrer, e isso não depende nem dele, nem por vezes da vontade dos países, mas das decisões das empresas. São elas que impulsionam a globalização, mas nem sempre podem fazê-lo segundo sua vontade, mas segundo disposições existentes no plano nacional e no dos acordos comerciais bilaterais, plurilaterais ou multilaterais existentes, e sabemos que esses podem ser mais ou menos propensos a maior ou menor abertura e interdependência.
Na verdade, empresas são como indivíduos: querem tudo de bom, e rejeitam o que não é bom. Elas rejeitam a concorrência e adoram monopólios, uma situação em que só elas ganham, por isso querem abertura nos outros países, mas se puderem fechar os seus mercados nacionais o fariam sem qualquer constrangimento.
Achar que "políticas industriais" decididas por burocratas, por políticos, ou induzidas por lobbies setoriais são superiores ao livre jogo do mercado é outra ilusão que não me parece digna de um economista.
Como sempre, eu sou um cético sadio. Acho que os economistas devem fazer o seu trabalho decentemente, traçar os efeitos de determinadas políticas em termos de bem estar, mas não devem achar que suas preferências pessoais, por um mundo mais "solidário", mais socialdemocrático, mais distributivistas sejam melhores do que um mundo puramente anárquico, ao sabor dos mercados. 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 21 de junho de 2020

EL PAÍS
Crise global e globalização

“A pandemia funciona como uma lupa que amplifica as tensões econômicas já existentes”, diz o economista turco Dani Rodrik, professor da Universidade de Harvard. Nesta entrevista ao El País, ele fala sobre o futuro da globalização após a pandemia, uma crise que explicitou a importância da articulação global ao mesmo tempo em que promoveu o fechamento de fronteiras e deixou clara a necessidade de uma indústria nacional saudável. Para Rodrik, os sinais de que a hiperglobalização não era sustentável já existiam há muito tempo. “A grande pergunta agora é se criaremos uma globalização mais saudável e inclusiva ou avançaremos para o unilateralismo de Trump, com políticas insensatas que não beneficiam nem ao país que as promove nem aos seus sócios.” O economista acha que a solução passa por enxergar a globalização como oportunidade de “construir em torno de bens públicos, como evitar a mudança climática ou lidar com as pandemias”, dedicando menos interesse a temas como o comércio internacional e fluxos de capital. “Vamos nos afastando dessa ideia de que cada país devia se adaptar à economia internacional. E devemos entender que é justamente o contrário: que a economia internacional deve servir aos objetivos de cada país.” >>


Pandemia do Coronavirus

Dani Rodrik, economista: “Esta crise nos ensina que nossas prioridades estavam equivocadas”

Professor em Harvard diz que a pandemia amplificou as tensões econômicas já existentes e afirma que autocratas como Bolsonaro e Trump têm respondido pior ao momento.


Luiz Doncel
El País, 17 junho 2020


Dani Rodrik passeava com seu cachorro na manhã de quinta-feira passada quando deu uma olhada na sua conta do Twitter. Foi então que soube que havia ganhado o Prêmio Princesa de Astúrias de Ciências Sociais de 2020, um dos mais importantes da Espanha. A esse economista turco-norte-americano, um dos mais influentes da atualidade, não lhe escapa a ironia de ser premiado por seus estudos sobre a globalização justamente quando este fenômeno recebeu o golpe mais duro de sua história. A pandemia do coronavírus, afirma ele no seu gabinete da Escola de Governo John F. Kennedy, da Universidade Harvard, funciona como uma espécie de lupa que amplifica todas as tensões latentes na economia durante décadas.
“Não me surpreende que a hiperglobalização esteja vindo abaixo. Faz anos que digo que não é sustentável. A grande pergunta agora é se criaremos uma globalização mais saudável e inclusiva ou avançaremos para o unilateralismo de Trump, com políticas insensatas que não beneficiam nem ao país que as promove nem aos seus sócios”, diz ao EL PAÍS, por videoconferência, esse professor que é presença habitual nos bolões de aposta do Nobel. Para ele, tanto Trump quanto Jair Bolsonaro são líderes populistas que se gabam de ter todas as respostas, algo que esta crise contribuiu para desmentir. “Não me surpreende que autocratas como Bolsonaro, Trump ou até certo ponto Boris Johnson estejam respondendo pior à crise do coronavírus” , diz (leia mais no quadro abaixo).
Foi sua primeira entrevista desde que foi anunciado como ganhador do prêmio que —se a pandemia não impedir— receberá em 16 de outubro em Oviedo, no norte da Espanha.
Pergunta. As tensões entre a China e os EUA e os problemas na OMC já deixavam antever o declínio da globalização. Mas a pandemia foi o terremoto definitivo. Trata-se de uma sacudida temporária ou deixará rastros mais profundos?
Resposta. Os sinais de que a globalização se desfazia eram evidentes antes de Trump. Mas sua chegada à Casa Branca exacerbou essas tensões. Não voltaremos à era de hiperglobalização dos anos 2000. Haverá mais regionalização no comércio e um uso muito mais ativo de políticas públicas, como a industrialização. E mais tensões em áreas tecnológicas, onde as nações tratarão de construir muros em torno de seus sistemas de inovação. Mas não estamos falando do desmoronamento do comércio global. Não voltaremos para os anos 1930 do século passado.
P. Não estamos então perante o ocaso da globalização.
R. A hiperglobalização era um estado mental. Vamos nos afastando dessa ideia de que cada país devia se adaptar à economia internacional. E devemos entender que é justamente o contrário: que a economia internacional deve servir aos objetivos de cada país.
P. Que parte desta mudança pode ser atribuída a esta crise?
R. Nos EUA, esta crise tornou ainda mais evidente o nível de desigualdade e a falta de um seguro de saúde para muitas pessoas. No mundo, mostra as incompatibilidades do sistema chinês com os da Europa e EUA. Mostra que devemos criar um novo modus vivendi. A pandemia funciona como uma lupa que amplifica as tensões econômicas já existentes.
P. Que lições devemos extrair desta crise?
R. Ela nos ensina como nossas prioridades estiveram equivocadas nas últimas quatro décadas. Quanto trabalhamos para ter mais globalização econômica, como investimos pouco em assegurar os bens necessários para a saúde pública. Se tivéssemos dado a mesma importância à Organização Mundial da Saúde que à OCDE ou ao FMI, teríamos nos saído melhor. A crise é um aviso de que a melhor globalização seria a que se construísse em torno de bens públicos, como evitar a mudança climática ou lidar com as pandemias no âmbito da saúde pública. E não ter dedicado tanto interesse a assuntos como liberalizar o comércio ou os fluxos internacionais de capital.
P. É também um chamado de atenção a seus colegas, aos quais você critica pela obsessão com os modelos matemáticos?
R. Não acredito que o problema seja usar a matemática, que é apenas uma forma de garantir que não nos enganamos. Mas ela é um problema se fizer que deixemos de nos fazer as perguntas fundamentais. Um bom efeito da crise é que empurra os economistas a nos fazermos essas perguntas importantes. Vemos isso na quantidade de pesquisa acadêmica que está sendo publicada. Acredito que os economistas estejam respondendo ao desafio.
P. Você falou da boa saúde do Estado-nação. Ele sairá fortalecido desta crise? Está de volta? Ou será que na realidade, apesar do declínio tantas vezes prognosticado, nunca foi embora?
R. Sim, a decadência do Estado-nação ocorreu mais em nossa imaginação que na realidade. Quando havia uma crise, quem estava lá? Os Governos nacionais. Mas agora é muito mais evidente. Chama a atenção o papel da política industrial, que parecia ter desaparecido. Os países na verdade se ocupavam dela, mas era algo do que não se falava. E agora tanto nos EUA como na UE estas políticas voltam com muita força. Porque é preciso competir com a China, mas também porque é preciso assegurar a produção para cobrir, por exemplo, as necessidades sanitárias. É uma mudança muito importante na narrativa.
P. Você foi muito crítico com a gestão europeia da crise anterior. Mas o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e os Governos nacionais agiram agora com mais rapidez e decisão. Vemos finalmente uma resposta comum à crise?
R. É certo que desta vez foi mais rápida e efetiva, em parte graças à experiência da crise anterior. O fundo de recuperação proposto pela Comissão Europeia é um passo importante. E parece que a ideia de mutualizar a dívida se infiltra na UE. Resta ver se será um primeiro passo em um processo que leve a uma união fiscal e política ou uma resposta única a esta crise. Mas que a França e Alemanha tenham chegado a um acordo e que a Alemanha tenha aceitado o fundo é ótimo sinal. Isso não aconteceu há 12 anos.
P. Isto o deixa mais otimista com o futuro do euro?
R. Honestamente, não sei. A Europa deve escolher entre uma união fiscal e política real, ou recuar em sua integração. Essa é a opção em longo prazo. A única forma de superar feridas como o Brexit é criar uma comunidade política transnacional onde as pessoas se sintam representadas. É um caminho longo, mas será preciso decidir se se deseja trilhá-lo. Se não, temo que o Brexit será o primeiro passo em um processo de desintegração econômica. Se não se avançar por esse caminho, a união não poderá se manter em sua forma atual.
P. Ao falar de seu famoso trilema, segundo o qual os países têm que escolher dois destes elementos: democracia, hiperglobalização e soberania nacional, você diz que em nenhum lugar isso é tão verdadeiro como a Europa. A qual destas pernas a Europa poderia renunciar?
R. Sempre fui a favor da integração política na Europa. Mas estou consciente de que esse caminho é mais difícil depois das decisões tomadas na crise do euro. Em lugar de ser abordada como uma oportunidade para construir instituições melhores, uns puseram a culpa nos outros, numa história de esforçados trabalhadores alemães frente a gregos indolentes e endividados. Isso inflamou as tensões nacionais e deu força aos populistas. A reposta a essa crise fez que a integração política agora seja mais difícil. O fundo de 750 bilhões [de euros; 4,37 trilhões de reais] tem como mudar isso? Tenho alguma esperança de que haverá a solidariedade de que a Europa necessita para avançar na integração política. Anima-me que a Alemanha tenha aderido. Estou mais otimista, mas ainda há muitas dúvidas.
P. A desindustrialização afeta a países como a Espanha, que assiste ao fechamento de importantes fábricas. E a crise atual agravará esse processo. Que respostas os Governos podem dar?
R. É muito difícil aumentar o emprego na indústria. Talvez seja impossível. Os empregos de qualidade que queremos não virão da indústria, e sim dos serviços. Para um país como a Espanha, virá do turismo, das finanças, da educação, da saúde… Será preciso pôr em marcha regulações que permitam ao mesmo tempo aumentar a produtividade e o emprego de qualidade.

“OS AUTOCRATAS COMO TRUMP RESPONDEM PIOR À PANDEMIA”

Dani Rodrik concorda quando Estados Unidos e Brasil são mencionados entre os países mais afetados pela pandemia. Tanto Donald Trump como Jair Bolsonaro são líderes populistas que se gabam de ter todas as respostas, algo que esta crise contribuiu para desmentir. “Não me surpreende que autocratas como Bolsonaro, Trump ou até certo ponto Boris Johnson estejam respondendo pior à crise do coronavírus”, responde. “Há anos publiquei uma pesquisa em que comparava países com sistemas mais democráticos e liberais com outros onde a classe política tinha maiores tendências populistas e autoritárias. A ideia de que esses regimes respondiam melhor a choques externos ao permitirem que seus líderes tomem decisões rápidas, por não terem que negociar e chegar a acordos, não se sustentava nas análises que fiz sobre crises ocorridas nos anos setenta e oitenta do século passado. Acredito que isto seja assim porque os sistemas mais democráticos usam melhor a informação, porque contam com mecanismos onde todos os setores da sociedade possam apresentar seus pontos de vista”, afirma o economista de origem turca. Ele não esconde sua avaliação negativa sobre líderes como o norte-americano Trump e o turco Recep Tayyip Erdogan, a quem criticou em diversos artigos por suas tendências autoritárias. “São regimes em que só importa a visão de uma pessoa. Nos EUA se viu como Trump desprezou a opinião dos cientistas. E isto é muito mais fácil de fazer em um regime autocrático”, afirma.

A mentalidade soviética nos EUA, de Pasternak a George Floyd - Izabella Tabarovsky (Wilson Center, WSJ)






The American Soviet Mentality
Collective demonization invades our culture
BY

THE WALL STREET JOURNAL, JUNE 15, 2020
The American Soviet Mentality

Russians are fond of quoting Sergei Dovlatov, a dissident Soviet writer who emigrated to the United States in 1979: “We continuously curse Comrade Stalin, and, naturally, with good reason. And yet I want to ask: who wrote four million denunciations?” It wasn’t the fearsome heads of Soviet secret police who did that, he said. It was ordinary people.
Collective demonizations of prominent cultural figures were an integral part of the Soviet culture of denunciation that pervaded every workplace and apartment building. Perhaps the most famous such episode began on Oct. 23, 1958, when the Nobel committee informed Soviet writer Boris Pasternak that he had been selected for the Nobel Prize in literature—and plunged the writer’s life into hell. Ever since Pasternak’s Doctor Zhivago had been first published the previous year (in Italy, since the writer could not publish it at home) the Communist Party and the Soviet literary establishment had their knives out for him. To the establishment, the Nobel Prize added insult to grave injury.
Within days, Pasternak was a target of a massive public vilification campaign. The country’s prestigious Literary Newspaper launched the assault with an article titled “Unanimous Condemnation” and an official statement by the Soviet Writers’ Union—a powerful organization whose primary function was to exercise control over its members, including by giving access to exclusive benefits and basic material necessities unavailable to ordinary citizens. The two articles expressed the union’s sense that in view of Pasternak’s hostility and slander of the Soviet people, socialism, world peace, and all progressive and revolutionary movements, he no longer deserved the proud title of Soviet Writer. The union therefore expelled him from its ranks.
A few days later, the paper dedicated an entire page to what it presented as the public outcry over Pasternak’s imputed treachery. Collected under the massive headline “Anger and Indignation: Soviet people condemn the actions of B. Pasternak” were a condemnatory editorial, a denunciation by a group of influential Moscow writers, and outraged letters that the paper claimed to have received from readers.
The campaign against Pasternak went on for months. Having played out in the central press, it moved to local outlets and jumped over into nonmedia institutions, with the writer now castigated at obligatory political meetings at factories, research institutes, universities, and collective farms. None of those who joined the chorus of condemnation, naturally, had read the novel—it would not be formally published in the USSR until 30 years later. But that did not stop them from mouthing the made-up charges leveled against the writer. It was during that campaign that the Soviet catchphrase “ne chital, no osuzhdayu”—“didn’t read, but disapprove”—was born: Pasternak’s accusers had coined it to protect themselves against suspicions of having come in contact with the seditious material. Days after accepting the Nobel Prize, Pasternak was forced to decline it. Yet demonization continued unabated.
Some of the greatest names in Soviet culture became targets of collective condemnations—composers Dmitry Shostakovich and Sergei Prokofiev; writers Anna Akhmatova and Iosif Brodsky; and many others. Bouts of hounding could go on for months and years, destroying people’s lives, health and, undoubtedly, ability to create. (The brutal onslaught undermined Pasternak’s health. He died from lung cancer a year and a half later.) But the practice wasn’t reserved for the greats alone. Factories, universities, schools, and research institutes were all suitable venues for collectively raking over the coals a hapless, ideologically ungrounded colleague who, say, failed to show up for the “voluntary-obligatory,” as a Soviet cliché went, Saturday cleanups at a local park, or a scientist who wanted to emigrate. The system also demanded expressions of collective condemnations with regards to various political matters: machinations of imperialism and reactionary forces, Israeli aggression against peaceful Arab states, the anti-Soviet international Zionist conspiracy. It was simply part of life.
Twitter has been used as a platform for exercises in unanimous condemnation for as long as it has existed. Countless careers and lives have been ruined as outraged mobs have descended on people whose social media gaffes or old teenage behavior were held up to public scorn and judged to be deplorable and unforgivable. But it wasn’t until the past couple of weeks that the similarity of our current culture with the Soviet practice of collective hounding presented itself to me with such stark clarity. Perhaps it was the specific professions and the cultural institutions involved—and the specific acts of writers banding together to abuse and cancel their colleagues—that brought that sordid history back.
On June 3, The New York Times published an opinion piece that much of its progressive staff found offensive and dangerous. (The author, Republican Sen. Tom Cotton, had called to send in the military to curb the violence and looting that accompanied the nationwide protests against the killing of George Floyd.) The targets of their unanimous condemnation, which was gleefully joined by the Twitter proletariat, which took pleasure in helping the once-august newspaper shred itself to pieces in public, were New York Times’ opinion section editor James Bennet, who had ultimate authority for publishing the piece, though he hadn’t supervised its editing, and op-ed staff editor and writer Bari Weiss (a former Tablet staffer).
Weiss had nothing to do with editing or publishing the piece. On June 4, however, she posted a Twitter thread characterizing the internal turmoil at the Times as a “civil war” between the “(mostly young) wokes” who “call themselves liberals and progressives” and the “(mostly 40+) liberals” who adhere to “the principles of civil libertarianism.” She attributed the behavior of the “wokes” to their “safetyism” worldview, in which “the right of people to feel emotionally and psychologically safe trumps what were previously considered core liberal values, like free speech.”
It was just one journalist’s opinion, but to Weiss’ colleagues her semi-unflattering description of the split felt like an intolerable attack against the collective. Although Weiss did not name anyone in either the “woke” or the older “liberal” camp, her younger colleagues felt collectively attacked and slandered. They lashed out. Pretty soon, Weiss was trending on Twitter.
As the mob’s fury kicked into high gear, the language of collective outrage grew increasingly strident, even violent. Goldie Taylor, writer and editor-at-large at The Daily Beast, queried in a since-deleted tweet why Weiss “still got her teeth.” With heads rolling at the Times—James Bennet resigned, and deputy editorial page editor James Dao was reassigned to the newsroom—one member of the staff asked for Weiss to be fired for having bad-mouthed “her younger newsroom colleagues” and insulted “all of our foreign correspondents who have actually reported from civil wars.” (It was unclear how she did that, other than having used the phrase “civil war” as a metaphor.)
Mehdi Hasan, a columnist with the Intercept, opined to his 880,000 Twitter followers that it would be strange if Weiss retained her job now that Bennet had been removed. He suggested that her thread had “mocked” her nonwhite colleagues. (It did not.) In a follow-up tweet Hasan went further, suggesting that to defend Weiss would make one a bad anti-racist—a threat based on a deeply manipulated interpretation of Weiss’ post, yet powerful enough to stop his followers from making the mistake.
All of us who came out of the Soviet system bear scars of the practice of unanimous condemnation, whether we ourselves had been targets or participants in it or not. It is partly why Soviet immigrants are often so averse to any expressions of collectivism: We have seen its ugliest expressions in our own lives and our friends’ and families’ lives. It is impossible to read the chastising remarks of Soviet writers, for whom Pasternak had been a friend and a mentor, without a sense of deep shame. Shame over the perfidy and lack of decency on display. Shame at the misrepresentations and perversions of truth. Shame at the virtue signaling and the closing of rank. Shame over the momentary and, we now know, fleeting triumph of mediocrity over talent.
It is also impossible to read them without the nagging question: How would I have behaved in their shoes? Would I, too, have succumbed to the pressure? Would I, too, have betrayed, condemned, cast a stone? I used to feel grateful that we had left the USSR before Soviet life had put me to that test. How strange and devastating to realize that these moral tests are now before us again in America.
In a collectivist culture, one hoped-for result of group condemnations is control—both over the target of abuse and the broader society. When sufficiently broad levels of society realize that the price of nonconformity is being publicly humiliated, expelled from the community of “people of goodwill” (another Soviet cliché) and cut off from sources of income, the powers that be need to work less hard to enforce the rules.
But while the policy in the USSR was by and large set by the authorities, it would be too simplistic to imagine that those below had no choices, and didn’t often join in these rituals gladly, whether to obtain some real or imagined benefit for themselves, or to salve internal psychic wounds, or to take pleasure in the exercise of cruelty toward a person who had been declared to be a legitimate target of the collective.
According to Olga Ivinskaya, who was Pasternak’s lover and companion during those years, the party brass, headed by Nikita Khrushchev, was only partly to blame for the nonpublication of Doctor Zhivago. The literary establishment played an important role as well. Reading over her recollections of the meetings at the Writers’ Union, it is hard not to suspect that some of its members were motivated not so much by fear of reprisals or ideological fervor but by simple conformity and professional jealousy. Some, I imagine, would have only been too happy to put spokes in the wheels of a writer whose novel—banned at home, but published abroad—was being translated into dozens of languages and who had been awarded the world’s most prestigious literary prize.
For the regular people—those outside prestigious cultural institutions—participation in local versions of collective hounding was not without its benefits, either. It could be an opportunity to eliminate a personal enemy or someone who was more successful and, perhaps, occupied a position you craved. You could join in condemning a neighbor at your cramped communal flat, calculating that once she was gone, you could add some precious extra square meters to your living space.
And yet even among this dismal landscape, there were those who refused to join in this ugly rite. A few writers, for example, refused to participate in demonizing Pasternak. And is it karma or just a coincidence that most of these people—many of them dissidents, who were outside the literary establishment—remain beloved among Russian readers today, while the writings of the insiders, ones who betrayed and condemned, have been forgotten?
The mobs that perform the unanimous condemnation rituals of today do not follow orders from above. But that does not diminish their power to exert pressure on those under their influence. Those of us who came out of the collectivist Soviet culture understand these dynamics instinctively. You invoked the “didn’t read, but disapprove” mantra not only to protect yourself from suspicions about your reading choices but also to communicate an eagerness to be part of the kollektiv—no matter what destructive action was next on the kollektiv’s agenda. You preemptively surrendered your personal agency in order to be in unison with the group. And this is understandable in a way: Merging with the crowd feels much better than standing alone.
Those who remember the Soviet system understand the danger of letting the practice of collective denunciation run amok. But you don’t have to imagine an American Stalin in the White House to see where first the toleration, then the normalization, and now the legitimization and rewarding of this ugly practice is taking us.
Americans have discovered the way in which fear of collective disapproval breeds self-censorship and silence, which impoverish public life and creative work. The double life one ends up leading—one where there is a growing gap between one’s public and private selves—eventually begins to feel oppressive. For a significant portion of Soviet intelligentsia (artists, doctors, scientists), the burden of leading this double life played an important role in their deciding to emigrate.
Those who join in the hounding face their own hazards. The more loyalty you pledge to a group that expects you to participate in rituals of collective demonization, the more it will ask of you and the more you, too, will feel controlled. How much of your own autonomy as a thinking, feeling person are you willing to sacrifice to the collective? What inner compromises are you willing to make for the sake of being part of the group? Which personal relationships are you willing to give up?
From my vantage point, this cultural moment in these United States feels incredibly precarious. The practice of collective condemnation feels like an assertion of a culture that ultimately tramples on the individual and creates an oppressive society. Whether that society looks like Soviet Russia, or Orwell’s Nineteen Eighty-Four, or Castro’s Cuba, or today’s China, or something uniquely 21st-century American, the failure of institutions and individuals to stand up to mob rule is no longer an option we can afford.

Izabella Tabarovsky is a researcher with the Kennan Institute at the Wilson Center focusing on the politics of historical memory in the former Soviet Union.

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