sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Constatação simplória 3 - Paulo Roberto de Almeida

Constatação simplória 3

Paulo Roberto de Almeida


O Brasil, a despeito da iniquidade de sua estrutura social, de seu sistema econômico excludente, de suas instituições políticas dominadas por uma casta de arrivistas e aproveitadores, apresenta-se como um tecido elitista aberto aos oportunistas.

As chamadas elites não são formadas apenas por oligarquias emboloradas, aquelas descendentes dos latifundiários escravocratas e altos magistrados do Império, mas soube se abrir aos novos burgueses da República, aos empresários atilados da era Vargas, aos adesistas das ditaduras militares, aos novos esforçados bandeirantes do agro, aos “reis da soja”, da carne, aos industriais do Estado tecnocrático, aos banqueiros protegidos da concorrência externa, aos provedores das compras governamentais exclusivamente nacionais, aos mandarins da aristocracia do Judiciário e, modernamente, a qualquer “influenciador digital” mequetrefe, a novos  cantores afinados ao gosto popularesco, enfim, a qualquer um que se encaixe nos padrões pouco exigentes de uma “elite” intelectualmente medíocre, mas financeiramente ambiciosa.

Esse é o o Brasil, inovador e conservador ao mesmo tempo, avançado e atrasado, esperançoso e decepcionante.

Como disse Mario de Andrade, em 1924, duzentos anos atrás, “progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”. Profeta!

Paulo Roberto de Almeida 

SP, 3/01/2025


Constatação simplória 2 - Paulo Roberto de Almeida

Constatação simplória 2

Paulo Roberto de Almeida

Constato, não sem certa tristeza, que não somos o único grande país no qual as elites dirigentes e dominantes se congratulam entre si, falam apenas para si próprias, embevecidas em seu mundo-fantasia, no qual nada deve mudar no futuro previsível.

De certa forma, além do Brasil, a Rússia de Putin e os EUA de Trump, parecem partilhar da mesma tendência à introversão num cenário construído para a autossatisfação.

Sorry pela nota deceptiva.

Paulo Roberto de Almeida 

SP, 3/01/2025


Uma constatação simplória (1) - Paulo Roberto de Almeida

Uma constatação simplória (1)

Paulo Roberto de Almeida

Cada vez que eu vejo nas revistas e jornais, inclusive na TV, um desses magníficos anúncios sobre encontros de luxo, em cidades atraentes da Europa e dos EUA, com a participação de praticamente toda a classe dirigente do Brasil atual, metade do STF, ministros de Estado, a nata do empresariado nacional e economistas famosos, todos devidamente fotografados e reunidos lá fora, para discutir e debater entre si mesmos, apenas em português, regiamente pagos e com uma audiência predominantemente brasileira, que são os pagadores, satisfeitos pelo fato de estar na companhia fugaz daqueles dirigentes do momento, proferindo platitudes sobre os “problemas e desafios” do Brasil atual, cada vez que eu vejo um anúncio desses, umbilicalmente congratulatório, eu me convenço de que o Brasil não tem a menor chance de mudar nos próximos 20 anos, e que continuará a ser o país terrivelmente desigual, iníquo para os pobres, injusto com os desfavorecidos pelo seu sistema social excludente, medianamente medíocre e semi-desenvolvido, como tem sido desde sempre: um país que funciona para suas oligarquias, mas não para os comuns, um país no qual as elites continuarão a falar para si próprias. 

Não há a menor chance de que esse cenário deplorável de mandarins do Estado falando para os ricos e endinheirados (muitos com recursos coletivos desviados em seu favor) mude no futuro previsível.

Continuaremos a ser um país feito para poucos, uma formidável aldeia Potenkim.

Paulo Roberto de Almeida 

São Paulo, 3/01/2025


Uma visita em souvenir de onde tudo começou: a Biblioteca Municipal Infantil Anne Frank, Itaim, SP

Uma visita em souvenir de onde tudo começou: a Biblioteca Municipal Infantil Anne Frank, Itaim, SP

O segundo dia do ano de 2025, foi dedicado a uma visita sentimental, parcialmente realizada. Fui ao local no qual minha jornada intelectual começou, antes mesmo de aprender a ler: 

Encontrei-a toda pintada, o que não era o caso quando comecei a frequentá-la, em meados dos anos 1950, primeiro para brinquedos infantis e filmes da época, depois para ler, um a um, todos os seus livros: 

O cartaz do portão principal informa que ele foi estabelecida apenas um ou dois anos depois que foram revelados os diários da jovem judia holandesa assassinada no Holocausto nazista, dois anos antes de meu nascimento: 

Este portão de entrada, onde passei centenas de vezes durante todo o meu período infantil e pré-adolescente: 

Mas, para azer nosso, ela estava fechada pelas festas de final de ano: 

Yasmin ainda atentou entrar, mas sem sucesso: 

Pretendo retornar, assim que possível...

Paulo Roberto de Almeida e Yasmin Palazzo de Almeida Ribeiro

São Paulo, 2 de janeiro de 2025

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

O extremo consevadorismo da familia Gandra - Jamil Chade (UOL)

Nomeada por Nunes costurou aliança global de reacionários e extrema direita

Jamil Chade

Colunista do UOL, em Genebra

UOL, 02/01/2025 05h30

Angela Gandra, a nova secretária de Relações Internacionais do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), foi tida dentro do Itamaraty como a responsável por costurar uma aliança inédita do Brasil com os movimentos ultraconservadores do mundo e partidos de extrema direita durante a presidência de Jair Bolsonaro.

Mesmo depois da queda de Ernesto Araújo do comando do Itamaraty, em 2021, a ofensiva do governo Bolsonaro com grupos reacionários pelo mundo continuou e, em grande parte, esse trabalho coube à nova secretária de Nunes.

Gandra ocupava a Secretaria Nacional da Família do ministério comandado por Damares Alves e passou a ter uma ampla agenda de viagens internacionais e palestras para estrangeiros. Entre embaixadores, ela era considerada como o "cérebro" da guinada da "guerra cultural" promovida pela política externa bolsonarista.

Mulheres: aliança global com Hungria, Arábia Saudita e Trump

Ela foi uma das artífices, ao lado do governo de Donald Trump, da criação de uma aliança global para frear qualquer expansão da questão de educação sexual na agenda internacional. O projeto ficou conhecido como Consenso de Genebra.

Além do governo Bolsonaro, o projeto reuniu ainda governos ultraconservadores do Oriente Médio, denunciados por sérias violações contra o direito das mulheres, e a extrema direita mundial.

Com a derrota de Trump, Joe Biden anunciou no primeiro dia de seu mandato que estava retirando os EUA da pauta ultraconservadora. Mas, em emails internos, a administração americana indicava aos demais países que o projeto seria mantido e que a condução seria liderada pelo Brasil.

De acordo com os emails, foi o próprio governo brasileiro que se colocou à disposição para liderar o projeto.

"Estamos firmes no Consenso de Genebra, estamos recebendo mais demandas de países que querem estar conosco", disse Granda, depois da derrota de Trump.

A meta era desmontar e questionar qualquer brecha para que organismos internacionais considerassem o aborto em suas decisões, recomendações ou medidas.

Gandra não se limitou ao trabalho da aliança. Numa viagem em 2021 e enquanto a pasta insistia à reportagem do UOL que ela estava de férias, a secretária participou, em Kiev, da Prayer Breakfast, uma tradição que começou nos EUA em 1935 e que envolve a reunião de políticos e movimentos ultraconservadores cristãos poderosos.

O movimento ganhou notoriedade ainda quando um documentário na Netflix, "The Family", revelou a dimensão do poder de seus membros e como atuam para manobrar o destino de leis e governos. Um de seus lemas é manter "uma diplomacia cristã invisível".

Angela Gandra, em suas redes sociais, indicou que defendeu valores conservadores em suas intervenções e como ouviu "de várias pessoas que encontram inspiração no Brasil".

Na capital ucraniana, o evento foi liderado por pessoas como Pavlo Unguryan que, quando deputado, apresentou vários projetos de lei para "banir a propaganda homossexual". Unguryan atua em parceria com a Aliança Ucrânia pela Família e tem vínculos com a direita religiosa norte-americana, mantendo relações com Mike Pence, vice-presidente dos EUA sob o governo de Donald Trump.

A visita da brasileira à Ucrânia ocorreu no momento em que o país via a criação de uma sessão local do Ordo Iuris, uma organização ultracatólica que está vinculada à rede europeia da TFP. O grupo assinou um acordo com o Vsi razón, um movimento anti-LGBT.

Na Espanha, também em 2021, a secretária participou de um encontro com políticos católicos, além de discussões sobre "Estado de direito". Mas um dos encontros da brasileira foi com o membro do Tribunal Constitucional da Espanha, Andrés Ollero. Antiaborto e apontado por diferentes jornais espanhóis como um representante da Opus Dei, o magistrado votou por recursos para educação segregada.

Há dez anos, quando seu nome foi apresentado para ocupar o cargo, um vasto debate foi iniciado sobre suas declarações sobre temas sensíveis. Num deles, Ollero faz um duro ataque contra mães que abortam.

Ele ainda atacou o casamento entre pessoas do mesmo sexo. "Falar em matrimônio homossexual não faz sentido algum em termos jurídicos, é algo inconcebível. Está sendo imposta, a partir do poder, uma opção moral e com tal medida somente se aspira que a sociedade deixe de considerar determinadas condutas íntimas —despidas de qualquer relevância jurídica— como imorais", completou.

Elogios em evento de herdeiros de Franco

Num outro evento, ainda no governo Bolsonaro, Angela Gandra afirmou a parceiros internacionais que as autoridades em Brasília estavam comprometidas em expandir a agenda ultraconservadora pelo mundo, levando as pautas antiaborto e de combate ao que chamam de "ideologia de gênero" para novas organizações internacionais. Ela se desculpou depois pelo uso do termo.

A informação foi dada diante de movimentos ligados a grupos religiosos e mesmo partidos xenófobos,disse como o espanhol Vox, herdeiros políticos do franquismo. No encontro, ela foi amplamente elogiada pelos anfitriões.

Ao destacar o compromisso do governo Bolsonaro sobre o tema, a secretária garantiu que as autoridades não se limitariam a implementar as medidas no âmbito doméstico. "Vamos levar para a OEA (Organização dos Estados Americanos) e para a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), em seu tempo", disse Angela Gandra.

Ação na Corte Suprema dos EUA contra o aborto

Gandra ainda participou do processo na Corte Suprema dos EUA que determinou um novo rumo para o aborto nos estados americanos.

A representante brasileira fez parte de um "amici curiae", um instrumento para submeter ao tribunal sua opinião em relação ao tema sob debate. A decisão da corte desmontou 50 anos de flexibilidade para o aborto nos EUA foi amplamente comemorada pelo bolsonarismo.

A secretária assinou o documento que defendia a revisão ao lado de 141 acadêmicos —alguns dos quais brasileiros— que submeteram à corte sua opinião.

Para observadores, a decisão da brasileira de participar do grupo demonstrava a aliança que existe entre o movimento ultraconservador brasileiro e o grupo nos EUA que pressionou por uma mudança na lei americana.

No documento, o grupo diz que, se a corte "optar por consultar o direito internacional neste caso, descobrirá que não existe nenhum tratado que reconheça o chamado direito humano ao aborto, nem tal direito foi estabelecido através do direito consuetudinário".

"Pelo contrário, a prática em todas as regiões demonstra uma prerrogativa consistente do Estado para proteger a vida não nascida. Tampouco qualquer tribunal internacional declarou a existência de um direito internacional ao aborto, mesmo em regiões com os regimes de aborto mais permissivos", disse.

A ofensiva da qual Gandra fez parte alega que um grupo tenta "inventar um novo direito ao aborto" e "erram ao interpretar instrumentos internacionais chave, tais como a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, o Estatuto de Roma, e a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento".

A visão de Gandra e os demais juristas se contrapõe ao que a ONU avalia como sendo a base do direito. Para a entidade, a decisão da corte foi "um grande golpe para os direitos humanos das mulheres e para a igualdade de gênero"."O acesso ao aborto seguro, legal e eficaz está firmemente enraizado na lei internacional dos direitos humanos e está no centro da autonomia e capacidade das mulheres e meninas de fazer suas próprias escolhas sobre seus corpos e vidas, livre de discriminação, violência e coerção", afirmou a ONU.

"Esta decisão tira tal autonomia de milhões de mulheres nos EUA, em particular aquelas com baixa renda e as que pertencem a minorias raciais e étnicas, em detrimento de seus direitos fundamentais", alertou Michelle Bachelet, a então alta comissária da ONU para Direitos Humanos. "Mais de 50 países com leis anteriormente restritivas liberalizaram sua legislação sobre aborto nos últimos 25 anos. Com a decisão, os EUA lamentavelmente estão se afastando desta tendência progressiva", completa.

Na ocasião, o Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos explicou que Angela é professora universitária. "Durante a sua carreira buscou a participação em pautas de interesse acadêmico. A secretária sempre destacou o seu posicionamento em defesa da vida, sendo um dos motivos para compor a equipe de gestores do atual governo", afirmou.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

A insanidade de Putin ao sacrificar tantas vidas por alguns quilometros de terra ucraniana - CDS

A insanidade de Putin ao sacrificar tantas vidas por alguns quilometros de terra ucraniana - CDS

Copio, do relatório do início do ano de 2025 do Centre for Defense Strategies, uma ONG ucraniana, este trecho sobre o custo, em homens, da conquista de alguns poucos quilometros de território da Ucrânia, no contexto da guerra de agressão deslanchada em fevereiro de 2022 por Putin: 

Over the course of the year, Russian forces captured 4,168 square kilometers, losing an average of 102 servicemen for every square kilometer of Ukrainian territory seized.

Ou seja: para conquistar esses 4.168 kms2, Putin achou que a perda de mais de 425 mil soldados era um resultado aceitável. 

O resto do relatório é uma tristeza: 

·       During the night of January 1, Russia launched an attack on Ukraine with 111 strike UAVs, including Shahed drones and others. Ukrainian air defense destroyed 63 drones, while another 46 failed to reach their targets.

·       On the morning of January 1, debris from an enemy drone fell on a residential building in Kyiv's Pecherskyi district, partially destroying the top two floors and causing a fire. As a result of the Russian attack, two people died, and six were injured. Drone debris also caused a fire on the roof of one of the National Bank of Ukraine buildings. All operational systems and services of the National Bank are functioning fully and without disruption.

·       Two hours before the New Year in 2025, at least two explosions were heard in Zaporizhzhia during an air raid alert. The attack caused a fire in the private sector in the region. Before this, the occupiers attacked the area using guided bombs.

·       On January 1, Russian forces shelled the Dnipro district of Kherson, killing a man and injuring two women. The man was a volunteer who actively contributed to the community's recovery efforts.

·       In Kherson Oblast, Russian shelling on January 1 damaged at least 22 civilian objects. As of 5:30 PM, reports confirm one fatality and six injured civilians.

·       During the New Year's night, Russian forces shelled the center of the town of Semenivka in Chernihiv Oblast with artillery, damaging stores and an infrastructure facility.

·       Between September and November 2024, 574 civilians were killed, and 3,082 were injured as a result of Russian attacks in Ukraine, according to a report from the UN Human Rights Monitoring Mission in Ukraine.

·       On January 1, 2025, Ukraine officially became a full member of the Rome Statute of the International Criminal Court (ICC).

          According to the Center for National Resistance, in the occupied territories, Russian authorities banned the mention of Saint Nicholas, caroling, and traditional Ukrainian Christmas and New Year plays (vertep) in educational institutions. Only the characters of Ded Moroz (Father Frost) and Snegurochka (Snow Maiden) are allowed to appear at events.

Relatório das perdas russas nesse primeiro dia do ano: 

Russian operational losses from 24.02.22 to 01.01.25

Personnel - almost 790,800 (+1,250);

Tanks 9,672 (+4);

Armored combat vehicles – 20,043 (+13);

Artillery systems – 21,532 (+4);

Vehicles and fuel tanks – 32,675 (+49);

Helicopters – 330 (+1);

UAV operational and tactical level – 21,131 (+50);

Source: Centre for Defence Strategies (CDS) is a Ukrainian security think tank. We operate since 2020. 

Alocução de um contrarianista a jovens internacionalistas - Paulo Roberto de Almeida

 Alocução de um contrarianista a jovens internacionalistas

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Revisão de alocução a formandos de RI, em 2005.

 

        O texto abaixo, revisto e abreviado, foi retirado de uma alocução feita na cerimônia de formatura de relações internacionais, numa faculdade de Brasília. Não se tratava, propriamente, de conselhos de um contrarianista, mas de simples recomendações pessoais para o itinerário futuro, na vida acadêmica ou em outras lides profissionais dos jovens que me tinham convidado. Quando a fiz, já tinha acumulado mais de um quarto de século nas lides da diplomacia profissional, com uma dedicação paralela às “coisas internacionais”. Por “coisas”, são compreendidas a pesquisa, geralmente solitária, o ensino, sempre voluntário e irregular, ao sabor de uma vida nômade a serviço do Brasil, e a redação e publicação de textos de caráter didático em torno das questões das relações internacionais, da história diplomática e, sobretudo, da inserção internacional do Brasil. 

        Minhas primeiras palavras foram de agradecimento pela lembrança e pelo gesto simpático, que representava um estímulo a continuar retribuindo, nos anos à frente de exercício profissional ou de dedicação acadêmica, à sociedade brasileira, produzindo de forma ainda mais intensa no campo das relações internacionais, sempre com sentido didático. 

        Os alunos começaram por me prestar homenagem, ao transcrever no convite, ainda que de forma abreviada, as dez novas regras de diplomacia que eu havia elaborado, em agosto de 2001, a partir da leitura de um velho livro do século XIX sobre quatro regras de diplomacia, para justamente ilustrar as reflexões contemporâneas de meus jovens colegas diplomatas e outros tantos candidatos à carreira [texto do trabalho “Dez Regras Modernas de Diplomacia” disponível neste link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/08/regras-modernas-e-sensatas-de.html]. Esse gesto me incitou a retomar algumas delas e a elaborar alguns poucos conselhos que um contrarianista do século XX poderia dar a jovens internacionalistas do século XXI.

        Digo “contrarianista” sem qualquer espírito opositor ou anarquista, ainda que estes sentimentos sejam igualmente legítimos em sociedades plenamente democráticas, como pretende ser a nossa. Meu espírito contrarianista deriva do fato de que eu nunca quis ou pretendi me submeter ao argumento da autoridade, mas sim aceito, com prazer e voluntariamente, a autoridade do argumento. Num cenário de diálogo socrático e de dedicação honesta à busca da verdade, como deve ser o ambiente acadêmico, desejo reformular algumas dessas regras, para melhor iluminar o que me parecem ser qualidades essenciais ao jovem internacionalista de nossos tempos. 

 

        Inicialmente, eu destacaria a última regra e, agora, a colocaria em primeiro lugar. Não se deve fazer da carreira profissional, seja no campo da diplomacia ou em outras atividades ligadas de perto ou de longe com as questões internacionais, o foco exclusivo de sua vida e, sobretudo, não se deve passar a carreira à frente da família, dos amigos e das pessoas com quem convivemos no ambiente familiar ou de trabalho.

A carreira profissional, qualquer que seja ela, é importante, mas as pessoas, sobretudo os indivíduos que nos são caros, são ainda mais importantes do que ela. Podemos, por certo, mudar de carreira, uma ou várias vezes na vida, podemos até mudar nossos relacionamentos individuais, mas os familiares e nossos amigos mais chegados estarão sempre lá para nos ajudar nas horas difíceis, para nos confortar em determinados momentos, para nos trazer alegrias em várias ocasiões.

Por isso, meus caros formandos, contrariem o carreirismo e sejam, antes de tudo, profissionais que miram nas pessoas, de fato, o centro da vida.

 

        Eu diria, em segundo lugar, que algo se ganha ao contrariar o próprio princípio da autoridade, desde que, é claro, vocês tenham absoluta certeza sobre a fundamentação da posição de vocês sobre um assunto qualquer. Regras hierárquicas e disciplina são boas de serem cumpridas na execução de tarefas que exigem uma linha de comando definida, inquestionável, em função da implementação de uma decisão maduramente refletida e alcançada graças a um processo decisório bem estruturado e solidamente bem estabelecido.

        Mas, a hierarquia e a disciplina não podem entravar a liberdade de pensamento, em especial a defesa de posições de maior valor agregado, que conseguem realizar uma otimização “paretiana” dos recursos e meios disponíveis para a tomada de ação. A contestação, pelo simples prazer de contrariar, não me parece levar a resultados ótimos, mas sim pode-se e deve-se praticar o questionamento honesto, o ceticismo sadio, a desconfiança metodológica em relação às verdades reveladas, por mais que elas tenham sido formuladas por alguma autoridade imbuída do seu poder autocrático. 

        Por isso, não tenham medo de expor e de defender com firmeza suas opiniões, se elas refletem, efetivamente, um conhecimento fundamentado do problema em pauta, e isso mesmo que uma “autoridade superior” ostente uma opinião diversa da de vocês.

 

Por esse motivo, e aqui vai minha terceira regra, contrariem o desejo, ainda que compreensível, de aposentar os livros e deixar os estudos de lado, agora que vocês têm um canudo na mão e algumas ideias na cabeça. Ao contrário, sejam opositores sistemáticos da aposentadoria precoce nos estudos, e voltem imediatamente às leituras, às bibliotecas, às livrarias, às pesquisas de internet. 

        Não parem de estudar, em nenhum momento da vida. Aliás, comecem a fazê-lo imediatamente, assim que saírem daqui. Afinal de contas, até agora, vocês fizeram, em grande medida, aquilo que os professores determinaram que vocês fizessem, com uma série de leituras chatas e outras tantas obrigações impostas. 

        Neste momento, cabe a vocês mesmos imporem a si mesmos um programa sistemático de estudos e de leituras que melhor se conformar às habilidades, gostos e orientações particulares de cada um. Sejam, portanto, contrários ao estudo dirigido e estabeleçam, vocês mesmos, um plano regular de dedicação à formação metódica da especialidade que vocês pretendem ter na vida. 

        A universidade é uma grande fonte de generalidades e mesmo de algumas banalidades repassadas ao longo dos anos, numa repetição por vezes aborrecida do saber acumulado. O que vocês devem fazer agora é construir o seu próprio saber e para isso vão precisar continuar estudando. Apenas com base num saber específico, que dê a cada um de vocês o melhor desempenho possível numa determinada vertente profissional, vocês terão sucesso na vida e no trabalho. Por isso, mãos à obra: coloquem o canudo de lado e comecem a estudar de novo. 

 

        Dessa característica de estudo constante, e totalmente dedicado à expansão contínua do saber em todos os ramos do conhecimento humano, derivam duas outras regras que eu havia inscrito em meu decálogo de quatro anos atrás: possuir o domínio total de cada assunto do qual nos vamos ocupar profissionalmente, o que significa aprofundar o conhecimento daquele tema em pesquisas paralelas e correlatas, adotando, ao mesmo tempo ou paralelamente, uma perspectiva histórica e estrutural de cada tema, situando-o no seu contexto próprio.

        Apenas com base nesse conhecimento suplementar, vocês saberão se opor, se for o caso, ao princípio primário da autoridade e ter condições de manter independência de julgamento em relação às ideias recebidas e às “verdades reveladas”. A autoridade do argumento só se sustenta com um saber superior, solidamente embasado nos dados da realidade e apoiado em pesquisas comparativas ou no conhecimento de outras experiências que podem ser relevantes para um caso porventura similar. 

        O “ser contrário” significa, em princípio, possuir um argumento dotado de autoridade superior, embasado em dados mais amplos e um domínio mais seguro da realidade. Claro, podemos ser vencidos pela força bruta, pela imposição da hierarquia ou do poder simplesmente incontestável e incontrastável. Mas aí não estamos falando de métodos socráticos de busca da verdade ou de formação de um consenso no processo decisório, e sim da vontade unilateral, o que não deveria valer no ambiente sadio da pesquisa acadêmica ou mesmo da organização burocrática racionalmente estruturada.

        A regra é esta: para vocês serem contrários ao lugar comum, ao déjà vu, ao habitual costumeiro, vocês precisarão construir um saber superior e expô-lo com clareza. E isso nos faz voltar à necessidade já referida do estudo constante, do esforço feito sob a forma da pesquisa individual e de leituras contínuas. A geração de vocês leva uma enorme vantagem em relação àquelas que a precederam: hoje em dia, com os recursos existentes on-line, praticamente 90% do estoque acumulado de conhecimento produzido pela humanidade, até aqui, está livremente disponível na internet, bastando um pouco de destreza linguística para desfrutar desse imenso saber.

 

        Vocês também podem ser contrários aos interesses político-partidários, às ideologias do momento e às conjunturas políticas de uma dada maioria governamental, mas isto não é uma regra absoluta. Digo isto porque várias carreiras, sobretudo aquelas fortemente dependentes de uma determinada estruturação hierárquica que tem no seu pináculo uma autoridade política qualquer, podem ser levadas ao fenômeno bem conhecido do “adesismo”, ou seja, aquela aderência momentânea aos senhores da hora, às ideias temporariamente dominantes, às situações de adequação oportunista às novas condições do exercício do poder, que sempre vem associado às benesses e favores distribuídos em direção daqueles que partilham, ou fingem fazê-lo, as mesmas opiniões daqueles que justamente ocupam o poder naquele dado momento. 

        Não estou excluindo, por certo, que algum partido ou agrupamento político consiga encarnar, num determinado momento da vida da Nação, os anseios ou as aspirações da maioria, conseguindo traduzir de modo prático aquilo que normalmente se chama de “vontade nacional”. Este é um fato, aliás corriqueiro nas democracias. O que estou dizendo é que vocês precisam ter absolutamente claros, para vocês e no exercício de alguma atividade profissional, quais são os grandes princípios de atuação do país a serviço do qual se colocam, isto é, quais são, se é que possível saber de verdade, os chamados “interesses nacionais permanentes”. 

 

        É com base numa compreensão desse tipo que eu formulei minha primeira regra e uma outra que dela também deriva: servir a pátria, mais do que aos governos, e afastar ideologias ou interesses político-partidários das considerações relativas à política externa do país, que precisa assumir um caráter nacional abrangente, e não meramente setorial ou corporativo.

        Para que isso se faça, é preciso, repito ainda uma vez, conhecer profundamente os interesses permanentes da nação e do povo aos quais se serve, e por isso volto ao tema do estudo contínuo.

        É preciso, da mesma forma, não aderir a modismos em matéria de “explicações definitivas” das causas das nossas mazelas e iniquidades: elas são certamente muitas e provavelmente têm causas mais complexas do que certas “racionalizações inovadoras” que pretendem deter a chave milagrosa para a solução de todos os problemas brasileiros. O ser contrário à subserviência ao poder político do momento é também uma atitude de coragem moral e de honestidade intelectual, já que a razão do poder nem sempre se coaduna com o poder da razão, mas esta é, como disse, uma regra não absoluta. 

 

        Em resumo ‑ e terminando por aqui este meu exercício de contrarianismo bem-intencionado ‑, não pretendo que minhas regras subjetivas, certamente derivadas de um espírito inquieto e ainda rebelde, mas sempre aberto à causa do conhecimento, sirvam de guia absoluto na determinação do itinerário profissional que vocês empreenderão a partir daqui. Cada um definirá com base em sua própria experiência de vida, com o apoio e os conselhos dos familiares, dos professores e dos amigos, qual o melhor curso a seguir no plano profissional ou ainda da continuação dos estudos, agora em nível de pós-graduação, o que recomendo vivamente.

        O que eu pretendi inculcar em vocês é a ideia da mente aberta, dotada de ceticismo sadio, contestadora das verdades reveladas e orientada para a busca honesta do saber e da maior eficiência possível no desempenho das atividades profissionais ou dos estudos futuros no terreno da especialização. Vocês agora vão deixar de lado uma etapa da vida e começar outra, mas devem sempre encarar os próximos desafios com toda a modéstia que requer o enfrentamento de cada nova situação de vida: deixar a suficiência de lado e buscar a excelência, em tudo e de todas as maneiras, sabendo que só a dedicação plena ao estudo continuado lhes poderá abrir o caminho para algumas rotas de sucesso profissional e pessoal.

        Eu aprendi dessa maneira: vindo de uma família modesta, como é a maioria daquelas dos que aqui se formam hoje, consegui, à custa de muito estudo e dedicação pessoal, distinguir-me na carreira profissional e nas atividades acadêmicas, a ponto de me fazer merecedor da homenagem que vocês tão gentilmente quiseram me prestar nesta data, ao me fazer patrono desta turma de relações internacionais.

        Vocês podem, em primeiro lugar, agradecer e retribuir à família e a todos aqueles que os ajudaram a conseguir o diploma que a partir de hoje passam a ostentar. Vocês devem ter, em segundo lugar, consciência de que o maior motivo de orgulho, não é necessariamente o canudo certificador do mérito alcançado, mas mais precisamente o fato de que vocês adquiram nesta escola algumas técnicas de aprendizado que devem ser internalizadas e aproveitadas em todo e qualquer momento da vida futura. Vocês aqui aprenderam tão simplesmente a aprender: comecem agora a estudar de verdade, e tenham sucesso na vida profissional e pessoal. Mãos à obra, de volta aos livros, e sejam felizes na vida.

        Meus sinceros parabéns e, por esta oportunidade que me foi dada de me dirigir a alguns dos meus, até aqui, desconhecidos leitores, meu muito obrigado a todos vocês. 

 

Paulo Roberto de Almeida

6-8 de março de 2005; revisão, 1/01/2025

Original de 2005 postado neste link: https://www.academia.edu/5882607/1403_Conselhos_de_um_contrarianista_a_jovens_internacionalistas_2005_ 


Postagem em destaque

Livro Marxismo e Socialismo finalmente disponível - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...