domingo, 27 de julho de 2025

Falta-nos o banho de capitalismo - José de Souza Martins (Valor Econômico)

 Falta-nos o banho de capitalismo

José de Souza Martins
Valor Econômico, sexta-feira, 11 de julho de 2025

A queixa de Mário Covas até hoje se manifesta na continuidade da escravidão em episódios tópicos e reiterados

Uma das explicações principais para o atraso político e social do Brasil não é a polarização entre esquerda e direita. A polarização explica apenas a pobreza da consciência crítica e política do povo brasileiro e a mais pobre ainda consciência da maioria dos políticos.
Mário Covas, que foi senador e governador de São Paulo, fundador do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), tinha o dom de sintetizar em frases curtas impressões densas e significativas do que é propriamente singular na realidade política brasileira.
Lembro-me de uma delas, a de que o Brasil precisa de um banho de capitalismo. Síntese perfeita do que tem caracterizado o Brasil por mais de um século, desde que o país aboliu a escravidão negra, em 13 de maio de 1888.
A abolição não viabilizou nossa transformação numa sociedade propriamente capitalista. Os escravos libertados, naquele mesmo dia, foram abandonados à própria sorte.
Quando logo de manhã, difundida pelo telégrafo, a notícia da assinatura da Lei Áurea foi chegando às estações ferroviárias do interior do país, onde as havia, e se difundindo pelas fazendas, muitos negros abandonaram o eito e as senzalas de seu cativeiro, à procura da liberdade que diziam ter-lhes chegado finalmente.
No fim da tarde, famintos, foram voltando às fazendas, como revelou Florestan Fernandes na reconstituição dos fatos, em “A integração do negro na sociedade de classes”, à procura de abrigo e comida.
Tinham sido transformados em pedintes. O ato da princesa Isabel libertara os senhores de escravos das irracionalidades e do ônus da escravidão sem de fato libertar seus cativos. Ao transformar a escravidão em coisa alguma, converteu o negro na nulidade social da anomia decorrente. O escravo não foi o sujeito de sua libertação. Foi-o o capital que carecia de urgente livramento para desempenhar suas funções capitalistas. O ex-escravo foi o descarte.
O capitalismo só seria possível por meio do trabalho livre. Baseado na igualdade jurídica entre o comprador e o vendedor da força de trabalho, supostamente assumiu a forma social de uma sociedade de pessoas juridicamente iguais, mas economicamente desiguais. Sem o que não pode existir.
Aqui, impregnado, porém, de um conjunto cada vez mais extenso de invisibilidades por meio das quais distribui indiretamente uma parte do lucro e, invisivelmente, as injustiças próprias da desigualdade social. E, ainda, as formas ocultas do lucro extraordinário, o que ultrapassa a taxa normal de lucro do capital.
O capitalismo brasileiro parece criativo do que é próprio do modelo capitalista de produção. Explora o trabalho no explicitado e no disfarçado para dele extrair uma taxa anômala de lucro. Só precariamente agrega e integra quem para ele trabalha.
A economia do capital é uma combinação contraditória de revelações e ocultações. É ele impossível sem a alienação social de quem perde e de quem ganha, de quem engana e se engana no processo de criação de riqueza.
Essas ocultações e invisibilidades, nesse quase século e meio de trabalho livre, ocultam também as grandes irracionalidades de um capitalismo imperfeito e inacabado. O capitalismo apenas nascia por aqui, e ainda éramos escravistas, quando já tornávamos anticomunistas.
Pelos dias do lançamento de “O manifesto comunista”, em 1848, de Marx, um filósofo, e Engels, um empresário industrial, ainda estávamos longe do trabalho livre e da possibilidade do socialismo. Marx sequer sabia que era marxista.
No entanto, um delegado de polícia do interior de São Paulo reprimiu um protesto de colonos suíços, católicos, da Fazenda Ibicaba, do senador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, acusando-os de serem comunistas.
No sertão da Bahia, em Canudos, em 1897, o poderoso Barão de Jeremoabo, senhor de terra e de gente, acusava Antônio Conselheiro e os sertanejos que, por motivos religiosos, o seguiam, de serem comunistas.
Sérgio Buarque de Holanda, na apresentação do livro do colono e professor primário Thomas Davatz, de Ibicaba, que narra os acontecimentos, observou que os fazendeiros livraram-se dos escravos, mas não se livraram da mentalidade escravista. Eram ricos, poderosos e ignorantes.
A falta do banho de capitalismo, de que se queixava Covas, até hoje se manifesta na continuidade da escravidão em episódios tópicos e reiterados. Manifesta-se, também, no rentismo anticapitalista do latifúndio que açambarca terras e territórios para compensar com a renda da terra o empreendedorismo de amadores que complementa o capital com a renda da terra. Por esses meios anômalos, e anticapitalistas, para lembrar de “Alice no outro lado do espelho”, do matemático Lewis Carroll, quanto mais caminhamos para o lá adiante, mais longe dele ficamos.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).

Entrevista Otaviano Canuto: Países não vão se dobrar, diz ex-vice do Banco Mundial sobre críticas dos EUA a sistemas públicos de pagamento - Carolina Nalin (O Globo)

 Entrevista Otaviano Canuto

Países não vão se dobrar, diz ex-vice do Banco Mundial sobre críticas dos EUA a sistemas públicos de pagamento
Otaviano Canuto, ex vice-presidente do Banco Mundial e do BID
Por Carolina Nalin — Rio de Janeiro
O Globo, 17 de julho de 2025

Países não vão se dobrar, diz ex-vice do Banco Mundial sobre críticas dos EUA a sistemas públicos de pagamento
Ataque ao Pix serve mais para marcar posição de Trump contra meios de pagamento geridos por governos, avalia Otaviano Canuto

A menção indireta ao Pix no relatório americano que embasa a abertura de uma investigação contra o Brasil por supostas práticas comerciais desleais, reflete uma posição mais ampla dos Estados Unidos contra plataformas públicas de pagamento digital. Essa é a avaliação do economista Otaviano Canuto, ex-vice-presidente do Banco Mundial e membro senior do Policy Center for the New South.
Para Canuto, a ofensiva americana mais parece um desejo de marcar posição contra modelos públicos de pagamento digital do que alguma ação efetiva. Sobretudo num momento em que o debate nos EUA caminha mais para a ampliação de criptoativos do que para a adoção de moedas digitais, como hoje discutem países como Brasil e União Europeia.
— Não me parece que há qualquer expectativa de que os países se dobrem a esse respeito — afirmou Canuto, em entrevista ao GLOBO.
O documento do Escritório do Representante de Comércio dos EUA (USTR), enviado na noite de terça-feira, argumenta que o Brasil estaria favorecendo sistemas de pagamento desenvolvidos pelo governo em detrimento de soluções de companhias americanas, como Google Pay e Apple Pay.
O governo americano já tinha feito críticas semelhantes ao QRIS, sistema de pagamento em tempo real do governo da Indonésia. A plataforma foi citada como barreira comercial em relatório que precedeu a aplicação de tarifa de 32% sobre as importações do país asiático, até a chegada do consenso bilateral de 19%.
Desde o acordo entre os dois países, porém, não foi revelado se o país indonésio fará mudanças no seu sistema de pagamento ou se as críticas americanas foram só elemento de pressão. A seguir, veja a íntegra da entrevista:
Como avalia o peso e a gravidade dessa nova investigação comercial dos EUA contra o Brasil?
Essa investigação é grave, entre outros motivos, porque claramente o caso brasileiro tem sido diferente dos demais em alguns aspectos.
A forma das tarifas recíprocas tinha tarifas para os diversos países refletindo o saldo comercial dos países com os EUA. Quem tinha déficit, era aplicado os 10%. E quem tinha superávit, com tarifas proporcionais ao percentual dos saldos comerciais. Além, claro, das tarifas setoriais e das coisas específicas com Canadá e México. Mas a carta recente enviada ao Brasil não encaixa nesse padrão. Temos déficit com eles.
O problema é essa especificidade no tato com o Brasil. Nos outros casos, onde há margem clara de negociação, entram questões econômicas, com um capítulo à parte para restrições em relação à China. Mas há um padrão comercial. No mínimo, há um indicativo do caminho perseguido pelo Trump, que é: mesmo quando tem negociação, reduz-se a carga. A agenda é principalmente no que diz respeito à comércio e compras.
Mas não é o caso do Brasil. E é evidente que o conteúdo da carta [enviada pelos EUA justificando o tarifaço de 50% "em parte devido aos ataques insidiosos do Brasil contra eleições livres", em referência ao julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro no STF] não teria concessão pelo governo brasileiro.
A novidade foi a abertura desse processo com base na seção 301 301 da lei de comércio de 1974 dos EUA, que dá margem e abre investigações num campo mais amplo.
E quais podem ser os desdobramentos práticos desse processo? Tarifas, cotas, sanções comerciais?
Eu não creio que venha a ser usado para tarifas adicionais, mas sim para tentar justificar os atuais 50%. É como se o caso do Brasil aqui fosse um teste que pode ser utilizado em outros países, em outros casos. (...) Há uma peculiaridade no tratamento do Brasil pelo Trump.
E Trump é imprevisível. Mesmo durante a campanha presidencial e no início do atual mandato, era claro que ele iria impor medidas ao Brasil. A própria tarifa recíproca anunciada em abril já indicava esse caminho. Mas essa carta e a abertura da investigação que reforça a carta é uma agenda própria peculiar.
E essa menção indireta ao Pix no documento faz algum sentido? Trump já tinha feito algo parecido com a Indonésia.
Ele incluiu o tema do comércio digital e dos serviços eletrônicos de pagamento, o que foi interpretado como uma crítica indireta ao Pix porque o sistema brasileiro reduz o espaço de atuação de plataformas de pagamento privadas.
A investigação foi construída com base em queixas de empresas americanas que operam transações digitais e se sentem ameaçadas pelo avanço do Pix. Mas o Brasil não está em negociação para eliminar o Pix. E a questão é mais ampla.
A União Europeia, por exemplo, é mais favorável à criação de redes de pagamento digitais com base em uma futura moeda digital emitida pelo Banco Central Europeu. Já nos Estados Unidos, não existe projeto para uma moeda digital oficial. Pelo contrário, o debate por lá gira mais em torno da ampliação dos ativos cripto.
Isso pode ter aparecido como desejo, refletindo essa posição mais geral dos EUA contra sistemas públicos de pagamento eletrônico, mas não há qualquer expectativa de que os países se dobrem. E se Trump tivesse obtido alguma vitória nesse sentido (como no acordo com a Indonésia, em que o QRIS também foi citado como barreira), isso teria vindo a público.
Além disso, o documento que iniciou a investigação menciona até a implementação de políticas anticorrupção como um dos pontos questionados. É um escopo muito amplo. (...) É como se o caso do Brasil fosse um teste que pode ser usado em outros países, em outros contextos. Mas há uma peculiaridade no tratamento dado ao Brasil pelo Trump.
Eles também mencionam propriedade intelectual...
O que eu duvido no estado das artes que possam encontrar justificativas a esse respeito - a não ser ameaça de mexer com essa proteção como parte de retaliação brasileira. Isso tem que ser mencionado.
E o que o Brasil pode fazer?
Temos alguns aspectos a considerar nas retaliações caso venham a ser anunciadas. Toda guerra comercial provoca danos tanto no país alvo quanto no país que inicia as tarifas.
Se os Estados Unidos impuserem restrições às exportações brasileiras, o Brasil pode reagir com medidas que afetem produtos americanos. Mas é preciso lembrar que boa parte do setor produtivo brasileiro depende de importações vindas dos EUA. Ou seja, tem o risco de "tiro no pé", e isso precisa ser considerado.
É um cenário diferente do que acontece entre EUA e China. O governo americano não levou em conta a forte dependência que tem, assim como o restante do mundo, de minerais críticos e terras raras. Essas matérias-primas estão até espalhadas globalmente, mas a China concentrou a capacidade de processamento. Hoje, responde por cerca de 80% a 90% do beneficiamento mundial dessas substâncias, essenciais para a produção de bens digitais.
Não por acaso, o primeiro instrumento da China foi restringir o acesso a esses materiais, o que gerou uma pressão doméstica junto a Trump por parte de quem produz bens digitais nos EUA porque esses materiais são essenciais.
Nós não temos isso. Nem processadores de nióbio nós somos. Tudo bem que a carne bovina exportada para os EUA é importante na produção de hambúrgueres… Mas assim como o abacate mexicano é um item importante da dieta familiar de boa parte dos EUA, isso não é à rigor comparável. Não temos muita margem.
Então a resposta do Brasil é limitada?
As referências feitas à atuação do Supremo Tribunal Federal ou a decisões relacionadas ao ex-presidente Jair Bolsonaro não são passíveis de negociação. O Brasil vai ter que mandar uma carta, vai ter que continuar dando uma resposta, pelo menos simbólica. Mas, ao mesmo tempo, o grau de centralidade na subjetividade do próprio Trump é claro. E as instâncias governamentais dos EUA vão esperar o que o presidente americano diz a respeito.
É provável que não sobre ao Brasil outra opção a não ser “ter que engolir”. A margem de resposta retaliatória é muito limitada.
É claro, o Brasil vai contestar (a investigação). Aí pode haver uma conversa sobre cada um dos pontos, mas isso não seria parte de um acordo no estilo como foi com Indonésia. Eu estou pessimista de que na última hora (Trump) vai recuar e adiar de novo (as tarifas).

ABL: Agradecimento pelo Prêmio Machado de Assis Academia Brasileira de Letras - Rubens Ricupero

Não é preciso apresentar, sequer comentar (PRA)


ABL: Agradecimento pelo Prêmio Machado de Assis
Academia Brasileira de Letras, 25 julho 2025
Rubens Ricupero

A Academia Brasileira de Letras sempre me tratou bem, mas agora se excedeu na generosidade. Perdi a conta das vezes em que fui convidado a falar nos ciclos da Academia, acho que foram quatro ao menos, sobre Joaquim Nabuco, o barão do Rio Branco, o bicentenário da Independência, a diplomacia brasileira de Napoleão a Putin. A palestra de 2019, véspera do bicentenário, cujo título provocativo era “Um futuro pior que o passado?, até hoje é meu texto mais lido no site da ABL. Em 2018, recebi o Prêmio Senador José Ermírio de Moraes pelo livro A diplomacia na construção do Brasil.
Pensei que havia esgotado a cota de bondades que se poderia esperar numa vida humana até ter a alegria de ser agraciado com a homenagem suprema, o Prêmio que leva o nome do nosso supremo escritor Machado de Assis. O que poderia, com efeito, ser mais honroso do que figurar ao lado de Guimarães Rosa, Gilberto Freyre, Cecília Meireles, Gilka Machado, Paulo Rónai, Antonio Candido, meu querido amigo de mocidade Antonio Carlos Villaça, para lembrar somente alguns mortos? Ao lado de Adélia Prado, destinatária do Prêmio no ano passado, dos demais que não citei porque seria cansativo, a lista mais parece o Quem é Quem?, o catálogo da cultura do país dos últimos 80 anos!
Com humildade e consciência das limitações individuais, espero poder justificar minha inclusão apesar de medir a dificuldade, em meu caso, de agradecer como fez Adélia Prado em 2024. Não podendo estar presente pessoalmente, conseguiu que a noite da entrega do Prêmio se transfigurasse pelo sopro da poesia, na própria voz gravada de Adélia e na igualmente emocionante declamação da filha Ana e de Tony Ramos. Não tenho à minha disposição nem a poesia nem a ficção, só uma prosa trivial, sem inspirações sublimes. O que posso fazer com isso?
Por sorte, além da prosa, o Prêmio, como se sabe, destina-se a tomar nota do conjunto da obra. Aliás, ao anunciar a decisão, nosso amigo e presidente Merval, citou como títulos, além de meus livros, a vida pública que tive, os cargos de ministro que ocupei em situações de certa importância na história do país.
Suponho que se referia sobretudo a meu papel no Plano Real, ao ajudar a preparar e lançar a nova moeda. Ação coletiva por excelência, o Plano se deveu, em primeiro lugar, a Fernando Henrique, ao presidente Itamar, ao grupo de economistas excepcionais onde se destacou nosso colega Edmar Bacha. Quando cheguei, o processo já estava em andamento. Tentei fazer o que pude, resisti às ameaças à integridade do projeto. Empenhei-me em falar às pessoas simples do povo sobre as vantagens que nos traria o fim da inflação com tanta frequência e entusiasmo que Itamar me chamava de “sacerdote” ou “apóstolo” do Real. Tive a alegria de, juntamente com o Presidente, lançar a nova moeda em 1º de julho de 1994. Hoje, trinta e um anos depois, ela continua uma sólida realidade. Seria insincero se negasse que foi o melhor momento de minha vida.
Quanto aos livros, tive de esperar pela aposentadoria para publicar, aos 80 anos de idade, o mais extenso deles, A diplomacia na construção do Brasil. O primeiro comunicado de imprensa sobre o Prêmio continha certo exagero sobre o número de livros que escrevi, bem menor que o mencionado. O que não foi fácil, de fato, foi conciliar os artigos regulares na “Folha de São Paulo” durante quase 20 anos, as aulas no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília, com o trabalho no Itamaraty e na Presidência, como ministro do Meio Ambiente e da Fazenda, funcionário da ONU em viagens incessantes pelo Iémen, o Camboja, o interior da Etiópia e da Tanzânia. A única vez que falhei foi ao tentar enviar por fax a coluna da Folha a partir da capital cambogeana de Phnom Penh, num país ainda mal saído do genocídio.
Minha obra é quase toda dedicada à matéria diária dessas ocupações: a diplomacia, as relações internacionais. Se me perguntarem o que deduzi de anos de ensino e estudo sobre a evolução diplomática brasileira direi ser a convicção de que nenhum outro país deve à diplomacia tanto como o Brasil. Primeiro por ter assegurado pela negociação a aceitação pacífica da expansão do território para mais de dois terços do que nos teria cabido originalmente. Em seguida por haver construído um patrimônio inestimável de “soft power”, isto é, de poder nascido não da guerra e das sanções econômicas, mas do exemplo, do diálogo, do espírito de moderação e compromisso.
Poucas nações podem se orgulhar como o Brasil de uma tradição ininterrupta de 155 anos de paz com dez vizinhos desde o fim da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai em 1º de março de 1870. Esse resultado não foi uma dádiva da História, mas teve de ser conquistado com esforço e perseverança. Nossa primeira guerra, a da Cisplatina a respeito do Uruguai, começou três anos apenas após a Independência. Ninguém mais lembra o que custou em termos de sofrimento humano, vidas sacrificadas e oportunidades econômicas perdidas manter a unidade e a estabilidade interna nas primeiras décadas da independência e a segurança nas fronteiras platinas depois. A Guerra do Paraguai, que consumiu o equivalente a onze anos do orçamento do Império, motivou o barão de Cotegipe a lamentar: “Maldita guerra, atrasa-nos cinquenta anos!”
Tampouco foi fácil conseguir que o panorama mudasse com a República. Quando o barão do Rio Branco voltou para ser ministro do Exterior em fins de 1902, a revolta de Plácido de Castro estava em pleno curso no Acre. Naquele tempo de auge do imperialismo, nada teria sido mais natural que a anexação pura e simples do Acre, cuja população era maciçamente brasileira. Por julgar que seria uma “conquista disfarçada...em contraste com a lealdade” que sempre tínhamos seguido com as outras nações, Rio Branco rejeitou a hipótese e preferiu negociar uma solução consensual, dando compensações à Bolívia, sendo duramente criticado por isso.

Alertado pelo conflito acreano, passou os nove anos de gestão resolvendo de modo sistemático todas as questões pendentes de limites. Nunca se afastou do método do diálogo e do entendimento. “É mais prudente transigir” escreveu “que ir à guerra. O recurso à guerra é sempre desgraçado.” Ao tomar a iniciativa de corrigir em favor do pequeno Uruguai o leonino Tratado de Limites de 1851, não aceitou as contrapartidas oferecidas. Explicou que o que nos movia não era a busca de gratidão, mas a convicção de que esse testemunho de amor ao direito ficava bem ao Brasil e constituía uma ação digna do povo brasileiro.

Os exemplos de Rio Branco, Nabuco e de outros edificaram um sistema de valores éticos e políticos que acabou por se confundir com a própria ideia que os brasileiros fazem da nação. De Gaulle dizia num texto célebre que imaginava uma “certa ideia da França”, que, para ele, era inseparável da grandeza, de conotação obviamente napoleônica. Para nós, o conceito de Brasil é inseparável da diplomacia, da paz, do entendimento, da harmonia com os vizinhos e o mundo.

Dirão alguns que se trata de uma visão idealizada de si mesmo. A ideia de nação é sempre uma construção do espírito e pode às vezes disfarçar interesses egoístas. Não somos necessariamente como nos idealizamos, mas é assim que gostaríamos de ser. De todo modo, é melhor se idealizar pacífico e conciliador que atribuir-se qualidades de dominação, de superioridade racial ou cultural, de destino manifesto de opressor de outros povos.

Estamos tão habituados à nossa tradição de paz que nem nos damos conta de como ela vai se tornando um bem precioso e raro num mundo em que guerras como a da Ucrânia e a da faixa de Gaza tornam as pessoas insensíveis à morte e mutilação de crianças e mulheres, ao extermínio pelo genocídio e pela fome. Nessa atmosfera sombria em que estamos mergulhados, nem o Brasil escapou de agressão brutal à soberania de suas instituições, apesar de nada ter feito para provocar as truculentas ameaças do presidente Trump.

Senhor Presidente, Senhoras e Senhores,

Nasci nove meses antes do Estado Novo e dois anos e meio antes da Segunda Guerra Mundial. Fui testemunha direta de muitas das convulsões que marcaram um dos mais trágicos períodos da história. Tentei em minha obra transmitir uma certeza nascida da reflexão sobre essa experiência de vida. A dor e o sofrimento dos últimos oitenta anos teriam sido evitados se os valores que Rio Branco legou à diplomacia brasileira tivessem igualmente guiado a conduta dos “grandes deste mundo”.

Com clarividência sobre o que haveria de suceder, afirmava ele num de seus últimos discursos: “...se então pensarem...alguns desses países...em entregar-se à loucura das hegemonias ou ao delírio das grandezas pela prepotência, estou persuadido de que o Brasil do futuro há de continuar invariavelmente a confiar, acima de tudo, na força do Direito, e, como hoje pela sua cordura, desinteresse e amor da justiça, a conquistar a consideração e o afeto de todos os povos vizinhos em cuja vida interna se absterá de intervir.”

Na sua já longa tradição, é a primeira vez que o Prêmio Machado de Assis é concedido a alguém que fez da história da diplomacia brasileira a essência de sua obra. Resgatar do esquecimento esses inspiradores exemplos de nosso passado, creio, é a melhor maneira de agradecer a homenagem que, por meu intermédio, a Academia presta à gloriosa herança de dois séculos de diplomacia de paz e fraternidade.

Muito obrigado.
Rubens Ricupero

Carta aberta aos políticos de todo o mundo - DISSIDENTES RUSSOS PRESOS (Le Monde e outros jornais)

 Na Rússia já não existe lei, nem ordem, muito menos justiça. Existe apenas a vontado do seu tirano, por acaso eleito:


... Na Rússia, não há absolvição em casos com motivação política. A crueldade das penas está aumentando; penas de 10, 15 e 20 anos de prisão não surpreendem ninguém. A Duma (Parlamento) exige regularmente o restabelecimento da pena de morte.
As chances de um julgamento justo desses casos pelos tribunais russos já eram baixas, mas acabaram desaparecendo depois que a Rússia se recusou a cumprir as decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em 2022...

Carta aberta aos políticos de todo o mundo
Por DISSIDENTES RUSSOS PRESOS

27/07/2025

Pedimos aos políticos dos países democráticos que apoiem a luta dos russos e adotem resoluções em nome dos parlamentos, associações políticas e partidos
1.
Nós, prisioneiros políticos russos, apelamos a todos os líderes internacionais que se preocupam com o sofrimento dos povos por causa de suas convicções.
Somos pelo menos 10 mil — prisioneiros políticos russos e reféns civis ucranianos. Todos nós somos punidos por uma única coisa: ter adotado uma posição cívica.
Os conceitos de justiça e equidade estão ausentes na Rússia atual; quem ousa pensar criticamente pode acabar atrás das grades.
A legislação repressiva destinada a eliminar qualquer dissidência tem sido constantemente reforçada desde 2012. De 2018 a 2022, pelo menos 50 leis repressivas foram aprovadas e, desde 24 de fevereiro de 2022, mais de 60 outras.
Na Rússia, não há absolvição em casos com motivação política. A crueldade das penas está aumentando; penas de 10, 15 e 20 anos de prisão não surpreendem ninguém. A Duma (Parlamento) exige regularmente o restabelecimento da pena de morte.
As chances de um julgamento justo desses casos pelos tribunais russos já eram baixas, mas acabaram desaparecendo depois que a Rússia se recusou a cumprir as decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em 2022.
Na Rússia moderna, as instituições de defesa dos direitos humanos foram completamente substituídas por órgãos que se contentam em imitar as atividades de defesa dos direitos humanos. Consequentemente, a saúde e a vida dos prisioneiros e prisioneiras estão ameaçadas, e a tortura e as pressões exercidas contra eles geralmente não são investigadas nem punidas.
Os presos políticos são, mais frequentemente do que os outros, detidos em condições mais duras e privados da possibilidade de liberdade condicional e de flexibilização legal do regime de detenção.
A prática de instaurar processos penais adicionais com base em denúncias de outros condenados tornou-se comum.
2.
Apesar de tudo isso, não perdemos nossa voz, não caímos no esquecimento. Mantivemos a nossa posição cidadã, baseada na qual nos parece importante afirmar:
Apelamos às duas partes nas negociações entre a Rússia e a Ucrânia para que procedam imediatamente à troca de prisioneiros e prisioneiras, prisioneiros de guerra e civis, segundo a fórmula “todos contra todos”, incluindo os reféns civis ucranianos.
Apelamos à libertação imediata e incondicional dos prisioneiros políticos doentes que estão morrendo nas prisões russas.
Contamos com os líderes políticos de diferentes países para criar as condições para a libertação daqueles que são perseguidos na Rússia por motivos políticos.
Exortamos os meios de comunicação de diferentes países a não permanecerem em silêncio e a cobrirem as atividades dos cidadãos russos que continuam a arriscar suas vidas na luta pela liberdade e pela democracia.
Pedimos aos políticos dos países democráticos que apoiem a luta dos russos e adotem resoluções em nome dos parlamentos, associações políticas e partidos.
Só juntos poderemos aproximar o tempo da liberdade e da paz.

Ilya Shakursky
Darya Kozyreva
Andrei Trofimov
Alexander Shestun
Azat Miftakhov
Boris Kagarlitsky
Alexei Gorinov
Vladimir Domnin
Anna Arkhipova
Artem Kamardin
Dmitry Pchelintsev

Publicado, entre outros veículos, pelo jornal Le Monde
Tradução: Daniel Aarão Reis Filho.

Onde trabalharam os diplomatas brasileiros, no RJ? - Arno Dal Ri Jr., Paulo Roberto de Almeida

Da antiga Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros ao atual Ministério das Relações Exteriores: onde trabalharam os diplomatas a serviço do Brasil, primeiramente portugueses, depois naturalizados, finalmente os brasileiros? 

Graças às pesquisas do meu amigo, professor Arno Dal Ri Jr., eis as diferentes locações, todas alugadas, até chegarmos ao velho Palácio do Barão do Itamaraty, na última década do século XIX, enfim própria, onde os sucessivos “barões” trabalharam, no Rio de Janeiro, até serem deslocados, um pouco forçosamente, para o novo Palácio do Itamaraty em Brasília, em 1970 (dez anos depois da mudança da capital. O IRBr se deslocou em 1975.

Eis o que me escreveu o prof. Dal Ri;

“A primeira sede do Ministério de Negócios Estrangeiros foi no Campo de Santana, ao lado antigo Ministério da Guerra (atual Faculdade de Direito), onde ficou até 1841. 

Depois foi para o número 44 da Rua do Passeio, na atual Cinelândia, no centro do Rio. 

Ficou ali até 1860, quando foi para o número 446 do Largo da Glória, antiga casa do Visconde de Meriti, onde atualmente se encontra o Palácio Arquiepiscopal. 

Em 1897, com a transferência da Presidência para o Palácio do Catete, o Ministério passa para o Itamaraty, na antiga rua larga de São Joaquim”, atualmente Av. Marechal Floriano (que não mereceria essa glória).

Com o devido copyright ao prof. Arno Dal Ri Jr., Paulo Roberto de Almeida 

Planaltina de Gouás, 27/07/2025

How a World Order Ends And What Comes in Its Wake - Richard Haass (Foreign Affairs)

 

sábado, 26 de julho de 2025

Rubrns Barbosa: “ EUA: não há mais liberalismo, mas lei da selva! - Cristiano Romero (Vero Noticias)

 Cristiano Romero entrevista Rubens Barbosa: não é apenas chumbo grosso que vem dos EUA de Trump contra o Brasil: são diversas bombas de muitos megatons:


EUA: não há mais liberalismo, mas lei da selva - Rubens Barbosa

Por Cristiano Romero

Vero Notícias, 25/07/2025


Com a acidez e o pragmatismo que lhe são peculiares, o embaixador Rubens Barbosa não poupa palavras para descrever o cenário atual das relações entre o Brasil e os Estados Unidos, especialmente diante do controverso governo de Donald Trump. Em entrevista exclusiva ao portal Vero Notícias, Barbosa desvenda as camadas desse embate, que classifica sem rodeios como a “lei da selva” nas relações internacionais.

É importante ressaltar que a visão de Rubens Barbosa sobre as relações bilaterais não é a de um mero observador, mas de um diplomata com profunda experiência. Tendo atuado como embaixador do Brasil nos Estados Unidos entre 1999 e 2004, período particularmente turbulento da vida americana — marcada pelo questionamento da eleição de George W. Bush, pelos ataques de 11 de setembro e pela invasão do Iraque pelos EUA a partir de informações falsas —, Barbosa demonstrou ser um hábil negociador de questões complexas envolvendo os dois países. Trabalhou intensamente na preparação do governo americano para a posse de um presidente brasileiro de esquerda (Lula, em seu primeiro mandato). Sua compreensão da dinâmica de Washington, forjada em momentos de alta tensão, confere ainda mais peso às suas análises.

A crítica inicial vem ao classificar a gestão de Trump. Para Barbosa, o que se vê é um unilateralismo sem freios, um abandono do multilateralismo que pavimentou a ordem global pós-Segunda Guerra. Em outras palavras, a diplomacia deu lugar à imposição, e o Brasil, como outros países, se vê enredado nessa teia de decisões tomadas à revelia dos acordos coletivos. A verdade nua e crua é que Washington agora dita as regras, e quem não se ajusta, arca com as consequências.

E não se deve ter ilusões: o legado de Trump, por mais errático que pareça, não é efêmero. Barbosa, com a sua habitual perspicácia, adverte que muitas das bandeiras levantadas pelo presidente americano tendem a permanecer, independentemente de quem ocupe a Casa Branca. A razão é simples e brutal: os EUA estão rachados ao meio, com 50% da população chancelando as ações de Trump. Isso significa que as tarifas, as pressões comerciais e a postura isolacionista não são meros caprichos, mas reflexos da visão de uma parcela significativa do eleitorado americano.

Diante desse quadro, o embaixador é categórico: o Brasil precisa acordar para a nova realidade. Deixar a ideologia de lado e abrir canais de comunicação efetivos com Washington é mais do que uma necessidade, é uma questão de sobrevivência econômica. Enquanto os americanos jogam duro, explica Barbosa, o Brasil, infelizmente, parece ainda patinar, perdendo tempo precioso e a chance de negociar em um ambiente que, querendo ou não, se tornou mais hostil do que nunca. A bola está com Brasília, e o tempo, como sempre, não perdoa.

Leia a entrevista completa:

Vero Notícias: O Brasil é aliado histórico dos EUA. Apesar disso, neste momento é o país mais castigado pelas tarifas aplicadas às importações pelo governo norte-americano. Estamos vivendo o pior momento da relação bilateral?  

Embaixador Rubens Barbosa: O que está acontecendo nos Estados Unidos também é único. Não existiu nenhum presidente antes de (Donald) Trump que tenha feito o que ele está fazendo. Todas essas ideias de anexar o Canadá, a Groenlândia, ninguém jamais falou nisso. A primeira coisa, então, é saber que a gente está lidando com uma situação nova e sobre a qual não se tem controle. Não é uma relação tradicional, política, diplomática. Do lado brasileiro tem um problema.

Qual?

Barbosa: Um lado ideológico muito forte. Do lado americano, o Trump é ideológico, da extrema-direita, enquanto, aqui, tem o Lula e o PT da esquerda. Então, eles não se falam. O governo não estabeleceu, desde a eleição, um canal de comunicação. Veio em abril o tarifaço e o governo estabeleceu um canal de comunicação comercial, entre o vice-presidente Geraldo Alckmin, o secretário de comércio dos EUA e o USTR (sigla de representante comercial dos EUA).

Isso não é suficiente?

Ora, é preciso ter um canal político, diplomático. “O Globo” fez editorial dizendo que Lula tem que mandar o chanceler Mauro Vieira aos EUA antes do dia 1º de agosto, quando as novas tarifas entram em vigor. Não adianta nada.

Por quê?

Porque eles não têm um canal aberto, de diálogo. O que interessa é a tarifa, não é a relação diplomática.

O senhor acha que Trump está fazendo em todas as áreas é um desvio na história americana ou é uma tendência, afinal, ele foi eleito pela segunda vez?

Vai ter eleição ano que vem [para o Congresso americano]. Acho que ele vai perder a maioria de uma das casas, a Câmara ou o Senado.

Quando o senhor olha tudo o que está acontecendo lá, o que considera de caráter permanente?

O país está dividido, 50% de cada lado. Ele (Trump) tem 50% do eleitorado que aprova tudo o que está fazendo. Na visão dele, o que está fazendo é para defender os interesses americanos. É uma posição nacionalista, radical, ideológica, cristã. O que ele está fazendo com as universidades, com os imigrantes, é tudo novo na política americana. Na área internacional e no comércio, houve uma revolução. Quer dizer, todo aquele cenário criado depois da Segunda Guerra Mundial, sob a liderança dos EUA, nas áreas comercial, econômica e política desapareceu.

O que efetivamente acabou?

Não há mais liberalismo. Hoje, o que prevalece é o protecionismo, é a lei da selva, a vontade pessoal de cada dirigente dos países. Acabou a OMC (Organização Mundial do Comércio). No caso das tarifas, não há mais a quem recorrer. Então, tem que negociar diretamente com os EUA. E o Brasil, apesar das diferenças ideológicas, não criou canais de negociação. O Vietnã, que é um país comunista, já negociou um acordo. As Filipinas, o Japão, a Indonésia, também negociaram. Como a gente não manda ninguém para conversar no alto nível, não há negociação.

O desrespeito dos EUA ao multilateralismo não teve impulso durante o governo de George W. Bush (2001-2009)?

Sim, com as mentiras contadas para justificar a invasão ilegal do Iraque. Bush começou a destruir a imagem americana ali, e isso foi se agudizando desde então.

O problema todo dos Estados Unidos é que, a partir de 2001, quando a China entrou para a OMC, a tensão que havia entre EUA e Rússia foi substituída pela tensão entre EUA e China. Gradualmente, os americanos começaram a defender o interesse deles em primeiro lugar. Isso chegou ao paroxismo com a ascensão de Trump, com o MAGA, etc. A visão de Trump é nacionalista, de extrema-direita, e vale para tudo. Agora, por exemplo, eles saíram da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), acusando-a de antissemitismo. Disseram que a instituição promovia temas que não são do interesse americano. Trump disse que a União Europeia foi criada para prejudicar os Estados Unidos! Agora, pior é o que ele está fazendo na área internacional.

O que, exatamente?

Uma coisa é o comércio, a economia. A outra é a ordem internacional. Na ordem internacional, Trump está dando apoio à Rússia e se colocando contra a União Europeia. O establishment americano tinha essa questão da Guerra Fria desde o fim da Segunda Guerra. Isso acabou com o fim da União Soviética. Agora, os EUA estabeleceram uma Guerra Fria contra a China. Quem não entender isso fica tratando o Trump como o Brasil está fazendo. A União Europeia, por exemplo, está negociando as tarifas com Trump.

Na entrevista do presidente Lula à CNN Internacional, ele disse que o Brasil está negociando com os EUA desde abril.

O que eles estão negociando é o tarifaço anunciado em abril. Alckmin esteve lá duas ou três vezes. O pessoal técnico esteve lá, Brasil mandou uma proposta em relação à tarifa de 10% aplicada a todos os países. Os americanos não responderam. Agora, quando apareceu a carta de Trump a Lula, no dia 9 de julho, sobre o tarifaço de 50%, Alckmin mandou uma carta pedindo resposta à carta enviada pelo Brasil em maio. Já em relação à tarifa de 50% não fizemos nada, simplesmente devolvemos a carta.

Ao devolver, o governo brasileiro quis dizer que não reconhece a carta de Trump recebida em 9 de julho?

É isso. Agora, o Lula respondeu do mesmo jeito. Em pronunciamento à nação e pela mídia, disse que vai taxar as “big techs” e retaliar. Ora, se isso acontecer, os americanos vão retaliar de novo. O Brasil precisa ter um canal de comunicação com o governo Trump para negociar o que interessa ao Brasil, que é o tarifaço sobre nossas exportações.

O Itamaraty não está cumprindo seu papel?

Não! Isso se deve ao esvaziamento do Itamaraty. Não adianta mandar o Mauro Vieira, tem que ir o vice-presidente. Mas já é tarde porque as tarifas entram em vigor no dia 1º de agosto. A crítica que eu faço é que, oito meses desde a vitória eleitoral de Trump, não houve nenhum contato oficial do governo brasileiro com a Casa Branca e o Departamento de Estado. Houve apenas com a área comercial. Celso Amorim, assessor de Lula, chamou o encarregado de negócios da embaixada americana [já há alguns anos, os EUA não designam um embaixador para sua representação no Brasil]. Porém, não houve contato oficial entre o Palácio do Planalto e a Casa Branca.

E por que o governo Lula não o fez? Nos dois mandatos anteriores, ele desenvolveu boa relação com os presidentes Bush e Obama.

Por questões ideológicas. Durante a campanha eleitoral americana, Lula disse que Trump é o “nazismo com outra cara”. Disse também que seria melhor a vitória de Kamala Harris.

O que o senhor acha dos termos da última carta de Trump a Lula, em que ele condiciona a negociação ao fim do processo contra o ex-presidente Jair Bolsonaro?

O que está por trás dessa carta não é o Bolsonaro, mas, sim, os interesses das big techs. Se você olhar a carta, verá que o primeiro parágrafo é sobre a questão de Bolsonaro, mas não tem nada a ver com o restante da carta. O segundo parágrafo é sobre as big techs e o Supremo Tribunal Federal (STF). O Brasil reagiu bem. Chamou o encarregado de negócios para fazer esclarecimentos, devolveu a carta ao governo americano e criticou a ingerência externa no Brasil, deveria ter parado aí.

Por quê?

Porque já tinha respondido a parte política e, aí, a parte comercial, que é a que mais interessa ao Brasil, eles não fizeram nada.

Ao impor condição que exigiria interferência do presidente Lula em outro poder da República, Trump não inviabiliza qualquer possibilidade de negociação?

Não há essa condição. Isso é uma interpretação que está sendo dada, mas não tem. Uma coisa é a parte política da carta de Trump, que já foi respondida. Outra é a parte técnica da big tech e do tarifaço. A gente tem que mandar alguém lá para negociar essas duas coisas.

Foi uma bravata, então?

Não. A carta tinha um lado político e foi respondida adequadamente. O Brasil não vai discutir essa parte. Os americanos sabem disso. Na minha visão, é uma narrativa para fins de política interna nos Estados Unidos. O que interessa nisso tudo é o tratamento do Brasil para as big techs e as tarifas. Mas não dá mais tempo para negociar antes de 1º de agosto.

O que o Brasil deve fazer, então?

Tem que preparar uma missão governamental de alto nível para ir aos Estados Unidos, com o objetivo de discutir com a Casa Branca. No caso das Filipinas, quem negociou e fechou um acordo foi o primeiro-ministro. A questão envolvendo Bolsonaro não é impedimento para a negociação técnica. Esta é a minha posição.

Quem deve integrar essa missão de alto nível?

Deveria ser o vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, para falar com o vice-presidente americano J. D. Vance.

Mesmo que a questão política não seja a mais importante, já que o Brasil nada pode fazer em relação ao governo Trump, não há o risco de os americanos rejeitarem uma negociação?

Se eles não quiserem receber o vice-presidente do Brasil, aí, não sei o que poderia acontecer. O chanceler pode ir junto, integrar a missão, mas a liderança tem de ser do vice-presidente. Veja, o chanceler não está negociando com o setor privado. Quem está fazendo isso é o vice-presidente, que é também o ministro da Indústria e Comércio. O chanceler pode fazer uma visita ao Departamento de Estado para estabelecer uma comunicação que foi não feita até agora. Isso é outra história.

O que lhe faz pensar assim?

O último parágrafo da carta que diz que o governo americano está disposto a negociar os 50%. Está escrito lá. E eu te falei que o Secretário de Comércio declarou algo na mesma direção. Mas, antes de 1º de agosto não vai ter suspensão do tarifaço, adiamento, nada.

Este é o pior momento da relação do Brasil com os Estados Unidos?

Não. Já houve momentos tão sérios quanto este de agora. No Império, o Brasil suspendeu as relações duas vezes com os EUA. Agora, não se está suspendendo a relação. Durante o governo Geisel, por causa da tentativa de ingerência dos EUA na questão dos direitos humanos, o Brasil suspendeu o acordo que tinha com Washington. A presidente Dilma Rousseff, quando foi espionada, cancelou viagem que faria aos Estados Unidos, uma visita de Estado. Isso é forte. Tinha que dar uma resposta e ela deu.

Quem mais deve participar do esforço para reduzir o tarifaço?

Os empresários têm que ajudar. Têm que ir a Washington conversar com o lado empresarial americano e pedir que eles pressionem Trump a reduzir as tarifas.

Alguém está fazendo isso?

Sim. Alckmin está falando com os empresários aqui, agora. E os empresários aqui têm que ir aos Estados Unidos para falar com seus pares. Eles já começaram a fazer isso. Alckmin se reuniu também com empresas americanas que atuam no Brasil. Estão fazendo o trabalho certo. A Embraer, por exemplo, fabrica aviões com partes feitas nos EUA e vende muitas unidades ao mercado americano. Já está conversando com empresas americanas. O setor de agronegócio contratou um grande escritório de advocacia. A decisão será da Casa Branca e não do Departamento de Comércio ou do USTR. Por isso, é necessário ter um canal com a Casa Branca.


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