sexta-feira, 10 de outubro de 2025

As relações comerciais Brasil-Estados Unidos numa conjuntura especial - Paulo Roberto de Almeida

As relações comerciais Brasil-Estados Unidos numa conjuntura especial

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Subsídios para entrevista com a CBN-Bahia em 10/10/2025, a pedido do Livres.

        A primeira coisa que poderia ser dita a respeito das próximas negociações econômico-comerciais entre o Brasil e os Estados Unidos é que elas NÃO deveriam existir, pois que não fazem nenhum sentido num mundo que deveria ser marcado pela predominância institucional e prática do sistema multilateral de comércio, uma arquitetura regulatória dos intercâmbios globais duramente construída ao longo dos últimos 80 anos de criação e funcionamento do multilateralismo econômico contemporâneo, aliás a partir da liderança dos Estados Unidos.
        Esse sistema funcionou desde o final da Segunda Guerra Mundial, a partir da aprovação provisória do Acordo Geral de Tarifas Aduaneiras e Comércio, em 1947, em Genebra, tinha sido confirmado na Conferência de Comércio e Emprego em Havana, de 1947 a 1948, e tinha funcionado de forma relativamente satisfatória ao longo de oito rodadas de negociações comerciais multilaterais, com a ampliação progressiva de Estados membros desde então, notadamente dos antigos países socialistas, que passaram a aderir depois da implosão da União Soviética em 1991. A China já tinha se antecipado ao solicitar, em 1987, seu ingresso no Gatt, processo que durou 14 anos, até ela ser finalmente admitida às vésperas da Rodada Doha da OMC em 2001. A partir daí, o gigante asiático tornou-se um adepto dos mais entusiastas dos acordos de livre comércio, convertendo-se, desde a década passada, no principal parceiro comercial de mais de 135 países ao redor do mundo, suplantando, nesse quesito, até mesmo os Estados Unidos, que ainda são a maior economia planetária.
        Já no seu primeiro mandato, o presidente Donald Trump havia começado a desafiar o sistema multilateral de comércio, começando por desmantelar o Nafta, o acordo de livre comércio entre o Canadá, os Estados Unidos e o México, negociado entre 1990 e 1993, nas presidências Bush pai e Bill Clinton; ele foi substituído por um acordo tripartite, com várias restrições protecionistas introduzidas pela administração Trump 1 entre 2017 e 2020. Mas, o que se passou a assistir desde o início de sua segunda administração, em janeiro de 2025, é algo absolutamente inusitado nos anais do comércio internacional, uma destruição jamais vista na história de 80 anos do sistema multilateral de comércio e numa trajetória mais do que multissecular da cláusula de nação mais favorecida, o eixo central dos acordos de comércio, presente desde a alta Idade Média na Lex Mercatoria, princípio justamente multilateralizado pelo Gatt e aceito por praticamente toda a comunidade econômica planetária.
        Pois, não contente em desprezar a ONU e várias de suas agências especializadas, o presidente Trump, desde sua volta, passou a destruir o coração mesmo do sistema multilateral de comércio, impondo unilateralmente tarifas abusivas contra praticamente todos os parceiros comerciais dos Estados Unidos, aliados e supostos adversários. O “tarifaço” não pode sequer ser chamado de política comercial, pois ele não representa qualquer estratégia coerente, ou racionalmente estabelecida, para regular o intercâmbio comercial dos EUA com todas as demais partes contratantes ao Gatt e membros da OMC: trata-se de um arbítrio irracional, montado supostamente com base nos déficits comerciais bilaterais dos EUA com os demais parceiros, e até aplicado de maneira completamente equivocada contra o Brasil, um dos poucos países do G20 com os quais os EUA mantêm superávit comercial desde muitos anos.
        Aliás, no primeiro tarifaço, em abril, o Brasil tinha sido supostamente “premiado” com uma sobretaxa de apenas 10%, aplicada a todo o universo aduaneiro, para depois ser politicamente punido com um adicional de 40%, com algumas derrogações, a pretexto de violações a direitos humanos e perseguição política a um ex-presidente, sem qualquer tipo de justificativa legítima, apenas a vontade de Trump e a incitação traidora de familiares do ex-presidente golpista, processado e condenado pela Justiça brasileira. A Índia também foi punida com sobretaxas adicionais, sob a alegação de comércio com a Rússia, o país agressor da Ucrânia, em clara violação do Direito Internacional, e submetida a sanções por parte de vários países que defendem os princípios estabelecidos na Carta da ONU.
        O fato é que as sobretaxas aplicadas ao Brasil, assim como a todos os demais países, incorrem em prejuízos claros para os consumidores americanos, produzindo elevação de preços internos e da própria inflação. Foram pressões de setores empresariais dos EUA, não exatamente uma repentina simpatia de Trump pelo presidente brasileiro, que o levaram a buscar negociações comerciais bilaterais, agora a cargo dos dois chanceleres, que passarão a negociar alguma acomodação. Mas em quais bases podem ser aceitas imposições unilaterais dos EUA, à margem das normas e práticas usuais do sistema multilateral de comércio?
        As tarifas nacionais são normalmente declaradas ao Secretariado do Gatt, e ficam registradas em conformidade com os princípios de transparência, de não discriminação entre parceiros e da cláusula de nação mais favorecida, justamente, elementos chaves das relações comerciais, mas sobejamente ignorados por Trump e pela administração americana. Elas podem ser objeto de reclamações dos parceiros, precisamente pela unilateralidade da medida, e é isso que o Brasil deve fazer, iniciando uma contestação formal quanto à arbitrariedade tarifária cometida pelo ainda membro da OMC e parte contratante ao Gatt. No plano bilateral, essas negociações entre as duas chancelarias devem adotar, por parte do Brasil, os mesmos princípios regidos por normas longamente acatadas do sistema multilateral de comércio, inclusive no que se refere à aplicação, igualmente unilateral, da seção 301 da Lei de Comércio dos EUA, que extravasam as definições estritas de caráter comercial, para adentrar em regulação de determinados serviços submetidos à legislação nacional (informática e redes sociais, por exemplo).
        O Brasil começou adotando a postura correta no plano formal, não aceitando o unilateralismo americano, nem oferecendo concessões compensatórias, como o fizeram alguns parceiros dos EUA, notadamente na Europa e por parte de alguns países asiáticos. Alguns gestos impensados por parte do presidente, como aventar a hipótese improvável de “desdolarizar” as relações comerciais, não correspondem a uma estratégia realista, por parte da diplomacia profissional, de reação ao arbítrio trumpista. O Brasil deve defender a correta aplicação dos mecanismos existentes nas normas comerciais multilateralmente adotadas e atuar com base nas disposições formais do Direito Internacionais e nas práticas costumeiras da Lex Mercatoria, negociando eventuais ajustes em tópicos específicos dos intercâmbios bilaterais de bens e serviços com o pragmatismo requerido em situações assimétricas, como cabe reconhecer neste caso.
        O comércio, feito geralmente pela iniciativa privada, com base em interesses concretos dos atores primordiais, sem preconceitos políticos, não pode servir de campo de batalha para candidatos à hegemonia econômica mundial. A afirmação, pelo Brasil, de seus princípios e valores no contexto da diplomacia bilateral, assim como em defesa das normas mais elementares do sistema multilateral de comércio, deve guiar a postura dos negociadores brasileiros nesta próxima etapa das consultas a serem mantidas pelas duas partes. É o que se espera de nossa diplomacia bicentenária, sempre comprometida com a defesa do interesse nacional e no estrito respeito ao Direito Internacional e à convivência cooperativa com todos os demais membros da comunidade mundial de Estados membros da ONU.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5085, 9 outubro 2025, 3 p.


Perguntas encaminhadas pelos jornalistas do canal CNN-Salvador da Bahia sobre o tema:

1. Embaixador, qual a sua primeira leitura sobre esse primeiro contato direto entre Lula e Donald Trump?

    PRA: Foi surpreendentemente positivo, mais do que outros encontros de cúpula, com europeus, asiáticos, os próprios canadenses, os quais foram praticamente humilhados por Trump. A postura cautelosa, até desafiadora de Lula, ajudou a mudar o humor de Trump para com o Brasil. Em parte isso deve responder às preocupações de empresários americanos que estão pagando mais caro por café, carne, suco de laranja e outros produtos. Provavelmente, não teremos mais aquelas cartas ameaçadoras, dando ordens a Lula para libertar Bolsonaro e garantir os lucros das Big Techs. Isso parece ter acabado, e agora vamos entrar num terreno mais incerto, a ser negociado entre burocratas, economistas e diplomatas.

2. Que mensagem simbólica o encontro transmite no cenário internacional, considerando os perfis políticos tão distintos dos dois líderes?

    PRA: Um recuo de Trump e uma aparente vitória de Lula, que não saiu prometendo, como europeus e japoneses, bilhões de dólares em investimentos industriais nos EUA. O perfil político não importa muito para Trump: o que ele mais deseja é fazer negócios, em primeiro lugar para si mesmo e familiares, depois para os Estados Unidos. Europeus e japoneses devem ter ficado com inveja do Lula, que foi bastante desafiador com Trump.

3. Esse diálogo representa mais uma estratégia diplomática de Lula ou um gesto pragmático diante das mudanças políticas nos EUA?

    PRA: Na verdade, não creio que Lula estivesse esperando alguma mudança positiva vinda de Trump, e sua estratégia, se havia alguma, era de resistência às imposições unilaterais de Trump. Mas ele sempre declarou estar disposto a um diálogo respeitoso, sem intervenção nos assuntos internos do Brasil e resguardando nossa soberania. Não creio que ele tivesse alguma estratégia diplomática até sua fala na ONU e o encontro com Trump.

4. Historicamente, como o Brasil tem equilibrado suas relações com governos americanos de orientações ideológicas opostas?

    PRA: O Brasil sempre foi pragmático em suas relações com os EUA, pelo menos no plano da diplomacia. Momentos de maior aproximação entre líderes dos dois países ocorreram primeiro durante a ditadura militar, entre o chanceler Azeredo da Silveira e Henry Kissinger, o que não impediu Kissinger de continuar bloqueando o acesso do Brasil a tecnologias sensíveis. Depois tivemos a boa relação entre Fernando Henrique e Clinton, assim como de FHC com vários líderes socialdemocratas europeus. Finalmente, a despeito dos temores, a relação entre Lula e Bush filho foi relativamente boa, apesar de Lula ter sabotado, junto com Kirchner e Chávez, o projeto americano da Alca, a área de livre comércio hemisférica proposta por Clinton. Depois disso tivemos a aproximação, e eu diria a submissão de Bolsonaro ao primeiro Trump, num dos momentos mais vergonhosos da diplomacia brasileira. Nenhum pragmatismo, submissão total, estilo “I love you, Trump!”.

Agora voltamos a mais pragmatismo, num momento especial, pois o mundo inteiro está submetido ao arbítrio tarifário de Trump, sua arrogância e desprezo aos que não se submetem aos seus desejos e vontades. Lula e a diplomacia brasileira fizeram bem em resistir.

5. A volta de Trump à Casa Branca em 2025 alterou a política externa dos EUA em relação à América Latina?

    PRA: Sim, já está alterando, no caso da Venezuela, oposição total, e no caso da Argentina, tratada com bastante condescendência.

6. [Como se situa] o governo Lula busca em face do novo mandato de Trump?

    PRA: Lula procedeu mal, durante a campanha, ao apoiar abertamente a candidata democrata Kamala Harris. Isso é uma interferência indevida nos assuntos internos, no caso eleitorais, de outro Estado, o que, aliás, Lula sempre praticou, apoiando seus amigos esquerdistas em praticamente todas as eleições presidenciais latino-americanas.

    Mas, vamos convir, também, que os Estados Unidos também interferiram nos nossos assuntos internos, e a eleição de Lula pode ter sido garantida por essa intervenção americana nas nossas eleições de 2024: Joe Biden mandou seu Secretário de Segurança Nacional ao Brasil, assim como o chefe da CIA, William Burns: ambos vieram dar um recado muito claro a Bolsonaro e aos militares, “Não tentem nenhum golpe, pois nesse caso seremos obrigados a nos opor, com tudo o que isso significa!” Praticamente foi Joe Biden quem impediu o golpe e com isso garantiu de certa forma a vitória de Lula.

7. Como a diplomacia brasileira deve lidar com o segundo mandato de Trump, considerando seu perfil imprevisível?

    PRA: Trump não é apenas imprevisível; ele é caótico, e nisso não tem nenhuma estratégia negociadora. Ele é ignorante em assuntos internacionais, um megalomaníaco desequilibrado, transtornado por certas ideias impossíveis, como a reindustrialização dos EUA, como se isso fosse possível. Na verdade, ele está acelerando do declínio americano e ajudando involuntariamente a China em sua ascensão como novo Hegemon mundial.

    A diplomacia brasileira deveria manter equidistância desses conflitos entre as grandes potências, mantendo a tradicional autonomia decisória e neutralidade da política externa em assuntos que não afetam nosso interesse nacional. A inclinação de Lula pelas duas grandes autocracias do Brics, a Rússia e a China, não combina com valores e princípios de nossa diplomacia, assim como com os padrões tradicionais das relações exteriores do Brasil.

8. Há algum paralelo entre o momento atual e as relações Brasil-EUA durante governos anteriores, como os de Fernando Henrique ou Dilma Rousseff?

    PRA: Nenhum paralelo é possível, pois em períodos anteriores das relações entre as duas maiores democracias do hemisfério americano, presidentes tinham um perfil mais ou menos tradicional na classe política respectiva dos dirigentes em cada país. Com Bolsonaro, o Brasil conheceu um presidente despreparado, disposto a tudo para se mostrar subserviente, não apenas aos Estados Unidos, mas a Trump em particular, tanto que ele hostilizou Joe Biden, negando até sua vitória nas eleições de 2020. Com Trump, o cenário é ainda mais desolador, pois se trata de um elefante numa loja de cristais, uma personalidade altamente egoísta, desequilibrada e megalomaníaca, que está destruindo tudo o que os Estados Unidos construíram desde Bretton Woods, a ONU e toda a ordem liberal ocidental dos últimos 80 anos. Não existem precedentes para as atitudes de Trump na história dos EUA e do mundo, um presidente que atua em detrimento do seu próprio país, por ignorância e também por péssimos assessores, todos demonstrando uma fidelidade canina ao chefe, inclusive nas péssimas decisões que ele toma, como a destruição do sistema multilateral de comércio e a própria ONU.     Já não bastasse Putin e suas aventuras expansionistas militaristas, agora temos um outro autoritário no comando da maior economia do planeta e das Forças Armadas mais poderosas em toda a história da humanidade.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10/10/2025

Livro: A integração regional no Sul Global e seus desafios, Tullo Vigevani, Haroldo Ramazzini - Raíssa Araújo Pacheco (Outros Quinhentos)

A integração regional no Sul Global e seus desafios

Com prefácio de Celso Amorim, obra da Editora Unesp faz um balanço analítico da política externa brasileira no caso do Mercosul e da cooperação entre os países latino-americanos, centrando seu foco na atuação do Brasil como um ator fundamental.
Por Raíssa Araújo Pacheco
Outros Quinhentos, 10/10/2025
https://outraspalavras.net/outrosquinhentos/a-integracao-regional-no-sul-global-e-seus-desafios/

A integração regional é um tema que frequentemente surge nos debates sobre desenvolvimento e inserção internacional. Mas qual tem sido, de fato, o real compromisso do Brasil com seus vizinhos? Por que o Brasil, mesmo em momentos de protagonismo, não conseguiu desenvolver uma capacidade de agência efetiva para moldar o bloco conforme seus interesses?

Essas perguntas são desafiadoras e, até então, haviam sido pouco exploradas pela academia especializada. Elas tocam em um ponto nevrálgico da nossa história diplomática: a aparente contradição entre a retórica favorável à integração e a prática, por vezes, hesitante.

Compreender essa dinâmica é essencial para avaliar o passado e planejar o futuro do Brasil no cenário global, especialmente em um espaço vital como o Mercosul.


Para preencher essa lacuna nos debates acadêmicos e oferecer uma análise profunda e crítica, nasceu a obra Os desafios da integração regional no Sul Global: O caso da Política Externa Brasileira para o Mercosul.

Escrita pelos professores do curso de Relações Internacionais Tullo Vigevani (Unesp/ Unicamp/PUC-SP) e Haroldo Ramanzini Junior (Ieri/UFU/UnB), a publicação é uma iniciativa da Editora Unesp.

Outras Palavras e Editora Unesp irão sortear dois exemplares de Os desafios da integração regional no Sul Global: O caso da Política Externa Brasileira para o Mercosul, de Tullo Vigevani e Haroldo Ramanzini Junior, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 20/10, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!

O livro tem como objetivo fazer um balanço analítico dos resultados alcançados e das razões dos impasses na política externa brasileira em relação ao Mercosul e à integração regional na América do Sul, observando pelo ponto de vista do Estado e dos atores domésticos do Brasil.

Os autores partem da hipótese de que a experiência da integração europeia no pós-guerra não se refletiu no Sul Global. No caso europeu, a integração foi pensada nos princípios da delegação e do controle das soberanias nacionais. Já nos países subjugados pela exploração colonial, a integração foi estruturada para “fortalecer o nacionalismo e preservar a soberania da dominação externa”, como aponta a cientista política Marina Soares de Lima, no texto de orelha da obra.

Longe de trilharem um caminho simples, Vigevani e Ramanzini Junior adentram na complexidade das relações internacionais do Brasil, analisando os períodos em que a integração esteve no topo da agenda e os momentos em que foi relegada a um segundo plano.

Ao longo dos capítulos, a obra examina os fatores domésticos e internacionais, as conjunturas políticas e as concepções de mundo que influenciaram a ação brasileira.

Os autores exploram por que o país, mesmo sendo a maior economia do bloco, nem sempre exerceu a liderança ou a “capacidade de agência” esperada para impulsionar projetos comuns mais ousados.

O escrito é, portanto, uma leitura indispensável para estudantes de Relações Internacionais, profissionais da área diplomática, pesquisadores e qualquer cidadão interessado em compreender os rumos do Brasil no mundo.

A obra oferece chaves de leitura para decifrar um dos temas mais complexos e persistentes da nossa política exterior, fornecendo uma base sólida para reflexões sobre os caminhos futuros da integração na América do Sul.

Leia, logo abaixo, o prefácio do livro por Celso Amorim, que além de ser o atual assessor-chefe da Assessoria Especial do Presidente da República do Brasil. Foi ministro das Relações Exteriores durante os governos Itamar Franco e Lula, e da Defesa do Brasil durante o mandato de Dilma Rousseff.

Boa leitura!

O Mercosul é um dos principais alicerces da integração regional. São mais de três décadas de esforços políticos, econômicos e sociais para a sua construção. Esse patrimônio foi essencial para manter viva a chama da integração regional, mesmo quando os ventos contrários mais fortes sopraram. Entretanto, sua atuação e sua institucionalidade se transforaram ao longo dessas décadas. Refletir sobre o seu papel hoje continua sendo prioridade da política externa brasileira.

O livro de Tullo Vigevani e Ramanzini Junior lança luz sobre o processo histórico e os principais argumentos e atores sociais mobilizados ao longo da história da diplomacia brasileira no que diz respeito à integração dos países da bacia do Prata e da região como um todo. Esta análise nos permite compreender os desafios e as potencialidades do processo de integração do Mercosul e além dele.

O novo mandato do presidente Lula tem um foco abrangente de revitalização da política de integração regional com a reconstrução da Unasul, a consolidação da Celac e o fortalecimento da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Mas o Mercosul continua sendo o esteio dos processos de integração, ao qual investiremos muito da nossa atenção.

Essa agenda, que é para nós o cumprimento do determinado no parágrafo único do artigo 4o. da nossa Constituição Federal, foi abandonada de forma radical nos últimos anos.

No Brasil, um governo negacionista atentou contra os direitos de sua própria população, rompeu com os princípios que regem a nossa política externa e fechou nossas portas a parceiros históricos. Nosso país optou pelo isolamento do mundo e de seu entorno. Essa postura foi decisiva para o descolamento do país dos grandes temas que marcaram o cotidiano dos nossos vizinhos.

Durante esse período, o Mercosul foi objeto de intenso processo de flexibilização que acabou por enfraquecê-lo. Mesmo assim, mostrou-se resiliente: entre diversos espaços regionais que foram desativados, paralisados ou enfraquecidos, o Mercosul sobreviveu às investidas dos que pretendiam debilitá-lo.

O bloco torna-se ainda mais relevante em um contexto global que apresenta desafios de enorme complexidade. As falhas na cooperação internacional durante a pandemia de Covid-19 ilustram essa necessidade. A América Latina foi pega em seu momento de maior fragmentação, o que contribuiu para que estivéssemos entre as regiões mais afetadas pela pandemia: faltaram vacinas, medicamentos, equipamentos de proteção e coordenação transfronteiriça. Cada um dos nossos países atuou isoladamente, sem uma estratégia conjunta que poderia ter mitigado nossas carências.

O acirramento de rivalidades geopolíticas entre grandes potências nos últimos anos alimenta a eclosão ou recorrência de conflitos com repercussões globais e que se entrelaçam de forma delicada e perigosa. A alta global da inflação e do custo de vida agravaram os retrocessos no combate à fome e à pobreza.

Tudo isso ocorre em um momento de enfraquecimento da governança global, em que as principais instituições mundiais enfrentam dificuldades em lidar com a crise climática e a dupla transição energética e digital.

Vivenciamos igualmente a emergência de uma extrema direita que se articula em nível internacional, valendo-se de nacionalismos excludentes para oferecer soluções simplistas a problemas complexos. A desestabilização de processos eleitorais e o avanço de discursos de ódio atinge de forma especial a América do Sul.

É importante recordar que o Mercosul nasceu no contexto de consolidação de nossas democracias, após décadas de regimes ditatoriais em nossos quatro países. A democracia é condição essencial para o desenvolvimento da integração, como nos lembra o primeiro artigo do Protocolo de Ushuaia, assinado em 1998.

O nosso bloco precisa voltar a cumprir um papel estabilizador na América do Sul. Com a superação da crise política na Venezuela, que vemos avançar nos diálogos entre governo e oposição para a realização de eleições presidenciais, esperamos que o país possa em breve reingressar no Mercosul.

A conclusão do processo de adesão da Bolívia como membro pleno permitirá um aumento significativo do tamanho do Mercosul, tanto em sua dimensão econômica como no âmbito político e social. O Mercosul mostra seu poder de atração gravitacional e a necessidade de continuar se relacionando ativamente com os membros associados.

Diante dos desafios multifacetados dos tempos que correm, a integração regional nos torna a todos mais resilientes. Para além da cooperação, facilita a concertação de posições para que tenhamos uma voz mais forte nos foros internacionais e possamos melhor aproveitar as oportunidades que despontam.

Em 2022, o intercâmbio intra-Mercosul somou 46 bilhões de dólares. Não é pouco, mas está abaixo do auge registrado em 2011, de 52 bilhões de dólares. Estamos aquém do nosso potencial. Nosso comércio se caracteriza pela presença significativa de produtos industrializados, e esse é um ativo que precisa ser valorizado e ampliado. A adoção de uma moeda comum para realizar operações de compensação entre nossos países contribuirá para reduzir custos e facilitar ainda mais a convergência.

O bloco também oferece uma plataforma robusta para negociar acordos comerciais extrazona equilibrados, impulsionando nossas exportações para além de matérias-primas, minérios e petróleo, e ampliando o coeficiente de produtos de maior valor agregado.

A articulação de processos produtivos, inclusive na interconexão energética, viária e de comunicações, garante mais resiliência em nossas cadeias de suprimentos. O Fundo de Convergência Estrutural (Focem), com o qual o Brasil quitou recentemente suas contribuições em atraso, tem especial importância nessa dimensão da atuação do bloco.

Será essencial revitalizar as dimensões política e social da integração, avançando na cooperação em áreas como saúde, educação, proteção ambiental, defesa, e no combate aos ilícitos transnacionais, inclusive nas regiões de fronteira.

A construção de um Mercosul mais democrático e participativo, com o fortalecimento do Parlasul, do Foro Consultivo Econômico Social, e com a retomada da Cúpula Social do Mercosul de forma presencial após quase uma década, fomenta os vínculos entre legisladores, empresários e movimentos sociais dos nossos países e confere maior transparência e legitimidade ao bloco.

A reinstalação do Foro Consultivo de Municípios e Estados Federados é também importante para que os entes subnacionais tenham voz. Seu trabalho nas regiões de fronteira e na governança de projetos como o Corredor Bioceânico é imprescindível.

Resgatar o Mercosul requer não apenas iniciativas de política externa, mas também esforços no plano doméstico. O livro Os desafios da integração regional no Sul Global: o caso da Política Externa Brasileira para o Mercosul oferece insumos valiosos para se pensar ambas as dimensões, assim como sua interconexão.

Ao apresentar um balanço analítico da política externa brasileira em relação ao Mercosul e à integração regional na América do Sul, a edição em língua portuguesa atualiza o texto e o torna mais acessível aos que pesquisam e pensam a integração regional em nosso país. É uma contribuição valiosa em um contexto de incertezas da ordem global e em um projeto democrático que se vale, desde o início, da pesquisa e do diálogo na construção de saídas coletivas.

A história nos mostra que os países em desenvolvimento, unidos, são muito maiores que os desafios que nos afligem.

Só a unidade do Mercosul, da América do Sul e da América Latina e do Caribe nos permitirá retomar o crescimento, combater as desigualdades, promover a inclusão, aprofundar a democracia e garantir nossos interesses em um mundo em transformação.

Parafraseando o papa Paulo VI em sua encíclica sobre o progresso dos povos, a integração e o desenvolvimento são os novos nomes da paz.

SOBRE OS AUTORES

Tullo Vigevani é professor titular da Unesp/Marília, nas áreas de Ciência Política e Relações Internacionais, e professor do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais, San Tiago Dantas, da Unesp/ Unicamp/PUC-SP. É pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec) e vice-coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu).

Haroldo Ramanzini Junior possui doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado pela Universidade de Harvard. É professor do Instituto de Economia e Relações Internacionais (Ieri) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), além de editor-chefe da Revista Brasileira de Política Internacional (RBPI) e pesquisador do CNPq, do INCT-Ineu e do Centro de Estudos Globais (UnB).

Em parceria com a Editora Unesp, o Outras Palavras irá sortear dois exemplares de Os desafios da integração regional no Sul Global: O caso da Política Externa Brasileira para o Mercosul, de Tullo Vigevani e Haroldo Ramanzini Junior, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 20/10, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!

Intelectuais no plural: reconfigurações da sociologia dos intelectuais - Carlos Benedito Martins, Felipe Maia (orgs.) (Ateliê de Humanidades)

Intelectuais no plural: reconfigurações da sociologia dos intelectuais

Carlos Benedito Martins e Felipe Maia (orgs.)

[Pré-lançamento]
https://ateliedehumanidades.com/produto/intelectuais-no-plural/

O livro de referência sobre os intelectuais no mundo contemporâneo. Com capítulos de Dominik Želinský, Fernando Perlatto, Gil Eyal, Larissa Buchholz, Randall Collins, Patrick Baert, Marcus Morgan, Jeffrey C. Alexander, Stefanos Geroulanos, Gisèle Sapiro, Aurea Mota, Cristina Patriota de Moura, Michèle Lamont, Enio Passiani, Peter J. Verovšek e Jorge Chaloub.


Compra em pré-lançamento. Envio a partir de 17 de outubro.

Descrição
“A densidade atual das pesquisas sociológicas sobre os intelectuais reconfigurou o campo disciplinar. A amplitude do leque temático, o tratamento rigoroso, resultante de perspectivas analíticas variadas, ressurgem em reflexões diversificadas, visíveis na construção de novos objetos, no estabelecimento de relações entre fenômenos incomuns à tradição reconhecida, enfim, em visadas originais. A coletânea Intelectuais no plural enfrenta as questões mais relevantes da área, reveladas no conjunto das contribuições dispostas nas três sessões que organizam a obra: o movimento de transformação da disciplina, o debate sobre a intervenção e os intelectuais públicos, modelos de intelectuais e trajetórias exemplares. A contribuição desses estudos acompanha o movimento de mudança, que reverbera a complexidade da Sociologia contemporânea. Este é um livro incontornável; imprescindível e oportuno” (Maria Arminda do Nascimento Arruda – Professora Titular, USP)

Orelha
Figuras da modernidade, os intelectuais conformaram o nosso mundo, a nossa imaginação e a nossa crítica durante a maior parte do século XX – hoje dizemos que constituíram nações, uma expressão masculina da experiência humana e um limitado anticapitalismo. Nossa apreciação sobre o mundo e sobre o pensamento mudou, se tornou mais aguda ao longo do tempo e continua mudando. Nossas vidas são afetadas por novas articulações entre nacional e global, história e teoria, razão e liberdade, e conhecem uma reflexividade que desbordou a versão do intelectual sartreano, arauto solitário da verdade e da justiça. Hoje, diante das ameaças que pairam sobre a civilização que conhecemos, é preciso contar com intelectuais ajustados ao tamanho desse desafio: intelectuais coletivos, que associem treinamento acadêmico a outras dimensões, como a comunicação, a articulação política, a tradução cultural para diferentes públicos.

Essa agenda urgente merecia uma bússola, um instrumento de organização do debate sobre a história e as teorias referidas aos intelectuais – desafio aceito por Carlos Benedito Martins e Felipe Maia, que reúnem, em trabalho ímpar, 13 ensaios de 16 autores e autoras de distintas nacionalidades, formações e perspectivas. O livro está organizado em partes: a primeira, situa a questão dos intelectuais nos séculos XX e XXI e oferece um mapeamento conceitual dessa área de conhecimento no Brasil. A segunda acentua a perspectiva de uma “sociologia das intervenções”, discute os nexos entre performance e experiência intelectual, e reconstrói analiticamente a noção de intelectual público. Na terceira e última parte, são tratados deslocamentos espaço-epistêmicos do tema, contemplando modelos plurais de intelectuais com perspectivas inovadoras.

Este livro, bem concebido e muito útil, é um verdadeiro “achado”, fruto do trabalho consistente e meticuloso de dois pesquisadores do tema, sensíveis aos percursos da atividade intelectual em suas historicidades, em seus contextos temporais e espaciais. Mas é também uma aposta na organização do campo, no trabalho coletivo e no futuro bem-pensado (Maria Alice Rezende de Carvalho – Professora Titular, PUC-RJ)

O que especialistas disseram sobre o livro?
“Intelectuais no plural é uma sólida contribuição sobre o papel dos intelectuais, reunindo trabalhos que nos proporcionam um panorama abrangente de teorias, perspectivas históricas, performances e reflexões sobre os desafios contemporâneos” (Elisa Reis – Professora Titular, UFRJ)

“Revisitando questões chaves da Sociologia dos intelectuais e propondo perspectivas renovadas, esta obra é um convite para pensarmos histórias culturais e intelectuais plurais e inovadoras para a Sociologia e para o mundo contemporâneo” (Mariana Chaguri – Professora da UNICAMP)

“A crítica à ideia de missão dos intelectuais não basta para compreender as dinâmicas sociais complexas em que eles se inscrevem, particularmente em contextos periféricos. A sociologia dos intelectuais oferece uma chave para entender sociedade e política, e não apenas para descrever idiossincrasias desse grupo. Esta coletânea, ao tratar os intelectuais, dá um passo importante nesta direção” (André Botelho – Professor Titular, UFRJ)

“Eis um volume plural e fecundo sobre as principais correntes e argumentos interpretativos no domínio da sociologia dos intelectuais, o qual esmiúça tópicos incontornáveis – as abordagens em disputa acerca de uma sociologia dos intelectuais no Brasil, as contendas em torno das feições e do alcance do que se entende por intelectual público –, confronta autores e obras seminais sobre o tema (Randall Collins, Pierre Bourdieu, Jürgen Habermas), sem relegar contribuições recentes e criativas (Gisèle Sapiro e Michelle Lamont). Um livro oportuno, fluente, vivaz, obra de referência por não a­brir mão de perscrutar divergências” (Sergio Miceli – Professor Titular, USP)

Acesse uma amostra do livro aqui:
https://ateliedehumanidades.com/wp-content/uploads/2025/10/E-versao-amostra.-Intelectuais-no-plural-reconfiguracoes-da-sociologia-dos-intelectuais.pdf

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

A Retomada do Pragmatismo: Um Novo Capítulo para o Brasil e o Agronegócio - Neri Geller (Notícia e Fatos)

A Retomada do Pragmatismo: Um Novo Capítulo para o Brasil e o Agronegócio
Neri Geller
Notícia e Fatos, 08/10/2025

        A recente conversa entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Donald Trump representa um marco de maturidade e pragmatismo em nossa política externa. Em um mundo cada vez mais polarizado, onde as trincheiras ideológicas muitas vezes se sobrepõem aos interesses nacionais, a retomada do diálogo entre as duas maiores democracias do Ocidente é uma notícia a ser celebrada por todos que torcem pelo Brasil.
        Como produtor rural e homem público que dedicou a vida a defender os interesses do agronegócio brasileiro, vejo com grande otimismo este novo capítulo. A conversa, descrita por ambos os lados como “muito boa” e “amistosa”, vai muito além de um simples gesto diplomático. Ela sinaliza que, acima das diferenças políticas, há um entendimento de que a cooperação e o comércio são os verdadeiros motores do desenvolvimento.

O Pragmatismo como Norte
        Durante anos, defendi que a política externa brasileira deve ser guiada por um pragmatismo responsável, focado em resultados concretos para o nosso povo e para o nosso setor produtivo. A ideologia, seja de que matiz for, não pode ser um entrave para a prosperidade.
        Lembro-me bem dos períodos em que, como ministro da Agricultura, trabalhamos para abrir mercados e fortalecer nossas exportações. Foi com diálogo e seriedade que o agronegócio brasileiro conquistou o mundo. A conversa entre os presidentes resgata essa tradição, mostrando que o Brasil voltou a ser um ator respeitado no cenário global, capaz de dialogar com todos os grandes players internacionais.

O Fim do Tarifaço: Uma Vitória para o Agro
        O ponto central da conversa, e o que mais interessa ao nosso agronegócio, foi a discussão sobre o fim do tarifaço de 40% imposto aos produtos brasileiros. Esta medida, que tanto prejudicou nossos exportadores, foi um erro que agora temos a oportunidade de corrigir. O pedido direto do presidente Lula para a remoção dessas barreiras, e a receptividade de Trump, que admitiu que os Estados Unidos “sentem falta” de produtos como o nosso café, são sinais extremamente positivos.

A Lição para os Extremos
        A repercussão da conversa nas redes sociais e na imprensa demonstra que a maioria da população brasileira e o setor produtivo estão cansados da polarização estéril. Enquanto uma minoria radical, tanto à direita quanto à esquerda, busca o confronto permanente, a maioria silenciosa anseia por estabilidade, previsibilidade e prosperidade.
        A tentativa de alguns setores de sabotar as relações entre Brasil e Estados Unidos, apostando no isolamento e nas sanções, está longe de ser o melhor caminho. A diplomacia, exercida com maturidade e foco nos interesses nacionais, deve prevalecer.

        A designação do secretário Marco Rubio para conduzir as negociações, embora vista com desconfiança por alguns, deve ser encarada como um sinal de profissionalismo. Caberá à nossa equipe de negociadores, liderada pelo vice-presidente Geraldo Alckmin, demonstrar com fatos e dados a importância de nossa parceria.

Um Futuro de Oportunidades
        O Brasil é um gigante do agronegócio, com capacidade para alimentar o mundo de forma sustentável e competitiva. A retomada do diálogo com os Estados Unidos, nosso parceiro histórico, abre um horizonte de novas oportunidades. Não se trata de submissão ou alinhamento ideológico, mas de uma relação madura entre duas nações soberanas que se respeitam e reconhecem a importância mútua.
Como homem do campo, sei que a semente do diálogo, quando plantada em solo fértil, gera colheitas abundantes. A conversa entre Lula e Trump foi essa semente. Cabe a nós, agora, regar essa planta com seriedade, trabalho e um profundo senso de patriotismo, para que possamos colher os frutos de uma parceria renovada, que trará mais empregos, mais renda e mais desenvolvimento para o nosso Brasil.

Neri Geller é produtor rural, empresário e político brasileiro e Ex-ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento

How Beijing used state planning to build a scientific powerhouse - Hua Bin (Substack)

 « Inspired by the technical progress of the super powers, on March 3, 1986, four scientists from the Chinese Academy of Sciences (CAS) wrote a letter to suggest the program to Deng Xiaoping, who approved it within 2 days. »

https://huabinoliver.substack.com/p/how-beijing-used-state-planning-to 


How Beijing used state planning to build a scientific powerhouse

Introducing four decades-long Chinese national programs to promote basic research and groom talents

Hua Bin

Substack, Oct 9, 2025


China is producing more STEM graduates, publishing more high impact research papers, and filing for more patents than any other country today.

People are amazed with the seemingly sudden outburst of Chinese scientific and technological prowess. But few understand how this has happened.

I’ll dive into some arcane programs launched since Deng’s reform to explore the root of such progress. Unlike the Made in China 2025 plan or the Belt and Road Initiative, these are barely known outside of the country, even unfamiliar to many Chinese. However, their impact is profound and directly power the more visible high-profile programs.

Program 863

Program 863 (863计划 in Chinese), also known as State High-Tech Development Plan, was a program launched in March 1986 (86/3 in Chinese date format hence the name) to stimulate development of advantaged technologies in a wide range of fields.

The goal was to achieve technological independence amid superpower competition.

In 1983, US president Ronald Reagan proposed the Strategic Defense Initiative (SDI) and technological competition between the US and the USSR drastically intensified.

Inspired by the technical progress of the super powers, on March 3, 1986, four scientists from the Chinese Academy of Sciences (CAS) wrote a letter to suggest the program to Deng Xiaoping, who approved it within 2 days.

Those four scientists were Wang Daheng (optical physicist and founder of China’s optical engineering field), Wang Ganchang (nuclear physicist and leader of the nuclear weapons program), Yang Jiachi (aerospace engineer and father of China’s space programs), and Chen Fangyun (electrical engineer, pioneer in radio electronics, and leader of the Beidou satellite system).

The program was led by Zhao Ziyang, the Premier of the country at the time, and received a governmental fund of RMB 10 billion, which accounted for 5% total government spending in 1986.

In 2001, under the 10th Five Year Plan (2001–2005), the program was reevaluated and widened its focus to strengthen the country’s competitiveness in the global economy.


The program specifically focused on nine key technological fields:


- Space

- Information Technology

- Laser technology

- Automation

- Telecommunications

- Biotech

- Energy

- New materials

- Marine tech


Among the products to have directly resulted from Program 863 are the Loongson computer processor family, the Tianhe supercomputers, and the Shenzhou spacecraft.

Many other foundational technological indigenization projects broke earth as part of Program 863,


Program 973

973 Program (973计划), also known as National Basic Research Program, is a basic research program initiated by the State Science and Education Steering Group to achieve technological and strategic edge in various scientific fields and especially the development of the rare earth minerals industry.

The program was launched in March 1997 as a flagship initiative to advance fundamental scientific research.

The goal is to align innovations and technologies with national priorities in economic development, resource security, and technological independence to support the national strategy of “revitalizing the country through science and education” (科教兴国).

The program was managed by the Chinese Ministry of Science and Technology. Natural Science Foundation of China is involved in coordinating the research with the program whose key objectives are -

- Foster basic research: emphasize foundational studies that drive breakthroughs in applied sciences, rather than immediate commercial applications

- Build capacity: train top-tier scientists, establish high-level research bases, and enhance China’s global innovation edge

- Support national priorities: target areas critical to China’s development, such as sustainable resources and public health

Over the years the program has dedicated funding to areas such as agriculture, health, information, energy, environment, resources, population and materials.

The program has funded diverse fields, with central government support for multi-year projects. Major themes include:

- Agriculture – crop resilience, food security

- Health & Population – disease mechanisms, public health modeling

- Energy – renewable sources, efficient utilization

- Information Technology – AI foundations, data systems

- Environment & Resources – pollution control, rare earth minerals extraction and processing

- Materials Science – advanced composites, nanomaterials

- Oceans & Climate - Indo-Pacific oceanic channels, ecosystem responses to climate change (e.g., nutrient fluxes in the East China Sea)


By 2014, it had supported projects in synthetic biology, microbial engineering, and more, leading to over 9 dedicated initiatives in emerging fields like “microbial manufactures.”

Institutions like Tsinghua University have received funding for multiple projects.

Program 973 has been pivotal in elevating China’s R&D landscape, contributing to breakthroughs that underpin sectors like high-tech manufacturing and environmental sustainability.

It’s often credited with helping China close gaps in global science competitiveness.

During the 10th Five-Year Plan, the program adopted a “people-oriented” approach to boost innovation. Funding periods shifted from up to 5 years to a “2+3” model (initial 2 years, followed by assessment and up to 3 more years).

Program 863 and Program 973 were absorbed into the National Key R&D Program in 2016.


Project 211

Project 211 was initiated in 1995 by the Ministry of Education, to strengthen around 100 key universities and colleges for the 21st century and raise them to academic standards at top global universities. The total university count in China is roughly 3,200.

The project aimed to cultivate high-level talent, enhance national research capacity, and improve China’s overall competitiveness by providing funding and top-tier equipment to designated universities.

The project eventually included 115 universities and included high ranking institutions such as Tsinghua University, Wuhan University, and Fudan University.

The Chinese government invested significant funding and provided top-notch teaching and research equipment to these institutions.

Universities under Project 211 were responsible for a large percentage of China’s doctoral and graduate training, state-level key subjects, and scientific research activities.

Among the 12 million high school graduates who took the national college entrance exam (Gaokao), those universities are regarded as the holy grail for economic and social mobility.

In essence, Project 211 was a strategic investment by the Chinese government to build world-class academic institutions and foster national talent for the new century.


Project 985

Project 985 was a higher education initiative launched by the Chinese government in May 1998 to develop an even more select group of top-tier universities than Project 211 into “world-class” institutions.

The project was announced on May 4, 1998, during Peking University’s centennial celebration, with President Jiang Zemin’s personal endorsement.

This is the most prestigious group of schools in the country. Initially only 9 universities were included and now expanded to 39 top universities. All universities in Project 985 were also included in the earlier Project 211.

The program objective is defined as “cultivating leaders and researchers to compete internationally and address national priorities like tech independence and sustainability”.

The central and local governments allocated massive funding to the universities included in Project 985. This money was used to build new research facilities, improve existing infrastructure, attract top faculty, and increase international exchange and cooperation.

The project dramatically increased the international competitiveness and research output of the participating universities. It is widely credited with significantly boosting the quality of higher education and research in China.


The project went through 3 phases –

- Phase 1 (1999–2008): focus on infrastructure, faculty recruitment, and research capacity with substantial initial funding. For example, Peking and Tsinghua each received RMB 1.8 billion in the first year of the project

- Phase 2 (2009–2016): Emphasize global rankings, interdisciplinary research, and international collaboration

- Phase 3: integration. By 2017, Project 985 and Project 211 were merged into the “Double First-Class University Plan”, which broadened the focus to include more institutions and disciplines while maintaining the elite status of 985 universities.

The result of Project 985 was the emergence of elite universities such as Peking, Tsinghua, Zhejiang, Fudan, Shanghai Jiaotong, and Harbin Institute of Technology that are now world leaders in engineering, computer science, robotics, aerospace, and medicine.

These universities lead in patents, publications, and breakthroughs in AI, quantum computing, and green energy. They produce a significant share of China’s PhDs, researchers, and industry leaders.

Project 985 was a cornerstone of China’s ambition to rival global academic powerhouses like the Ivy League or Oxbridge.

Every one of the “Project 985 universities” is ranked among the top 100 global research institutions in the Nature Index ranking I wrote about in the last article.


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[Nature Index’s latest global science ranking

Hua Bin - Oct 7

Earlier this year, I wrote about the prestigious Nature magazine’s 2024 Nature Index ranking of global research institutions based on the quantity and impact of their research output in high end science journals. 

https://huabinoliver.substack.com/p/whose-universities-are-better-china ]

Even today, when Project 985 is officially completed, the prestige of a “985 degree” is still highly regarded in Chinese society by employers and even prospective spouses.

Together with Program 863 and Program 973, which funded specific basic research projects across institutions, Project 211 and Project 985 focused on institutional development—buildings, labs, faculty, and research publication.

The 985 and 211 universities often lead 863 and 973-funded projects due to their advanced research infrastructure. For example, Tsinghua has led numerous 863 and 973 projects in materials science and AI, leveraging resources as a participant of Project 985.

Interestingly, over the past 4 decades, Tsinghua’s engineering schools also graduated a large portion of the top leadership in the Chinese government, including President Xi, his predecessor President Hu Jingtao and former Premier Zhu Rongji.


quarta-feira, 8 de outubro de 2025

As mensagens presidenciais de 1947 a 1960: Desenvolvimentismo e inflacionismo - Paulo Roberto de Almeida (portal Interesse Nacional)

 Meu trabalho mais recente publicado, originais n. 5011, publicados 1595

As mensagens presidenciais de 1947 a 1960 – Desenvolvimentismo e inflacionismo

Nota sobre as mensagens presidenciais ao Congresso, de 1947 a 1960

Portal Interesse Nacional, 8 outubro 2025

link: https://interessenacional.com.br/portal/as-mensagens-presidenciais-de-1947-a-1960-desenvolvimentismo-e-inflacionismo/

Juscelino Kubitscheck começa por identificar os “problemas de base do Brasil”

A Primeira República, depois chamada de “velha” pelos historiadores, durou exatamente 41 anos, não sem alguns tropeços pelo caminho: revolta da Armada, rebeliões internas, revoltas tenentistas começaram a abalar seus fundamentos desde os primeiros tempos. 

Mais desafiadora foi a fraude perpetrada por Washington Luiz, em 1930, ao forçar a candidatura de seu pupilo Júlio Prestes, elegendo-o pelo meio da “verificação dos resultados” das urnas (que era o expediente usado pelas oligarquias para eleger quem elas quisessem), o que resultou no rompimento do esquema “café com leite” entre Minas Gerais e São Paulo, abrindo espaço para os gaúchos castilhistas irromperem na política nacional. 

‘Uma das virtudes da República Velha foi a de produzir boas mensagens presidenciais ao Congresso sobre o estado da nação a cada quadriênio’ 

Uma das virtudes da República Velha, do ponto de vista aqui seguido, foi a de produzir boas mensagens presidenciais ao Congresso sobre o estado da nação a cada quadriênio (dois deles interrompidos pela morte do incumbente). 

As mensagens retornaram em 1933, como examinado numa avaliação anterior desta série, mas só enquanto o Legislativo conseguiu funcionar “normalmente”, o que começou na Assembleia Constituinte de 1933-34 e veio a terminar com o golpe do Estado Novo de novembro de 1937, acabando com o Congresso e com a representação federativa. 

No intervalo tivermos a intentona comunista de novembro de 1935 e a decretação da Lei de Segurança Nacional. 

Com o golpe do Estado Novo, em novembro de 1937, o Brasil voltou a ser um Estado unitário durante oito anos, conduzido por um ditador que ainda realizou o prodígio de terminar popular, ao introduzir reformas com sentido social, em especial no terreno trabalhista e sindical (aqui consagrando o atrelamento oficial ao Estado, como no regime fascista de Mussolini, cuja Carta del Lavoro inspirou a nossa Consolidação das Leis do Trabalho, vigente até nossos dias).

As mensagens presidenciais de 1947 a 1964 são retomadas no segundo ano do governo de Eurico Gaspar Dutra, depois de introduzida uma nova Constituição, a quinta de nossa trajetória republicana; estão reunidas no volume Documentos Parlamentares 127 da Câmara dos Deputados (1978).

‘O volume que consolida todas as mensagens do período da República de 1946 apresenta um retrato impressionante das grandes questões que agitaram o Brasil’

O volume que consolida todas as mensagens do período da República de 1946 apresenta um retrato impressionante das grandes questões que agitaram o Brasil nesses 17 anos e dos principais problemas que estiveram na origem da instabilidade política registrada naqueles anos, mas também de um grande impulso econômico em direção de uma sociedade urbanizada e industrializada. Registre-se, aliás, que o Introdutor desse volume, José Augusto Guerra, chama a atenção para um aspecto dessa instabilidade, que parece ter persistindo até a atualidade: 

Observa-se, porém, que à exceção de Eurico Dutra e Juscelino Kubitschek, nenhum dos presidentes passou a faixa presidencial ao sucessor com as honras do estilo. Getúlio suicidou-se; Café Filho foi declarado impedido; Carlos Luz, Presidente por 24 horas, também declarado impedido; Jânio Quadros surpreendeu a nação (e talvez a si próprio) renunciando espetacularmente; e João Goulart foi deposto, estranhos episódios estes, que ainda hoje repercutem no inconsciente coletivo de nosso povo, como fatos que não escondem a gravidade de um mal antigo, que remonta às origens de nossa formação, e para o qual nossas elites não encontraram ainda solução. Em nosso País, toda sucessão presidencial assume as proporções de crise política. (p. 18-19)

Vamos examinar, sinteticamente, quais foram esses problemas mais graves e como se operou uma das mais importantes fases da modernização econômica e social do Brasil antes apenas agrário, depois dotado de uma indústria relativamente pujante. 

O período também superou a “americanização” de sua política externa, desde os primeiros anos da Guerra Fria, para lograr uma breve, mas vibrante, Política Externa Independente, que também dividiu o país e suas elites. 

‘Os temas constantes em cada uma das mensagens são, sem dúvida, o problema da inflação, os déficits públicos e o foco no desenvolvimento’

Os temas constantes em cada uma das mensagens são, sem dúvida, o problema da inflação, os déficits públicos e o foco presente em praticamente todos os governos com a questão do desenvolvimento, invariavelmente impulsionada pelo Estado.

Na sua primeira mensagem ao Congresso Nacional, o presidente Eurico Dutra, por exemplo, já começa dizendo que o “governo me foi transmitido em período dos mais difíceis da vida nacional, vivamente conturbada não só pelo desequilíbrio econômico-financeiro, mas também pelas paixões políticas, intranquilidade e desconfiança gerais, – tudo agitado por uma situação internacional agitada e incerta” (p. 31). 

Havia escassez de mercadorias importadas, restrições como resquício da guerra recente, saldos em divisas congelados pelos países que importaram durante o conflito global, num país que ainda exibia 55% de analfabetos. 

No plano externo, cabe registrar a “continuação das linhas tradicionais de nossa política externa” (p. 52), sendo que os diplomatas foram chamados a estimular novamente os acordos com os países europeus para atrair imigrantes ao Brasil (p. 53). 

‘Nos anos 1948-1950, ressurgem os temas da renegociação de nossas dívidas e a busca de novos empréstimos’

Nos anos 1948-1950, ressurgem os temas da renegociação de nossas dívidas vindas ainda das décadas passadas, assim com a busca de novos empréstimos para estabilização dos déficits externos.

Nos anos 1951-1952, o governo Vargas volta a se preocupar com a inflação, já identificada como resultante do “desequilíbrio orçamentário” (p. 139), ao passo que os anos 1953-1954 são dominados pela questão da exploração do petróleo, assim como pelo “estreitamento do relações com países insuficientemente desenvolvidos” (p. 167), ainda que um acordo de assistência militar tenha sido concluído com os Estados Unidos.

 O “retorno de capitais estrangeiros”, isto é, lucros e dividendos, já é visto como um problema para o balanço de pagamentos, apontando-se a necessidade de uma lei limitativa dos fluxos. O vezo nacionalista e intervencionista encontra-se expressamente registrado, ao se indicar que

Mesmo nos setores em que, tradicionalmente, o Estado brasileiro se tem abstido de atuar de forma direta, a iniciativa privada, nacional ou estrangeira, mostra-se desinteressada em aplicar-se na supressão daqueles pontos de asfixia. (p. 170). 

Vargas conclui sua mensagem de 1954 (antes que a crise engolfasse seu governo) dizendo que o governo se empenha “na busca de meios para corrigir o desgaste de seus instrumentos de ação sobre a conjuntura econômica… Urge desinflacionar, mas de tal arte [sic] que não se percam as conquistas da expansão” (p. 178). 

‘O governo Vargas constitucional já tinha aderido ao desenvolvimentismo como a grande ideologia do interesse nacional’

Em resumo, o governo Vargas constitucional já tinha aderido ao desenvolvimentismo como a grande ideologia do interesse nacional, concluindo ao dizer que o panorama descrito “comprova o acerto das diretrizes do governo” (idem). Meses depois a crise política terminaria por encerrar prematuramente esse mesmo governo. 

A única e solitária mensagem do governo Café Filho, em 1955, começa com quatro grandes títulos, tratando respectivamente dos seguintes temas (todos em caixa alta): “A crise política e militar, a morte do presidente Getúlio Vargas e a ascensão do novo governo” (p. 181-83); “A conduta das classes armadas, das forças políticas e do povo” (p. 183-84); “Mensagem de esperança” (p. 185); “O governo e as eleições” (p. 185-88); “A crise econômica e financeira” (p. 189-90) e “Revisão constitucional, reforma eleitoral e legislação trabalhista”(p. 190-91).

‘O “interesse nacional” foi deslocado para a resolução do ambiente de crise criado com a ruptura dramática ocorrida em 1954’

Ou seja, o “interesse nacional” foi deslocado para a resolução do ambiente de crise criado com a ruptura dramática ocorrida em 1954, o primeiro ano de funcionamento da prometedora estatal do petróleo, a Petrobrás, “com capital inicial de 4 bilhões de cruzeiros” e a constituição de um “fundo nunca inferior a 3% nem superior a 5% da receita cambial, a fim de assegurar divisas para o programa da Petrobrás” (p. 193). 

Mas, como Café Filho indicou igualmente, ao contrário do superávit previsto, “a execução orçamentária em 1954 evidenciou a existência de um vultoso déficit da ordem de 7 bilhões de cruzeiros” (p. 194), o que foi inteiramente coberto “com emissões de papel-moeda”, exatamente no mesmo montante. 

O regime cambial já havia sido alterado em 1953, instituindo-se “parcialmente, o regime de câmbio livre, com exclusão do café, algodão e cacau” (p. 195), por acaso os principais itens da exportação. Mesmo demonstrando sua contrariedade com “as disputas de caráter meramente personalista ou faccioso” (p. 188), Café Filho conclui reconhecendo, que a despeito da “estrutura da autoridade estatal de nosso sistema presidencialista, o Parlamento recuperou a força que lhe é própria, como instrumento de representação das massas” (p. 206), o que iria ser plenamente demostrado nos conflitos políticos dos anos à frente. 

‘Juscelino Kubitscheck começa por identificar os “problemas de base do Brasil”, sendo estes a “valorização das áreas subdesenvolvidas e planejamento econômico”’

Ao iniciar a primeira de suas cinco mensagens ao Congresso Nacional, de 1956 a 1960, Juscelino Kubitscheck começa por identificar os “problemas de base do Brasil”, sendo estes a “valorização das áreas subdesenvolvidas e planejamento econômico” (p. 212). 

Ele continua por um “balanço da realidade nacional”, numa fase em que a taxa de crescimento da economia já se situava acima de 5% ao ano, mas já marcando o dobro para a alta do custo de vida, o que se explicava pela “desproporcionalidade entre o crescimento do volume de despesas monetárias e a quantidade de bens e serviços oferecidos” (p. 215), um diagnóstico provavelmente feito por algum tecnocrata do BNDE. Juscelino não deixa de reconhecer que tinha encontrado “o País sob os intensos e perniciosos efeitos da espiral inflacionária (…) com um déficit financeiro de pouco mais de onze bilhões de cruzeiros” (p. 215-160. 

Ele também anunciava a liquidação de débitos externos, “alguns em circulação desde 1888” (p. 224), e a existência de 23 acordos bilaterais de pagamentos ainda a resolver (p. 239). Ao tratar do seu amplo programa de metas, prometendo que a indústria automobilística “deve ser implantada em bases amplas e definitivas” (p. 261), em nenhum momento do relatório – em grande medida relativo a 1955 – Juscelino menciona o projeto de construir uma nova capital. 

Esse tema, na verdade, só aparece na mensagem de 1958, quando ele promete que todos os trabalhos e serviços “que uma cidade moderna exige, estarão ultimados quando ali [no Planalto Central] se instalarem os três Poderes da República, a 21 de abril de 1960” (p. 297), sem que se mencionem, no entanto, os custos previstos no empreendimento; no mesmo ano é aprovada uma nova tarifa aduaneira, deliberadamente protecionista. 

‘Em 1959, o governo decide empreender a primeira iniciativa de caráter multilateral brasileira, a “Operação Pan-Americana”’

Em 1959 ganha destaque o “brado de alerta contra a estagnação econômica que aflige toda a América Latina”, razão pela qual seu governo decide empreender a primeira iniciativa de caráter multilateral brasileira, a “Operação Pan-Americana” (p. 302-3). 

A OPA não resultaria, porém, num novo Plano Marshall para a América Latina, como a diplomacia brasileira talvez esperasse que pudesse brotar de uma eventual reedição da generosidade americana para com a Europa do imediato pós-guerra, mas ela fez surgir um novo banco regional de fomento a projetos na região, o BID, que acabou sendo uma possibilidade a mais de financiamento para obras de infraestrutura e outros projetos, ademais de constituir um corpo técnico bem mais eficiente do que a Cepal – que tinha virado uma escola de promoção de novas teorias do desenvolvimento ao estilo keynesiano-prebischiano – para a elaboração de estudos e projetos com viabilidade para fazer avançar o desenvolvimento dos países latino-americanos.

‘De todas as grandes realizações da era JK – o Plano de Metas, a OPA e a construção da nova capital serão as que marcarão de maneira indelével esses anos que combinaram desenvolvimento com democracia’

De todas as grandes realizações da era JK – merece ser identificado a uma “era” – o Plano de Metas, apontando para um mirífico “50 anos em 5”, a própria OPA e a construção da nova capital serão as que marcarão de maneira indelével – junto com a primeira Copa do Mundo de Futebol, em 1958, e a Bossa Nova – esses anos que combinaram desenvolvimento com democracia (embora ameaçada por duas revoltas militares). 

A edificação da nova capital não teve, ao que parece, um orçamento próprio, o que certamente contribuiu para um forte impulso inflacionário que teria efeitos perversos no governo imediatamente sucessor, como foi de fato o caso. A aceleração do processo inflacionário pode ter sido um fator bem mais relevante do que a “ameaça do comunismo” para as crises que se sucederam a partir de 1961, culminando no golpe militar de março de 1964. 

A última mensagem de JK ao Congresso, datada de 15 de março de 1960, trouxe a confirmação da fundação do BID, mas também a promessa de uma área de livre comércio na América Latina, com a assinatura do Tratado de Montevidéu criando a Alalc.

Foi anunciada, ademais, a conclusão do Convênio Internacional do Café, bem como a ampliação regulada do comércio com os países socialistas. Mas JK também prenunciava, em relação ao ano anterior, um “desequilíbrio financeiro superior a 35 bilhões” (p. 334), ademais de um objetivo talvez nunca realizado por completo: “A malária está em vias de se extinguir em vários Estados” (p. 339). Brasília, de maneira otimista, foi designada como uma “revolução, porventura a mais fecunda do nosso tempo: a mudança na rota de um País empenhado em transpor a barreira do subdesenvolvimento…” (p. 340).

De maneira convergente com os demais governos da República de 1946, os principais problemas dos 14 anos de finalização da capital no Rio de Janeiro foram, pela ordem de importância: a inflação, os déficits fiscais e orçamentários, ademais dos diversos planos de desenvolvimento e das políticas voltadas à industrialização do país.

‘O interesse nacional esteve definido por dois vetores negativos: inflação e déficit-dívida; e dois positivos: a modernização da economia pelo impulsionamento da industrialização’

 Pode-se dizer, assim, que o interesse nacional esteve definido por dois vetores negativos: inflação e déficit-dívida; e dois positivos: a modernização da economia pelo impulsionamento da industrialização. 

A política externa logrou inserir o país nos principais acordos econômicos multilaterais do período, do lado comercial e do financiamento externo, mas não logrou definir ou influenciar padrões de políticas macroeconômicas e setoriais que estavam sendo adotados, na época, pelos países que se colocaram na vanguarda das economias de mercado e das democracias.

É diplomata e professor, doutor em Ciências Sociais (Universidade de Bruxelas) e mestre em Economia Internacional (Universidade de Antuérpia). Dedica-se a atividades acadêmicas e é autor de livros sobre relações internacionais, diplomacia econômica e história diplomática do Brasil

 Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Patrimônio belga no Brasil: Enciclopédia das Memórias Belgas no Brasil

A Bélgica é, de certa forma, a minha segunda pátria: todos os meus diplomas superiores – graduação, mestrado e doutorado – são emitidos por universidades belgas, nas quais estudei durante a ditadura militar no Brasil, durante quase sete anos de um exílio voluntário.

Novos verbetes na enciclopédia das presenças belgas no Brasil

Enciclopédia das Memórias Belgas no Brasil, disponível no site www.memoriasbelgas.com.br, segue em constante expansão. No último mês, foram adicionados novos verbetes que destacam trajetórias pouco conhecidas de belgas que, neste caso, deixaram sua marca na história e na cultura do país.

Entre os novos perfis, está o de Edmond van Parys, fundador da empresa Citrobrasil, uma exportadora de frutas cítricas que se tornou, em meados da década de 1960, a maior do setor no Brasil.
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Outro destaque é Laurent De Wilde, empreendedor que desempenhou um papel relevante na cena das belas artes do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX. Ainda há lacunas sobre sua vida e formação e o site convida pesquisadores e leitores a contribuir com informações adicionais.
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Também foi incluído o verbete de Paul Burlandy, um operário belga assassinado em 1922, no bairro da Pompeia, na cidade de São Paulo — episódio que ganhou grande repercussão na imprensa da época.
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Por fim, graças a informações fornecidas pelo Cônsul da Bélgica no Rio de Janeiro, Emmanuel De Groof, o projeto identificou que Gustavo Snoeck foi o descobridor do Poço Encantado, uma das atrações naturais mais visitadas da Chapada Diamantina (BA).
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A equipe do Memórias Belgassegue aberta a colaborações de pesquisadores, descendentes e interessados em ajudar a reconstruir essa fascinante história compartilhada entre a Bélgica e o Brasil.
 

Ruas com toque belga

O leitor Ricardo Planca chamou a atenção para um curioso detalhe da presença belga em Santa Catarina: duas ruas da região levam sobrenomes de descendentes de imigrantes belgas — e ambos pertencem à sua própria família.

Trata-se da Rua Cesar Blanck, localizada no bairro Santa Teresinha, em Gaspar (SC), e da Rua Zeni Planca Pereira, no bairro Itajuba, em Barra Velha (SC). Esses logradouros foram incluídos na lista de “ruas com toque belga”, disponível no site Memórias Belgas, que reúne nomes de vias batizadas em homenagem a descendentes dos imigrantes que chegaram à cidade catarinense de Ilhota entre 1844 e 1846.

Este levantamento contribui para a preservação da memória da presença belga no Vale do Itajaí e o reconhecimento da contribuição dessas famílias à formação da região.
Se você conhece outras pessoas, locais, patrimônios ou histórias ainda não mencionadas no site, entre em contato para ajudar a ampliar esse mapa da herança belga no Brasil.
 

As Aventuras de Zé e Maria: quando os quadrinhos belgas conquistaram o Brasil


A Bélgica ocupa um lugar de destaque no universo da nona arte. Reconhecida mundialmente por sua rica tradição em histórias em quadrinhos, o país já foi descrito pela revista Time como tendo “a cultura de HQs mais rica da Europa”, enquanto o Calgary Suna chamou de “lar das histórias em quadrinhos”. Personagens como Tintim, criado por Hergé, e os Smurfs (Les Schtroumpfs), de Peyo, tornaram-se ícones globais e marcaram gerações — inclusive no Brasil.

Não é raro encontrar brasileiros que cresceram acompanhando as aventuras do Tintim e seu fiel cachorro Milou, ou que visitaram a famosa Rota dos Quadrinhos na cidade de Bruxelas. O encanto também atravessou o Atlântico de outras formas: em Ilhota (SC), o tradicional “Passeio dos Smurfs”, promovido pela Associação Ilha Belga, sempre atraiu grande público.

Mas a influência belga nas HQs publicadas no Brasil vai além dos nomes mais conhecidos. Para surpresa de muitos, a série “De avonturen van Suske en Wiske”, de Willy Vandersteen, chegou ao país no final da década de 1950, lançada pela Editora Marcel Beerens, do Rio de Janeiro, com o título “As Aventuras de Zé e Maria”. Pelo menos três histórias foram traduzidas: Os Mosqueteiros Endiabrados, O Hipopótamo Cantor e O Toureiro Gaiato.



Outro exemplo é o quadrinho “De laatste diligence” (A Última Diligência), da série “De avonturen van Betsy”, que ganhou versão brasileira como “As Aventuras de Diana”, também publicada pela mesma editora carioca.

Essas descobertas revelam apenas uma parte da presença belga nos quadrinhos editados no Brasil. Muitos títulos ainda permanecem esquecidos. Por isso, convidamos nossos leitores a contribuir com informações que ajudem a completar essa lista e resgatar mais um capítulo dessa fascinante história cultural compartilhada entre a Bélgica e o Brasil.
  


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